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terça-feira, 15 de julho de 2025

O Destino de Giovanni Marchetto: Um Emigrante em Busca de Esperança


 

O Destino de Giovanni Marchetto
Um Emigrante em Busca de Esperança


Giovanni Marchetti era um agricultor humilde de uma pequena localidade de Mirabello, na província de Ferrara, Itália. Como muitos outros na década de 1880, ele via a América do Sul como uma terra de promessas. A Itália estava afogada em crises econômicas, e os campos áridos não produziam o suficiente para sustentar sua família. Giovanni, sua esposa Maria e seus dois filhos pequenos decidiram arriscar tudo e partir para o Brasil, onde lhes haviam prometido terras férteis e oportunidades de trabalho.

O início da jornada foi uma sucessão de desilusões. A carta que Giovanni escreveu durante a travessia é um testemunho de sua angústia. Ele descrevia como, no navio, as pessoas estavam "apertadas como sardinhas em lata". A morte rondava a embarcação: um menino de apenas cinco anos, saudável e cheio de vida, sucumbiu a uma febre. Outros oito passageiros estavam gravemente doentes. Gritos de dor e lamentos ecoavam incessantemente. A comida era quase incomível, e o pão, "duro como ferro", não amolecia nem com água.

Giovanni era um homem calmo por natureza, mas o tratamento desumano o enfureceu. A indignação tomou conta quando descobriu que haviam sido enganados pelos agentes de emigração. Pagaram por um lugar em um navio a vapor, mas foram colocados em uma embarcação à vela, que transformava a travessia em uma interminável provação. Ao chegarem a Marselha para uma escala, Giovanni e outros 100 emigrantes confrontaram os agentes responsáveis pela fraude. A revolta quase terminou em violência, mas a chegada das autoridades evitou o pior. Os culpados foram presos, mas a incerteza sobre o futuro permanecia.

Após semanas de sofrimento no mar, o navio finalmente chegou ao porto de Porto Vitória, no Brasil. A visão era desoladora: um local cercado por mata fechada, com poucas construções e nenhuma infraestrutura. Giovanni foi designado para trabalhar em uma colônia agrícola no interior da província de Santa Tereza, junto com dezenas de outras famílias italianas.

Os primeiros meses foram de luta incessante. Sem ferramentas adequadas e enfrentando um clima tropical opressivo, Giovanni teve de abrir espaço na floresta virgem para plantar. A malária e outras doenças eram companheiras constantes. Muitos vizinhos sucumbiram, mas Giovanni não desistiu. Ele trabalhou incansavelmente, com Maria ao seu lado, plantando as sementes que lhes dariam sustento no futuro.

Um dos momentos mais marcantes aconteceu no segundo ano de sua chegada. Após uma colheita particularmente bem-sucedida, Giovanni escreveu novamente à sua família que permanecera na Itália. "Hoje, senti o gosto da terra que sonhei. O milho está alto, e o trigo é dourado como o sol. A dor e o cansaço quase me fizeram desistir, mas agora vejo que fizemos a escolha certa. Não foi pela riqueza que viemos, mas pelo direito de sonhar com um futuro para nossos filhos."

Giovanni e Maria tornaram-se pioneiros respeitados na colônia. Suas terras floresceram, e eles ajudaram outros imigrantes recém-chegados a enfrentarem os desafios. Embora a saudade da Itália nunca tenha desaparecido, eles encontraram um novo lar no Brasil, onde construíram uma vida de trabalho árduo e dignidade.

A carta de Giovanni, escrita no momento mais sombrio de sua jornada, tornou-se um símbolo de sua resiliência. Anos mais tarde, seus descendentes a preservaram como uma relíquia, lembrando que a coragem de um homem pode transformar o desespero em esperança.



quarta-feira, 9 de julho de 2025

Vozes Ausentes: A Dor de uma Mãe Imigrante na Colônia Dona Isabel

 



Vozes Ausentes

A Dor de uma Mãe Imigrante na 
Colônia Dona Isabel

Na vastidão da colônia esquecida,
Entre o mato fechado e o pó da estrada,
Uma mãe leva a dor, sempre escondida,
E o tempo arrasta a vida, desgraçada.

Três filhos guarda — são seu bem maior —,
Mas dois lhe faltam, e o vazio a toma.
Silêncio fere — um silêncio sem cor —,
Quase um ano sem carta, sem diploma.

No fundo da mata, seu canto é oração,
Desejo de letras que nunca vieram.
Ecoa o clamor — dor sem redenção —,
Enquanto as estrelas as noites teceram.

Os dias rastejam no chão, sem calor,
E as lágrimas riscam seu rosto cansado.
A esperança tropeça no temor,
Sozinha, ferida, num tempo calado.

A saudade aperta — estilhaça o peito —,
E a dúvida bate, sem se anunciar:
"Estão bem? Estão longe? Por que esse jeito?
Em terras distantes, vão me escutar?"

No Brasil, vela a mãe com fé e ardor,
Por notícias que tragam algum consolo,
Das filhas casadas, perdidas no amor,
Na França e nos Estados — fora do solo.

A cada alvorada, renasce o querer:
Um amor que resiste ao tempo e ao mar,
A força de mãe, que jamais vai ceder
Às marés que insistem em lhe afogar.

No ermo da mata, em silêncio profundo,
Ela acende a fé — sua última espera —,
Sonhando que as cartas cruzem o mundo
E tragam, enfim, sua aurora primeira.

Em cada estrofe que aqui se apresenta,
Celebro essa mãe de esperança em flor:
A dor, o silêncio, a alma que aguenta,
Na fé de um reencontro cheio de amor.

lcbpiazzetta

sábado, 28 de junho de 2025

Esperança em Terras Brasileiras As Cartas de Rosa Ricciardi


  

Esperança em Terras Brasileiras

As Cartas de Rosa Ricciardi 


Era o ano de 1910 quando Rosa Ricciardi, uma jovem de 22 anos da pitoresca localidade de Monferrato, no coração da Itália, tomou a difícil decisão de cruzar o oceano rumo ao Brasil. Ao lado de seu irmão mais velho, Pietro, Rosa carregava consigo mais do que uma mala de pertences simples; trazia sonhos moldados por promessas de terras férteis e de um futuro mais próspero. A Itália, com seus campos castigados pela pobreza e pela falta de oportunidades, tornara-se um lugar de limitações, enquanto o Brasil despontava no horizonte como uma terra de possibilidades.

Monferrato, com suas colinas cobertas de vinhedos e igrejas que ecoavam a fé ancestral, era um lar impregnado de tradições. Mas, para Rosa, cada rua conhecida parecia sufocar a ânsia por algo maior. A despedida foi marcada por lágrimas contidas e abraços apertados, com a mãe entregando à filha um pequeno terço, dizendo: “Para que nunca esqueça de rezar, onde quer que esteja.

A viagem no vapor foi longa e exaustiva, repleta de desafios que Rosa não podia ter previsto. Nos primeiros dias, ela se deixava maravilhar pelas águas infinitas do oceano, mas logo vieram o enjoo, o desconforto das cabines apertadas e o cheiro constante de maresia e combustível. A comida era escassa e monótona, e o convívio forçado com dezenas de famílias desconhecidas frequentemente levava a pequenos atritos. Pietro, sempre o protetor, fazia o possível para manter o ânimo de Rosa, contando histórias da infância e descrevendo com entusiasmo as vastas terras que os aguardavam no Novo Mundo.

Apesar disso, os desafios não eram apenas físicos. Cada milha que afastava o navio da Itália parecia arrancar um pedaço do coração de Rosa. A saudade dos pais, dos amigos e do som dos sinos da igreja de Monferrato pesava mais a cada dia. Havia noites em que Rosa, sob a luz pálida da lua, se perguntava se o sacrifício valeria a pena. Contudo, seu espírito resiliente, alimentado pela fé e pelo sonho de um recomeço, a fazia prometer a si mesma que transformaria o sofrimento em força.

Quando finalmente avistaram o porto do Rio de Janeiro, o coração de Rosa se encheu de esperança e apreensão. A exuberância da paisagem tropical, com montanhas verdejantes e palmeiras que pareciam tocar o céu, era deslumbrante, mas o desconhecido também era intimidante. O desembarque foi apenas o início de uma jornada ainda mais árdua. Logo na manhã seguinte embarcaram em outro navio, o Maranhão, rumo ao porto de Santos. 

As promessas de terras férteis escondiam as dificuldades de adaptarem-se a uma realidade completamente nova. A barreira do idioma, o isolamento nas colônias e a luta diária para desbravar e cultivar a terra eram desafios que apenas os mais determinados podiam superar. Rosa sabia que a jornada seria longa, mas também acreditava que, com coragem e união, ela e Pietro conseguiriam transformar aquele pedaço de terra estrangeira em um lar.

Ao desembarcarem no porto de Santos, Rosa e Pietro foram encaminhados para trabalhar nas plantações de café em uma grande propriedade no interior do estado, próxima à cidade de Campinas. As condições na fazenda eram duras: alojamentos precários, que antes tinham servido de senzala, as longas jornadas sob o sol escaldante e uma comunicação limitada com a família na Itália. A saudade era uma constante em sua vida, e Rosa encontrava conforto escrevendo cartas aos pais, relatando sua rotina e seus sentimentos.

Em uma de suas cartas, Rosa escreveu:

"Queridos pais, aqui estou, escrevendo neste pedaço de papel humilde, para responder à vossa tão esperada carta. Ler vossas palavras foi um consolo para meu coração. Saber que todos estão com boa saúde – o senhor, querido pai, a senhora, querida mãe, minhas irmãs Mariuccia e Angelina, meus tios, sobrinhos e até mesmo a pequena Gostina – encheu-me de alegria. Mas, ah, como sinto falta de vossas vozes e de vossos rostos! Imaginem que esperamos ansiosos todas as manhãs pelo retrato que prometestes enviar. Mesmo que seja apenas uma imagem em papel, será como vos rever após cem anos de distância, embora tenham se passado apenas dezesseis meses."

Apesar de sua saudade, Rosa não deixava de reconhecer as pequenas vitórias conquistadas em terras brasileiras. A cada mês, ela e Pietro conseguiam juntar um pouco mais de dinheiro. Sonhavam com o dia em que poderiam adquirir um pedaço de terra próprio e começar uma nova vida, longe das plantações dos fazendeiros, onde não se sentiam em casa. Dizia que deveriam mudar para outro local, onde o clima e o povo eram mais parecidos com a terra natal. Mas, primeiro precisavam cumprir até o fim o contrato firmado e pagar todas as dívidas contraídas com o patrão.

Em uma noite chuvosa, Rosa escreveu outra carta emocionante:

"Queridos pais, hoje escrevo com o coração apertado, mas também esperançoso. Pietro também conseguiu trabalho,  e já estamos economizando para comprar uma pequena propriedade, se conseguirmos, no Rio Grande do Sul. As dificuldades aqui são muitas, mas a fé e o desejo de melhorar nos sustentam. Há dias em que choro de saudade, mas penso em vossas palavras e em vossos rostos, que um dia verei novamente, nem que seja apenas em sonhos."

Cinco anos depois, Rosa e Pietro finalmente realizaram o sonho de suas vidas, estabelecendo-se em uma região mais ao sul do Brasil. Com as economias cuidadosamente poupadas ao longo dos anos, adquiriram um lote de terra nos arredores de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. O terreno, que pertencia a uma imigrante italiana pioneira, viúva recente e sem filhos, que decidira abandonar tudo e retornar à sua terra natal, já possuía um belo parreiral em plena produção. Ali, o casal deu início a uma nova fase: ampliaram o cultivo de videiras e dedicaram-se com paixão à arte da vinicultura, transformando uvas em vinho e sonhos em realidade. A comunidade italiana na região era mais unida, e Rosa logo fez amigos que se tornaram sua nova família. Ela organizava festas tradicionais e compartilhava suas receitas italianas, mantendo vivas as memórias de sua terra natal.

Anos mais tarde, Rosa enviou uma carta à Itália, relatando sua nova vida:

"Queridos pais, escrevo agora com uma alegria que mal consigo conter. Nossa terra em Caxias prospera, e o vinho que produzimos já é conhecido na região. As dificuldades do início foram muitas, mas sinto que todo o sacrifício valeu a pena. Aqui, em nosso pequeno pedaço de chão, encontro a paz e a esperança que tanto busquei. Pietro está casado, e eu também espero, um dia, formar minha própria família. Rezo para que um dia possamos nos reunir novamente, seja aqui ou na Itália, mas enquanto isso, carrego-vos sempre em meu coração."

Rosa Ricciardi pelo seu espírito comunitário tornou-se um símbolo de resistência e coragem na cidade. Sua história, como a de muitos imigrantes italianos, é uma lembrança do poder da esperança e do esforço em busca de uma vida melhor. Embora a saudade fosse uma constante, Rosa encontrou no sul do Brasil não apenas um novo lar, mas também uma razão para seguir em frente e construir um futuro cheio de possibilidades.

Nota do Autor


"Esperança em Terras Brasileiras: As Cartas de Rosa Ricciardi" é uma obra de ficção concebida pela imaginação do autor, mas que encontra suas raízes em eventos históricos reais. A história de Rosa Ricciardi, embora fictícia, é um reflexo fiel das experiências vividas por milhares de imigrantes italianos que, no final do século XIX e início do século XX, deixaram sua terra natal em busca de melhores oportunidades no Brasil. Os desafios enfrentados por Rosa e seu irmão Pietro, como a longa travessia oceânica, as duras condições de trabalho nas plantações de café e a saudade imensurável da família e das tradições italianas, são representativos das lutas e esperanças desses pioneiros. Esses homens e mulheres, impulsionados pela fé e pela determinação, desempenharam um papel fundamental na construção das comunidades italianas no Brasil, especialmente em regiões como a Serra Gaúcha. As cartas de Rosa, que compõem o fio condutor desta narrativa, simbolizam não apenas sua ligação com o passado, mas também a perseverança em manter vivas as memórias e os laços afetivos, mesmo em meio às dificuldades de um novo mundo. Estas linhas são apenas um pequeno resumo do livro que leva o mesmo nome. Na obra completa, o leitor poderá mergulhar mais profundamente nos detalhes da jornada de Rosa, seus dilemas emocionais, a relação com sua terra natal e a construção de um futuro que, embora repleto de desafios, é marcado pela superação e pelo triunfo da esperança. Este livro é dedicado a todos os descendentes de imigrantes que, como Rosa, carregam em suas histórias o legado de coragem, sacrifício e resiliência de seus antepassados. Que estas páginas sirvam de homenagem à memória de tantas vidas que moldaram a história de nossa nação.

Dr. Piazzetta

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Sob os Vinhedos da Esperança


 

Sob os Vinhedos da Esperança


Giuseppe Montello apertava entre os dedos o bilhete amarelado com a força de quem se despede não apenas de um lugar, mas de uma vida inteira. O vento frio descia impiedoso das montanhas Dolomitas, trazendo consigo o cheiro de terra úmida e madeira queimada, um lembrete pungente da vila que ele estava prestes a abandonar. A pequena vila de Col San Vito, comune de Cesiomaggiore, encravada no coração das montanhas, era mais do que sua casa; era uma extensão de sua alma, um lugar onde cada pedra e trilha carregava a história de sua família. Mas aquela terra, que outrora oferecia sustento, agora mal conseguia manter viva a chama de uma vela.

Era 1887, e a crise econômica e agrícola haviam atingido o Vêneto com força devastadora. Giuseppe observava o campo em que havia passado tantas horas debaixo do sol abrasador e da chuva gelada. Os sulcos rasos no solo, resultado de safras fracassadas, pareciam refletir sua própria desesperança. O bilhete para o Brasil que segurava não era apenas uma passagem; era uma promessa, uma fuga para o desconhecido que, apesar de assustador, carregava o eco de esperança.

Maria, sua esposa, estava ajoelhada no chão da cozinha, organizando os poucos pertences que levariam na longa travessia. A expressão em seu rosto era uma mistura de determinação e tristeza. Giuseppe sabia que ela chorava quando ninguém a observava, mas também sabia que não questionaria sua decisão. Ao contrário, Maria era sua fortaleza. Seus filhos, Antonio e Chiara, brincavam descalços no quintal, inconscientes do peso daquela partida.

A jornada realmente começou no porto de Gênova, onde o vapor La Speranza esperava, imponente e desgastado pelo tempo. Subir na embarcação foi como atravessar um portal para outro mundo. Giuseppe, Maria e as crianças foram conduzidos ao porão apertado da terceira classe, onde centenas de outras famílias dividiam o mesmo espaço exíguo. O ar era pesado, saturado pelo cheiro de suor e de maresia, e o burburinho de vozes sussurrando orações ou consolando crianças pequenas preenchia o ambiente.

As semanas no mar foram um teste de resistência física e emocional. Giuseppe improvisava maneiras de distrair Antonio e Chiara, inventando histórias sobre terras onde o solo era tão fértil que bastava jogar uma semente para colher uma árvore carregada de frutos. “No Brasil, tudo será diferente”, dizia ele, mais para si mesmo do que para os filhos, enquanto olhava para o horizonte interminável.

Quando finalmente avistaram o porto de Santos, uma onda de alívio percorreu o navio. O ar quente e úmido que os envolveu ao desembarcar era tão diferente do frio cortante das Dolomitas que parecia anunciar o início de um novo capítulo. Contudo, a realidade no Brasil era muito diferente das promessas. Após desembarcarem no porto de Santos, Giuseppe e sua família foram direcionados, junto com outros imigrantes, a um navio costeiro menor que os levou até o porto de Rio Grande. Lá, foram alojados em grandes barracões de madeira bruta, construídos para abrigar temporariamente as famílias até a chegada dos barcos fluviais. Durante quase duas semanas naquele espaço apertado e rudimentar, Giuseppe sentiu a incerteza pesar sobre todos, mas esforçou-se para manter a esperança viva para Maria e os filhos.

Quando finalmente receberam o aviso da partida, embarcaram nos barcos fluviais que os conduziram até Pelotas. A viagem seguiu pela vasta Lagoa dos Patos, com águas tranquilas e margens cobertas de vegetação selvagem, até Porto Alegre, a capital da província. Dali, subiram pelo estuário do Rio Caí, navegando contra a sua correnteza chegaram até São Sebastião do Caí, onde os Montello, junto com outros colonos, tiveram que seguir a pé, em carroças ou no lombo de mulas, pelas trilhas que cortavam as densas matas da região.

Ao chegarem finalmente às terras destinadas à colônia italiana de Dona Isabel, na Serra Gaúcha, Giuseppe se deparou com uma visão que era ao mesmo tempo desafiadora e opressora: um lote de terra cercado por uma floresta densa e aparentemente impenetrável. Ele parou por um momento, observando o ambiente ao seu redor — as árvores altas que lançavam sombras sobre o chão, a vegetação entrelaçada que parecia resistir a cada passo, e o som constante da natureza que dominava tudo. Sentiu o peso de uma nova batalha se instalando sobre seus ombros. Não seria fácil transformar aquela terra selvagem em um lar, mas ele sabia que não tinha escolha.

Giuseppe respirou fundo, apertou a mão de Maria e disse com determinação:

Vamos começar.

As primeiras semanas foram marcadas pelo cansaço extremo. Ele e Maria trabalhavam até tarde da noite, derrubando árvores e limpando o terreno. Chiara ajudava como podia, enquanto Antonio, ainda pequeno, observava os pais com olhos grandes e atentos. As mãos de Giuseppe, já calejadas de anos de trabalho no Vêneto, agora sangravam ao manejar o machado e a enxada. Mas aos poucos, começaram a abrir clareiras na mata e a vislumbrar o potencial da terra. Plantaram milho e feijão, sementes de sobrevivência, e Giuseppe recebeu de um vizinho italiano algumas mudas de videira.

O isolamento, porém, era uma dor constante. Maria, apesar de sua força, chorava à noite pela mãe e pelas irmãs que ficavam na Itália. Giuseppe sentia um nó na garganta toda vez que se lembrava da missa de despedida na igreja da vila, onde havia prometido que voltaria um dia. Ele não podia demonstrar fraqueza, mas sentia saudade até do aroma do pão assado no forno comunitário.

O primeiro ano passou como um longo teste de resistência. O desmatamento, a construção de uma cabana rústica e as primeiras plantações consumiram suas forças, mas a terra mostrou-se generosa. Quando as videiras finalmente começaram a crescer, Giuseppe sentiu pela primeira vez que talvez houvesse um futuro ali. As dificuldades ainda eram imensas, mas uma centelha de esperança surgia a cada novo broto que despontava na terra.

Em 1889, quando a febre amarela se espalhou como uma sombra mortal pela região, Giuseppe Montello enfrentou o medo mais profundo de um pai. Antonio, com apenas seis anos, foi um dos primeiros a adoecer na colônia. O pequeno corpo ardia em febre, enquanto os olhos, que sempre brilhavam de curiosidade, agora estavam opacos e fatigados. Maria, movida por um amor que desafiava a exaustão, permaneceu ao lado do filho, lavando seu rosto com panos frios e sussurrando orações desesperadas em um dialeto vêneto que parecia atravessar os tempos e chegar aos ouvidos dos antepassados.

Giuseppe, sentindo-se impotente diante da cena, decidiu que não poderia ficar parado. Ele caminhou por horas até a vila mais próxima, em busca de remédios ou de qualquer pessoa que pudesse ajudar. As estradas eram estreitas, cortadas por riachos e ladeadas por árvores que pareciam se fechar sobre ele. A cada passo, sua mente era assaltada por lembranças de Antonio correndo entre as fileiras de milho e rindo com Chiara. Ele não podia deixá-lo partir.

Antonio sobreviveu. A febre cedeu gradualmente, e sua recuperação trouxe um alívio que parecia devolver a vida ao coração de Giuseppe. No entanto, quando ele olhou para Maria, percebeu algo diferente. Nos olhos de sua esposa, antes cheios de uma chama inabalável, havia agora um reflexo do peso acumulado pelas lutas diárias. Mesmo assim, ela sorriu. Um sorriso cansado, mas carregado de gratidão.

Os anos que se seguiram trouxeram progresso. Giuseppe encontrou um aliado inesperado em Lorenzo Vitale, um vizinho italiano que havia se estabelecido na região alguns anos antes. Lorenzo tinha um conhecimento profundo sobre a produção de vinho e, vendo o esforço incansável de Giuseppe, ofereceu-se para ensiná-lo. As primeiras safras foram humildes, garrafas modestas que guardavam mais o suor e a esperança dos Montello do que qualquer promessa de riqueza. Mas a qualidade do vinho surpreendeu. As uvas, cultivadas com cuidado quase reverencial, resultavam em um sabor que evocava as colinas do Vêneto.

Com o tempo, o trabalho árduo começou a dar frutos. Antonio e Chiara cresceram em meio aos vinhedos, aprendendo a cuidar das plantas e a participar da colheita. Maria, com a habilidade de quem nunca deixou de ser agricultora, mantinha uma horta vibrante e contribuía para a vida comunitária, trocando receitas e sementes com as outras mulheres da colônia.

Em 1890, a emancipação da Colônia Dona Isabel marcou um novo capítulo. Giuseppe, agora um homem respeitado entre os colonos, viu sua pequena produção de vinho expandir-se. Em 1895, o vinho Montello já era vendido em vários pontos da cidade. A prosperidade não apagava as lembranças das dificuldades, mas trazia uma sensação de pertencimento que Giuseppe jamais imaginara alcançar. A terra que um dia parecia tão estranha agora era o lar.

Em uma noite tranquila, sob um céu pontilhado de estrelas, Giuseppe levou Antonio até o vinhedo. O ar estava impregnado pelo aroma das uvas maduras, e a luz da lua lançava sombras longas sobre as fileiras de videiras. Giuseppe parou e, com um tom grave, disse:

Lembre-se, filho, essas terras nos deram tudo, mas custaram tudo também. Nunca tome o que temos como garantido.

Essas palavras ecoaram no coração de Antonio, tornando-se um princípio que guiaria sua vida.

Quando Giuseppe Montello faleceu em 1922, aos 67 anos, deixou para trás muito mais do que vinhedos bem cuidados. Deixou um legado de resiliência, de coragem diante do desconhecido e de uma determinação que se tornara a essência de sua família. Os vinhedos Montello prosperaram, transformando-se em um símbolo do espírito indomável dos imigrantes italianos na Serra Gaúcha.

Hoje, sob as colinas de Bento Gonçalves, onde as videiras dançam ao ritmo do vento, o nome Montello ainda é reverenciado. Seus descendentes continuam a produzir vinho, e a história de Giuseppe é contada com orgulho, como um lembrete de que sonhos, mesmo os mais difíceis, podem florescer quando plantados com fé e cultivados com amor. E assim, na vastidão verde das colinas, vive o espírito de um homem que ousou sonhar e transformar seu sonho em realidade.

Nota do Autor

Escrever Sob os Vinhedos da Esperança foi uma jornada de emoção e descobertas, uma travessia literária que me levou a explorar as raízes da coragem humana diante da adversidade. Esta história não é apenas sobre Giuseppe Montello e sua família, mas também sobre os milhares de homens, mulheres e crianças que deixaram tudo o que conheciam para trás em busca de um sonho — um sonho que muitas vezes parecia tão distante quanto as terras para onde navegavam.

No coração deste livro está a força de vontade que transforma o impossível em realidade. Giuseppe, Maria, Antonio e Chiara são personagens fictícios, mas suas lutas e esperanças ecoam as histórias reais de tantas famílias italianas que cruzaram oceanos e enfrentaram desafios monumentais no Brasil do século XIX. Desde os barracões improvisados no porto de Rio Grande até os vinhedos que hoje embelezam a Serra Gaúcha, cada detalhe foi cuidadosamente pesquisado e inspirado pelas vidas e legados desses pioneiros.

Como autor, senti-me imerso na dor de deixar para trás a terra natal, no isolamento das florestas virgens, no cansaço das mãos calejadas e, ao mesmo tempo, na alegria de cada pequena vitória: o brotar de uma videira, o primeiro vinho compartilhado, a união da comunidade em tempos difíceis. Este é um tributo à resiliência e ao espírito humano, que persiste mesmo nas circunstâncias mais adversas.

Minha intenção ao escrever este livro foi transportar você, caro leitor, para aquele tempo e lugar. Quis que sentisse o aroma das videiras sob o sol da Serra Gaúcha, ouvisse o som das machadadas na mata, visse o brilho nos olhos de uma família ao construir um futuro com as próprias mãos. Mais do que uma história de imigração, esta é uma celebração da capacidade humana de sonhar e construir, mesmo quando as probabilidades parecem estar contra nós.

É importante mencionar que o que está apresentado aqui é apenas um resumo da obra completa. Nas páginas do livro, mergulho mais profundamente nas vivências de Giuseppe, nos detalhes históricos e emocionais que deram forma a essa saga. 

Espero que, ao terminar estas páginas, você se sinta inspirado pelo legado que essas famílias nos deixaram. Que esta história sirva como um lembrete de que, sob as sombras dos maiores desafios, nascem as sementes da esperança e da transformação.


Com gratidão e emoção,


Piazzetta

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O Destino de Vittorio Belomonte


O Destino de Vittorio Belmonte


Na fria alvorada de 2 de julho de 1904, Vittorio Belomonte fechou a pequena mala de couro que sua mãe havia lhe dado e, com um último olhar para a casa onde crescera, saiu sem olhar para trás. O destino o chamava.

Nascido em 1882, em um vilarejo esquecido nas montanhas do Friuli, Vittorio passara a juventude trabalhando nos bosques, cortando lenha para senhores que nunca lembravam seu nome. Seu pai, Giovanni, morrera cedo, deixando a mãe e três irmãos na miséria. A fome tornara-se uma sombra constante, e, à medida que os anos passavam, Vittorio percebeu que seu destino não estava ali, mas além-mar.

A viagem até Longarone foi silenciosa. Seus companheiros, jovens de sua vila, compartilhavam a mesma melancolia. O condutor da carroça bradou impaciente para que subissem, e um nó apertou a garganta de Vittorio. Com um último olhar melancólico, ele contemplou seu vilarejo: as casas de pedra aconchegadas umas às outras, como se buscassem calor, e as montanhas imponentes ao fundo, seus picos eternamente coroados de neve. O vento gelado trouxe o cheiro da terra úmida e da lenha queimada nas lareiras. Vittorio suspirou fundo, gravando aquela imagem na memória.

Em Longarone, pegou seus documentos para deixar o país e seguiu para Veneza. As ruas estreitas e os canais da cidade lhe pareceram um outro mundo. Mas não havia tempo para contemplação. O passaporte foi carimbado, e, com os trocados que tinha, comprou pão, salame e um frasco de vinho, o suficiente para a jornada. Quando o trem para Gênova chegou, ele embarcou sem hesitação. Não havia mais volta.

A Estação de Gênova fervilhava de emigrantes, um turbilhão de rostos ansiosos e mãos calejadas segurando malas gastas pelo tempo. Homens e mulheres, vestidos com suas melhores – e muitas vezes únicas – roupas de viagem, deslocavam-se em meio à multidão, esbarrando-se sem querer, trocando olhares de cumplicidade e medo.

Poucos tinham dinheiro suficiente para um hotel decente, então amontoavam-se em uma pequena estalagem de teto baixo e paredes úmidas, escondida em uma viela sombria perto do porto. O lugar era abafado, impregnado pelo cheiro de suor e peixe salgado, e os murmúrios dos hóspedes misturavam-se ao ranger do assoalho gasto. Todos temiam os perigos daquela cidade portuária, onde golpistas e ladrões rondavam como lobos à espreita de presas fáceis. Qualquer descuido e o pouco que possuíam poderia desaparecer em um instante.

Ainda assim, mesmo em meio à incerteza, havia um sentimento pulsante no ar: a promessa de um novo começo, a esperança de um destino melhor do outro lado do oceano. A tensão e a expectativa eram quase palpáveis, como a eletricidade antes de uma tempestade.

Vittorio dividiu um quarto apertado e mal ventilado com outros três friulanos. Os beliches rangiam a cada movimento, e o cheiro de mofo misturava-se ao odor de corpos cansados e roupas úmidas. O sono veio apenas em fragmentos inquietos, interrompido pelo barulho da cidade que nunca dormia e pelo medo latente do que estava por vir.

Ao amanhecer, espreguiçaram-se sob a luz fraca que se infiltrava pelas frestas da janela e, sem muito a fazer além de esperar a hora do embarque, decidiram explorar a cidade. Caminharam pelas ruelas estreitas de Gênova, onde vendedores gritavam ofertas em dialetos diversos e carroças espirravam lama nos transeuntes. O cheiro de pão recém-assado se misturava ao odor forte do porto, onde o mar e o suor dos estivadores se fundiam em uma atmosfera pesada.

Então, ao dobrarem uma esquina, a visão do vapor Regina Elena os fez parar. Ele estava ancorado no cais, imenso e imponente, como um colosso de ferro e vapor. Suas chaminés erguiam-se como torres de um castelo flutuante, e a madeira dos conveses reluzia sob o sol da manhã. Para Vittorio, o navio era uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo. Dentro dele estava seu futuro, sua esperança e também o medo do desconhecido.

Por um instante, o mundo ao redor pareceu silenciar. O burburinho dos estivadores, o ranger das cordas sendo puxadas, até mesmo o tilintar das moedas nas mãos dos vendedores ambulantes — tudo pareceu distante, abafado, como se o tempo tivesse parado.

Vittorio sentiu o coração bater pesado no peito. O gosto salgado do ar encheu seus pulmões, misturado ao cheiro de carvão queimado que escapava das entranhas do navio. O Regina Elena estava ali, gigantesco, como um portão entre dois mundos — o passado que ele deixava para trás e o futuro incerto que o aguardava.

Engoliu em seco. Não havia mais volta. A Itália, sua terra, sua infância, seus bosques familiares e os rostos que jamais voltaria a ver... tudo ficaria para trás no momento em que ele pisasse naquele convés. A única direção agora era para frente.

No dia 29, Vittorio pagou a passagem e submeteu-se à rigorosa inspeção médica. Os oficiais o examinaram com olhares frios e mecânicos, apalpando-lhe os braços, verificando seus dentes, como se avaliassem a resistência de um animal de carga. Foi vacinado com uma agulha áspera e sem cerimônia, sentindo a ardência do líquido em sua pele. Cortaram-lhe os cabelos sem cuidado, deixando fios grossos caírem sobre seus ombros como vestígios da vida que abandonava. Seus pertences foram revistados por mãos desconhecidas, que reviraram sua mala como se buscassem algo de valor escondido.

A noite anterior ao embarque foi longa e inquieta. O quarto apertado da decadente estalagem estava impregnado pelo cheiro de suor e mofo, o colchão fino não oferecia conforto algum. Ele escutava a respiração pesada de seus companheiros de quarto — roncos intermitentes, murmúrios febris de sonhos turbulentos — misturados ao som distante das ondas quebrando contra as pedras do porto. Cada rajada de vento que entrava pela janela mal fechada trazia o cheiro salgado do mar, lembrando-o de que, dali a poucas horas, sua vida mudaria para sempre. 

Na manhã do dia 30, Vittorio caminhou até o porto com passos firmes, mas o coração acelerado. O cais fervilhava de gente. Homens gritavam ordens em dialetos diversos, carregadores passavam apressados equilibrando malas e fardos pesados nos ombros, e crianças agarravam-se às saias das mães, assustadas com a confusão ao redor. O cheiro do mar misturava-se ao de carvão queimado e peixe fresco, formando uma névoa espessa de sal e fuligem que pairava no ar.

Antes de seguir para o embarque, Vittorio comprou alguns limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e, apoiando-se em um caixote de madeira, escreveu uma última carta para a família. Escolheu as palavras com cuidado, tentando transmitir esperança, embora o peso da despedida lhe apertasse o peito.

A fila para embarque serpenteava pelo cais, arrastando-se lentamente como uma procissão de almas ansiosas. Os funcionários da companhia de navegação verificavam documentos com olhares indiferentes, enquanto os passageiros aguardavam sob o sol escaldante, segurando seus pertences com desconfiança. Quando chegou sua vez, Vittorio foi submetido a mais uma inspeção, os olhos atentos dos agentes percorrendo seu rosto e suas roupas como se buscassem algo suspeito.

Por fim, um funcionário lhe entregou um número rabiscado em um pedaço de papel sujo e indicou a entrada do navio. Descendo por corredores estreitos e abafados, iluminados apenas por lampiões oscilantes, Vittorio finalmente encontrou sua beliche: um espaço exíguo, onde mal cabia deitado. O colchão fino era pouco mais que um pedaço de pano gasto sobre tábuas duras, e a manta áspera cheirava a mofo. Ele se sentou devagar, sentindo o metal gelado da estrutura contra as mãos trêmulas.

Lá fora, os apitos soaram longos e solenes. A terra firme começava a se afastar. Pouco depois do meio-dia, soaram três apitos longos. As cordas foram soltas. O vapor Regina Elena moveu-se lentamente, afastando-se do porto. O barulho das despedidas ecoava no ar. Mães choravam, pais levantavam os chapéus, crianças acenavam sem entender. A bordo, Vittorio e seus companheiros retribuíam o gesto, engolindo as lágrimas. O hino real tocava, seguido pela Marcha Garibaldi. Uma pequena banda saudava aqueles que partiam, soldados de um exército invisível em busca de uma vida melhor.

Os primeiros dias foram um teste de resistência. No porão apertado onde dormia, o ar era denso, carregado do cheiro acre de suor, mofo e vômito. O calor sufocante tornava o ambiente ainda mais insuportável, e o balançar incessante do navio fazia com que muitos passageiros passassem mal. O som dos gemidos de náusea e da tosse seca de crianças doentes preenchia a escuridão.

A comida era pouca e sem sabor: pedaços de pão endurecido, caldo ralo que mais parecia água suja e, ocasionalmente, um punhado de batatas cozidas. As filas para receber as rações eram longas, e os mais fracos frequentemente ficavam sem nada.

Mas Vittorio resistia. Ele se recusava a ceder à fraqueza, mantendo a disciplina que aprendera nos campos de sua terra natal. Durante o dia, sempre que podia, escapava do porão e subia ao convés. Lá, o vento salgado refrescava sua pele, e a visão do oceano infinito lhe dava a ilusão de liberdade. Ficava horas observando as ondas, tentando ignorar o estômago vazio e a saudade crescente.

À noite, quando finalmente conseguia dormir, sua mente o levava de volta a Friuli. Sonhava com os bosques úmidos após a chuva, com o cheiro da terra revirada pelo arado, com a voz de sua mãe chamando-o para a ceia. Mas, ao acordar, tudo o que via eram paredes de ferro corroídas pelo tempo e corpos exaustos amontoados ao seu redor. A viagem mal havia começado, e já parecia uma eternidade.

No décimo quinto dia de viagem, o oceano, antes calmo, se transformou em um monstro furioso. O céu escureceu de repente, como se a noite tivesse caído em pleno dia. O vento uivava entre os mastros, e trovões ribombavam sobre as águas agitadas. Quando as primeiras ondas colossais atingiram o casco do Regina Elena, o navio estremeceu como se fosse feito de papel.

No porão, o terror tomou conta dos passageiros. Cada balanço da embarcação lançava corpos contra as paredes de ferro. Gritos se misturavam ao estrondo das ondas. Algumas mães, apavoradas, agarravam os filhos contra o peito e rezavam baixinho. Outros simplesmente choravam, sem forças para reagir.

Vittorio segurava-se como podia, os dedos crispados na borda da beliche. Um homem ao seu lado foi jogado ao chão e bateu com a cabeça em uma viga. O sangue se espalhou pelo assoalho de madeira, mas ninguém teve tempo de socorrê-lo. Tudo o que importava era sobreviver àquela noite interminável.

Lá fora, o mar tentava engolir o Regina Elena. Ondas monstruosas varriam o convés, levando caixas, barris e qualquer coisa que não estivesse presa. Tripulantes gritavam ordens que ninguém conseguia ouvir, enquanto lutavam para manter o navio no curso.

Então, tão repentinamente quanto começou, a tempestade passou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do mar ainda revolto e dos soluços abafados no porão. O estrago era visível. Malas e roupas encharcadas espalhavam-se pelo chão, alguns passageiros estavam feridos, outros simplesmente paralisados pelo medo.

Mas o Regina Elena seguia firme. E com ele, os sonhos e as esperanças de centenas de almas que, apesar de tudo, ainda acreditavam em um futuro melhor.

No vigésimo quinto dia de viagem, um burburinho se espalhou pelo convés. Terra à vista! Vittorio correu para olhar. No horizonte, uma linha escura tomava forma, crescendo a cada minuto. O porto de Santos emergia da névoa matinal como uma miragem, um amontoado de galpões, mastros de navios e telhados vermelhos, cercado por colinas cobertas de vegetação densa. O cheiro salgado do mar começou a se misturar com algo novo: um aroma quente e pesado, de madeira úmida e café.

Conforme o Regina Elena se aproximava do cais, a agitação tomava conta dos passageiros. Alguns se benziam, outros choravam, abraçados. Homens seguravam seus chapéus contra o vento, mulheres ajeitavam os lenços e roupas amarrotadas. Os tripulantes gritavam ordens em italiano, tentando conter o tumulto, enquanto barcaças carregadas de sacas de café passavam ao lado, guiadas por remadores morenos de olhar curioso.

Quando finalmente desceram a rampa de desembarque, uma onda de calor pegajoso os envolveu. Vittorio sentiu o suor escorrer pelas costas enquanto tentava respirar aquele ar novo, carregado de umidade. O idioma ao redor soava como uma cacofonia incompreensível—ordens gritadas, risadas, discussões entre trabalhadores portuários. Ele mal teve tempo de assimilar o choque antes de ser empurrado junto com os demais imigrantes para um dos galpões imensos ao lado do porto.

Lá dentro, o cheiro de corpos suados e roupas molhadas tornava o ambiente ainda mais sufocante. Filas se formavam diante dos funcionários, que verificavam documentos, assinavam papéis, apontavam direções. Alguns homens, de pele bronzeada e olhar avaliador, caminhavam entre os recém-chegados, observando-os como se escolhessem mercadoria.

— Café! Todos para o interior! — bradou um deles em italiano rudimentar.

Vittorio engoliu em seco, sentindo o peso da incerteza apertar-lhe o peito. Não havia tempo para contemplação, nem espaço para hesitação. A engrenagem da imigração girava sem pausas, empurrando-os inexoravelmente para o próximo destino.

A exaustão da viagem ainda pesava nos corpos dos recém-chegados, mas ninguém se atrevia a reclamar. Homens de rostos severos davam ordens rápidas, chamando nomes, apontando direções. Vagões de trem, de madeira escura e janelas gradeadas, aguardavam na linha férrea próxima ao galpão. O cheiro de ferro e óleo queimado se misturava ao calor abafado da manhã tropical.

Vittorio sentiu um nó no estômago ao avistar as composições que os levariam para o desconhecido. Onde dormiria naquela noite? O que encontraria no fim daquela jornada?

O aviso veio curto e seco:

— Para os trens! Movam-se!

Ele pegou sua pequena trouxa e avançou com os demais, passos hesitantes no solo quente do novo mundo. Já não havia mais navios, nem mar. Apenas terra firme e um destino incerto.

Não havia mais volta.

Com uma mala de couro gasta e um coração pesado de incertezas, Vittorio seguiu em frente, empurrado pelo fluxo implacável dos recém-chegados. Atrás dele, a Itália se tornava apenas uma lembrança distante, um mundo ao qual jamais retornaria da mesma forma.

O chão de terra batida rangia sob suas botas, o calor escaldante grudava em sua pele. À sua volta, imigrantes caminhavam em silêncio, carregando sacos e baús, os rostos marcados pela fadiga e pela expectativa. Cada passo era um salto no desconhecido.

No Brasil, um novo capítulo se abria diante dele—não por escolha, mas por necessidade. O que o aguardava além da estação de trem? Campos intermináveis de café? Trabalho árduo sob o sol impiedoso? Ou talvez, quem sabe, a promessa de uma vida digna, algo que a terra natal lhe negara?

A única certeza era que não havia caminho de volta.

Vittorio mal teve tempo de se recuperar da exaustiva travessia. Assim que desembarcou em Santos, foi rapidamente selecionado e encaminhado para o interior de São Paulo, onde um fazendeiro necessitava de trabalhadores para sua vasta plantação de café. A viagem de trem foi longa e desconfortável, o vagão de madeira sacolejando sobre os trilhos enquanto o calor e o cheiro de suor tornavam o ar quase irrespirável.

Quando finalmente chegou à fazenda, nos arredores da emergente Ribeirão Preto, foi recebido com poucas palavras e um olhar avaliador. Ali, o trabalho não fazia concessões. Antes mesmo do sol despontar no horizonte, já estava nos cafezais, arrancando os grãos vermelhos sob um calor implacável que fazia sua camisa grudar no corpo. Os cestos se enchiam rápido, e logo vinham os sacos pesados, que ele e os outros imigrantes carregavam até os secadores. Os ombros ardiam, as mãos se cobriam de calos, mas não havia descanso.

A barreira da língua o isolava no início. O português soava rude, estranho, como um código indecifrável. Mas, entre ordens gritadas e murmúrios trocados à sombra dos cafezais, Vittorio começou a entender. Aprendia com os outros imigrantes, muitos deles tão perdidos quanto ele. E, pouco a pouco, o desconhecido tornava-se familiar.

Os anos se passaram, marcados por trabalho árduo e sacrifícios silenciosos. Vittorio economizava cada tostão, recusando-se a gastar com qualquer coisa que não fosse essencial. Dormia pouco, comia o suficiente para se manter de pé e sonhava com o dia em que teria sua própria terra. A ideia de ser dono do próprio destino era o que o fazia resistir.

Em 1910, esse dia finalmente chegou. Com o que havia juntado, arrendou uma chácara nas proximidades de Araraquara. Não era grande, nem rica, mas era sua. A terra, escura e fértil, prometia sustento, mas cobrava um preço alto. Trabalhar sozinho significava acordar antes do sol e seguir até a última luz do dia, preparando o solo, plantando, colhendo. A cada estação, enfrentava novos desafios: a fúria das chuvas tropicais que castigavam as lavouras, as pragas traiçoeiras que ameaçavam destruir meses de esforço.

Mas Vittorio aprendeu. Observava os fazendeiros mais experientes, testava métodos, enfrentava as falhas e tentava de novo. Cada safra era uma lição. Cada derrota, um aprendizado. Seus calos engrossavam, suas costas se curvavam sob o peso do trabalho, mas, junto com o cansaço, crescia também a convicção de que, naquela terra, fincaria suas raízes.

O sucesso veio devagar, como a germinação das mudas que plantava. Primeiro, conseguiu comprar uma carroça, o que lhe permitiu levar sua colheita diretamente ao mercado. Depois, contratou ajudantes, homens tão determinados quanto ele, que viam no café uma chance de prosperar. A pequena chácara transformou-se em uma propriedade produtiva, e os sacos de grãos empilhavam-se na varanda antes de seguirem para a venda.

Em 1915, quando finalmente sentiu que havia construído algo sólido, casou-se com Maria, filha de um imigrante calabrês. Ela trazia no olhar a mesma resiliência de quem cruzara o oceano em busca de uma vida melhor. Juntos, trabalharam lado a lado, expandindo as plantações e cuidando da terra como se fosse um membro da família.

Com o tempo, a propriedade deixou de ser apenas um campo de cultivo e tornou-se um lar. Seus três filhos cresceram correndo entre os cafezais, os pés descalços tocando o solo que ele tanto lutou para conquistar. O som das risadas infantis misturava-se ao canto dos pássaros e ao farfalhar das folhas ao vento. Ali, no coração do Brasil, Vittorio não era mais apenas um imigrante. Tornara-se parte da terra que o acolheu.

Nos anos seguintes, o suor de Vittorio se transformou em prosperidade. Sua pequena fazenda expandiu-se além do que ele jamais imaginara. Com paciência e estratégia, adquiriu terras vizinhas, uma a uma, até tornar-se um dos maiores fornecedores de café da região. O aroma dos grãos recém-colhidos impregnava o ar, misturando-se à promessa de um futuro cada vez mais próspero.

Mas a riqueza de Vittorio não se media apenas em sacas de café. Ao lado de outros imigrantes italianos, ajudou a moldar uma comunidade forte e vibrante. Doou terras para a construção de uma escola, pois sabia que o conhecimento era a chave para que seus filhos tivessem um destino melhor. Contribuiu para erguer uma igreja, onde os fiéis se reuniam para rezar, buscar conforto e celebrar a vida. A vila cresceu, impulsionada pelo trabalho árduo de homens e mulheres que, como ele, haviam deixado tudo para trás em busca de uma nova chance.

No entanto, Vittorio jamais esqueceu o dia de sua partida. O último olhar lançado sobre sua terra natal permanecia gravado em sua mente, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Sabia que nunca voltaria, que as ruelas estreitas e as montanhas de Friuli permaneceriam apenas em sua memória.

Ainda assim, ao caminhar entre os cafezais floridos, sentindo o perfume adocicado das flores brancas e ouvindo o riso de seus netos ecoando pelos campos, percebia que havia encontrado mais do que um lugar para trabalhar. Ali, fincara suas raízes. Ali, seu nome viveria além dele.




domingo, 15 de junho de 2025

Raízes da Esperança: Histórias de um Imigrante Italiano no Brasil

 

Raízes da Esperança 

A História de Giovanni, um Imigrante 

Italiano no Brasil


Em uma pequena localidade nas ondulantes colinas da Toscana, no final do século XIX, vivia Giovanni Bianchi, um jovem agricultor de 28 anos. A terra que cultivava era árida e pouco produtiva, tornando difícil sustentar sua esposa, Maria, e seus dois filhos pequenos, Luca e Sofia.

As histórias sobre oportunidades no Brasil começavam a circular entre os moradores do pequeno e quase esquecido município toscano, prometendo terras férteis e uma vida melhor.

Certa noite, após um dia exaustivo no campo, Giovanni sentou-se à mesa de madeira desgastada de sua modesta casa e falou à sua mãe, Letizia:

"Partiremos em um mês, minha mãe. Iremos para bem longe. Muitos estão indo para um novo mundo. Promete-se uma nova vida e terras extensas para plantar e colher. Deixarei a saudade ficar amarga, porque talvez eu nunca mais volte a este lugar."

A decisão de Giovanni não foi fácil. Deixar a terra natal, a velha mãe, os irmãos e os amigos era doloroso, mas a perspectiva de um futuro melhor para seus filhos pesou mais. Maria, embora apreensiva, apoiou o marido, compartilhando do sonho de prosperidade.

A viagem de navio foi longa e árdua. As condições a bordo eram precárias, com pouco espaço, água potável e alimentos escassos. Giovanni observava seus filhos tentando transformar o ambiente hostil em uma aventura, enquanto Maria cuidava deles com ternura, apesar do cansaço evidente.

Ao desembarcarem no porto do Rio de Janeiro, foram recebidos por um calor sufocante e uma língua desconhecida. Foram encaminhados a uma hospedaria de imigrantes, onde aguardariam a ordem de encontrar os encarregados do novo patrão. O ambiente era caótico, com famílias de diversas nacionalidades tentando se comunicar e entender o que viria a seguir.

Após semanas de espera, Giovanni e sua família já contratados por um fazendeiro paulista, foram direcionados ao interior de São Paulo, para trabalhar nas plantações de café. Isso os obrigou a embarcar novamente em outro navio até o porto de Santos e dali, de trem, subir a serra até São Paulo, onde os representantes do futuro patrão os esperavam para levá-los ao interior do estado. Junto com um grande grupo de famílias escolhidas, seguiram de trem até Araraquara. As terras eram vastas, mas o trabalho era exaustivo, e as condições de moradia rudimentares. Giovanni, porém, não desanimou. Via naquele solo vermelho a esperança de um futuro promissor.

As dificuldades enfrentadas pelos imigrantes italianos eram imensas e multifacetadas. A adaptação ao clima tropical era um desafio constante, já que vinham de regiões de clima temperado, onde as estações eram bem definidas e os verões não atingiam temperaturas tão altas. A umidade intensa, as chuvas tropicais e a vegetação densa tornavam o ambiente ainda mais opressivo. O impacto dessas condições sobre a saúde era severo: doenças tropicais, como febre amarela, malária e disenteria, rapidamente se tornaram ameaças reais para aqueles que haviam cruzado o oceano em busca de uma vida melhor.

A barreira linguística agravava o isolamento. Muitos colonos falavam apenas dialetos italianos e não dominavam o português, o que dificultava tanto a comunicação com os brasileiros locais quanto o acesso a informações vitais, como instruções agrícolas.

As casas destinadas aos colonos eram antigas habitações degradadas, que antes abrigavam os escravos da fazenda. Eram estruturas simples e precárias, feitas de barro e madeira, sem ventilação, iluminação ou conforto básico. Telhados frequentemente vazavam, as paredes apresentavam rachaduras e o chão de terra batida expunha as famílias a insetos e à umidade.

Apesar disso, os colonos começaram a transformar esses espaços com muito esforço e perseverança. Reparavam como podiam os telhados, reforçavam paredes e criavam pequenas hortas ao redor das casas, buscando recriar um pouco das vilas italianas. A vida na fazenda era marcada pelo intenso trabalho agrícola e pelas difíceis condições de moradia, mas os imigrantes italianos encontraram maneiras de fortalecer seus laços comunitários e preservar suas tradições. Ainda que sob as rígidas regras impostas pelo sistema de colonato, Giovanni e os demais colonos começaram a cultivar vínculos culturais e religiosos. Durante os raros momentos de descanso, reuniam-se para celebrar datas especiais, compartilhar histórias de sua terra natal e planejar o futuro.

Embora a construção de uma escola e igreja independente fosse quase impossível devido às restrições impostas pelos proprietários da fazenda, os colonos improvisavam espaços para encontros religiosos e atividades comunitárias. Em um barracão emprestado para o uso coletivo, Giovanni destacou-se pela liderança. Ele organizava missas conduzidas por padres itinerantes e, em ocasiões festivas, liderava a preparação de refeições típicas e danças tradicionais. Essas celebrações, ainda que simples, tornavam-se poderosos símbolos de resistência cultural e esperança.

Ao longo dos anos, esse espírito colaborativo ajudou os imigrantes a manterem vivas suas raízes, mesmo em meio às adversidades. Giovanni, com seu entusiasmo, tornou-se uma figura central nesses momentos de união, não apenas fortalecendo a identidade de sua comunidade, mas também deixando um legado de resiliência para as gerações futuras.

Com o passar dos anos, o trabalho árduo começou a dar frutos. Depois de economias rigorosas, Giovanni adquiriu um pedaço de terra próprio em uma vila nascente ao redor da fazenda. Plantou suas primeiras videiras, escolhendo mudas que remetiam aos vinhedos da Toscana.

A vila prosperou graças à dedicação das famílias que transformaram terras inóspitas em campos produtivos. Os filhos de Giovanni cresceram nesse ambiente de trabalho e esperança, fluentes em italiano e português, integrando-se à cultura brasileira sem abandonar suas raízes.

Em uma tarde ensolarada, sentado na varanda de sua casa, Giovanni escreveu à sua mãe:

"Querida mãe, a saudade de nossa terra é constante, mas o Brasil nos acolheu com generosidade. As crianças crescem fortes e felizes. A terra aqui é fértil e tem nos dado sustento. Sinto falta da Toscana, mas neste novo lar encontramos uma forma de honrar nossas origens."

A história de Giovanni, como tantas outras, é um testemunho de coragem e determinação. Neste livro, Piazzetta revela com sensibilidade como os imigrantes italianos ajudaram a moldar a história do Brasil, mantendo vivas suas tradições enquanto transformavam dificuldades em oportunidades.


quinta-feira, 8 de maio de 2025

O Vinho da Guerra: Uma Família Entre a Destruição e a Esperança

 


O Vinho da Guerra: 
Uma Família Entre a Destruição e a Esperança


24 de outubro de 1917. A data ecoaria como uma ferida aberta na história da Itália. Há anos, o país travava uma guerra extenuante contra o Império Austro-Húngaro, mas naquele fatídico dia, o equilíbrio foi abruptamente rompido. As tropas austro-húngaras, reforçadas por batalhões alemães experientes, desferiram um golpe devastador nas linhas italianas em Caporetto. A derrota, que ficaria conhecida como a 12ª Batalha do Isonzo, obrigou o exército italiano a uma retirada desesperada para a linha do Rio Piave, deixando atrás de si um cenário de caos e desespero.

Nas primeiras horas que se seguiram à catástrofe, a notícia percorreu a região como um incêndio em campo seco. Em Pederobba, um pequeno município situado entre as sombras do Monte Grappa e o Rio Piave, o toque incessante dos sinos da igreja alertava os moradores. A mensagem era clara e aterradora: a evacuação era inevitável. Homens, mulheres e crianças deveriam abandonar suas casas e terras imediatamente, fugindo para o sul, para longe do avanço inimigo. A pequena cidade, até então um refúgio de paz entre montanhas e vinhedos, mergulhou em um redemoinho de medo e agitação.

Entre os moradores, Giuseppe, um marceneiro habilidoso e carpinteiro renomado, era uma figura central. Morador na cidade a muitos anos, originário do município vizinho de Alano di Piave, na província de Belluno, Giuseppe vinha de uma linhagem de artesãos cuja maestria com a madeira era quase lendária. Muitas igrejas e casas nobres de Veneza e arredores exibiam orgulhosamente as portas esculpidas e altares de sua família, cuja reputação atraía até as famílias maus nobres. Além de seu talento com a madeira, Giuseppe herdara do pai, Francesco, uma paixão por seus vinhedos e pela produção do vinho Raboso del Piave, cultivado com dedicação quase religiosa para consumo familiar.

Casado com Giuditha, uma mulher de fibra e perspicácia comercial, Giuseppe tinha uma família numerosa: dez filhos ao todo. Os quatro mais velhos haviam emigrado anos antes para o Brasil, em busca de oportunidades. Outras duas filhas haviam seguido destinos igualmente distantes — uma para a França e outra para os Estados Unidos. Restavam em casa os quatro mais jovens, incluindo a caçula, uma menina de olhos brilhantes que parecia ainda alheia ao horror da guerra.

Quando as ordens militares de evacuação chegaram, Giuseppe agiu com a precisão de um homem acostumado a decisões rápidas. Com a ajuda dos filhos, cavou um buraco profundo ao lado de sua oficina, onde enterrou suas ferramentas mais preciosas, uma bicicleta e três damigianas cheias do vinho que ele tanto estimava. Pedras pesadas foram cuidadosamente colocadas sobre o esconderijo, criando uma falsa tampa que, esperavam, passaria despercebida.

O êxodo começou ao amanhecer. Carroças abarrotadas, grupos apressados a pé e até alguns poucos sortudos em vagões de trem seguiam a corrente humana em direção à Emília-Romagna, deixando para trás tudo o que conheciam. Após dias de caminhada extenuante, a família chegou a Sassuolo, uma pequena cidade nos arredores de Modena, onde foram acolhidos. Giuseppe e os dois filhos mais velhos, Matteo e Piero, logo encontraram pequenos trabalhos, o que trouxe alívio financeiro em meio às privações do exílio.

O retorno à terra natal, permitido após o armistício de 4 de novembro de 1918, foi agridoce. Pederobba estava irreconhecível, marcada por bombardeios incessantes que a transformaram em uma zona de ninguém entre os exércitos. A igreja, outrora o coração da comunidade, estava em ruínas. A casa da família, a oficina e a pequena loja de Giuditha haviam sido reduzidas a escombros. Mesmo assim, Giuseppe encontrou forças para recuperar o que pôde. O esconderijo com as damigianas foi descoberto intacto, mas a bicicleta estava irremediavelmente corroída pela água.

Sem recursos para reerguer o que perderam, Giuseppe e Giuditha tomaram uma decisão dolorosa, mas inevitável: deixar a Itália e juntar-se aos filhos no Brasil. Em 1919, embarcaram rumo a Curitiba, no Paraná, levando consigo apenas um baú de ferramentas e, como símbolo de resistência, alguns litros do vinho salvo da guerra. No Brasil, a família se reencontraria com os filhos mais velhos e suas famílias, até então rostos distantes em cartas. Ali, em um novo mundo, começariam de novo, sustentados pelo espírito resiliente que a guerra não conseguira apagar.




Nota do Autor


A inspiração para "O Vinho da Guerra: Uma Família Entre a Destruição e a Esperança" nasce de uma história que, embora fictícia, encontra eco em incontáveis vozes do passado. O cenário é a Itália dilacerada pela Primeira Guerra Mundial, um país em que a esperança e o desespero frequentemente se alternavam como protagonistas de uma tragédia coletiva.
Neste conto, o vinho — símbolo de tradição, sacrifício e raízes familiares — emerge como metáfora da resistência humana. Giuseppe, marceneiro e viticultor, não é apenas um personagem, mas uma homenagem aos anônimos que, em tempos de guerra, enfrentaram a ruína com engenhosidade e coragem. Sua decisão de salvar as ferramentas e o vinho, mesmo diante da devastação, reflete a essência da luta por preservar identidade e dignidade quando tudo parece perdido.
A narrativa também explora o impacto das decisões que transformam a vida de gerações. A evacuação, a jornada em busca de segurança e o recomeço no Brasil são testemunhos de uma coragem resiliente que transcende fronteiras. Como muitos imigrantes, Giuseppe e sua família carregaram consigo não apenas bens materiais, mas também os alicerces de uma nova história: trabalho árduo, tradição e um profundo amor pela vida.
Este conto pretende não apenas lembrar os horrores e sacrifícios da guerra, mas também celebrar a força que emerge das adversidades, unindo passado e futuro. Que o leitor encontre aqui um convite à reflexão sobre a fragilidade e a resiliência humanas, e sobre como, mesmo em tempos sombrios, a fé no amanhã pode ser destilada, como um bom vinho, do espírito imortal das pessoas comuns.






domingo, 20 de abril de 2025

A Vida do Dr. Martino: Um Médico Italiano no Brasil - Capítolo 1

 


A Vida do Dr. Martino: Um Médico Italiano no Brasil


Era o ano de 1898. O século XIX agonizava, e o novo milênio despontava no horizonte com promessas incertas, mas carregadas de esperança para os habitantes da região do Vêneto. A expectativa permeava o ar, tingida pelo desejo de dias melhores, como um fiapo de luz que se infiltra por entre as fendas de uma porta fechada. Trinta anos haviam transcorrido desde o fim das guerras de independência, cujo rastro de sangue e destruição marcara cada canto da nação unificada. Ainda assim, as feridas permaneciam abertas, ecoando na vida cotidiana de um povo que lutava para sobreviver.

No Vêneto, como em tantas outras regiões italianas, a situação era sombria. O país ainda permanecia atrasado em comparação à maioria das nações europeias, enredado em um ciclo de carestia e dificuldades. O custo de vida subia sem controle, alimentado por colheitas fracassadas devido às inclemências climáticas, que se tornavam mais frequentes e severas. Fenômenos naturais, antes suportáveis, agora pareciam conspirar contra os agricultores. Somava-se a isso a queda nos preços dos cereais, sufocados pela abundância de importações vindas de países como os Estados Unidos e o Leste Europeu. O progresso industrial, tão desejado, continuava a ser um sonho distante, enquanto métodos antiquados de produção mantinham a Itália prisioneira de seu próprio passado.

Nas cidades, a pressão social crescia como uma tempestade inevitável. O aumento populacional dos últimos vinte e cinco anos sobrecarregava as áreas urbanas, que não conseguiam absorver a massa de trabalhadores desempregados que fugia dos campos. O êxodo em direção ao Novo Mundo, iniciado há mais de duas décadas, tornara-se uma constante. Milhões de italianos desesperados atravessavam o Atlântico, em busca de um futuro melhor em terras como Brasil, Argentina e Estados Unidos. Esses emigrantes não eram apenas camponeses pobres ou artesãos famintos. Entre eles, encontravam-se também membros da classe média — pessoas com casas e, em alguns casos, trabalhos, ainda que mal remunerados.

Foi nesse cenário de incertezas que Martino, um jovem médico de 32 anos, decidiu abandonar tudo e unir-se à corrente humana que fluía para o Novo Mundo. Formado com distinção na renomada Faculdade de Medicina da Universidade de Pádua, e com especializações em cirurgia geral e obstetrícia pela Universidade de Nápoles, Martino tinha o futuro garantido em sua terra natal. No entanto, sua alma inquieta ansiava por algo maior. Nascido em 1866, em Nápoles, ele era fruto de uma família abastada. Seu pai, um advogado agora aposentado, construíra uma fortuna com um prestigiado escritório de advocacia. Sua mãe, de origem veneta, era uma rica herdeira de comerciantes venezianos cujas propriedades rurais se estendiam pelos arredores de Treviso.

Martino herdara o espírito aventureiro de seus antepassados navegadores. Entretanto, não foi o desejo de explorar o desconhecido que o levou a tomar essa decisão, mas sim seu lado humanitário. Sensível às dores alheias, ele não podia ignorar a miséria que via diariamente. Os trens que partiam lotados de camponeses famintos em direção ao porto de Gênova eram testemunhas silenciosas de um drama humano que o comovia profundamente. Certo dia, movido por sua curiosidade insaciável, decidiu acompanhar um desses trens até o porto. A cena que encontrou ali mudou sua vida. Homens, mulheres e crianças, com rostos marcados pela exaustão e esperança, aguardavam o embarque rumo ao desconhecido.

Foi nesse momento que Martino tomou sua decisão. Soubera da existência de colônias formadas quase exclusivamente por imigrantes venetos no sul do Brasil. Histórias de sofrimento chegavam a seus ouvidos: cidades onde não havia médicos suficientes, e muitos morriam por falta de atendimento adequado. O Brasil, com sua vastidão e riquezas, parecia uma terra de oportunidades, mas também de desafios imensuráveis.

Ao retornar, procurou seu pai para compartilhar a decisão. O velho advogado, um homem pragmático, reagiu com ceticismo inicial. Tinha planejado um futuro confortável para o filho, comprando-lhe um espaço privilegiado para estabelecer seu consultório médico na cidade. Contudo, ao ouvir os argumentos de Martino, reconheceu a nobreza de sua intenção. Com o apoio da esposa, não apenas deu sua bênção, mas também antecipou parte da herança familiar para que o jovem tivesse os recursos necessários.

Agora, com a bênção dos pais e os meios financeiros assegurados, Martino preparava-se para sua nova jornada. O destino era uma colônia no sul do Brasil, recentemente elevada à condição de cidade, com apenas nove anos de existência, mas em franco desenvolvimento. Ali, esperava não apenas exercer sua profissão, mas também transformar vidas e, quem sabe, encontrar seu próprio caminho em meio às incertezas de um mundo em mudança.


Nota do Autor

"A Vida do Dr. Martino: Um Médico Italiano no Brasil" é um romance fictício inspirado no rico contexto histórico da imigração italiana para o Brasil no final do século XIX. Apesar de os cenários, eventos históricos e circunstâncias socioeconômicas descritos serem baseados em fatos reais, os personagens e suas histórias são inteiramente fruto da imaginação do autor.

Este livro busca explorar a força humana em meio a adversidades e a resiliência de indivíduos que deixaram suas terras natais em busca de um futuro melhor. O protagonista, Dr. Martino, é uma figura fictícia, mas sua jornada representa os desafios enfrentados por muitos que embarcaram nessa travessia para terras desconhecidas, carregando consigo sonhos, esperanças e o desejo de reconstruir suas vidas.

Ao dar vida a esta narrativa, espero que o leitor seja transportado para uma época de transformações, desafios e conquistas. Que possam sentir o peso das decisões que moldaram gerações, a saudade que permeava os corações e a determinação que levava homens e mulheres a desafiar o desconhecido.

Este é, acima de tudo, um tributo à coragem, à humanidade e ao espírito de aventura que definiram um capítulo tão significativo na história de dois países, Itália e Brasil, cujos destinos se entrelaçaram para sempre através da imigração.

Com gratidão por embarcar nesta jornada,

Dr. Piazzetta



segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Travessia de Domenico Valtieri


A Travessia de Domenico Valtieri


Domenico Valtieri tinha 31 anos quando decidiu abandonar sua cidadezinha natal, San Pietro di Barbozza, uma pequena localidade nas belas colinas de Valdobbiadene. A terra na verdade era boa, mas, naqueles tempos, em finais do século XIX, o trabalho era muito escasso, e o futuro para ele, sua esposa Elena e a filha pequena, Maria, parecia cada vez mais sombrio. Toda a zona rural do Veneto sofria com safras magras, inclemência do clima, preço baixo dos grãos, desemprego cada vez maior e fome. As cartas de parentes e vizinhos que já haviam emigrado para o Brasil falavam de terras férteis, acessíveis e oportunidades, ainda que conquistadas com muito esforço. Para Domenico, o apelo de um novo começo era irresistível.

No outono de 1892, ele vendeu tudo o que possuía: algumas galinhas, uma velha mula e utensílios de arado. Com o dinheiro arrecadado e um empréstimo feito a um comerciante local, comprou passagens para o vapor L'Esperanza, que partiria do porto de Gênova rumo ao Rio de Janeiro. A viagem seria longa e cheia de incertezas, mas Domenico acreditava que nada poderia ser pior do que o desespero de permanecer na miséria.

A realidade da travessia revelou-se cruel. Na terceira classe, onde estavam Domenico e sua família, havia uma mistura de corpos, vozes e odores. Homens, mulheres e crianças dividiam espaços apertados, com camas de madeira dura e pouca ventilação. Os dias no mar eram monótonos, interrompidos apenas por tempestades que traziam momentos de tensão. À noite, o som de tosses persistentes, sussurros de orações e o choro de crianças famintas preenchiam o ambiente. Elena tentava distrair Maria com histórias sobre a nova vida que os aguardava, enquanto Domenico, observador, via na travessia uma metáfora de sua luta: um intervalo entre o sofrimento deixado para trás e a esperança que brilhava no horizonte.

Porém, a jornada foi mais implacável do que poderiam imaginar. Uma epidemia de sarampo se espalhou entre as crianças nos porões do navio, e Maria foi uma das primeiras a adoecer. Domenico e Elena fizeram tudo o que podiam, mas a falta de medicamentos e atendimento transformou cada dia em uma batalha perdida. Maria faleceu uma semana antes da chegada ao Brasil. Seu corpo foi dolorosamente sepultado no mar, enrolado em uma mortalha feita de lençóis, amarrada com cordas envolta ao corpo, seguido de uma despedida silenciosa e devastadora, que marcou para sempre a memória dos pais e de tantos outros passageiros e tripulantes que presenciaram aquela impressionante cena.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, Domenico e Elena encontraram um mundo novo, mas longe do que haviam sonhado. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, foram enviados para o sul do país, para uma colônia agrícola no interior do Rio Grande do Sul. A viagem até lá foi mais uma prova de resistência: dias de viagem rio acima, em pequenos bracos, depois em carroças puxadas por bois, atravessando picadas lamacentas e enfrentando o frio das serras. Quando finalmente chegaram à colônia de Dona Isabel, encontraram uma paisagem desafiadora, mas promissora: florestas densas, rios caudalosos e terras férteis, que exigiriam esforço para serem cultivadas.

A vida na colônia começou de forma precária. Domenico, junto a outros colonos, derrubava árvores para construir uma casa de madeira simples. Enquanto isso, Elena cuidava do pouco que tinham e preparava o terreno para a nova rotina. Não havia médicos por perto, e o isolamento entre as famílias fazia da saudade uma presença constante. A lembrança de Maria e dos parentes deixados na Itália era dolorosa, mas o trabalho árduo mantinha o casal focado no futuro.

Com o tempo, os sacrifícios começaram a dar frutos. Domenico conseguiu quitar as terras adquiridas do governo e expandir sua propriedade. Tinham finalmente conseguido realizar o sonho da propriedade. Ele plantou videiras, como fazia na sua terra natal que, anos depois, deram origem a um grande vinhedo, tornando-se um dos pioneiros na produção de vinho da região. A família cresceu com o nascimento de novos filhos, e os Valtieri se tornaram um símbolo de resiliência e trabalho árduo na colônia.

Nos momentos de descanso, Domenico gostava de caminhar entre as videiras, contemplando os cachos de uvas balançando ao vento. Sentia orgulho do que havia construído, mas também carregava o peso das perdas do passado. Ele sabia que a vida na colônia era difícil, mas representava uma vitória sobre as adversidades.

O sacrifício de Maria e de tantas outras crianças que não sobreviveram à travessia não foi em vão. Para Domenico, a saga dos imigrantes era uma lição sobre a força e a fragilidade humanas. Cada um era, ao mesmo tempo, testemunha e vítima de um sistema que prometia um futuro brilhante, mas frequentemente entregava abandono e exploração.

Anos depois, já bem estabelecido, Domenico costumava sentar no alpendre de sua casa e contemplar os campos cultivados. Ali, refletia sobre os sacrifícios feitos, os sonhos interrompidos e as vidas perdidas durante a travessia. Sua história, como a de tantos outros, era um testemunho de coragem e resiliência. Movidos pela necessidade e pela esperança, ele e Elena ousaram atravessar o oceano, construindo uma nova chance para si e para os filhos que viriam.