quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Na Região de Santa Maria – A Vida dos Irmãos Bellatto na Colônia Silveira Martins


Na Região de Santa Maria – A Vida dos Irmãos Bellatto na Colônia Silveira Martins


No outono de 1887, três irmãos partiram das colinas pedregosas de Vittorio Veneto rumo ao desconhecido. Antonio, Gabriele e Ernesto Bellatto carregavam nos ombros a herança de uma família de pequenos camponeses, marcada pela pobreza, pelas dívidas e pelas sucessivas más colheitas que assolavam o Vêneto. A terra natal já não lhes oferecia sustento, e os recrutadores que percorriam os vilarejos descreviam o Brasil como um mundo novo, onde a terra era vasta e fértil, e onde cada braço de trabalho encontraria recompensa. Entre a miséria conhecida e a promessa distante, escolheram a promessa.

A viagem até o porto de Gênova foi o primeiro passo de uma marcha penosa. Embarcaram em um navio abarrotado de emigrantes como eles, famílias inteiras com baús de madeira, crianças doentes, velhos que tossiam sem parar. O ar nas porões era pesado e úmido, impregnado de maresia e suor. As semanas em alto-mar testaram a resistência de cada um. Muitos adoeceram, alguns morreram, e seus corpos foram lançados ao oceano com preces apressadas. Quando, após longas semanas, avistaram a linha irregular do litoral brasileiro, os três irmãos sentiram o peso de um destino sem volta.

No Rio de Janeiro, a recepção foi tumultuada. As multidões de recém-chegados eram empurradas para escritórios onde funcionários apressados os registravam e distribuíam para colônias agrícolas espalhadas pelo interior do país. Antonio, Gabriele e Ernesto com mais algumas dezenas de famílias seguiram viagem em outro navio rumo ao sul do país, até o porto de Rio Grande. Após algumas semanas de angustiante espera, abrigados precariamente em barracões de madeira perto do porto e com pouca privacidade, embarcaram novamente, desta vez em pequenas embarcações fluviais, atravessando a extensa Lagoa dos Patos e a seguir subindo contra a correnteza do rio Jacuí durante quase um dia inteiro, até alcançarem a modesta localidade de Rio Pardo onde desembarcaram. Dali em diante prosseguiram a jornada por terra, parte a pé, parte em carroças puxadas por bois, avançando lentamente pelo terreno pedregoso e íngreme até o coração da província do Rio Grande do Sul, em direção a um lugar chamado Santa Maria da Boca do Monte onde se localizava a extensa Colônia Silveira Martins. O nome soava grandioso, mas o que encontraram foi uma vastidão de matas fechadas, colinas íngremes e clareiras abertas a golpes de machado.

A realidade abateu-os logo nos primeiros dias. O governo pagava pelo trabalho de abrir estradas, mas os ganhos mal cobriam os custos de sobrevivência. Recebiam moedas em troca de jornadas inteiras sob o sol ou sob a chuva, cortando árvores colossais e arrastando troncos, sempre rodeados por enxames de insetos e pelo risco constante de febres. O alimento era escasso e repetitivo: mandioca, milho, feijão mal cozido. O corpo enfraquecia, e a saudade da pátria se tornava um fardo invisível.

A esperança de possuir terras próprias parecia distante. Os lotes prometidos eram quase sempre montanhosos, cheios de pedras e difíceis de cultivar. Cada clareira exigia semanas de esforço para ser aberta. As árvores, com raízes profundas, resistiam ao machado. O solo, quando exposto, revelava-se úmido demais em alguns pontos e árido em outros. Antonio, o mais velho, mantinha o grupo unido com sua disciplina. Gabriele, mais robusto, assumia as tarefas mais duras, sustentando a família com a força dos braços. Ernesto, ainda jovem, sofria mais com a adaptação; o clima sufocante, as febres e o trabalho exaustivo punham em risco sua saúde frágil.

Ao redor deles, repetia-se a mesma história. Centenas de famílias vindas da Itália enfrentavam os mesmos desafios: casas de madeira improvisadas, trabalho pesado para o governo, doenças que se espalhavam como incêndios. Muitos não resistiam. Alguns, desesperados, tentavam regressar, mas quase todos estavam presos pela falta de recursos. A travessia de volta custava mais do que a ida, e a pobreza tornava impossível a fuga.

Com o tempo, os irmãos Bellatto tomaram posse de suas tão sonhadas terras que juntas, unidas lado a lado, cobriam uma extensa área de floresta. Aprenderam a sobreviver. Descobriram plantas medicinais com os indígenas da região, caçaram animais menores, plantaram pequenas roças de milho e batata-doce. A cada ano, uma nova clareira era aberta. O cansaço acumulava-se, mas também crescia a sensação de pertencimento. A floresta, antes inimiga, começava a se transformar em lar.

A religiosidade sustentava-os nas horas de desespero. Aos domingos, caminhavam longas distâncias para assistir à missa em capelas improvisadas. Nessas reuniões, reencontravam outros conterrâneos, trocavam notícias e dividiam sofrimentos. As preces eram ditas com fervor, e as lágrimas que escorriam durante os cânticos falavam de saudade, mas também de esperança.

Os anos passavam, e a promessa de prosperidade permanecia incerta. O governo continuava a usar imigrantes como mão de obra barata para abrir estradas e construir ferrovias, e os colonos lutavam para transformar lotes inóspitos em campos produtivos. Muitos desistiram, outros morreram, mas os Bellatto resistiram e tornaram-se ricos agricultores.

A trajetória deles não foi de conquistas grandiosas, mas de persistência silenciosa. Antonio envelheceu curvado pelo machado e pela enxada, mas orgulhoso de ter mantido os irmãos unidos. Gabriele criou raízes na terra, adaptando-se à nova vida até tornar-se parte dela. Ernesto, embora frágil, encontrou forças para seguir, ajudando a família com o que podia. Nenhum deles voltou à Itália. O sonho de retorno esvaiu-se com os anos, substituído pela certeza de que sua vida agora pertencia ao Brasil.

A saga dos três irmãos confundiu-se com a de milhares de outros italianos que atravessaram o oceano naquele final de século. Não construíram palácios, nem acumularam riquezas, mas deixaram na terra sul-rio-grandense o rastro de sua luta. Cada clareira aberta, cada pedaço de estrada, cada colheita arrancada da mata foi parte de uma epopeia coletiva.

Sob o céu ardente de Santa Maria da Boca do Monte, os irmãos Bellatto transformaram sofrimento em resistência. Foram pioneiros de uma terra que os recebeu com dureza, mas que acabou por se tornar seu destino. Na memória das gerações que vieram depois, permaneceram como símbolos de coragem anônima, daqueles que ousaram trocar o certo pelo incerto, e que, entre perdas e cicatrizes, fincaram raízes no coração do Brasil.

Nota do Autor

A narrativa que o leitor acaba de conhecer é um resumo de um livro e foi inspirada em fatos reais do período da imigração italiana no Brasil, na segunda metade do século XIX. Os acontecimentos, os locais e as condições de vida descritos correspondem à realidade enfrentada por milhares de famílias que deixaram o Vêneto e outras regiões da Itália em busca de uma promessa de prosperidade nas terras brasileiras.

O ponto de partida desta história é uma carta autêntica, escrita em Santa Maria da Boca do Monte, em 1887, por imigrantes recém-chegados. Nela, relatavam com franqueza as dificuldades encontradas, os perigos da mata, o trabalho pesado e a decepção com as promessas não cumpridas. Essas cartas, ainda preservadas em arquivos e estudos históricos, revelam a dureza da vida dos primeiros colonos e sua luta constante entre esperança e desespero.

Para esta versão literária, os nomes originais foram substituídos por outros da mesma região de origem, a fim de proteger a identidade dos personagens e, ao mesmo tempo, preservar o valor universal de suas experiências. Assim nasceram os irmãos Bellatto, que representam tantos outros homens e mulheres anônimos que viveram dramas semelhantes.

Trata-se, portanto, de uma reconstrução literária baseada em documentos históricos, mas enriquecida por elementos narrativos que buscam transmitir a intensidade da vida cotidiana, a paisagem hostil do Brasil do século XIX e a dimensão humana da imigração. Nada aqui é invenção gratuita; ao contrário, tudo é fruto da realidade testemunhada pelos próprios imigrantes.

Esta é uma homenagem à coragem silenciosa daqueles que, com o coração dividido entre a saudade da pátria e a necessidade de sobreviver, escreveram com suor e lágrimas uma das páginas mais duras da história da imigração italiana no Brasil.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta




A Jornada de Tommaso Bernardino no Brasil


A Jornada de Tommaso Bernardino no Brasil

Fazenda Santa Esperança, Interior da Província de São Paulo — Março de 1889


 A bruma da manhã ainda não se dissipara quando Tommaso Bernardino apertou o terço entre os dedos calejados e olhou o horizonte: um mar de cafezais ondulando sob a luz dourada do sol nascente. Por um instante, quase esqueceu o que havia deixado para trás — as terras de Valdobbiadene, os sinos de Santa Maria Assunta, a voz da mãe pedindo para que ele voltasse em dois anos. Prometera. Sabia que mentia.

A Itália, mesmo unificada, era uma nação fraturada por dentro. Os campos estavam esgotados, os graneleiros vazios, e as mãos de Tommaso — fortes, firmes — não encontravam mais trabalho. A solução chegou como chegam os sussurros de esperança: cartas enviadas por conhecidos do outro lado do Atlântico, promessas de terra, comida farta e liberdade. A “Mèrica”, como diziam com sotaque pesado. Seu nome corria pelos vinhedos como prece ou maldição.

Embarcou no Porto de Genova, acompanhado da esposa Giulia e dos três filhos — um deles ainda no ventre materno. Trinta e dois dias depois, desembarcavam no porto de Santos, apenas para serem enviados, em trem sacolejante, para a capital paulista onde ficariam alojados na Casa do Imigrante. O destino final seria uma fazenda de café em Ribeirão Preto, no coração da província, ainda distante dali. 

Parece que tinham chegado ao Brasil em um período conturbado. Ali, em vez do abrigo prometido, encontraram o inferno. Salões superlotados, mulheres sentadas no chão com filhos febris ao colo, crianças chorando a noite inteira. O avô de Tommaso, velho Pietro, sucumbiu à disenteria antes da terceira noite. Outros corpos saíram enrolados em panos. A Giulia, em desespero, pensou em fugir. Matteo, com a alma em pedaços, resistiu.

Então veio a revolta. Um motim feroz, nascido da fome e do descaso. Panelas foram viradas, comida jogada pelas janelas. O caldo grosso que fedia a ossos velhos, o pão embolorado — tudo foi pisoteado em meio ao tumulto. Empregados correram. Guardas chegaram. Militares da cavalaria tentaram conter a fúria. A multidão, sem armas, atacava com gritos, lágrimas, dentes. Matteo não levantou a voz, mas tampou os ouvidos dos filhos.

No mesmo dia, em São Paulo, explodiram protestos civis — a cidade clamava pela queda da monarquia. Rumores de cabeças cortadas e soldados abatidos alimentavam o pânico. A instabilidade política do Brasil era um labirinto, mas Matteo tinha outro tipo de urgência: sobreviver.

Foram finalmente levados a Ribeirão Preto, numa fazenda chamada Santa Esperança. Nome bonito, talvez poético demais. Pertencia a uma família paulista de ascendência portuguesa. Quem mandava de fato era o administrador, Marco Giordano, um italiano de Vicenza que há dez anos havia se reinventado nas terras tropicais. Giordano os recebeu com um sorriso duro. Ali não havia tempo para ilusões.

Os Bernardino foram alojados com outras cinco famílias, duas delas piemontesas e uma napolitana — grupo este que Tommaso, em silêncio, evitava. A velha divisão italiana pulsava nas entrelinhas: os do norte não confiavam nos do sul, e os do sul sentiam-se desprezados. Ainda assim, dividiam o mesmo fogão e a mesma solidão.

A casa era de madeira firme, quatro cômodos, telhas vermelhas moldadas ali mesmo, no barro espesso das margens do rio. Não havia luxo, mas havia abrigo. Aos sábados, um porco era abatido e a carne repartida entre os colonos — um gesto do patrão para manter a paz. A gordura, usada no preparo da polenta, dava sabor e memória aos pratos.

Tommaso trabalhava na roçada do café. O mato chegava à cintura, o sol não perdoava, mas o pagamento vinha em moeda estável. Nas primeiras semanas, acondicionou milho com palha nos grandes paióis, técnica indispensável naquele clima úmido. Depois foi para o cafezal, onde ganhava por mil pés limpos. As mãos sangravam. Os ombros queimavam. Mas não se queixava.

À noite, às vezes, ouvia-se sanfona na casa grande. Bailes misturavam colonos, escravos libertos e o próprio Giordano, que dançava com uma alegria quase suspeita. Os negros da fazenda — muitos ainda ligados às senzalas de outrora — acolheram os italianos com um tipo de gentileza silenciosa. Ensinaram onde caçar, como cortar lenha sem ferir a árvore, que planta curava febre.

Nem tudo era harmonia. Alguns colonos, especialmente os que haviam perdido filhos, mal saíam das casas. Falava-se de suicídios, de mães que amaldiçoavam o Brasil em dialetos extintos. Matteo, no entanto, criava raízes. Enterrou Pietro no alto da colina, de onde se via o campo de café. Ali prometeu ficar. Não por escolha, mas por lealdade aos que dependeriam dele.

As distâncias eram cruéis. A igreja mais próxima ficava a três léguas. Um padre apenas para várias fazendas. Missas rareavam. Matteo, outrora devoto, passou a rezar em silêncio, sentado sob as laranjeiras, pedindo forças. Sabia que a fé, como o milho no paiol, precisava ser bem guardada para resistir.

No final do primeiro ano, quando a colheita foi farta, Tommaso ergueu uma pequena cruz no quintal. Giulia havia dado à luz ali mesmo, entre paredes de madeira e cheiro de eucalipto. Batizaram o menino com o nome do avô: Pietro. E naquela criança, Tommaso viu — pela primeira vez — não uma lembrança da Itália perdida, mas uma semente do Brasil que nascia.

A partir daquele momento, compreendeu o que tantos antes dele haviam esquecido: que emigrar não era apenas partir. Era morrer de um lado para renascer do outro.

Sob o céu incandescente da América, Tommaso Bernardino não era mais apenas um camponês vêneto. Era pai, fundador, sobrevivente. E sua história, embora invisível nos livros, começava a se escrever entre os grãos vermelhos do café e as noites silenciosas das colinas paulistas.


Nota do Autor


Esta obra, A Jornada de Tommaso Bernardino no Brasil, é uma narrativa de ficção inspirada em histórias reais de milhares de italianos que, entre o final do século XIX e o início do século XX, deixaram para trás a pátria, a família e as raízes em busca de uma nova vida nas terras distantes da América do Sul.

Tommaso Bernardino, personagem central desta narrativa, não representa apenas um homem, mas uma multidão. Sua voz ecoa a de tantos outros camponeses, artesãos, viúvas, crianças e sonhadores que embarcaram em navios sobrecarregados de esperanças e incertezas. Através dele, revisitamos as agruras do navio, o estranhamento diante de uma terra selvagem e desigual, o peso do trabalho nas fazendas de café, os conflitos com os senhores e as autoridades, e também os laços de solidariedade que se formaram entre os imigrantes.

A Fazenda Santa Esperança, cenário simbólico da história, representa as contradições do sistema de colonização do Brasil: um espaço de promessas e armadilhas, de violência disfarçada de contrato, mas também de resistência, de reinvenção e de luta por dignidade. A narrativa busca, sem romantizar a dor, fazer justiça à memória desses homens e mulheres que, com suas mãos calejadas e seus silêncios eloquentes, ajudaram a construir o país que conhecemos hoje.

Ao leitor, ofereço não apenas uma história, mas um convite: o de mergulhar nas camadas de tempo e humanidade que moldaram nosso passado. Que a travessia de Tommaso Bernardino possa nos lembrar que toda migração é, antes de tudo, um ato de coragem.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta