domingo, 16 de agosto de 2020

Amas-de-Leite por Necessidade


Na Itália se denomina de "baliatico" uma forma de emigração temporária, quase sempre circunscrita dentro do território italiano, embora tenham havido casos em que as ama-de-leite emigravam para o exterior, também por tempo determinado, retornando para as suas casas assim que terminado o contrato de trabalho que tinham acordado. 
Foi sem dúvida uma forma muito particular de migração, pois interessava, obviamente, somente às mulheres, onde os períodos de trabalho eram regulados pelos ritmos biológicos e não pela sazonalidade. 
Os conflitos íntimos vividos por uma mãe que, que por extrema necessidade, se via obrigada a ser uma ama-de-leite, eram enormes e também muito difíceis de administrar. Temos também dificuldades para entender como uma mãe pode deixar o seu filho, com poucos meses de nascimento, nas mãos de outras pessoas para ir amamentar um outro desconhecido. 
A situação econômica em que viviam a maioria das famílias italianas de baixa renda, particularmente, os camponeses e pequenos proprietários rurais, naquela época do século XIX, era desesperadora. O desemprego masculino era crescente, as doenças causadas por carências de vitaminas, reflexo da má alimentação, faziam com que a fome já estivesse batendo nas suas portas, alcançando os demais filhos. Ser uma ama-de-leite ou uma babá, era a única solução que sobrava para essas mulheres para a salvação familiar.



A migração de mulheres para trabalharem como amas-de-leite ou babás, interessou uma parte expressiva da população feminina da província de Belluno e se dirigiu para outras cidades da própria Itália, especialmente para os centros urbanos mais populosos das regiões do Veneto, Piemonte e Lombardia. Centenas de puérperas, movidas pela necessidade extrema foram atraídas pelos altos salários e tratamento privilegiado, deixando seus filhos de poucos meses para irem amamentar os recém-nascidos das classes ricas das cidades.
O trabalho de ama-de-leite era para aquelas jovens mães, especialmente as camponesas, as quais movidas pela extrema pobreza, eram obrigadas a vender seu leite aos filhos dos senhores da época. Muitas outras mulheres partiram para trabalhar como babás, não amamentavam, também partiam para as cidades para, como empregadas, cuidarem dos filhos das famílias ricas da época.


Uma ama-de-leite podia ganhar até três vezes mais do que uma trabalhadora de outras profissões e as condições de vida que a aguardavam eram excelentes, principalmente, se compararmos com outras trabalhadoras migrantes da época, como lavadeiras ou garçonetes por exemplo. Nas mansões dos ricos senhores, uma babá, por motivos óbvios, era sempre muito bem alimentada e deveria ter muito cuidado com a sua aparência e higiene pessoal. As suas roupas deviam estar sempre muito limpas, passadas e engomadas, e estas eram confeccionadas de forma quase padronizada para, quando estivessem na rua, junto com as famílias dos patrões, não pudessem ser confundidas com eles aos olhos de passantes, de possíveis visitas ou convidados das casas em que trabalhavam.



Elas recebiam um enxoval que geralmente consistia de  seis a doze unidades, roupas íntimas, roupas para uso em casa e para quando tivessem que sair, roupões, aventais e enfeites bordados. Era tradicional fornecer-lhes grandes broches, colares e brincos, que deviam ser usados permanentemente por elas. Usavam também toucas ou chapéus característicos, com os quais podiam ser reconhecidas. Usavam jóias, confeccionadas principalmente de coral, a pedra da sorte, amuleto usado para conservar o leite bom e abundante. As amas-de-leite eram servidas pelas demais empregadas da casa, muitas vezes até faziam as refeições à mesa com os patrões, o quais podiam assim verificar mais de perto se a sua alimentação estava sendo adequada. Os cuidados com a sua saúde também eram sempre avaliadas pelas patroas e caso  percebessem alguma pequena alteração ou saudades do seu filho natural, costumavam mima-las com presentes. Muitas vezes os patrões tinham o cuidado de transferi-las para locais mais frescos da casa, durante o verão, tudo para que não perdessem o precioso leite. Não raras vezes as relações de confiança e amizade com as famílias, e particularmente, com as crianças sob os seus cuidados, tornavam-se tão fortes que, muitas dessas mulheres, mais tarde, decidiam retornar para trabalhar como amas secas, governantas, enfermeiras ou atendentes de idosos. 


O lado sombrio desse trabalho era o alto preço que as mulheres pagavam ao retornarem para as suas casas. Os longos períodos de ausência do seu lar afetavam bastante as relações com os seus próprios filhos, muitas vezes de forma duradoura. Os filhos naturais que ficaram em casa, longe da mãe, muitas vezes sentiam uma sensação de desconfiança e a viam como uma estranha. Por outro lado, os filhos de leite, aqueles pequenos estranhos que ela havia amamentado, se apegavam profundamente à ela, que os alimentou e criou. 

No início a vida dessas mulheres não era realmente nada fácil, chegavam à uma grande cidade, muito maior do que a vila que então viviam, alojadas em casa de pessoas desconhecidas com comportamentos e hábitos de vida muito diferentes dos seus. Ao chegarem na nova residência, depois de longas e cansativas viagens, antes de amamentar o bebê à ela confiado, passavam por exames e consultas médicas. Viviam em constante controle dos patrões, que as vigiavam e as proibiam de contatos com outras pessoas além dos da família. 



Com o passar do tempo essas relações, geralmente, iam mudando, assim que elas granjeavam a confiança dos patrões e obtinham mais liberdade, permitindo conhecer outros membros da família e seus amigos visitantes. Esse estreito contato com as famílias, com pessoas de maior nível social e cultural contribuiu para que essas amas-de-leite e babás, geralmente sem instrução, quase sempre provenientes da zona rural, a oportunidade de um desenvolvimento cultural.

Mas, ao retornarem para as suas próprias casas, elas traziam com elas uma bagagem de cultura mais sofisticada,  resultado da oportunidade que tiveram ao absorverem os hábitos, comportamento e ideias das famílias burguesas com que viveram, os quais contrastavam com aqueles da sociedade rural. 


 Elas agora passavam a ser olhadas com alguma desconfiança pelos vizinhos, ainda mergulhados na sociedade campesina, pois, retornavam com outros hábitos, tinham os cabelos penteados, a pele bem cuidada, muito branca, sem as características manchas deixadas por horas de trabalho expostas  ao sol, usavam adornos, jóias e grampos nos cabelos cuidados, contrastando com o das demais mulheres da localidade. 

Os filhos naturais confiados a outras mulheres,  alimentados artificialmente geralmente com mamadeira de leite de cabra, as repeliam, não reconhecendo nelas as próprias mães. Em muitos casos ao retornarem não encontravam mais os filhos legítimos, tinham morrido após a partida e a família não as avisava para evitar perderem o leite. 

Também eram mal compreendidas pela sociedade campesina, incentivadas pelos proprietários de terras local, que viam nessa atitude de sair de casa para cuidar os filhos dos outros em detrimento dos próprios, como uma forma de ganância por dinheiro, vaidade ou mesmo desejo de aventura.  Com esses comentários pejorativos, o que na verdade esses proprietários de terras queriam dizer é que estavam com medo das ideias mais progressistas que elas traziam para as suas vilas, com uma possível desintegração dos modelos éticos tradicionais, motivando no fundo a perda da autoridade e poder que eles tinham com os camponeses. 

Na verdade a emigração temporária feminina deu uma forte contribuição para melhorar o padrão de vida das famílias campesinas, impulsionando a pequena propriedade. A experiência de emigração temporária também proporcionou uma mudança na maneira de pensar dessas mulheres, aumentando a sua autoestima e a satisfação própria com a contribuição que deram no desenvolvimento da economia do território nos tempos de crise. 


Dr. Luiz Carlos Piazzetta