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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Além do Mar

 


Além do Mar

O ano era 1885. Vittorio Mancoretti, um homem de constituição robusta e com olhos escuros e profundos que refletiam tanto a dureza da vida quanto a obstinação de quem nunca desiste, nascera e crescera na pequena e quase esquecida aldeia de San Daniele, ainda agarrada às montanhas do Friuli. Essa aldeia era um lugar onde o vento trazia histórias de gerações marcadas pelo trabalho árduo e pela resignação diante de uma terra ingrata. Vittorio era o filho mais velho de uma família de pobres camponeses, onde a única herança era o saber como arrancar de uma terra árida o pouco que bastava para viver.

Desde menino, ele compreendera que o nascer do sol trazia consigo o peso do trabalho, e que as noites eram feitas de esperanças silenciosas, muitas vezes esquecidas pelas promessas de uma Itália unificada há pouco. Aos trinta e cinco anos, seus ombros já estavam curvados pelos mesmos gestos repetidos: arar, plantar, colher – uma dança infinita que retornava apenas cansaço.

A seca, uma companheira cruel das colheitas, e a pobreza, sempre à espreita, haviam transformado a vida dos Mancoretti em um ciclo amargo de escassez. A pequena faixa de terra herdada, exausta por anos de exploração, não era mais capaz de sustentar sua esposa Bianca, uma mulher forte com olhos azuis desbotados pelo tempo, e seus dois filhos pequenos, Matteo, de sete anos, e Rosa, que tinha apenas quatro anos. Matteo já havia começado a ajudar o pai nos campos, mas seu espírito ainda estava cheio da inocência dos jogos. Rosa, por outro lado, frágil e frequentemente doente, necessitava de cuidados que muitas vezes eram mais do que podiam oferecer.

Vittorio sentia o peso de suas responsabilidades como uma corrente que o mantinha preso a um destino que parecia nunca mudar. Cada dia passado naquela terra lhe roubava um pedaço de força, mas nunca sua determinação. Dentro dele, ardia uma chama viva – uma inquietação que o levava a olhar além das montanhas de Valdorsi, sonhando com uma vida onde o trabalho não fosse apenas sobrevivência, mas uma promessa de algo mais.

As notícias de uma nova terra, rica e generosa no sul do Brasil, chegavam devagar pelos vizinhos que haviam lido cartas de parentes emigrados. Falavam de florestas vastas, rios caudalosos e promessas de terras próprias, longe dos patrões que lhes tiravam tudo. Vittorio, inicialmente cético, não podia mais ignorar a miséria crescente ao redor de sua casa.

Bianca, prática e decidida, disse ao marido:

“Se ficarmos aqui, morreremos. Se partirmos, ao menos teremos uma esperança.”

Com o coração pesado, Vittorio decidiu vender tudo o que possuíam — o velho arado, uma vaca magra e até mesmo a aliança de casamento de sua esposa.

O Vapor Umberto I

A jornada até o porto de Gênova foi uma verdadeira odisseia, cheia de dificuldades e sacrifícios. A família percorreu estradas empoeiradas e acidentadas, viajando por dias em uma carroça carregada de pertences, depois em vagões apertados de trem e, finalmente, a pé, atravessando povoados e colinas com os poucos bens que possuíam bem embrulhados.

No cais, o ambiente era uma mistura de névoa e expectativa, cheio de vozes em dialetos diferentes, carregadas de esperança e desespero. Foram agrupados com dezenas de outros emigrantes, todos com destino ao Brasil, formando uma massa de rostos ansiosos e olhares perdidos.

Umberto I, ancorado, imponente diante deles, parecia uma cidade flutuante, com suas enormes chaminés e os conveses lotados de pessoas. Para quem nunca tinha visto o mar, a visão do colosso de ferro era tão fascinante quanto assustadora. Mas o cheiro de óleo e sal, misturado ao burburinho dos passageiros já embarcados, criava uma sensação sufocante antes mesmo de entrarem no vapor.

No porão do navio, escuro, úmido e abafado, as condições eram ainda mais opressivas. Famílias inteiras estavam amontoadas em redes penduradas no teto, enquanto outras improvisavam camas com trapos e malas. A travessia do Atlântico era um verdadeiro tormento: a fome corroía os estômagos, doenças se espalhavam como fogo, e a saudade dos entes queridos deixados para trás parecia pesar mais a cada dia, com cada onda que o navio enfrentava.

Matteo, o menino de sete anos, era um raio de sol no meio da escuridão do porão. Com sua energia infinita, organizava jogos e brincadeiras, arrancando sorrisos das outras crianças e aliviando, ainda que por um momento, o peso da viagem. Rosa, sua irmã menor, porém, era frágil e, dia após dia, parecia definhar, arrancando lágrimas silenciosas de seus pais.

Certa noite, especialmente longa, enquanto o vapor deslizava sob um céu sem estrelas, Vittorio, o patriarca, estava no convés, segurando a mão de Bianca, sua esposa. Olhava para o mar escuro como se buscasse respostas na vastidão desconhecida. O peso de sua decisão apertava seu peito. E se tivesse cometido um erro irreparável? E se sua busca por uma vida melhor condenasse sua família à miséria ou, pior, à morte?

Mas Bianca, com sua força inabalável e seu olhar sereno, apertou sua mão e sussurrou:
“Mantenha a fé, meu amor. A terra que encontrarmos será a promessa de um novo começo. Basta resistirmos.”

Essas palavras ecoaram no coração de Vittorio, uma centelha de esperança no meio de uma escuridão que parecia infinita.

Os Primeiros Anos na Colônia

Quando desembarcaram no porto de Rio Grande, os Mancoretti sentiram uma mistura de alívio e incerteza. A longa travessia do Atlântico havia terminado, mas a verdadeira jornada estava apenas começando. Foram enviados para a Colônia Conde d’Eu, situada entre as verdes encostas da Serra Gaúcha.

Ao chegarem ao destino, encontraram uma terra vastíssima, mas de uma beleza selvagem: cheia de florestas densas e habitada apenas pelo silêncio das árvores e pelo canto distante dos pássaros.

Os primeiros dias foram marcados por novos desafios a cada instante. A família construiu um abrigo improvisado com troncos e folhas, um barraco rudimentar que mal os protegia das chuvas incessantes e do frio das noites. Mas, para os Mancoretti, aquele refúgio simples representava o primeiro passo para um lar. Vittorio, com o machado nas mãos, passava as manhãs derrubando árvores gigantescas e lutando contra os espinhos, enquanto Bianca, com maestria e paciência, limpava pedaços de terra para plantar repolhos e legumes.

As dificuldades pareciam insuperáveis. A comida era escassa, os braços não bastavam para todo o trabalho, e a solidão pesava como um fardo invisível. Rosa, ainda fraca após a viagem, contraiu uma febre alta que rapidamente drenou suas forças. Sem médicos ou remédios, Bianca cuidou da menina com compressas de ervas e orações todas as noites. Milagrosamente, Rosa se recuperou, mas aqueles dias de medo deixaram marcas profundas em todos os corações da família.

Foi a solidariedade dos outros colonos que trouxe algum alívio e esperança. Os recém-chegados logo entenderam que sobreviver era possível apenas com o esforço coletivo. Juntos, homens e mulheres trabalhavam para abrir trilhas na floresta, erguer casas simples e compartilhar a pouca comida que tinham. Vittorio, com sua determinação calma e talento natural para liderar, tornou-se uma referência para a comunidade. Sua voz firme e serena era como uma âncora em meio às tempestades da vida.

O Florescer da Esperança

Após cinco anos de luta contínua contra a terra, o tempo e suas próprias incertezas, a vida dos Mancoretti começou a mudar de forma. As terras, antes uma extensão selvagem de floresta densa, agora exibiam fileiras ordenadas de trigo dourado, pés de feijão verde e vinhedos carregados de uvas suculentas. O cheiro da terra fértil, conquistada com suor e perseverança, permanecia como um lembrete do que o esforço humano podia alcançar.

Vittorio, incansável, dedicou cada minuto de seus dias a construir uma casa digna para sua família. A nova casa de madeira, erguida com tábuas robustas cortadas por suas próprias mãos, era um símbolo de vitória. Na sala principal, pendurou com reverência o crucifixo que haviam trazido da Itália, um lembrete de fé e esperança que os sustentou nos anos mais difíceis. A casa, embora simples, tinha um calor humano que nenhuma mansão poderia replicar.

Matteo, agora um jovem forte e curioso, tornara-se o braço direito do pai nos campos. Mas, enquanto suas mãos calejadas trabalhavam a terra, sua mente sonhava mais alto. Ele desejava mais do que uma vida de trabalho agrícola; sonhava em criar uma escola para as crianças da colônia, oferecendo-lhes um futuro onde pudessem escrever, ler e sonhar como ele fazia. Rosa, por sua vez, havia se transformado de uma menina frágil em uma jovem cheia de vida. Sua saúde agora florescia, e sua voz, melodiosa e cheia de emoção, conquistava os corações dos colonos durante as missas na capela improvisada, um pequeno barraco decorado com flores e devoção.

Na primavera de 1890, a primeira colheita de vinho da família Mancoretti foi realizada, marcando um momento de grande satisfação. O aroma doce do mosto invadiu a casa, e os barris, armazenados no recém-construído celeiro, simbolizavam mais do que trabalho árduo: eram a promessa de um futuro próspero.

Naquela noite, sob um céu estrelado, os Mancoretti e seus vizinhos permitiram-se sonhar. Eles não estavam apenas sobrevivendo; estavam criando raízes profundas, tão sólidas quanto os vinhedos que começavam a dar frutos.

Naquele tempo, ele pensava, troquei a comodidade pelo risco, o hábito pelo desafio. E a liberdade, esta terra generosa, nos retribuiu com raízes que jamais imaginei que pudessem se aprofundar tanto.” Às vezes, ele sussurrava ao vento, como se conversasse com Bianca: “Conseguimos. Não apenas por nós, mas por todos aqueles que vieram depois.”

Com o som distante das risadas dos seus netos, que se divertiam entre as fileiras de videiras, Vittorio fechava os olhos por um momento, sentindo-se em paz. Ele sabia que havia cumprido seu dever e que o legado dos Mancoretti não era apenas a terra que ele havia cultivado, mas também os sonhos que havia plantado e as vidas que havia tocado. No coração da Serra Gaúcha, sob um céu que parecia mais luminoso do que nunca, a história de Vittorio tornava-se parte desta terra que ele tanto amava.

Nota do Autor

A história da família Mancoretti é uma ficção inspirada em muitos relatos de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX. Assim como Vittorio e Bianca, centenas de milhares de famílias deixaram suas terras natais, especialmente das regiões do Vêneto, Lombardia e Trentino-Alto Ádige, em busca de uma vida melhor. Fugiam da miséria, das crises econômicas e da falta de perspectivas que assolavam a Itália após a unificação, encontrando no Brasil um novo lar, embora cheio de desafios.

As colônias italianas no Rio Grande do Sul, como Caxias, Dona Isabel (atual Bento Gonçalves) e Conde d’Eu (hoje Garibaldi), foram fundadas em meio à mata virgem da Serra Gaúcha. Os primeiros anos desses imigrantes foram marcados por um profundo isolamento, condições de trabalho adversas e a falta de infraestrutura básica, como estradas, médicos e escolas. Muitos enfrentaram doenças, perdas pessoais e uma saudade profunda, mas, ao mesmo tempo, construíram comunidades vivas e resilientes, que moldaram a identidade cultural e econômica dessa região.

O personagem de Vittorio representa o espírito de liderança e perseverança que emergiu entre os colonos, enquanto Bianca simboliza a força e a fé que sustentavam tantas famílias. Matteo e Rosa refletem as gerações seguintes, que sonhavam e trabalhavam para ampliar os horizontes conquistados por seus pais.

A inclusão do vinho como parte do legado da família Mancoretti é uma homenagem à introdução da viticultura pelos italianos no Brasil, um feito que transformou a Serra Gaúcha em um dos principais centros vinícolas do país. Ainda hoje, as festas da colheita e as celebrações comunitárias são ricas em tradições trazidas da Itália, repletas de música, dança e gratidão pela terra que os acolheu.

Esta história é uma ode à resiliência humana, ao poder dos sonhos e à força de um legado que transcende fronteiras. Que os Mancoretti sejam um espelho para todos aqueles que, em momentos difíceis, tiveram a coragem de recomeçar e criar raízes em terras distantes, transformando o desconhecido em lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Uma Jornada Sem Fim

 

Uma Jornada Sem Fim


No amanhecer de uma manhã fria e enevoada, a pequena vila de San Pietro di Livenza parecia tão calma quanto sempre, mas para Giuseppe Zilotto e sua família, aquele dia marcava o início de uma jornada que mudaria suas vidas para sempre. Era o outono de 1876, e Giuseppe, um homem robusto com as mãos calejadas pelo trabalho árduo na terra estéril, sabia que não havia mais como sustentar sua família naquele lugar.

Ao seu lado estava Maria, sua esposa, cujos olhos, embora marcados pelo cansaço, ainda refletiam uma centelha de esperança. Com seus três filhos pequenos – Matteo, de oito anos; Luca, de cinco; e o bebê Vittorio, de apenas dez meses – eles se preparavam para deixar tudo para trás e embarcar rumo ao desconhecido Brasil. A vila inteira se reuniu para se despedir, oferecendo pequenos presentes para a longa viagem, como pães, ervas medicinais e até um medalhão de Santo Antônio, além de lágrimas e orações silenciosas. 

O caminho desde a estação ferroviária até o porto de Gênova foi longo e cansativo, devido às inúmeras paradas em diversas estações pelo caminho, ocasião em que embarcavam dezenas de outros emigrantes como eles. O trem carregado corria lento pelos trilhos e as crianças, especialmente o pequeno Vittorio, pareciam definhar com a exaustão.

Quando finalmente chegaram ao porto, a visão do enorme vapor Savoie foi tanto uma promessa de esperança quanto uma ameaça de perigos desconhecidos. A bordo do navio, as condições eram insalubres. Homens, mulheres e crianças amontoavam-se em espaços apertados, com pouca ventilação e comida escassa. A água potável frequentemente se misturava com impurezas, e as noites eram preenchidas com o som de orações, choros e tosse – especialmente de Luca, que começou a demonstrar sinais de fraqueza. Apesar de todo o cuidado de Maria, as más condições agravaram sua saúde, e a febre logo se tornou uma companheira constante.

Após quase 40 dias no mar, o navio chegou ao porto do Rio de Janeiro no início de 1877. O desembarque trouxe alívio, mas também novos desafios. A família ainda precisaria enfrentar uma segunda jornada em uma caravana até Santa Catarina, e os riscos das doenças e da fadiga estavam sempre presentes. Quando finalmente chegaram ao lote designado para eles, a visão da terra foi um choque. Prometida como fértil e abundante, era na verdade um matagal denso e inóspito. Giuseppe, com determinação feroz, começou a desbravar o terreno com a ajuda de Matteo, enquanto Maria cuidava das crianças e tentava adaptar-se ao ambiente hostil.

A tragédia atingiu a família poucos meses após a chegada. Luca, debilitado pela longa viagem e pelas condições adversas, adoeceu gravemente. Sem médicos ou recursos, Maria e Giuseppe fizeram tudo o que podiam, utilizando ervas e compressas ensinadas por vizinhos mais experientes, mas seus esforços foram em vão. Luca faleceu numa tarde silenciosa, no verão de 1877, e a dor de sua perda foi como uma faca atravessando o coração da família. O pequeno grupo de vizinhos imigrantes, alguns deles já estabelecidos na região, organizou um funeral simples. Sob um velho cedro, próximo ao cemitério improvisado, Giuseppe cavou a sepultura. Maria, com o pequeno rosário nas mãos, murmurava orações entre lágrimas. A perda de Luca marcou a família profundamente, mas também fortaleceu sua determinação de sobreviver e honrar sua memória.

Os meses seguintes foram repletos de desafios. Giuseppe e Matteo trabalharam incansavelmente para limpar a terra e plantar as primeiras sementes. Após muitos esforços, a primeira colheita foi modesta, mas trouxe um senso de realização e esperança renovada. Maria buscou formas de melhorar a vida da família, aprendendo com os vizinhos novas receitas com ingredientes locais, muitos deles desconhecidos e a utilizar ervas medicinais para tratar pequenas enfermidades.

Mesmo diante das dificuldades, ela sempre encontrava tempo para contar histórias da Itália aos filhos, incentivando-os a sonhar com um futuro melhor. No início de 1878, Maria descobriu que estava grávida novamente. A notícia trouxe sentimentos mistos, com o medo de novas perdas, mas também a esperança de um recomeço.

Em julho de 1878, durante uma forte tempestade, nasceu um menino, que recebeu o nome de Carlo Vittorio, em homenagem ao irmão perdido e à força que sustentava a família. Carlo Vittorio trouxe alegria e tornou-se um símbolo de resiliência.

Sob o velho cedro, Maria frequentemente rezava, lembrando-se de Luca e encontrando forças em sua memória. A terra, antes hostil, começou a mostrar sua generosidade, e a casa simples tornou-se um lar acolhedor. Os anos seguintes foram de trabalho árduo e conquistas. A família Zilotto, apesar de todas as adversidades, construiu uma vida digna, transformando sofrimento em força e saudade em esperança. A história deles tornou-se um testemunho da força humana diante das dificuldades, uma jornada que começou com dor e incerteza, mas que se transformou em uma celebração da vida e da superação.

A jornada dos Zilotto foi mais do que uma travessia oceânica; foi um ato de coragem que plantou os alicerces de um novo futuro. Ao cruzarem o Atlântico, deixaram para trás não apenas uma terra empobrecida, mas também uma identidade que logo se fundiria com o vigor do Brasil. Carlo e Maria talvez nunca tenham imaginado que seu esforço criaria raízes tão profundas. O que começou como uma luta pela sobrevivência se transformou em uma história de superação e resiliência, passada de geração em geração.

Hoje, muitos descendentes dos Zilotto retornam à Itália, não como imigrantes em busca de refúgio, mas como viajantes em busca de suas origens. Em Treviso, pequenos vilarejos ainda reconhecem os sobrenomes que desapareceram há mais de um século. Os viajantes são recebidos com curiosidade e hospitalidade, como se a volta completasse um ciclo iniciado por Carlo e Maria.

As marcas dessa jornada também estão nos detalhes cotidianos da vida brasileira. A tradição de plantar vinhedos, passada por Carlo a seus filhos, floresceu em algumas das melhores vinícolas do país. A dedicação de Maria à comunidade se reflete em descendentes que hoje são médicos, professores e líderes locais. Em cada pequeno gesto – uma prece antes da refeição, uma receita de família transmitida com carinho, um abraço caloroso – vive a essência dos Zilotto.

Essa saga, rica em detalhes e profundidade, ensina que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, a fé, o trabalho duro e o amor pela família podem superar qualquer obstáculo. A medalha e o terço são mais do que relíquias: são símbolos de uma força que atravessou gerações, lembrando a todos que a coragem dos que vieram antes é a base sólida sobre a qual o presente se ergue.


Nota do Autor

A história que você tem em mãos é mais do que uma narrativa de coragem e superação. É um tributo àqueles que atravessaram mares, deixaram para trás tudo o que conheciam e enfrentaram o desconhecido com esperança no coração. Uma Jornada Sem Fim nasceu do desejo de resgatar e honrar a memória de milhares de imigrantes italianos que ajudaram a moldar a identidade cultural e econômica do Brasil.

Giuseppe Zilotto e sua família são fictícios mas representam tantos outros que, como eles, plantaram raízes em terras estrangeiras. A cada página, procurei dar voz às suas dores, aos seus sacrifícios e, principalmente, aos seus sonhos. Essa obra é, acima de tudo, uma celebração da força humana diante das adversidades e da capacidade de transformar dificuldades em um legado que atravessa gerações.

É importante mencionar que o que está apresentado aqui é apenas um resumo da obra completa. Nas páginas do livro, mergulho mais profundamente nas vivências de Giuseppe, nos detalhes históricos e emocionais que deram forma a essa saga. Espero que este resumo desperte em você a curiosidade e a emoção para explorar a obra em sua totalidade, onde cada capítulo traz nuances ainda mais intensas e cativantes.

Com imensa gratidão,


Dr. Piazzetta




segunda-feira, 16 de junho de 2025

O Destino de Vittorio Belomonte


O Destino de Vittorio Belmonte


Na fria alvorada de 2 de julho de 1904, Vittorio Belomonte fechou a pequena mala de couro que sua mãe havia lhe dado e, com um último olhar para a casa onde crescera, saiu sem olhar para trás. O destino o chamava.

Nascido em 1882, em um vilarejo esquecido nas montanhas do Friuli, Vittorio passara a juventude trabalhando nos bosques, cortando lenha para senhores que nunca lembravam seu nome. Seu pai, Giovanni, morrera cedo, deixando a mãe e três irmãos na miséria. A fome tornara-se uma sombra constante, e, à medida que os anos passavam, Vittorio percebeu que seu destino não estava ali, mas além-mar.

A viagem até Longarone foi silenciosa. Seus companheiros, jovens de sua vila, compartilhavam a mesma melancolia. O condutor da carroça bradou impaciente para que subissem, e um nó apertou a garganta de Vittorio. Com um último olhar melancólico, ele contemplou seu vilarejo: as casas de pedra aconchegadas umas às outras, como se buscassem calor, e as montanhas imponentes ao fundo, seus picos eternamente coroados de neve. O vento gelado trouxe o cheiro da terra úmida e da lenha queimada nas lareiras. Vittorio suspirou fundo, gravando aquela imagem na memória.

Em Longarone, pegou seus documentos para deixar o país e seguiu para Veneza. As ruas estreitas e os canais da cidade lhe pareceram um outro mundo. Mas não havia tempo para contemplação. O passaporte foi carimbado, e, com os trocados que tinha, comprou pão, salame e um frasco de vinho, o suficiente para a jornada. Quando o trem para Gênova chegou, ele embarcou sem hesitação. Não havia mais volta.

A Estação de Gênova fervilhava de emigrantes, um turbilhão de rostos ansiosos e mãos calejadas segurando malas gastas pelo tempo. Homens e mulheres, vestidos com suas melhores – e muitas vezes únicas – roupas de viagem, deslocavam-se em meio à multidão, esbarrando-se sem querer, trocando olhares de cumplicidade e medo.

Poucos tinham dinheiro suficiente para um hotel decente, então amontoavam-se em uma pequena estalagem de teto baixo e paredes úmidas, escondida em uma viela sombria perto do porto. O lugar era abafado, impregnado pelo cheiro de suor e peixe salgado, e os murmúrios dos hóspedes misturavam-se ao ranger do assoalho gasto. Todos temiam os perigos daquela cidade portuária, onde golpistas e ladrões rondavam como lobos à espreita de presas fáceis. Qualquer descuido e o pouco que possuíam poderia desaparecer em um instante.

Ainda assim, mesmo em meio à incerteza, havia um sentimento pulsante no ar: a promessa de um novo começo, a esperança de um destino melhor do outro lado do oceano. A tensão e a expectativa eram quase palpáveis, como a eletricidade antes de uma tempestade.

Vittorio dividiu um quarto apertado e mal ventilado com outros três friulanos. Os beliches rangiam a cada movimento, e o cheiro de mofo misturava-se ao odor de corpos cansados e roupas úmidas. O sono veio apenas em fragmentos inquietos, interrompido pelo barulho da cidade que nunca dormia e pelo medo latente do que estava por vir.

Ao amanhecer, espreguiçaram-se sob a luz fraca que se infiltrava pelas frestas da janela e, sem muito a fazer além de esperar a hora do embarque, decidiram explorar a cidade. Caminharam pelas ruelas estreitas de Gênova, onde vendedores gritavam ofertas em dialetos diversos e carroças espirravam lama nos transeuntes. O cheiro de pão recém-assado se misturava ao odor forte do porto, onde o mar e o suor dos estivadores se fundiam em uma atmosfera pesada.

Então, ao dobrarem uma esquina, a visão do vapor Regina Elena os fez parar. Ele estava ancorado no cais, imenso e imponente, como um colosso de ferro e vapor. Suas chaminés erguiam-se como torres de um castelo flutuante, e a madeira dos conveses reluzia sob o sol da manhã. Para Vittorio, o navio era uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo. Dentro dele estava seu futuro, sua esperança e também o medo do desconhecido.

Por um instante, o mundo ao redor pareceu silenciar. O burburinho dos estivadores, o ranger das cordas sendo puxadas, até mesmo o tilintar das moedas nas mãos dos vendedores ambulantes — tudo pareceu distante, abafado, como se o tempo tivesse parado.

Vittorio sentiu o coração bater pesado no peito. O gosto salgado do ar encheu seus pulmões, misturado ao cheiro de carvão queimado que escapava das entranhas do navio. O Regina Elena estava ali, gigantesco, como um portão entre dois mundos — o passado que ele deixava para trás e o futuro incerto que o aguardava.

Engoliu em seco. Não havia mais volta. A Itália, sua terra, sua infância, seus bosques familiares e os rostos que jamais voltaria a ver... tudo ficaria para trás no momento em que ele pisasse naquele convés. A única direção agora era para frente.

No dia 29, Vittorio pagou a passagem e submeteu-se à rigorosa inspeção médica. Os oficiais o examinaram com olhares frios e mecânicos, apalpando-lhe os braços, verificando seus dentes, como se avaliassem a resistência de um animal de carga. Foi vacinado com uma agulha áspera e sem cerimônia, sentindo a ardência do líquido em sua pele. Cortaram-lhe os cabelos sem cuidado, deixando fios grossos caírem sobre seus ombros como vestígios da vida que abandonava. Seus pertences foram revistados por mãos desconhecidas, que reviraram sua mala como se buscassem algo de valor escondido.

A noite anterior ao embarque foi longa e inquieta. O quarto apertado da decadente estalagem estava impregnado pelo cheiro de suor e mofo, o colchão fino não oferecia conforto algum. Ele escutava a respiração pesada de seus companheiros de quarto — roncos intermitentes, murmúrios febris de sonhos turbulentos — misturados ao som distante das ondas quebrando contra as pedras do porto. Cada rajada de vento que entrava pela janela mal fechada trazia o cheiro salgado do mar, lembrando-o de que, dali a poucas horas, sua vida mudaria para sempre. 

Na manhã do dia 30, Vittorio caminhou até o porto com passos firmes, mas o coração acelerado. O cais fervilhava de gente. Homens gritavam ordens em dialetos diversos, carregadores passavam apressados equilibrando malas e fardos pesados nos ombros, e crianças agarravam-se às saias das mães, assustadas com a confusão ao redor. O cheiro do mar misturava-se ao de carvão queimado e peixe fresco, formando uma névoa espessa de sal e fuligem que pairava no ar.

Antes de seguir para o embarque, Vittorio comprou alguns limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e, apoiando-se em um caixote de madeira, escreveu uma última carta para a família. Escolheu as palavras com cuidado, tentando transmitir esperança, embora o peso da despedida lhe apertasse o peito.

A fila para embarque serpenteava pelo cais, arrastando-se lentamente como uma procissão de almas ansiosas. Os funcionários da companhia de navegação verificavam documentos com olhares indiferentes, enquanto os passageiros aguardavam sob o sol escaldante, segurando seus pertences com desconfiança. Quando chegou sua vez, Vittorio foi submetido a mais uma inspeção, os olhos atentos dos agentes percorrendo seu rosto e suas roupas como se buscassem algo suspeito.

Por fim, um funcionário lhe entregou um número rabiscado em um pedaço de papel sujo e indicou a entrada do navio. Descendo por corredores estreitos e abafados, iluminados apenas por lampiões oscilantes, Vittorio finalmente encontrou sua beliche: um espaço exíguo, onde mal cabia deitado. O colchão fino era pouco mais que um pedaço de pano gasto sobre tábuas duras, e a manta áspera cheirava a mofo. Ele se sentou devagar, sentindo o metal gelado da estrutura contra as mãos trêmulas.

Lá fora, os apitos soaram longos e solenes. A terra firme começava a se afastar. Pouco depois do meio-dia, soaram três apitos longos. As cordas foram soltas. O vapor Regina Elena moveu-se lentamente, afastando-se do porto. O barulho das despedidas ecoava no ar. Mães choravam, pais levantavam os chapéus, crianças acenavam sem entender. A bordo, Vittorio e seus companheiros retribuíam o gesto, engolindo as lágrimas. O hino real tocava, seguido pela Marcha Garibaldi. Uma pequena banda saudava aqueles que partiam, soldados de um exército invisível em busca de uma vida melhor.

Os primeiros dias foram um teste de resistência. No porão apertado onde dormia, o ar era denso, carregado do cheiro acre de suor, mofo e vômito. O calor sufocante tornava o ambiente ainda mais insuportável, e o balançar incessante do navio fazia com que muitos passageiros passassem mal. O som dos gemidos de náusea e da tosse seca de crianças doentes preenchia a escuridão.

A comida era pouca e sem sabor: pedaços de pão endurecido, caldo ralo que mais parecia água suja e, ocasionalmente, um punhado de batatas cozidas. As filas para receber as rações eram longas, e os mais fracos frequentemente ficavam sem nada.

Mas Vittorio resistia. Ele se recusava a ceder à fraqueza, mantendo a disciplina que aprendera nos campos de sua terra natal. Durante o dia, sempre que podia, escapava do porão e subia ao convés. Lá, o vento salgado refrescava sua pele, e a visão do oceano infinito lhe dava a ilusão de liberdade. Ficava horas observando as ondas, tentando ignorar o estômago vazio e a saudade crescente.

À noite, quando finalmente conseguia dormir, sua mente o levava de volta a Friuli. Sonhava com os bosques úmidos após a chuva, com o cheiro da terra revirada pelo arado, com a voz de sua mãe chamando-o para a ceia. Mas, ao acordar, tudo o que via eram paredes de ferro corroídas pelo tempo e corpos exaustos amontoados ao seu redor. A viagem mal havia começado, e já parecia uma eternidade.

No décimo quinto dia de viagem, o oceano, antes calmo, se transformou em um monstro furioso. O céu escureceu de repente, como se a noite tivesse caído em pleno dia. O vento uivava entre os mastros, e trovões ribombavam sobre as águas agitadas. Quando as primeiras ondas colossais atingiram o casco do Regina Elena, o navio estremeceu como se fosse feito de papel.

No porão, o terror tomou conta dos passageiros. Cada balanço da embarcação lançava corpos contra as paredes de ferro. Gritos se misturavam ao estrondo das ondas. Algumas mães, apavoradas, agarravam os filhos contra o peito e rezavam baixinho. Outros simplesmente choravam, sem forças para reagir.

Vittorio segurava-se como podia, os dedos crispados na borda da beliche. Um homem ao seu lado foi jogado ao chão e bateu com a cabeça em uma viga. O sangue se espalhou pelo assoalho de madeira, mas ninguém teve tempo de socorrê-lo. Tudo o que importava era sobreviver àquela noite interminável.

Lá fora, o mar tentava engolir o Regina Elena. Ondas monstruosas varriam o convés, levando caixas, barris e qualquer coisa que não estivesse presa. Tripulantes gritavam ordens que ninguém conseguia ouvir, enquanto lutavam para manter o navio no curso.

Então, tão repentinamente quanto começou, a tempestade passou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do mar ainda revolto e dos soluços abafados no porão. O estrago era visível. Malas e roupas encharcadas espalhavam-se pelo chão, alguns passageiros estavam feridos, outros simplesmente paralisados pelo medo.

Mas o Regina Elena seguia firme. E com ele, os sonhos e as esperanças de centenas de almas que, apesar de tudo, ainda acreditavam em um futuro melhor.

No vigésimo quinto dia de viagem, um burburinho se espalhou pelo convés. Terra à vista! Vittorio correu para olhar. No horizonte, uma linha escura tomava forma, crescendo a cada minuto. O porto de Santos emergia da névoa matinal como uma miragem, um amontoado de galpões, mastros de navios e telhados vermelhos, cercado por colinas cobertas de vegetação densa. O cheiro salgado do mar começou a se misturar com algo novo: um aroma quente e pesado, de madeira úmida e café.

Conforme o Regina Elena se aproximava do cais, a agitação tomava conta dos passageiros. Alguns se benziam, outros choravam, abraçados. Homens seguravam seus chapéus contra o vento, mulheres ajeitavam os lenços e roupas amarrotadas. Os tripulantes gritavam ordens em italiano, tentando conter o tumulto, enquanto barcaças carregadas de sacas de café passavam ao lado, guiadas por remadores morenos de olhar curioso.

Quando finalmente desceram a rampa de desembarque, uma onda de calor pegajoso os envolveu. Vittorio sentiu o suor escorrer pelas costas enquanto tentava respirar aquele ar novo, carregado de umidade. O idioma ao redor soava como uma cacofonia incompreensível—ordens gritadas, risadas, discussões entre trabalhadores portuários. Ele mal teve tempo de assimilar o choque antes de ser empurrado junto com os demais imigrantes para um dos galpões imensos ao lado do porto.

Lá dentro, o cheiro de corpos suados e roupas molhadas tornava o ambiente ainda mais sufocante. Filas se formavam diante dos funcionários, que verificavam documentos, assinavam papéis, apontavam direções. Alguns homens, de pele bronzeada e olhar avaliador, caminhavam entre os recém-chegados, observando-os como se escolhessem mercadoria.

— Café! Todos para o interior! — bradou um deles em italiano rudimentar.

Vittorio engoliu em seco, sentindo o peso da incerteza apertar-lhe o peito. Não havia tempo para contemplação, nem espaço para hesitação. A engrenagem da imigração girava sem pausas, empurrando-os inexoravelmente para o próximo destino.

A exaustão da viagem ainda pesava nos corpos dos recém-chegados, mas ninguém se atrevia a reclamar. Homens de rostos severos davam ordens rápidas, chamando nomes, apontando direções. Vagões de trem, de madeira escura e janelas gradeadas, aguardavam na linha férrea próxima ao galpão. O cheiro de ferro e óleo queimado se misturava ao calor abafado da manhã tropical.

Vittorio sentiu um nó no estômago ao avistar as composições que os levariam para o desconhecido. Onde dormiria naquela noite? O que encontraria no fim daquela jornada?

O aviso veio curto e seco:

— Para os trens! Movam-se!

Ele pegou sua pequena trouxa e avançou com os demais, passos hesitantes no solo quente do novo mundo. Já não havia mais navios, nem mar. Apenas terra firme e um destino incerto.

Não havia mais volta.

Com uma mala de couro gasta e um coração pesado de incertezas, Vittorio seguiu em frente, empurrado pelo fluxo implacável dos recém-chegados. Atrás dele, a Itália se tornava apenas uma lembrança distante, um mundo ao qual jamais retornaria da mesma forma.

O chão de terra batida rangia sob suas botas, o calor escaldante grudava em sua pele. À sua volta, imigrantes caminhavam em silêncio, carregando sacos e baús, os rostos marcados pela fadiga e pela expectativa. Cada passo era um salto no desconhecido.

No Brasil, um novo capítulo se abria diante dele—não por escolha, mas por necessidade. O que o aguardava além da estação de trem? Campos intermináveis de café? Trabalho árduo sob o sol impiedoso? Ou talvez, quem sabe, a promessa de uma vida digna, algo que a terra natal lhe negara?

A única certeza era que não havia caminho de volta.

Vittorio mal teve tempo de se recuperar da exaustiva travessia. Assim que desembarcou em Santos, foi rapidamente selecionado e encaminhado para o interior de São Paulo, onde um fazendeiro necessitava de trabalhadores para sua vasta plantação de café. A viagem de trem foi longa e desconfortável, o vagão de madeira sacolejando sobre os trilhos enquanto o calor e o cheiro de suor tornavam o ar quase irrespirável.

Quando finalmente chegou à fazenda, nos arredores da emergente Ribeirão Preto, foi recebido com poucas palavras e um olhar avaliador. Ali, o trabalho não fazia concessões. Antes mesmo do sol despontar no horizonte, já estava nos cafezais, arrancando os grãos vermelhos sob um calor implacável que fazia sua camisa grudar no corpo. Os cestos se enchiam rápido, e logo vinham os sacos pesados, que ele e os outros imigrantes carregavam até os secadores. Os ombros ardiam, as mãos se cobriam de calos, mas não havia descanso.

A barreira da língua o isolava no início. O português soava rude, estranho, como um código indecifrável. Mas, entre ordens gritadas e murmúrios trocados à sombra dos cafezais, Vittorio começou a entender. Aprendia com os outros imigrantes, muitos deles tão perdidos quanto ele. E, pouco a pouco, o desconhecido tornava-se familiar.

Os anos se passaram, marcados por trabalho árduo e sacrifícios silenciosos. Vittorio economizava cada tostão, recusando-se a gastar com qualquer coisa que não fosse essencial. Dormia pouco, comia o suficiente para se manter de pé e sonhava com o dia em que teria sua própria terra. A ideia de ser dono do próprio destino era o que o fazia resistir.

Em 1910, esse dia finalmente chegou. Com o que havia juntado, arrendou uma chácara nas proximidades de Araraquara. Não era grande, nem rica, mas era sua. A terra, escura e fértil, prometia sustento, mas cobrava um preço alto. Trabalhar sozinho significava acordar antes do sol e seguir até a última luz do dia, preparando o solo, plantando, colhendo. A cada estação, enfrentava novos desafios: a fúria das chuvas tropicais que castigavam as lavouras, as pragas traiçoeiras que ameaçavam destruir meses de esforço.

Mas Vittorio aprendeu. Observava os fazendeiros mais experientes, testava métodos, enfrentava as falhas e tentava de novo. Cada safra era uma lição. Cada derrota, um aprendizado. Seus calos engrossavam, suas costas se curvavam sob o peso do trabalho, mas, junto com o cansaço, crescia também a convicção de que, naquela terra, fincaria suas raízes.

O sucesso veio devagar, como a germinação das mudas que plantava. Primeiro, conseguiu comprar uma carroça, o que lhe permitiu levar sua colheita diretamente ao mercado. Depois, contratou ajudantes, homens tão determinados quanto ele, que viam no café uma chance de prosperar. A pequena chácara transformou-se em uma propriedade produtiva, e os sacos de grãos empilhavam-se na varanda antes de seguirem para a venda.

Em 1915, quando finalmente sentiu que havia construído algo sólido, casou-se com Maria, filha de um imigrante calabrês. Ela trazia no olhar a mesma resiliência de quem cruzara o oceano em busca de uma vida melhor. Juntos, trabalharam lado a lado, expandindo as plantações e cuidando da terra como se fosse um membro da família.

Com o tempo, a propriedade deixou de ser apenas um campo de cultivo e tornou-se um lar. Seus três filhos cresceram correndo entre os cafezais, os pés descalços tocando o solo que ele tanto lutou para conquistar. O som das risadas infantis misturava-se ao canto dos pássaros e ao farfalhar das folhas ao vento. Ali, no coração do Brasil, Vittorio não era mais apenas um imigrante. Tornara-se parte da terra que o acolheu.

Nos anos seguintes, o suor de Vittorio se transformou em prosperidade. Sua pequena fazenda expandiu-se além do que ele jamais imaginara. Com paciência e estratégia, adquiriu terras vizinhas, uma a uma, até tornar-se um dos maiores fornecedores de café da região. O aroma dos grãos recém-colhidos impregnava o ar, misturando-se à promessa de um futuro cada vez mais próspero.

Mas a riqueza de Vittorio não se media apenas em sacas de café. Ao lado de outros imigrantes italianos, ajudou a moldar uma comunidade forte e vibrante. Doou terras para a construção de uma escola, pois sabia que o conhecimento era a chave para que seus filhos tivessem um destino melhor. Contribuiu para erguer uma igreja, onde os fiéis se reuniam para rezar, buscar conforto e celebrar a vida. A vila cresceu, impulsionada pelo trabalho árduo de homens e mulheres que, como ele, haviam deixado tudo para trás em busca de uma nova chance.

No entanto, Vittorio jamais esqueceu o dia de sua partida. O último olhar lançado sobre sua terra natal permanecia gravado em sua mente, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Sabia que nunca voltaria, que as ruelas estreitas e as montanhas de Friuli permaneceriam apenas em sua memória.

Ainda assim, ao caminhar entre os cafezais floridos, sentindo o perfume adocicado das flores brancas e ouvindo o riso de seus netos ecoando pelos campos, percebia que havia encontrado mais do que um lugar para trabalhar. Ali, fincara suas raízes. Ali, seu nome viveria além dele.




terça-feira, 6 de maio de 2025

Horizontes Perdidos: A Tragédia de Bianca Mareni

 

Horizontes Perdidos: A Tragédia de Bianca Mareni


Bianca Mareni nasceu em Borgo Rotondo, uma aldeia escondida entre as montanhas da província de Savona, em 1888. Filha mais nova de um carpinteiro, Giacomo Mareni, e de sua esposa, Teresa, Bianca cresceu em uma família marcada pela pobreza e pela dura realidade de um país dividido entre modernidade e tradição. Desde cedo, aprendeu o peso do trabalho doméstico e os segredos da costura, habilidades que mais tarde se tornariam sua única fonte de sobrevivência.

Em 1915, enquanto a Europa era consumida pelas chamas da Primeira Guerra Mundial, Bianca decidiu abandonar a Itália. Aos 27 anos, partiu acompanhada de seu irmão mais velho, Ernesto, e de sua cunhada, Maria Ricci. Os três embarcaram em um trem rumo à cidade portuária de Gênova, onde o navio Santa Lucia os aguardava. A atmosfera na estação era carregada de emoção; famílias se despediam entre lágrimas e esperanças silenciosas, enquanto os emigrantes carregavam suas malas repletas de sonhos e saudades.

A bordo do Santa Lucia, Bianca enfrentou uma jornada que testou os limites de sua coragem. O Atlântico, em sua fúria habitual, ergueu ondas que pareciam querer engolir o navio. Os passageiros, comprimidos em compartimentos estreitos, lutavam contra o enjoo e o desespero. Bianca recordaria mais tarde como o cheiro de sal e vômito permeava o ar, enquanto o choro das crianças se misturava às preces dos mais velhos. “Cada balanço do navio era um lembrete de nossa fragilidade”, diria ela em uma carta.

Finalmente, após quase um mês de travessia, o Santa Lucia atracou em Nova York. Bianca, com apenas 40 dólares e uma pequena mala, passou pelos rigorosos exames em Ellis Island. Ali, convencida por outras mulheres, declarou ser costureira – um ofício que esperava lhe garantir emprego em terras estrangeiras.

Bianca e sua família seguiram para San Francisco, onde parentes os aguardavam. A cidade, com suas colinas ondulantes e bondes barulhentos, oferecia um contraste agudo à tranquilidade das montanhas de Borgo Rotondo. Bianca encontrou trabalho em uma fábrica de calçados, onde a jornada de 12 horas era pontuada pelo som ensurdecedor das máquinas e pelo cheiro acre de couro. As condições insalubres logo cobraram seu preço: uma tosse persistente começou a atormentá-la, acompanhada de febre e fraqueza.

Em 1918, Bianca foi diagnosticada com tuberculose. O tratamento rudimentar oferecido em um hospital local foi insuficiente, e as autoridades americanas, seguindo as leis de imigração da época, decidiram repatriá-la. Mais uma vez, Bianca embarcou em um navio, agora sem esperanças e com um futuro incerto.

De volta a Borgo Rotondo, Bianca foi acolhida pela família, que fez de tudo para cuidar dela. Ernesto e Maria, por outro lado, permaneceram nos Estados Unidos, estabelecendo-se em um rancho no interior da Califórnia. Eles nunca mais retornariam à Itália, enquanto Bianca enfrentava os últimos anos de sua vida lutando contra a doença.

Em 1921, aos 33 anos, Bianca faleceu, deixando para trás uma história de sacrifício e resiliência. Sua jornada, como a de tantos outros emigrantes, foi marcada pela busca de um sonho que, para muitos, nunca se concretizou. Hoje, seu nome está gravado em uma lápide simples no pequeno cemitério de Borgo Rotondo, como um silencioso tributo a uma vida interrompida pelas adversidades de um mundo em transformação.


Nota do Autor

"Horizontes Perdidos: A Tragédia de Bianca Mareni" é uma obra que nasceu do desejo de dar voz aos incontáveis emigrantes que, como Bianca, enfrentaram os desafios de um mundo dividido por guerras, preconceitos e desigualdades sociais. Essa narrativa mesmo que fictícia é uma homenagem aos sonhos despedaçados, às lutas invisíveis e à resiliência de quem buscou além do horizonte uma promessa de vida melhor, muitas vezes paga com o preço da própria saúde e dignidade. Ao explorar a história de Bianca Mareni, busquei retratar não apenas os fatos que marcaram sua jornada, mas também as emoções e os dilemas que permeiam a experiência do exílio. Suas decisões, carregadas de coragem e desespero, representam uma geração que foi arrancada de suas raízes em nome de um futuro incerto. Embora Bianca não tenha alcançado o sonho americano, sua história reflete o heroísmo silencioso de tantas vidas interrompidas.

Escrever esta obra foi também um exercício de reflexão sobre as cicatrizes que a emigração deixa, tanto nos que partem quanto nos que ficam. Espero que os leitores encontrem em Bianca uma figura que transcende sua época, um testemunho da fragilidade e da força humanas diante das adversidades.

Agradeço a cada leitor que se dispõe a ouvir a voz de Bianca e a reviver, por meio dela, as esperanças e dores que ainda ecoam em tantas histórias de emigração ao redor do mundo. Que seu nome, gravado em uma lápide simples em Borgo Rotondo, inspire empatia e memória.

Dr. Piazzetta

domingo, 27 de abril de 2025

Das Antigas Terras de Vicenza: Uma História de Superação e Esperança no Brasil


Das Antigas Terras de Vicenza: Uma História de Superação e Esperança no Brasil


Na Colonia Dona Isabel, em 1885 Pietro Ferranesi, de 42 anos, era um homem de poucas palavras e muita determinação. Ao desembarcar no porto do Rio de Janeiro, acompanhado da esposa Caterina e dos três filhos pequenos, não sabia ao certo o que os esperava na colônia Dona Isabel, encravada no coração do Rio Grande do Sul. Sua jornada até lá necessitaria de algumas semanas de viagem em navio, até o porto de Rio Grande, dali após alguns dias de espera um novo embarque em pequenos barcos a vapor deveria atravessar a Lagoa dos Patos até a capital do estado, Porto Alegre, sem desembarcar e desta cidade, com o mesmo barco, subir o rio Caí por mais algumas horas até chegar em Montenegro, o um ponto mais próximo do seu destino: a Colonia Dona Isabel, atual Bento Gonçalves. Uma vez desembarcado depois de um dia de descanso continuavam a pé ou lombo de mula até o local onde ficava a Colonia Dona Isabel.

A jornada através do oceano que durou 40 dias a bordo do navio a vapor Giulio Cesare, fora árdua, repleta de doenças e incertezas, mas era apenas o início de um desafio ainda maior.

Ao ler a carta de seu tio, Giovanni Ferranesi, que se estabelecera no Brasil anos antes, Pietro havia nutrido esperanças de uma vida melhor. “Há terras férteis aqui, mas elas exigem coragem. Venham, a colônia precisa de gente trabalhadora como vocês”, dizia a carta. Essa promessa alimentou o espírito de Pietro, mesmo quando ele vendeu seu pequeno terreno próximo a Vicenza na Itália e partiu para o desconhecido, deixando para trás amigos, parentes e o querido local onde nascera.

Após o desembarque em Montenegro, a travessia até a Colonia Isabel foi uma odisseia. Sem recursos a família caminhou por trilhas estreitas e lamacentas junto com outros emigrantes que tinham o mesmo destino. Por quase dois dias, Pietro e Caterina cortaram a mata com facões para abrir passagem. À noite, armavam acampamentos improvisados sob árvores gigantescas, onde Caterina, mesmo exausta, preparava refeições simples com o pouco que tinham.

Finalmente, chegaram à colônia e foram recebidos por Giovanni e sua família, que os abraçou com lágrimas nos olhos. Mas a alegria do reencontro logo deu lugar à dura realidade: o terreno que lhes fora destinado era montanhoso e coberto por uma densa floresta. “Será preciso mais do que força física para transformar isso em lar”, pensou Pietro.

Os primeiros meses foram brutais. Pietro começou a derrubar árvores, construir uma cabana rudimentar e cultivar milho e feijão. Caterina cuidava dos filhos e ajudava o marido na lida. A floresta parecia engolir a pequena clareira que haviam aberto, mas Pietro, com a ajuda de Giovanni, continuava a desbravar a terra.

As dificuldades eram imensas: doenças como a febre tifoide ameaçavam as crianças, e a saudade da Itália pesava nos corações. Pietro frequentemente sonhava com os campos verdes de sua terra natal, mas a visão de seus filhos brincando ao redor da cabana renovava sua força.

Dois anos depois, Pietro começou a colher os frutos de seu trabalho. O milho crescia alto, e os porcos que criava garantiam sustento e troca na comunidade. Ele também aprendeu com os vizinhos a cultivar uvas, uma tradição trazida da Itália. A primeira safra de vinho, ainda que rudimentar, foi um marco de orgulho para a família.

A pequena colônia começou a prosperar, e Pietro se destacou como líder da comunidade italiana. Ele organizou mutirões para abrir novas estradas e construiu, junto com os vizinhos, uma capela que se tornou o coração espiritual da colônia.

Em 1895, uma década após sua chegada, a colônia Dona Isabel era um exemplo de sucesso. Pietro e Caterina haviam transformado um pedaço de mata virgem em uma colonia produtiva. Os filhos, agora jovens, ajudavam no trabalho e sonhavam em expandir os vinhedos da família.

Pietro sabia que nunca retornaria à Itália, mas entendia que seu verdadeiro legado não estava na terra que deixara para trás, e sim na que construíra para o futuro de sua família. 
Na praça central da colônia, um marco de pedra foi colocado com a frase de Pietro que homenageava os pioneiros:

A terra não nos pertence; pertencemos a ela, e nosso suor a tornará um lar.”

Os Ferranesi, como tantos outros imigrantes, haviam encontrado no Brasil não apenas uma nova vida, mas um propósito que transcendeu gerações.


Nota do Autor

"Das Terras Antigas de Vicenza: Uma História de Superação e Esperança no Brasil" é um romance inspirado nas dificuldades e sonhos de muitos italianos que deixaram suas raízes para buscar uma nova vida nas terras brasileiras ao final do século XIX. Embora os eventos, personagens e situações sejam fictícios, as emoções e desafios descritos representam a realidade de muitos emigrantes.

Este livro pretende homenagear a força, a determinação e a esperança daqueles que atravessaram o oceano, deixando para trás sua terra, mas levando consigo a cultura, a tradição e o amor pela família. Foi preciso coragem para enfrentar um destino desconhecido, e essa coragem é o verdadeiro protagonista desta história.

Pietro Ferranesi e sua família, ainda que fictícios, simbolizam aqueles que, com suor e sacrifício, transformaram florestas em vinhedos, longe das pequenas vilas de Vicenza que haviam deixado para trás. Sua história fala de sobrevivência, perseverança e união, onde cada conquista foi compartilhada com aqueles que participaram dessa jornada de vida.

Espero que este livro transporte o leitor a um tempo de grande resiliência e transformação. Que possa inspirar reflexões sobre o peso das raízes e o valor de construir um futuro.

Com pensamentos e gratidão a todos que tornaram esta história possível,

Dr. Piazzetta




segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Travessia de Domenico Valtieri


A Travessia de Domenico Valtieri


Domenico Valtieri tinha 31 anos quando decidiu abandonar sua cidadezinha natal, San Pietro di Barbozza, uma pequena localidade nas belas colinas de Valdobbiadene. A terra na verdade era boa, mas, naqueles tempos, em finais do século XIX, o trabalho era muito escasso, e o futuro para ele, sua esposa Elena e a filha pequena, Maria, parecia cada vez mais sombrio. Toda a zona rural do Veneto sofria com safras magras, inclemência do clima, preço baixo dos grãos, desemprego cada vez maior e fome. As cartas de parentes e vizinhos que já haviam emigrado para o Brasil falavam de terras férteis, acessíveis e oportunidades, ainda que conquistadas com muito esforço. Para Domenico, o apelo de um novo começo era irresistível.

No outono de 1892, ele vendeu tudo o que possuía: algumas galinhas, uma velha mula e utensílios de arado. Com o dinheiro arrecadado e um empréstimo feito a um comerciante local, comprou passagens para o vapor L'Esperanza, que partiria do porto de Gênova rumo ao Rio de Janeiro. A viagem seria longa e cheia de incertezas, mas Domenico acreditava que nada poderia ser pior do que o desespero de permanecer na miséria.

A realidade da travessia revelou-se cruel. Na terceira classe, onde estavam Domenico e sua família, havia uma mistura de corpos, vozes e odores. Homens, mulheres e crianças dividiam espaços apertados, com camas de madeira dura e pouca ventilação. Os dias no mar eram monótonos, interrompidos apenas por tempestades que traziam momentos de tensão. À noite, o som de tosses persistentes, sussurros de orações e o choro de crianças famintas preenchiam o ambiente. Elena tentava distrair Maria com histórias sobre a nova vida que os aguardava, enquanto Domenico, observador, via na travessia uma metáfora de sua luta: um intervalo entre o sofrimento deixado para trás e a esperança que brilhava no horizonte.

Porém, a jornada foi mais implacável do que poderiam imaginar. Uma epidemia de sarampo se espalhou entre as crianças nos porões do navio, e Maria foi uma das primeiras a adoecer. Domenico e Elena fizeram tudo o que podiam, mas a falta de medicamentos e atendimento transformou cada dia em uma batalha perdida. Maria faleceu uma semana antes da chegada ao Brasil. Seu corpo foi dolorosamente sepultado no mar, enrolado em uma mortalha feita de lençóis, amarrada com cordas envolta ao corpo, seguido de uma despedida silenciosa e devastadora, que marcou para sempre a memória dos pais e de tantos outros passageiros e tripulantes que presenciaram aquela impressionante cena.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, Domenico e Elena encontraram um mundo novo, mas longe do que haviam sonhado. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, foram enviados para o sul do país, para uma colônia agrícola no interior do Rio Grande do Sul. A viagem até lá foi mais uma prova de resistência: dias de viagem rio acima, em pequenos bracos, depois em carroças puxadas por bois, atravessando picadas lamacentas e enfrentando o frio das serras. Quando finalmente chegaram à colônia de Dona Isabel, encontraram uma paisagem desafiadora, mas promissora: florestas densas, rios caudalosos e terras férteis, que exigiriam esforço para serem cultivadas.

A vida na colônia começou de forma precária. Domenico, junto a outros colonos, derrubava árvores para construir uma casa de madeira simples. Enquanto isso, Elena cuidava do pouco que tinham e preparava o terreno para a nova rotina. Não havia médicos por perto, e o isolamento entre as famílias fazia da saudade uma presença constante. A lembrança de Maria e dos parentes deixados na Itália era dolorosa, mas o trabalho árduo mantinha o casal focado no futuro.

Com o tempo, os sacrifícios começaram a dar frutos. Domenico conseguiu quitar as terras adquiridas do governo e expandir sua propriedade. Tinham finalmente conseguido realizar o sonho da propriedade. Ele plantou videiras, como fazia na sua terra natal que, anos depois, deram origem a um grande vinhedo, tornando-se um dos pioneiros na produção de vinho da região. A família cresceu com o nascimento de novos filhos, e os Valtieri se tornaram um símbolo de resiliência e trabalho árduo na colônia.

Nos momentos de descanso, Domenico gostava de caminhar entre as videiras, contemplando os cachos de uvas balançando ao vento. Sentia orgulho do que havia construído, mas também carregava o peso das perdas do passado. Ele sabia que a vida na colônia era difícil, mas representava uma vitória sobre as adversidades.

O sacrifício de Maria e de tantas outras crianças que não sobreviveram à travessia não foi em vão. Para Domenico, a saga dos imigrantes era uma lição sobre a força e a fragilidade humanas. Cada um era, ao mesmo tempo, testemunha e vítima de um sistema que prometia um futuro brilhante, mas frequentemente entregava abandono e exploração.

Anos depois, já bem estabelecido, Domenico costumava sentar no alpendre de sua casa e contemplar os campos cultivados. Ali, refletia sobre os sacrifícios feitos, os sonhos interrompidos e as vidas perdidas durante a travessia. Sua história, como a de tantos outros, era um testemunho de coragem e resiliência. Movidos pela necessidade e pela esperança, ele e Elena ousaram atravessar o oceano, construindo uma nova chance para si e para os filhos que viriam.



quinta-feira, 21 de novembro de 2024

L’Epopea de l’Imigrassion Taliana in Brasile


L’Epopea de l’Imigrassion Taliana in Brasile


L’imigrassion taliana in Brasile la ze stà na stòria de coràio, strachessa e speransa. A la fin del sècolo XIX e l’inìssio del XX, tante famèie da le region del nord Itàlia, come Véneto, Lombardia e Piemonte, le ga deciso de lassiar le so tère natìe par scampar da la misèria, la fame e la manca de prospetive.

Le condissión de vita in Itàlia a quei tempi le zera estremamente dure. L’agricultura la zera in crisi, la zente la gheva da laorar tanto par pochi fruti, e le sità no gavea indùstrie che podesse darghe laoro a tuti. Con la situassione che se fàva sempre pì insostenibile, el sònio de un futuro mèio in Brasile el ga inspirà tanti a partir.

El viàio con el bastimento no zera mica fàssil. Le famèie le gheva da afrontar viàie lunghi e pien de perìcoli. Su quei bastimenti, el spàssio el zera streto, l’igiene poca, e le malatie le podea colpir forte. Ma la speransa de trovàr tère nove, ndove poder laorar e far crèsser i fioi, la ghe dava forsa a quei emigranti.

Quando le famèie le ze rivà in Brasile, no zera tuto oro quel che luse. Le tère le zera spesse volte isolà, in meso a foreste vèrgini, e la léngoa nova e le usanse diverse le aumentava le dificoltà. Ma con el tempo, e con el laoro duro, quei emigranti le ze riussì a superar le sfidi, costruir paesi, e crear comunità.

El lasàgio culturae de l’imigrassion taliana in Brasile el se vede ancora ogi. Dai piati tìpici come la poenta e la pasta, fin ai dialeti come el talian che se parla in tante region, la presensa taliana la fa parte de l’ánima brasilian. E le tradission, le stòrie e l’identità de quei primi emigranti le vive ancora, tramandàe de generassion in generassion.

Una stòria de coràio, de laoro e de lasàgio, che unisse due mondi lontani in un abrassio eterno.



sábado, 28 de setembro de 2024

Os Sonhos dos Emigrantes


 

Os Sonhos dos Emigrantes

A névoa suave da manhã cobria o porto de Gênova, onde o navio Esperança estava ancorado, preparando-se para zarpar rumo ao Brasil. Entre as sombras e os raios de sol que timidamente cortavam a neblina, um grupo de famílias italianas se reunia, carregando nas mãos não apenas malas, mas também o peso de seus sonhos e expectativas. Cada um dos emigrantes trazia em seus olhos o reflexo de um futuro idealizado, uma terra onde a fome, a miséria e as incertezas seriam substituídas pela abundância e pela dignidade.

Giuseppe Rossi, um agricultor de trinta anos, apertava a mão de sua esposa, Maria, enquanto seus dois filhos, Luigi e Clara, olhavam curiosos para o gigante de madeira que logo os levaria para uma nova vida. Giuseppe nascera e crescera na pequena aldeia de Castelfranco Veneto, onde o solo agora infértil e a falta de trabalho tornaram insuportável a luta diária pela sobrevivência. Em noites de insônia, ele frequentemente ouvia histórias de brasileiros prósperos que haviam sido contadas por viajantes e padres, promessas de uma terra onde tudo crescia, onde o trabalho era recompensado e onde os filhos poderiam sonhar sem limites.

A bordo do Esperança, os dias se arrastavam. A brisa do mar, que inicialmente era um alívio para os emigrantes, tornara-se uma constante lembrança da distância que crescia entre eles e a Itália. As noites eram preenchidas por cantos tristes, lamentos que ecoavam no porão do navio, onde os passageiros de terceira classe estavam confinados. Mas mesmo em meio às dificuldades da viagem, o sonho do Brasil permanecia vivo, alimentado pelas histórias que circulavam entre as famílias.

A primeira visão do Rio Grande do Sul foi uma miragem distante. O litoral recortado, com suas montanhas verdes e florestas densas, parecia prometer tudo o que haviam esperado. Giuseppe apertou a mão de Maria com força, e ambos trocaram um olhar cheio de esperança. “Aqui, construiremos uma nova vida”, pensou ele, certo de que aquela era a terra onde seus filhos cresceriam com dignidade e fartura.

A realidade, porém, era menos indulgente do que as histórias contadas na Itália. Assim que desembarcaram em Porto Alegre, foram direcionados para uma colônia na serra gaúcha, onde a promessa de terras férteis os aguardava. Mas ao chegar, os Rossi se depararam com uma floresta impenetrável, onde o solo virgem ainda clamava por ser desbravado. As árvores gigantescas precisavam ser derrubadas, os troncos arrastados, e os campos preparados para o plantio. As primeiras semanas foram de exaustão física e mental. O isolamento era total; a família mais próxima vivia a quilômetros de distância, e o médico mais próximo estava a dias de viagem.

Mas Giuseppe não desanimou. Ao lado de Maria, que nunca deixava de sorrir, mesmo nas horas mais difíceis, ele começou a trabalhar. As mãos calejadas, acostumadas à terra seca da Itália, aprenderam a lidar com o barro e as pedras do novo mundo. Luigi e Clara, ainda crianças, também ajudavam como podiam, colhendo frutas silvestres e aprendendo com os imigrantes vizinhos a língua portuguesa.

O primeiro inverno no Brasil foi uma prova de fogo. O frio, que eles nunca imaginariam encontrar tão ao sul, adentrava pelas frestas da madeira mal encaixada da pequena casa que haviam construído. Muitos dos imigrantes sucumbiram às doenças, à solidão e ao desespero. Giuseppe temia que sua própria família fosse também tragada por essa onda de sofrimento. Mas a fé em Deus e o amor que compartilhavam os mantiveram fortes.

Então, na primavera seguinte, o milagre aconteceu. A primeira colheita, ainda que modesta, encheu seus corações de alegria. O trigo dourado, que dançava ao vento, simbolizava não apenas o sustento físico, mas a concretização de um sonho. Os Rossi, como muitos outros, haviam finalmente encontrado seu lugar na nova terra. E com o trigo e o milho, vieram as parreiras, os vinhedos, o pão e o vinho, símbolos de uma cultura que não haviam abandonado, mas adaptado e enraizado naquele solo distante.

Os anos passaram, e as colônias italianas na serra gaúcha floresceram. Cidades como Caxias do Sul e Bento Gonçalves surgiram, erguidas pelo trabalho árduo dos imigrantes. Giuseppe, já com os cabelos grisalhos, olhava para seus filhos crescidos, agora donos de suas próprias terras, e sentia o coração aquecer. A Itália estava longe, em outro continente, mas o Brasil se tornara a sua pátria, onde seus netos cresceriam, falando português e italiano, carregando no sangue a força e a resiliência dos primeiros colonos.

No final, os sonhos dos emigrantes italianos não foram apenas expectativas de uma vida melhor; tornaram-se a realidade de um novo começo, uma nova cultura, e um novo Brasil. Giuseppe, Maria e seus descendentes são testemunhas vivas de que, mesmo em meio às dificuldades e aos desafios, a fé e o trabalho podem transformar a terra estrangeira em um lar, onde os sonhos são plantados e colhidos, geração após geração.



domingo, 15 de setembro de 2024

As Mãos que Sustentam o Amanhã

 


As Mãos que Sustentam o Amanhã


As colônias italianas do sul do Brasil, fincadas nas terras virgens da Serra Gaúcha, não eram apenas fruto do trabalho dos homens, que desbravavam a mata e aravam o solo. As mulheres, com suas mãos calejadas e almas resilientes, eram o alicerce invisível, o pilar silencioso que sustentava o futuro. Carmela, uma dessas mulheres, de olhos que refletiam a dor da distância e o brilho da esperança, se tornara o próprio símbolo desse sacrifício, dessa entrega total que mantinha as engrenagens da vida colonial girando.

Desde que haviam deixado a pequena aldeia na província de Veneto, a jornada de Carmela fora um exercício constante de adaptação e renúncia. No navio que os trouxe ao Brasil, perdera a mãe para o mar agitado, mas não derramou uma lágrima. Sabia que sua responsabilidade era maior do que o luto; era a força motriz de sua família. Ao chegar à colônia, o peso da nova vida recaiu sobre seus ombros sem pedir licença. Seu marido, Pietro, enfrentava o trabalho pesado na terra, mas Carmela, com seu ventre crescendo a cada estação, cuidava de tudo o que ficava para trás – a casa, os filhos, os animais e, quando necessário, também o campo.

Carmela acordava antes do sol. Com o primeiro cantar dos galos, já se encontrava na cozinha, preparando o pão para o dia. Seus filhos ainda dormiam, encolhidos sob mantas puídas, e Pietro saíra antes dela para os campos. Seus pés descalços, movendo-se no chão de terra batida, faziam um leve ruído que apenas ela notava. As tarefas domésticas pareciam intermináveis: o fogo que nunca podia apagar, o leite que tinha de ser fervido, o porco que necessitava de atenção. Mas era o campo que a chamava insistentemente.

Lá, ao lado do marido, o trabalho braçal não distinguia gêneros. A enxada pesava em suas mãos tanto quanto na de Pietro. Cada sulco aberto no solo parecia roubar um pouco de suas forças, mas ela mantinha o ritmo. Não era apenas o corpo que se curvava ao peso das tarefas; sua mente também carregava o fardo invisível das responsabilidades. Era ela quem pensava nos filhos, que mais tarde iriam correr entre as fileiras de milho, brincando como se o mundo fosse eterno e imutável.

Quando a primeira filha, Teresa, nasceu, Carmela sentiu o corpo esgotado, mas seu espírito se encheu de uma força nova. Ali, no meio das dores do parto e da alegria do nascimento, ela compreendeu que ser mulher naquela colônia era ser ponte entre o passado e o futuro. A maternidade não era uma escolha; era um dever. Teresa, como seus outros filhos, aprenderia desde cedo a partilhar das responsabilidades da vida colonial. Carmela, porém, não via isso como algo imposto. Para ela, era a essência da existência, o ciclo contínuo de dar e nutrir, que mantinha a roda da vida em movimento.

A vida seguia esse ritmo inexorável. Entre as estações de plantio e colheita, o nascimento de novos filhos e as perdas que a colônia impunha, Carmela ia esculpindo, dia após dia, uma existência de sacrifício e perseverança. Pietro, por vezes, se perdia em reflexões silenciosas, observando o quanto a esposa carregava, não apenas em suas costas, mas no coração. Ele sabia que, sem ela, não teriam chegado até ali. Não havia medalhas para ela, nenhum reconhecimento público. Havia apenas o respeito silencioso de quem compreendia o verdadeiro peso de sua jornada.

Com o passar dos anos, o rosto de Carmela endureceu. As rugas que surgiam ao redor dos olhos não eram apenas sinais da idade, mas testemunhas das longas jornadas, da dor de enterrar amigos e de ver filhos adoecerem. Ainda assim, havia em seu semblante uma serenidade inabalável, como se ela soubesse que sua missão era maior do que qualquer sofrimento. Seus filhos cresciam fortes, e a colônia prosperava lentamente, com cada casa erguendo-se do solo como se brotasse das mãos calejadas das mulheres que ali viviam.

Ao cair da noite, depois de um longo dia de trabalho, Carmela reunia os filhos ao redor da lareira. Contava histórias da Itália, da vida que um dia havia deixado para trás, não com nostalgia, mas com um olhar de gratidão por ter encontrado um novo lar. Embora o Brasil fosse uma terra de desafios, era também o lugar onde ela havia criado raízes. Cada pedaço de madeira que alimentava o fogo parecia ressoar com a lembrança dos antepassados, e o calor que emanava aquecia não só o corpo, mas a alma de sua família.

Nas festas da colônia, as mulheres, vestidas com seus trajes simples, sorriam e dançavam ao som das antigas canções italianas. Por um breve momento, esqueciam-se das durezas do cotidiano. Mas, mesmo nesses momentos de alegria, os olhos de Carmela sempre se voltavam para os campos, para as responsabilidades que aguardavam o amanhecer. Ela sabia que, ao contrário dos homens, que podiam descansar ao final do trabalho braçal, seu labor continuava. A casa nunca ficava em silêncio, os filhos nunca paravam de exigir cuidados.

Os anos se passaram, e Carmela viu seus filhos se tornarem adultos. Alguns casaram-se e estabeleceram suas próprias famílias, outros partiram em busca de novas oportunidades. A colônia continuava a se expandir, e com ela, o legado das mulheres que a construíram. Agora, com os cabelos grisalhos e os ossos cansados, Carmela podia olhar para trás e ver tudo o que havia construído. Mas, ainda assim, o trabalho não terminava. Continuava a cuidar da casa, a ajudar os filhos e netos, a transmitir suas histórias e valores.

Olhando para o horizonte, onde o sol se punha atrás das colinas, Carmela compreendia que sua vida era a de tantas outras mulheres que haviam se sacrificado em silêncio. Não havia monumentos erigidos em sua homenagem, mas as colheitas, as casas e as famílias eram a prova viva de sua dedicação. Ela sabia que o futuro, embora incerto, seria moldado pelas mãos fortes e invisíveis das mulheres imigrantes. Essas mãos que, sem alarde, ergueram o sonho de um novo mundo em terras distantes.

A colônia prosperava, mas Carmela e tantas outras mulheres continuavam a ser as forças motrizes invisíveis. Enquanto os homens eram celebrados por suas conquistas, elas eram as sombras por trás do sucesso, as que garantiam que tudo funcionasse, que o lar fosse sempre um refúgio seguro. E assim, silenciosamente, elas deixaram sua marca indelével na história das colônias italianas.