sexta-feira, 6 de junho de 2025

O Horizonte dos Bravos

 


“O Horizonte dos Bravos”
Um romance histórico inspirado em fatos reais
 

Capítulo 1 – O Adeus à Terra de Origem
Piubega, Província de Mantova, Lombardia – Outubro de 1876

Giuseppe Bellinati nascera numa casa de pedra à beira dos arrozais de Mantova, entre os campos que pareciam se estender até os confins da esperança. Era o filho mais velho de cinco irmãos, descendente de camponeses marcados pela fome, pelas guerras e pela persistência. Tinha olhos de um castanho escuro que pareciam conter a própria sombra do tempo, e mãos calejadas antes mesmo dos quinze anos.

A Itália recém-unificada não oferecia o bastante para alimentar tantas bocas. Desde que o pai perdera metade das terras para um barão piemontês, Giuseppe soube que seu destino não se cumpriria ali. Ouvira histórias que chegavam em cartas manchadas de suor: terras vastas, promessas de propriedade, florestas abundantes no Brasil. Para um camponês lombardo, aquilo soava como um evangelho.

Na madrugada do dia 4 de novembro de 1876, Giuseppe beijou a fronte da mãe e partiu com a esposa incerta, Rosalinda, e o pequeno Matteo de apenas seis meses. Na sacola de linho levavam pão duro, salame seco, dois crucifixos e um punhado de terra do campo de arroz da família. Também levavam uma esperança que doía no peito.


Capítulo 2 – A Linha do Sol

A viagem no vapor “San Michele” atravessou o inverno europeu e o Equador. Os porões fediam a vômito, suor e morte. No convés, o sol do trópico ardia como maldição. Rosalinda adoeceu após o segundo mês. O pequeno Matteo tossia com frequência, mas Giuseppe rezava. Um padre genovês repetia que a América era um novo Éden.

Quando enfim vislumbraram os morros do Rio de Janeiro, Giuseppe escreveu uma carta ao cunhado Francesco, em Piubega:

“...quando Dio a voluto siamo arivati al porto di Rivo Genero, porto della Merica...”

Mas ainda não era o fim da jornada.


Capítulo 3 – Terra de Promessa e Serpentes

Após seis dias costeando o litoral em navio menor, aportaram em Vitória, Espírito Santo. De lá, foram conduzidos em pequenas barcas, como se fossem migrantes de um êxodo bíblico, até um povoado onde um tal Giuseppe Artioli os recebeu. Dali, mais três dias em carro de bois os levaram à colônia de Santo Antônio.

Foi ali, entre o mato virgem e os gritos dos macacos, que Giuseppe viu pela primeira vez suas terras: 50 hectares, parte em bosque, parte em terra nua, entregue pelo governo imperial. Um paraíso a ser domado com enxada, lágrimas e fé.


Capítulo 4 – Os Primeiros Mortos

O clima era um inimigo invisível. As chuvas vinham com fúria, o calor com crueldade. As comidas – mandioca, bananas, carne seca e feijão-preto – eram estranhas e difíceis de digerir. Durante semanas, Rosalinda lutou contra uma febre, enquanto Giuseppe limpava a terra com as mãos. No fim do primeiro mês, Matteo, o pequeno Matteo, morreu com os olhos abertos, como se procurasse algo no céu que só ele via.

Giuseppe o enterrou sob um jequitibá. Depois, ficou em silêncio por três dias. No quarto dia, plantou um pé de café. “Para que cresça algo onde a morte pisou”, murmurou.


Capítulo 5 – A Floresta e os Estrangeiros

Havia alemães, franceses, piemonteses, suíços e morenos da África. Uma torre de Babel no meio da mata. Cada família falava sua língua, mas todos sabiam os gestos do trabalho. Giuseppe trocou sementes com um francês, munição com um alemão, ajudou a construir a casa de um calabrês. Aprendeu a caçar perus selvagens, a temer as onças e os macacos barulhentos.

Comprou um mosquete velho e passou a escrever cartas pedindo que os parentes, se quisessem vir, trouxessem armas, ferramentas, lençóis e vinho.

“...qui vi sono ogni sorte d’uccelli, pitoni, galine salvatiche, e niente vino...”

 

Capítulo 6 – A Colheita do Silêncio

O café vingou após dois anos. O solo fértil da encosta dava frutos robustos, embora o sol queimasse os calos com vingança. Rosalinda pariu mais dois filhos: Luísa e Enrico. Os dois cresceram ao som das cigarras e ao cheiro da terra molhada.

Em 1880, Giuseppe escreveu outra carta:

“...contento d’avere fatto questo pensiero...”

Mas a verdade é que jamais deixou de chorar por Matteo, e toda colheita boa trazia um gosto amargo. Ele sabia que a América cobrava caro.


Capítulo 7 – O Homem que se Fez Terra

Dez anos depois, Giuseppe era dono de mais terras. Tornou-se líder local, ajudou a construir a igreja e a escola. Sabia ler e escrever, algo raro na colônia. Fundou a Società di Mutuo Soccorso Nova Mantova, ajudava os novos imigrantes a não enlouquecerem na mata, como ele quase enlouquecera.

Morreu aos 77 anos, com as mãos ainda firmes e os olhos voltados para o vale. Disse a última frase olhando para o café florido:

“Essa terra me matou e me salvou.”

 

Epílogo

No túmulo de Giuseppe Bellinati, esculpido por um escultor piemontês em granito de Caxias, lê-se:

“Dalla miseria nacque il suo coraggio, e da questo coraggio, una terra fiorì.”

Nota Histórica do Autor

Sobre o autor e a inspiração de “O Horizonte dos Bravos”

“O Horizonte dos Bravos” é uma obra de ficção histórica que nasce do entrelaçamento entre memória coletiva, documentos de época, tradições orais e a imaginação literária. Inspirado no estilo épico e humanista de alguns autores consagrados, o romance busca não apenas narrar uma saga de sobrevivência e perseverança, mas também prestar uma homenagem sensível e respeitosa aos milhares de imigrantes italianos que deixaram sua terra natal no final do século XIX em busca de um futuro mais digno nas Américas, especialmente no Brasil.

O personagem central, Giuseppe Bellinati, é uma construção ficcional baseada em múltiplos relatos reais de famílias lombardas, vênetas, piemontesas e emilianas que enfrentaram a travessia do Atlântico em navios superlotados, muitas vezes sem saber o que os esperava do outro lado do oceano. O autor, descendente de imigrantes italianos, mergulhou em cartas familiares, arquivos públicos, relatos de viagem, crônicas de época e registros das primeiras colônias do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo, para construir uma narrativa que fosse ao mesmo tempo verossímil, comovente e literariamente rica.

A trajetória de Giuseppe — marcada pela dor da perda, pela força do trabalho, pelo reencontro com a fé e pela integração num mundo desconhecido — simboliza o percurso de inúmeros homens e mulheres que, mesmo analfabetos ou sem posses, contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento social, cultural e econômico do Brasil rural do século XIX. Eles foram, em sua maioria, heróis anônimos.

Este livro não pretende reescrever a História com H maiúsculo, mas dar voz aos silêncios que ficaram entre as linhas dos registros oficiais: os choros abafados nas madrugadas tropicais, os enterros sem lápide nas matas fechadas, as canções em dialeto cantadas à beira do fogo e os olhos marejados dos que partiram sem promessa de retorno.

Com “O Horizonte dos Bravos”, o autor busca manter viva a chama da memória daqueles que ousaram desafiar o destino. Que esta obra sirva de espelho, lembrança e tributo a todos os que, com mãos calejadas e corações esperançosos, ajudaram a plantar raízes em terras longínquas.