24 de outubro de 1917. A data ecoaria como uma ferida aberta na história da Itália. Há anos, o país travava uma guerra extenuante contra o Império Austro-Húngaro, mas naquele fatídico dia, o equilíbrio foi abruptamente rompido. As tropas austro-húngaras, reforçadas por batalhões alemães experientes, desferiram um golpe devastador nas linhas italianas em Caporetto. A derrota, que ficaria conhecida como a 12ª Batalha do Isonzo, obrigou o exército italiano a uma retirada desesperada para a linha do Rio Piave, deixando atrás de si um cenário de caos e desespero.
Nas primeiras horas que se seguiram à catástrofe, a notícia percorreu a região como um incêndio em campo seco. Em Pederobba, um pequeno município situado entre as sombras do Monte Grappa e o Rio Piave, o toque incessante dos sinos da igreja alertava os moradores. A mensagem era clara e aterradora: a evacuação era inevitável. Homens, mulheres e crianças deveriam abandonar suas casas e terras imediatamente, fugindo para o sul, para longe do avanço inimigo. A pequena cidade, até então um refúgio de paz entre montanhas e vinhedos, mergulhou em um redemoinho de medo e agitação.
Entre os moradores, Giuseppe, um marceneiro habilidoso e carpinteiro renomado, era uma figura central. Morador na cidade a muitos anos, originário do município vizinho de Alano di Piave, na província de Belluno, Giuseppe vinha de uma linhagem de artesãos cuja maestria com a madeira era quase lendária. Muitas igrejas e casas nobres de Veneza e arredores exibiam orgulhosamente as portas esculpidas e altares de sua família, cuja reputação atraía até as famílias maus nobres. Além de seu talento com a madeira, Giuseppe herdara do pai, Francesco, uma paixão por seus vinhedos e pela produção do vinho Raboso del Piave, cultivado com dedicação quase religiosa para consumo familiar.
Casado com Giuditha, uma mulher de fibra e perspicácia comercial, Giuseppe tinha uma família numerosa: dez filhos ao todo. Os quatro mais velhos haviam emigrado anos antes para o Brasil, em busca de oportunidades. Outras duas filhas haviam seguido destinos igualmente distantes — uma para a França e outra para os Estados Unidos. Restavam em casa os quatro mais jovens, incluindo a caçula, uma menina de olhos brilhantes que parecia ainda alheia ao horror da guerra.
Quando as ordens militares de evacuação chegaram, Giuseppe agiu com a precisão de um homem acostumado a decisões rápidas. Com a ajuda dos filhos, cavou um buraco profundo ao lado de sua oficina, onde enterrou suas ferramentas mais preciosas, uma bicicleta e três damigianas cheias do vinho que ele tanto estimava. Pedras pesadas foram cuidadosamente colocadas sobre o esconderijo, criando uma falsa tampa que, esperavam, passaria despercebida.
O êxodo começou ao amanhecer. Carroças abarrotadas, grupos apressados a pé e até alguns poucos sortudos em vagões de trem seguiam a corrente humana em direção à Emília-Romagna, deixando para trás tudo o que conheciam. Após dias de caminhada extenuante, a família chegou a Sassuolo, uma pequena cidade nos arredores de Modena, onde foram acolhidos. Giuseppe e os dois filhos mais velhos, Matteo e Piero, logo encontraram pequenos trabalhos, o que trouxe alívio financeiro em meio às privações do exílio.
O retorno à terra natal, permitido após o armistício de 4 de novembro de 1918, foi agridoce. Pederobba estava irreconhecível, marcada por bombardeios incessantes que a transformaram em uma zona de ninguém entre os exércitos. A igreja, outrora o coração da comunidade, estava em ruínas. A casa da família, a oficina e a pequena loja de Giuditha haviam sido reduzidas a escombros. Mesmo assim, Giuseppe encontrou forças para recuperar o que pôde. O esconderijo com as damigianas foi descoberto intacto, mas a bicicleta estava irremediavelmente corroída pela água.
Sem recursos para reerguer o que perderam, Giuseppe e Giuditha tomaram uma decisão dolorosa, mas inevitável: deixar a Itália e juntar-se aos filhos no Brasil. Em 1919, embarcaram rumo a Curitiba, no Paraná, levando consigo apenas um baú de ferramentas e, como símbolo de resistência, alguns litros do vinho salvo da guerra. No Brasil, a família se reencontraria com os filhos mais velhos e suas famílias, até então rostos distantes em cartas. Ali, em um novo mundo, começariam de novo, sustentados pelo espírito resiliente que a guerra não conseguira apagar.
Nota do Autor