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segunda-feira, 16 de junho de 2025

O Destino de Vittorio Belomonte


O Destino de Vittorio Belmonte


Na fria alvorada de 2 de julho de 1904, Vittorio Belomonte fechou a pequena mala de couro que sua mãe havia lhe dado e, com um último olhar para a casa onde crescera, saiu sem olhar para trás. O destino o chamava.

Nascido em 1882, em um vilarejo esquecido nas montanhas do Friuli, Vittorio passara a juventude trabalhando nos bosques, cortando lenha para senhores que nunca lembravam seu nome. Seu pai, Giovanni, morrera cedo, deixando a mãe e três irmãos na miséria. A fome tornara-se uma sombra constante, e, à medida que os anos passavam, Vittorio percebeu que seu destino não estava ali, mas além-mar.

A viagem até Longarone foi silenciosa. Seus companheiros, jovens de sua vila, compartilhavam a mesma melancolia. O condutor da carroça bradou impaciente para que subissem, e um nó apertou a garganta de Vittorio. Com um último olhar melancólico, ele contemplou seu vilarejo: as casas de pedra aconchegadas umas às outras, como se buscassem calor, e as montanhas imponentes ao fundo, seus picos eternamente coroados de neve. O vento gelado trouxe o cheiro da terra úmida e da lenha queimada nas lareiras. Vittorio suspirou fundo, gravando aquela imagem na memória.

Em Longarone, pegou seus documentos para deixar o país e seguiu para Veneza. As ruas estreitas e os canais da cidade lhe pareceram um outro mundo. Mas não havia tempo para contemplação. O passaporte foi carimbado, e, com os trocados que tinha, comprou pão, salame e um frasco de vinho, o suficiente para a jornada. Quando o trem para Gênova chegou, ele embarcou sem hesitação. Não havia mais volta.

A Estação de Gênova fervilhava de emigrantes, um turbilhão de rostos ansiosos e mãos calejadas segurando malas gastas pelo tempo. Homens e mulheres, vestidos com suas melhores – e muitas vezes únicas – roupas de viagem, deslocavam-se em meio à multidão, esbarrando-se sem querer, trocando olhares de cumplicidade e medo.

Poucos tinham dinheiro suficiente para um hotel decente, então amontoavam-se em uma pequena estalagem de teto baixo e paredes úmidas, escondida em uma viela sombria perto do porto. O lugar era abafado, impregnado pelo cheiro de suor e peixe salgado, e os murmúrios dos hóspedes misturavam-se ao ranger do assoalho gasto. Todos temiam os perigos daquela cidade portuária, onde golpistas e ladrões rondavam como lobos à espreita de presas fáceis. Qualquer descuido e o pouco que possuíam poderia desaparecer em um instante.

Ainda assim, mesmo em meio à incerteza, havia um sentimento pulsante no ar: a promessa de um novo começo, a esperança de um destino melhor do outro lado do oceano. A tensão e a expectativa eram quase palpáveis, como a eletricidade antes de uma tempestade.

Vittorio dividiu um quarto apertado e mal ventilado com outros três friulanos. Os beliches rangiam a cada movimento, e o cheiro de mofo misturava-se ao odor de corpos cansados e roupas úmidas. O sono veio apenas em fragmentos inquietos, interrompido pelo barulho da cidade que nunca dormia e pelo medo latente do que estava por vir.

Ao amanhecer, espreguiçaram-se sob a luz fraca que se infiltrava pelas frestas da janela e, sem muito a fazer além de esperar a hora do embarque, decidiram explorar a cidade. Caminharam pelas ruelas estreitas de Gênova, onde vendedores gritavam ofertas em dialetos diversos e carroças espirravam lama nos transeuntes. O cheiro de pão recém-assado se misturava ao odor forte do porto, onde o mar e o suor dos estivadores se fundiam em uma atmosfera pesada.

Então, ao dobrarem uma esquina, a visão do vapor Regina Elena os fez parar. Ele estava ancorado no cais, imenso e imponente, como um colosso de ferro e vapor. Suas chaminés erguiam-se como torres de um castelo flutuante, e a madeira dos conveses reluzia sob o sol da manhã. Para Vittorio, o navio era uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo. Dentro dele estava seu futuro, sua esperança e também o medo do desconhecido.

Por um instante, o mundo ao redor pareceu silenciar. O burburinho dos estivadores, o ranger das cordas sendo puxadas, até mesmo o tilintar das moedas nas mãos dos vendedores ambulantes — tudo pareceu distante, abafado, como se o tempo tivesse parado.

Vittorio sentiu o coração bater pesado no peito. O gosto salgado do ar encheu seus pulmões, misturado ao cheiro de carvão queimado que escapava das entranhas do navio. O Regina Elena estava ali, gigantesco, como um portão entre dois mundos — o passado que ele deixava para trás e o futuro incerto que o aguardava.

Engoliu em seco. Não havia mais volta. A Itália, sua terra, sua infância, seus bosques familiares e os rostos que jamais voltaria a ver... tudo ficaria para trás no momento em que ele pisasse naquele convés. A única direção agora era para frente.

No dia 29, Vittorio pagou a passagem e submeteu-se à rigorosa inspeção médica. Os oficiais o examinaram com olhares frios e mecânicos, apalpando-lhe os braços, verificando seus dentes, como se avaliassem a resistência de um animal de carga. Foi vacinado com uma agulha áspera e sem cerimônia, sentindo a ardência do líquido em sua pele. Cortaram-lhe os cabelos sem cuidado, deixando fios grossos caírem sobre seus ombros como vestígios da vida que abandonava. Seus pertences foram revistados por mãos desconhecidas, que reviraram sua mala como se buscassem algo de valor escondido.

A noite anterior ao embarque foi longa e inquieta. O quarto apertado da decadente estalagem estava impregnado pelo cheiro de suor e mofo, o colchão fino não oferecia conforto algum. Ele escutava a respiração pesada de seus companheiros de quarto — roncos intermitentes, murmúrios febris de sonhos turbulentos — misturados ao som distante das ondas quebrando contra as pedras do porto. Cada rajada de vento que entrava pela janela mal fechada trazia o cheiro salgado do mar, lembrando-o de que, dali a poucas horas, sua vida mudaria para sempre. 

Na manhã do dia 30, Vittorio caminhou até o porto com passos firmes, mas o coração acelerado. O cais fervilhava de gente. Homens gritavam ordens em dialetos diversos, carregadores passavam apressados equilibrando malas e fardos pesados nos ombros, e crianças agarravam-se às saias das mães, assustadas com a confusão ao redor. O cheiro do mar misturava-se ao de carvão queimado e peixe fresco, formando uma névoa espessa de sal e fuligem que pairava no ar.

Antes de seguir para o embarque, Vittorio comprou alguns limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e, apoiando-se em um caixote de madeira, escreveu uma última carta para a família. Escolheu as palavras com cuidado, tentando transmitir esperança, embora o peso da despedida lhe apertasse o peito.

A fila para embarque serpenteava pelo cais, arrastando-se lentamente como uma procissão de almas ansiosas. Os funcionários da companhia de navegação verificavam documentos com olhares indiferentes, enquanto os passageiros aguardavam sob o sol escaldante, segurando seus pertences com desconfiança. Quando chegou sua vez, Vittorio foi submetido a mais uma inspeção, os olhos atentos dos agentes percorrendo seu rosto e suas roupas como se buscassem algo suspeito.

Por fim, um funcionário lhe entregou um número rabiscado em um pedaço de papel sujo e indicou a entrada do navio. Descendo por corredores estreitos e abafados, iluminados apenas por lampiões oscilantes, Vittorio finalmente encontrou sua beliche: um espaço exíguo, onde mal cabia deitado. O colchão fino era pouco mais que um pedaço de pano gasto sobre tábuas duras, e a manta áspera cheirava a mofo. Ele se sentou devagar, sentindo o metal gelado da estrutura contra as mãos trêmulas.

Lá fora, os apitos soaram longos e solenes. A terra firme começava a se afastar. Pouco depois do meio-dia, soaram três apitos longos. As cordas foram soltas. O vapor Regina Elena moveu-se lentamente, afastando-se do porto. O barulho das despedidas ecoava no ar. Mães choravam, pais levantavam os chapéus, crianças acenavam sem entender. A bordo, Vittorio e seus companheiros retribuíam o gesto, engolindo as lágrimas. O hino real tocava, seguido pela Marcha Garibaldi. Uma pequena banda saudava aqueles que partiam, soldados de um exército invisível em busca de uma vida melhor.

Os primeiros dias foram um teste de resistência. No porão apertado onde dormia, o ar era denso, carregado do cheiro acre de suor, mofo e vômito. O calor sufocante tornava o ambiente ainda mais insuportável, e o balançar incessante do navio fazia com que muitos passageiros passassem mal. O som dos gemidos de náusea e da tosse seca de crianças doentes preenchia a escuridão.

A comida era pouca e sem sabor: pedaços de pão endurecido, caldo ralo que mais parecia água suja e, ocasionalmente, um punhado de batatas cozidas. As filas para receber as rações eram longas, e os mais fracos frequentemente ficavam sem nada.

Mas Vittorio resistia. Ele se recusava a ceder à fraqueza, mantendo a disciplina que aprendera nos campos de sua terra natal. Durante o dia, sempre que podia, escapava do porão e subia ao convés. Lá, o vento salgado refrescava sua pele, e a visão do oceano infinito lhe dava a ilusão de liberdade. Ficava horas observando as ondas, tentando ignorar o estômago vazio e a saudade crescente.

À noite, quando finalmente conseguia dormir, sua mente o levava de volta a Friuli. Sonhava com os bosques úmidos após a chuva, com o cheiro da terra revirada pelo arado, com a voz de sua mãe chamando-o para a ceia. Mas, ao acordar, tudo o que via eram paredes de ferro corroídas pelo tempo e corpos exaustos amontoados ao seu redor. A viagem mal havia começado, e já parecia uma eternidade.

No décimo quinto dia de viagem, o oceano, antes calmo, se transformou em um monstro furioso. O céu escureceu de repente, como se a noite tivesse caído em pleno dia. O vento uivava entre os mastros, e trovões ribombavam sobre as águas agitadas. Quando as primeiras ondas colossais atingiram o casco do Regina Elena, o navio estremeceu como se fosse feito de papel.

No porão, o terror tomou conta dos passageiros. Cada balanço da embarcação lançava corpos contra as paredes de ferro. Gritos se misturavam ao estrondo das ondas. Algumas mães, apavoradas, agarravam os filhos contra o peito e rezavam baixinho. Outros simplesmente choravam, sem forças para reagir.

Vittorio segurava-se como podia, os dedos crispados na borda da beliche. Um homem ao seu lado foi jogado ao chão e bateu com a cabeça em uma viga. O sangue se espalhou pelo assoalho de madeira, mas ninguém teve tempo de socorrê-lo. Tudo o que importava era sobreviver àquela noite interminável.

Lá fora, o mar tentava engolir o Regina Elena. Ondas monstruosas varriam o convés, levando caixas, barris e qualquer coisa que não estivesse presa. Tripulantes gritavam ordens que ninguém conseguia ouvir, enquanto lutavam para manter o navio no curso.

Então, tão repentinamente quanto começou, a tempestade passou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do mar ainda revolto e dos soluços abafados no porão. O estrago era visível. Malas e roupas encharcadas espalhavam-se pelo chão, alguns passageiros estavam feridos, outros simplesmente paralisados pelo medo.

Mas o Regina Elena seguia firme. E com ele, os sonhos e as esperanças de centenas de almas que, apesar de tudo, ainda acreditavam em um futuro melhor.

No vigésimo quinto dia de viagem, um burburinho se espalhou pelo convés. Terra à vista! Vittorio correu para olhar. No horizonte, uma linha escura tomava forma, crescendo a cada minuto. O porto de Santos emergia da névoa matinal como uma miragem, um amontoado de galpões, mastros de navios e telhados vermelhos, cercado por colinas cobertas de vegetação densa. O cheiro salgado do mar começou a se misturar com algo novo: um aroma quente e pesado, de madeira úmida e café.

Conforme o Regina Elena se aproximava do cais, a agitação tomava conta dos passageiros. Alguns se benziam, outros choravam, abraçados. Homens seguravam seus chapéus contra o vento, mulheres ajeitavam os lenços e roupas amarrotadas. Os tripulantes gritavam ordens em italiano, tentando conter o tumulto, enquanto barcaças carregadas de sacas de café passavam ao lado, guiadas por remadores morenos de olhar curioso.

Quando finalmente desceram a rampa de desembarque, uma onda de calor pegajoso os envolveu. Vittorio sentiu o suor escorrer pelas costas enquanto tentava respirar aquele ar novo, carregado de umidade. O idioma ao redor soava como uma cacofonia incompreensível—ordens gritadas, risadas, discussões entre trabalhadores portuários. Ele mal teve tempo de assimilar o choque antes de ser empurrado junto com os demais imigrantes para um dos galpões imensos ao lado do porto.

Lá dentro, o cheiro de corpos suados e roupas molhadas tornava o ambiente ainda mais sufocante. Filas se formavam diante dos funcionários, que verificavam documentos, assinavam papéis, apontavam direções. Alguns homens, de pele bronzeada e olhar avaliador, caminhavam entre os recém-chegados, observando-os como se escolhessem mercadoria.

— Café! Todos para o interior! — bradou um deles em italiano rudimentar.

Vittorio engoliu em seco, sentindo o peso da incerteza apertar-lhe o peito. Não havia tempo para contemplação, nem espaço para hesitação. A engrenagem da imigração girava sem pausas, empurrando-os inexoravelmente para o próximo destino.

A exaustão da viagem ainda pesava nos corpos dos recém-chegados, mas ninguém se atrevia a reclamar. Homens de rostos severos davam ordens rápidas, chamando nomes, apontando direções. Vagões de trem, de madeira escura e janelas gradeadas, aguardavam na linha férrea próxima ao galpão. O cheiro de ferro e óleo queimado se misturava ao calor abafado da manhã tropical.

Vittorio sentiu um nó no estômago ao avistar as composições que os levariam para o desconhecido. Onde dormiria naquela noite? O que encontraria no fim daquela jornada?

O aviso veio curto e seco:

— Para os trens! Movam-se!

Ele pegou sua pequena trouxa e avançou com os demais, passos hesitantes no solo quente do novo mundo. Já não havia mais navios, nem mar. Apenas terra firme e um destino incerto.

Não havia mais volta.

Com uma mala de couro gasta e um coração pesado de incertezas, Vittorio seguiu em frente, empurrado pelo fluxo implacável dos recém-chegados. Atrás dele, a Itália se tornava apenas uma lembrança distante, um mundo ao qual jamais retornaria da mesma forma.

O chão de terra batida rangia sob suas botas, o calor escaldante grudava em sua pele. À sua volta, imigrantes caminhavam em silêncio, carregando sacos e baús, os rostos marcados pela fadiga e pela expectativa. Cada passo era um salto no desconhecido.

No Brasil, um novo capítulo se abria diante dele—não por escolha, mas por necessidade. O que o aguardava além da estação de trem? Campos intermináveis de café? Trabalho árduo sob o sol impiedoso? Ou talvez, quem sabe, a promessa de uma vida digna, algo que a terra natal lhe negara?

A única certeza era que não havia caminho de volta.

Vittorio mal teve tempo de se recuperar da exaustiva travessia. Assim que desembarcou em Santos, foi rapidamente selecionado e encaminhado para o interior de São Paulo, onde um fazendeiro necessitava de trabalhadores para sua vasta plantação de café. A viagem de trem foi longa e desconfortável, o vagão de madeira sacolejando sobre os trilhos enquanto o calor e o cheiro de suor tornavam o ar quase irrespirável.

Quando finalmente chegou à fazenda, nos arredores da emergente Ribeirão Preto, foi recebido com poucas palavras e um olhar avaliador. Ali, o trabalho não fazia concessões. Antes mesmo do sol despontar no horizonte, já estava nos cafezais, arrancando os grãos vermelhos sob um calor implacável que fazia sua camisa grudar no corpo. Os cestos se enchiam rápido, e logo vinham os sacos pesados, que ele e os outros imigrantes carregavam até os secadores. Os ombros ardiam, as mãos se cobriam de calos, mas não havia descanso.

A barreira da língua o isolava no início. O português soava rude, estranho, como um código indecifrável. Mas, entre ordens gritadas e murmúrios trocados à sombra dos cafezais, Vittorio começou a entender. Aprendia com os outros imigrantes, muitos deles tão perdidos quanto ele. E, pouco a pouco, o desconhecido tornava-se familiar.

Os anos se passaram, marcados por trabalho árduo e sacrifícios silenciosos. Vittorio economizava cada tostão, recusando-se a gastar com qualquer coisa que não fosse essencial. Dormia pouco, comia o suficiente para se manter de pé e sonhava com o dia em que teria sua própria terra. A ideia de ser dono do próprio destino era o que o fazia resistir.

Em 1910, esse dia finalmente chegou. Com o que havia juntado, arrendou uma chácara nas proximidades de Araraquara. Não era grande, nem rica, mas era sua. A terra, escura e fértil, prometia sustento, mas cobrava um preço alto. Trabalhar sozinho significava acordar antes do sol e seguir até a última luz do dia, preparando o solo, plantando, colhendo. A cada estação, enfrentava novos desafios: a fúria das chuvas tropicais que castigavam as lavouras, as pragas traiçoeiras que ameaçavam destruir meses de esforço.

Mas Vittorio aprendeu. Observava os fazendeiros mais experientes, testava métodos, enfrentava as falhas e tentava de novo. Cada safra era uma lição. Cada derrota, um aprendizado. Seus calos engrossavam, suas costas se curvavam sob o peso do trabalho, mas, junto com o cansaço, crescia também a convicção de que, naquela terra, fincaria suas raízes.

O sucesso veio devagar, como a germinação das mudas que plantava. Primeiro, conseguiu comprar uma carroça, o que lhe permitiu levar sua colheita diretamente ao mercado. Depois, contratou ajudantes, homens tão determinados quanto ele, que viam no café uma chance de prosperar. A pequena chácara transformou-se em uma propriedade produtiva, e os sacos de grãos empilhavam-se na varanda antes de seguirem para a venda.

Em 1915, quando finalmente sentiu que havia construído algo sólido, casou-se com Maria, filha de um imigrante calabrês. Ela trazia no olhar a mesma resiliência de quem cruzara o oceano em busca de uma vida melhor. Juntos, trabalharam lado a lado, expandindo as plantações e cuidando da terra como se fosse um membro da família.

Com o tempo, a propriedade deixou de ser apenas um campo de cultivo e tornou-se um lar. Seus três filhos cresceram correndo entre os cafezais, os pés descalços tocando o solo que ele tanto lutou para conquistar. O som das risadas infantis misturava-se ao canto dos pássaros e ao farfalhar das folhas ao vento. Ali, no coração do Brasil, Vittorio não era mais apenas um imigrante. Tornara-se parte da terra que o acolheu.

Nos anos seguintes, o suor de Vittorio se transformou em prosperidade. Sua pequena fazenda expandiu-se além do que ele jamais imaginara. Com paciência e estratégia, adquiriu terras vizinhas, uma a uma, até tornar-se um dos maiores fornecedores de café da região. O aroma dos grãos recém-colhidos impregnava o ar, misturando-se à promessa de um futuro cada vez mais próspero.

Mas a riqueza de Vittorio não se media apenas em sacas de café. Ao lado de outros imigrantes italianos, ajudou a moldar uma comunidade forte e vibrante. Doou terras para a construção de uma escola, pois sabia que o conhecimento era a chave para que seus filhos tivessem um destino melhor. Contribuiu para erguer uma igreja, onde os fiéis se reuniam para rezar, buscar conforto e celebrar a vida. A vila cresceu, impulsionada pelo trabalho árduo de homens e mulheres que, como ele, haviam deixado tudo para trás em busca de uma nova chance.

No entanto, Vittorio jamais esqueceu o dia de sua partida. O último olhar lançado sobre sua terra natal permanecia gravado em sua mente, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Sabia que nunca voltaria, que as ruelas estreitas e as montanhas de Friuli permaneceriam apenas em sua memória.

Ainda assim, ao caminhar entre os cafezais floridos, sentindo o perfume adocicado das flores brancas e ouvindo o riso de seus netos ecoando pelos campos, percebia que havia encontrado mais do que um lugar para trabalhar. Ali, fincara suas raízes. Ali, seu nome viveria além dele.




sábado, 7 de setembro de 2024

O Navio da Esperança


O Navio da Esperança

 

A neblina pairava sobre o porto de Gênova como um véu de luto, abafando os sussurros e soluços dos que se despediam. O homem apertava a mão da esposa, sentindo o frio do metal da aliança de casamento. Ao lado deles, três crianças olhavam para o horizonte, onde o vasto Atlântico prometia uma nova vida, enquanto a mãe dele, uma senhora viúva conhecida em família como nonna Pina, mantinha os olhos baixos, escondendo o desespero que crescia em seu peito. As ruas estreitas de Vicenza, a praça onde brincavam, a igreja onde se casaram, tudo isso ficava para trás, reduzido agora a lembranças dolorosas.

O Brasil, o El Dorado, era um sonho distante, vendido pelos agentes de imigração como a terra das oportunidades. Mas para o homem, o que começara como uma necessidade premente de fugir da fome e da miséria tornava-se, a cada quilômetro percorrido pelo mar, uma escolha amarga, uma traição silenciosa às raízes que nunca deixariam de sangrar.

Naquela longa e turbulenta viagem, as esperanças se misturavam ao medo. As águas revoltas do Atlântico espelhavam a tempestade de emoções que tomava conta daqueles corações exilados. As noites eram repletas de sonhos interrompidos, pesadelos onde a pátria parecia se distanciar cada vez mais. No fundo de seus pensamentos, sempre pairava a dúvida: teriam feito a escolha certa ao deixar a terra natal?

Ao desembarcar no porto de Rio Grande, foram recebidos por um calor sufocante e uma língua desconhecida que parecia um emaranhado de sons. A longa viagem de barco pelo Rio Jacuí até a colônia italiana na Serra Gaúcha era longo e árduo, através de estradas que não existiam e trilhas no meio da mata fechada. A terra, parecia ser fértil, mas necessitava de muito esforço para domá-la, os desafios eram muitos e surgiam a cada instante. O homem sentia o peso do mundo sobre seus ombros; a promessa de uma nova vida rapidamente se desfez diante da realidade brutal de derrubar a mata, cultivar um solo rebelde e enfrentar as doenças tropicais.

A esposa, sempre forte e silenciosa, cuidava da casa improvisada com uma dignidade que impressionava todos ao redor. Ela mantinha as tradições italianas vivas, tentava cozinhar pratos que evocavam o sabor de casa, mas o gosto sempre parecia faltar. A nonna Pina, por sua vez, via os dias se arrastarem, consumida por uma saudade que parecia um câncer na alma. Ela sonhava com o retorno, com as ruas de pedra, as vozes familiares, mas sabia, no fundo, que nunca mais veria sua pátria.

Os primeiros meses na colônia foram marcados por privações e trabalho incessante. As crianças, ainda pequenas, aprendiam a conviver com o barro e a dureza da vida rural. O homem e a mulher trabalhavam duro do amanhecer ao anoitecer, desbravando a mata, erguendo cercas, tentando domar uma terra que se recusava a ser conquistada. À noite, quando todos dormiam, ele se permitia olhar para o céu estrelado e imaginar que, em algum lugar distante, sua Itália também estava sob aquele mesmo céu, esperando por seu retorno.

O inverno na Serra Gaúcha era implacável. A família, mesmo acostumada com o clima gélido dos invernos do Veneto, sentiu o frio cortar seus corpos e almas pela falta de um abrigo mais fechado. As roupas eram inadequadas, as casas mal construídas deixavam passar o vento gelado, e as provisões escasseavam. A esposa cuidava das crianças como podia, envolvendo-as em mantas improvisadas, contando histórias ao redor do fogo para mantê-las aquecidas, tanto no corpo quanto no espírito.

Os dias passavam lentamente, e a saudade se tornava um companheiro constante. Nas noites silenciosas, a nonna murmurava rezas em italiano, suas mãos trêmulas apegando-se ao terço como um último elo com a terra que tanto amava. As crianças, embora jovens, percebiam o peso daquele fardo invisível que seus pais carregavam. Cresciam entre dois mundos: o das histórias e canções italianas, e o da realidade dura e implacável do Brasil.

O tempo transformou a colônia em um lugar de contrastes. Por um lado, agora trabalhavam na própria terra, nao dependiam de patrões e não precisavam mais dividir as colheitas. Havia a promessa de uma nova vida, de prosperidade e de um futuro melhor para os filhos. Por outro, a realidade de que cada dia ali era uma luta constante, uma batalha travada contra a natureza, contra a distância, contra a saudade. A terra que prometia tanto, entregava pouco. Os campos que deveriam florescer com vinhas e trigais estavam cobertos de ervas daninhas e pedras.

A cada carta recebida da Itália, a dor se renovava. As notícias de parentes que ficavam para trás, as festas e celebrações que não mais participavam, tudo isso servia para lembrar que estavam longe, muito longe de casa. O retorno, que no início parecia uma possibilidade real, foi se tornando um sonho cada vez mais distante. As economias que deveriam ser guardadas para a volta eram gastas em necessidades imediatas: ferramentas, remédios, comida.

As crianças, crescendo entre a cultura italiana dos pais e a brasileira que os cercava, começavam a perder o vínculo com a terra dos antepassados. Falavam um português com sotaque carregado, misturado com palavras italianas que não faziam sentido para os outros colonos. Era uma identidade em formação, um misto de dois mundos que nunca se encaixariam completamente.

O homem observava esse processo com tristeza. Via seus filhos se afastarem, pouco a pouco, das tradições que tanto prezava. O desejo de retornar à Itália tornou-se um peso esmagador. A cada ano que passava, a realidade de que nunca mais voltariam ficava mais clara. A Itália, com suas colinas verdes e vinhedos, não era mais uma opção. Estavam presos a uma terra que não os abraçava, mas que também não os deixava partir.

Os anos trouxeram mais dificuldades, mas também uma certa aceitação. A esposa, que no início lutava contra a realidade, agora se resignava. Encontrava força na família, na certeza de que, apesar de tudo, estavam juntos. A nonna, em seu leito de morte, pediu apenas uma coisa: que, onde quer que fossem enterrados, uma pequena porção de terra da Itália fosse colocada sobre seus corpos, para que, mesmo na morte, estivessem ligados ao lar que tanto amaram.

Com o tempo, a colônia começou a prosperar. As primeiras colheitas foram modestas, mas suficientes para alimentar a esperança. Os colonos se ajudavam mutuamente, criando uma comunidade onde o espírito de solidariedade era tão forte quanto o amor pela pátria distante. A igreja, construída com esforço coletivo, tornou-se o coração da colônia, onde todos se reuniam para rezar e manter viva a chama da fé.

O homem, agora envelhecido, olhava para a colônia com um misto de orgulho e tristeza. Havia criado raízes ali, mas sentia que uma parte de si sempre estaria em outro lugar. A esposa, ainda forte apesar dos anos, cuidava do lar com o mesmo zelo de sempre, mas seus olhos estavam cansados. As crianças, já crescidas, agora trabalhavam ao lado dos pais, mas sonhavam com um futuro diferente, mais moderno, menos ligado às tradições que sustentaram seus pais.

O sonho de retorno à Itália, um sonho que um dia foi vivo e pulsante, havia se transformado em uma lembrança amarga, um lamento silencioso que acompanharia a família para sempre. No entanto, a colônia continuava a crescer, e com ela, a nova geração que carregava no sangue a herança dos imigrantes, mas que também começava a forjar uma nova identidade, uma identidade brasileira.

No fim das contas, a vida na colônia italiana do Rio Grande do Sul era uma vida de adaptação e transformação. O que começou como um sonho de retorno se converteu em uma aceitação melancólica da nova realidade. O amor pela Itália permaneceu, mas agora dividido com o novo lar. A nonna, que tanto sonhou em voltar, encontrou a paz no solo brasileiro, onde foi sepultada sob uma pequena porção de terra italiana, trazida com carinho pelos seus parentes.

Os anos passaram, as gerações se sucederam, mas a história daqueles primeiros imigrantes, que lutaram contra a saudade e a adversidade para construir uma nova vida, foi transmitida de pai para filho, como um legado de coragem, fé e resiliência. E assim, entre montanhas e vales, sob o céu da Serra Gaúcha, a memória da Itália continuava a viver, nos corações e nas histórias daqueles que um dia sonharam em voltar, mas encontraram seu destino em terras brasileiras.



sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A Jornada de Antonio Mansuetto

 



Em 1946, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, a pequena cidade de Marano di Castelnovo, na Emilia Romagna, estava lentamente se recuperando dos estragos do conflito. Antonio Mansuetto, um jovem aventureiro de 34 anos, havia decidido que seu destino estava além das fronteiras da Itália. Com um espírito indomável e um desejo ardente de explorar novas terras, Antonio deixou a segurança de sua casa e da família para buscar fortuna em terras distantes.

Com uma formação sólida como mecânico-eletricista e uma experiência valiosa servindo no exército italiano, Antonio tinha a habilidade e a determinação necessárias para prosperar. O Brasil, então em plena fase de crescimento industrial, oferecia oportunidades que pareciam feitas sob medida para suas habilidades. Com um pouco de dinheiro economizado e uma esperança ilimitada, ele embarcou em um navio rumo ao desconhecido.

São Paulo, a vibrante metrópole sul-americana, recebeu Antonio com a energia frenética de uma cidade em transformação. Rapidamente encontrou trabalho na indústria do aço, na siderúrgica nacional, um setor em franca expansão. A sua expertise foi bem recebida, e, com o tempo, ele se estabeleceu na cidade. Seus primeiros anos foram marcados por uma série de mudanças de residência, mas o destino parecia sempre o levar ao bairro do Bixiga, onde a comunidade italiana era forte e acolhedora.

O Bixiga, conhecido por suas casas de comércio italianas e a imersão cultural, tornou-se o novo lar de Antonio. Foi ali que encontrou Maria, uma mulher encantadora que compartilhava suas raízes italianas e seus sonhos de uma vida melhor. Casaram-se e formaram uma família, tendo quatro filhos e, eventualmente, dez netos. A vida de Antonio foi marcada por trabalho árduo, dedicação à família e uma profunda gratidão por suas novas oportunidades.

A aposentadoria, aos 65 anos, trouxe a Antonio a chance de refletir sobre sua jornada. Ele se aposentou com orgulho, mas nunca deixou de ser ativo na comunidade. Seus filhos e netos eram sua maior alegria, e ele se dedicou a passar adiante os valores e a cultura italiana que sempre amou.

Antonio Mansuetto faleceu aos 91 anos, deixando um legado de trabalho duro e determinação. Sua história é um testemunho do espírito aventureiro e da capacidade de transformar desafios em oportunidades, sempre com uma visão voltada para um futuro melhor.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Da Sicília ao Brasil: Uma Saga de Coragem em Campinas



Era o ano de 1868, em uma pequena vila no interior da Sicília, onde o sol dançava sobre as colinas de Agrigento, banhando tudo em uma luz dourada e perfumada pelo aroma do Mediterrâneo. Foi nesse cenário que Aniello viu pela primeira vez a luz do dia, em uma casa modesta na zona rural.
A família, composta por pequenos agricultores, enfrentava desafios para obter o sustento a partir de uma parcela de terra com menos de um hectare, que eles arrendavam. O ambiente que antes era idílico e próspero agora estava imerso em dificuldades devido a vários anos de conflitos pelo poder. A unificação da Itália resultou em um aumento significativo de impostos e taxas, levando a economia local à ruína. Aniello, o filho mais velho, sentia a responsabilidade de alimentar não apenas a si mesmo, mas também seus pais, esposa Maria Giovanna, três irmãs e quatro irmãos mais jovens.
Os ventos da mudança sopraram na forma de oportunidades além do horizonte. O Brasil, um vasto país sul-americano, oferecia uma promessa de esperança. O governo brasileiro buscava mãos trabalhadoras e, generosamente, concedia passagens gratuitas para aqueles dispostos a emigrar. Aniello, encantado com a perspectiva, assinou um contrato de quatro anos com uma empresa que representava uma imensa fazenda de café em São Paulo.
Em dezembro de 1888, ele e Maria Giovanna, abençoados pelos pais e emocionados com as despedidas dos irmãos, embarcaram no navio Príncipe de Astúrias, partindo de Nápoles rumo ao Brasil. A viagem, no entanto, não foi uma jornada fácil. O navio estava superlotado, com a falta de água potável e alimentos causando tumulto entre os passageiros. Nos porões úmidos e escuros, a falta de higiene tornava o ar insuportável.
Ao cruzarem o equador, enfrentaram tempestades que deixaram todos a bordo aterrorizados. Contudo, a esperança os guiou, e finalmente, em dezembro de 1888, Aniello e Maria Giovanna pisaram em solo brasileiro, prontos para enfrentar os desafios que a nova vida lhes reservava.
Chegando ao Brasil pelo porto de Santos, Aniello e Maria Giovanna foram recebidos pelos empregados das fazendas que os aguardavam. Após serem examinados, seguiram para o interior do estado de São Paulo, onde a maioria dos 1260 passageiros permaneceu; quase 500 deles foram para diferentes destinos, como o Rio Grande do Sul. Subiram a Serra do Mar até a capital, São Paulo, onde ficaram dois dias hospedados na Hospedaria dos Imigrantes, antes de embarcar em um trem rumo às fazendas que os contrataram.
A fazenda de Aniello e Maria Giovanna era uma propriedade vasta, administrada por um capataz; uma terra que já havia testemunhado os dias da escravidão, com mais de 300 escravos. Era coberta por milhares de pés de café, uma visão que se tornaria familiar ao casal nos anos seguintes. No segundo ano na fazenda Arari, receberam a bênção do nascimento de Pasquale, o mesmo nome do pai de Anielle, homenageando assim a tradição familiar.
Após os quatro anos iniciais, Aniello e Maria Giovanna decidiram permanecer por mais algum tempo na fazenda. Dois anos depois, com o nascimento de Salvatore, vislumbraram uma nova oportunidade que chegou através da informação de um amigo. Deixaram a fazenda e mudaram-se para Campinas, uma cidade já significativa, onde Aniello começou a trabalhar em um pastifício local. Inicialmente, alugaram uma casa na periferia, mas à medida que o tempo passava, adquiriram um lote de terra e construíram sua própria casa.
Em Campinas, a família Aniello floresceu, recebendo a chegada de mais cinco filhos: Maria Augusta, Nicola, Alessandro, Luigia e Caterina. O passado na Sicília e a jornada através do Atlântico deram origem a uma nova história, cheia de desafios superados e sucessos conquistados. Assim, na terra prometida do Brasil, a família cultivou não apenas café, mas também raízes profundas que se estenderam por gerações. O legado de Aniello e Maria Giovanna se entrelaçou com o tecido de Campinas, uma tapeçaria rica em histórias de coragem, esperança e resiliência.