sábado, 20 de março de 2021

Emigração Italiana Clandestina

Porto L'Havre no século XIX

Por clandestinos se entendia aqueles emigrantes italianos que muitas vezes munidos do passaporte oficial do Reino, emigrava de um porto não italiano, fugindo assim do controle oficial, muitas vezes pelos preços mais baratos  dos bilhetes ou por facilidades de ingresso no pais de destino, especialmente nos Estados Unidos onde o exame médico para ingresso era bem mais rigoroso do que em outros países americano não admitindo pessoas doentes e não aptas para o trabalho. De acordo com as estatísticas oficiais  do governo italiano, que apareceram no início do século XX, indicavam um número de emigrantes portadores de passaportes regulares que deixaram a península entre os anos de 1876 e 1900 era cerca da metade dos apontados por  estudos realizados mais recentemente. Portanto saíram da Itália um número quase igual ao dobro do que as estatísticas apontaram para o mesmo período. Se considerarmos que ambos os dados estão corretos, pode-se concluir a princípio  que o numero de emigrantes clandestinos era muito grande. Certamente não era apenas que muitos emigrantes cruzavam a fronteira em segredo, mas de emigrantes que compravam suas passagens de corretores não autorizados ou agentes de transportadoras  marítimas clandestinas. A emigração ilegal custava muito menos e quem geralmente sugeria esse caminho eram as pessoas que gozavam de respeitabilidade social (em alguns casos, prefeitos, funcionários municipais, padres; mais frequentemente lojistas e artesãos) em quem o emigrante confiava. As tarifas cobradas pelas transportadoras não autorizadas eram inferiores às das empresas oficiais as quais, detentoras de uma licença ministerial, operavam em regime de monopólio. Não haviam a obrigatoriedade de pagar fiança igual ao valor cobrado pela viagem. Esse fato não significava apenas reduzir os custos da empresa em cerca de dois terços, no raro caso de o montante necessário já estar disponível, mas acima de tudo não sujeitar a taxas de usura que em alguns países chegam a 200% ao ano. A utilização dessa rede clandestina evitava certos procedimentos e despesas burocráticas de embarque e também não haveria o risco de rejeição de entrada no momento do desembarque, caso o exame médico não fosse favorável ou se o emigrante não dispusesse do valor mínimo de dinheiro definido pelas autoridades dos países de emigração. 



A realidade da emigração clandestina emergiu nos primeiros 40 anos pós-unificação quando os impulsos restricionistas colidiram e se perderam em meio à incapacidade do poder público para instituir controles eficazes sobre a saída de seus cidadãos. A resistência à convocação militar, por exemplo, constituiu-se em uma das principais molas propulsoras desse fenômeno. Reação que recebeu maior destaque nos debates da época do que a emigração daqueles com pendências judiciais e criminais, que a atitude reacionária da burguesia liberal do fim do século produzia, contando com a conivência das camadas dirigentes do país260. Ainda segundo o historiador, episódios que os observadores contemporâneos citavam como motivo das saídas clandestinas revelavam também certa tensão social e moral: a falta de liberação do passaporte por obrigações de família do emigrante, a ausência de consenso paterno ou tutorial para a saída de menores e de incapazes, ou ainda, a suposta imoralidade na expatriação de mulheres.

Mensurar a emigração clandestina é tarefa difícil. Primeiro, porque, como não poderia deixar de ser, seus registros são esparsos; segundo, pela diversidade apresentada pelo termo “clandestino”, utilizado para descrever diferentes processos durante o período da grande emigração italiana. Na fase inicial do êxodo, eram considerados clandestinos aqueles que emigravam por portos estrangeiros para o além-mar ou que atravessavam as fronteiras do norte sem nenhum controle para trabalhar nos países vizinhos. Todos, de uma maneira ou de outra, buscavam escapar das restrições de ir e vir impostas pelo Estado ou das amarras sócio-econômicas a que estavam sujeitos onde viviam. Para isso, em muitos casos, recorriam ao auxílio de agentes ou agências clandestinas



Em seu estudo sobre a emigração para a América do Sul em 1883, Natale Malnate reproduziu a definição sobre o termo, que parecia consenso à época, para criticá-la: emigração legal é aquela que se efetuava com a ciência do governo, com passaporte; enquanto a clandestina ocorria sem passaporte, contra as prescrições legais. O estudioso observava que a divisão não era correta. Primeiro porque na Itália não existia nenhuma lei que regulasse ou tutelasse o emigrante e, portanto, não poderia existir a verdadeira emigração legal; segundo porque ao acabar com a exigência do passaporte com a França e outros países europeus, o governo italiano não poderia impedir seus cidadãos de embarcar em portos franceses sem o passaporte e ao mesmo tempo, chamá-los de clandestinos.

Mas o fato era que a Circular do ministro do Interior, Giovanni Nicotera, encaminhada aos representantes de governo nas províncias, em 1876, era sintomática quando se reportava à reação às medidas restritivas da antiga circular de 1873: o aumento da emigração clandestina. De fato, a Itália continuou a atribuir uma quota ainda considerável à emigração transatlântica com a diferença de que os emigrantes, para cumprir as restrições da referida circular, em vez de embarcarem nos portos do Reino, como costumavam fazer no início, aproveitavam os portos estrangeiros, de que foram autorizados a sair sem qualquer necessidade de passaporte ou qualquer outra formalidade.

O resultado foi um dano considerável à marinha mercante italiana, que carecia completamente do transporte da emigração para os países transatlânticos. A preocupação com essa emigração, ou melhor, com os agentes clandestinos, fossem eles nacionais ou estrangeiros, ocupava praticamente todo o texto da circular que exigia atenção especial na fiscalização dos embarques clandestinos. Já ao final da década de 1880, surgiram inúmeras reclamações por parte dos interessados – companhias de navegação italianas – e de seus representantes – jornais e políticos – a respeito dos entraves impostos à emigração pelo governo italiano, que fatalmente levariam à saída de italianos por portos estrangeiros, resultando em prejuízos à marinha mercante nacional. Sobre a emigração clandestina descarregavam-se as piores condições, maus tratos e golpes em relação à qualidade e modalidade de transporte marítimo ou à colocação de trabalhadores nos lugares de destino, argumento forte usado nas discussões do projeto de lei de 1888 para tentar impedir os agentes de enviar emigrantes para o embarque em portos estrangeiros. Com as leis de 1888 e 1901, e a conseqüente regulamentação da função de agente de emigração e subagente, depois representante de vetor, a emigração clandestina recebeu caracterização jurídica como ato de recrutar por parte de pessoas não autorizadas legalmente. Segundo Martellini, o termo clandestino passou a se referir não mais ao tipo de expatriação, mas ao tipo de recrutamento.

Na verdade, esse tipo de emigração era constituído, na maioria dos casos, pela relação direta entre agente clandestino e o embarque em portos estrangeiros. Não foi sem propósito que a lei de 1901, em seu artigo 13, vetou o arrolamento de emigrantes por aqueles que não obtivessem a patente de representante de vetor e, no artigo 23, proibiu os próprios vetores de embarcar emigrantes em portos fora da Itália. O senador italiano Luigi Bodio afirmava que a emigração clandestina por portos estrangeiros  manteve-se em níveis elevados – 20 mil por ano – até pelo menos o início do século XX..

Os canais da emigração clandestina para América passavam, via de regra, pela França, onde grande parte desses expatriados embarcava nos portos de Marselha e Havre, e, em menor proporção, pela Alemanha. Com simples passaporte para o interior, liberado facilmente pelos ofícios municipais, era possível atravessar a fronteira em qualquer parte do vale alpino sem controle ou mesmo imerso no expressivo vai-vem do fluxo sazonal e temporário que a França, sobretudo nos anos 70 e 80, alimentava e que era impossível controlar e regulamentar. Outra forma de alcançar a América percorria caminho ainda mais tortuoso: da Itália o emigrante partia para a Tunísia, depois dirigia-se para Marselha e desta, finalmente, para Nova York. 

Utilizando-se de uma circular de propaganda de uma agência de Chiasso (Suíça), Bernardino Frescura descreveu o expediente utilizado para ludibriar o controle de emigração dos Estados Unidos. Segundo o folheto, a agência aceitava em seus navios até mesmo aqueles que não se encontravam em condições de desembarcar em Nova York. Estes, porém, deveriam ter ciência da necessidade de percorrer a linha do Canadá, onde desceriam no porto de Saint John (Nova Brunswick) para, via ferrovia, alcançarem Montreal, o ponto mais próximo para alcançar a tão desejada cidade estadunidense, sem nenhum tipo de perturbação. Debruçando-se sobre o tema, o publicista desvendou parcialmente o universo obscuro das agências estrangeiras que agiam em território italiano através de seus representantes considerados clandestinos. Eram escritórios com sede nas cidades suíças de Chiasso, Lugano, Giubiasco e Bodio, e na francesa Bellinzona. Áreas relativamente próximas ao norte da Itália, onde agiam estabelecendo percursos para movimentar a emigração clandestina nas regiões da Lombardia e do Piemonte: Menaggio-Porlezza- Lugano; Milão-Como-Chiasso; Pavia-Mortara-Novara-Luino; Alessandria-Mortara- Novara-Sesto Calende-Porto Ceresio; Milão-Varese-Porto Ceresio. Caminhos fluidos, que de acordo com intensidade da vigilância, eram alterados rapidamente. Até mesmo Gênova fazia parte dessas rotas, sempre em direção ao norte, passando por Arona, Baveno, no Piemonte, até chegar em Locarno, Suíça; existiam, ainda, outras alternativas: recrutar aqueles que desembarcavam na estação ferroviária central, mandando-os para Chiasso, Modane (França), Ventimiglia (extremo oeste da Ligúria) ou aguardar os navios vindos de Nápoles para arrolar alguns emigrantes, que seriam deslocados de trem até Chiasso e depois enviados para Antuérpia, Boulogne (França) ou HavreEm 1904, os escritos de Frescura deixavam transparecer seu incomodo com o crescimento dessa prática, cuja lei de 1901 parecia não conseguir debelar, fato corroborado, segundo sua ótica, pela expansão da ação das agências estrangeiras para o sul da Itália. "Em outras palavras, vemos uma agitação viva, contínua e obstinada de agências estrangeiras, que, espalhadas por nossas fronteiras, em Chiasso, Bodio, Modane, Ventimiglia, estendem seus tentáculos por nosso país; e, não se contentando em solicitar emigração aos países da Alta Itália, mas, empurrando seus objetivos lá nos países do sul da Itália e da Sicília, procuram desviar as correntes migratórias de nossos portos e da vigilância de nossas leis, para atraí-los aos portos estrangeiros do norte da Europa". 

Em estudo recente, Martellini mapeou alguns detalhes práticos do êxodo clandestino tendo por base um folheto da agência de emigração suíça Berta & C., distribuído em 1907. Depois da burocracia relativa ao passaporte, os emigrantes recebiam o horário e as instruções detalhadas para a viagem desde o trem até o embarque no navio (o autor lembra que se tratava de procedimento arriscado, pois era o primeiro documento escrito entregue ao emigrante, que podia apresentar denúncia contra o agente), em que o laconismo e a dissimulação deveriam ser a regra: "Partindo de casa, você terá o cuidado de se vestir da melhor maneira possível, de colocar as roupas em uma bolsa ou mala de lona e não em sacos, que causam uma má impressão principalmente no momento do desembarque. Durante a viagem a Chiasso deverá ter cuidado com todos, recusar qualquer endereço ou sinal, caso contrário correrá o risco de ser desviado ou enganado. "Se por acaso a Polícia nos perguntar o nome de quem poderia o ter encaminhado para o nosso Gabinete, você, guardando-se cuidadosamente do agente de emigração, responderá com franqueza que vem em seu próprio nome, ignorando quaisquer possíveis ameaças de repatriamento as quais de forma alguma poderiam ter efeito, pela simples razão de que nem todo passaporte para o exterior dará o direito de ir aonde você mais quiser, no máximo você dirá que recebeu o endereço de alguém da América". 

Outra forma de burlar a fiscalização dos comissários de emigração foi revelada por uma denúncia publicada na mesma revista, ao final do já citado estudo de Bernardino Frescura. Como os passageiros de primeira e segunda classes estão isentos de passaporte e nenhuma autoridade pode detê-los na fronteira, os senhores de Chiasso entregavam aos seus correspondentes ilegais notas de passagens de segunda classe, na cor verde, e essas usavam para as passagens de terceira classe, e mesmo que eles ficassem surpresos, nenhuma autoridade poderá colocá-los em contravenção, porque qualquer pessoa pode ter passagens de segunda e primeira classe sem se meter em problemas. Os números dessas contas são conhecidos pela agência de fronteira e, quando os passageiros aparecem, eles mudam para uma passagem de terceira classe. Diziam para os passageiros responderem que, dado o preço pouco mais elevado da terceira classe, preferem viajar na segunda classe. 

A sorte das agências estrangeiras que agiam na Itália parecia ligada apenas em parte às leis restritivas que, em momentos diversos, buscavam impedir a livre emigração para países do além-mar. A emigração gratuita (ou subsidiada) foi uma das principais fomentadoras desse tipo de ação. Entretanto, a ausência de dados não permite a afirmação segura sobre o aumento do fluxo clandestino quando, por exemplo, da proibição da emigração subvencionada para o Brasil em 1896 e a partir de 1902 com o Decreto Prinetti.

Voltando a tratar de números, mesmo com a criação do Commissariatto dell’Emigrazzione em 1901, persistiam as dificuldades para quantificá-la. Segundo esse órgão, a estimativa do fluxo clandestino anual para terras americanas seria de 20 mil pessoas; no entanto, não estava excluída a possibilidade de cifra ainda maior.

Debruçando-se sobre o assunto, Malnate propôs a revisão dessas estimativas, consideradas baixas. Para os anos de 1905 a 1907, baseando-se em três aspectos – na quantidade de pedidos de passaportes para os principais destinos na América, no número efetivo de embarques daqueles que pagaram a taxa e nas estatísticas de desembarque – o estudioso chegou a um valor médio anual da emigração clandestina bem superior ao do Commissariato: 35 mil para a América do Norte – sendo que cerca de 20 mil seriam irregulares por conta da rigorosa inspeção médica ainda em portos italianos e os restantes 15 mil pela ação dos agentes clandestinos – e 20 mil para a América do Sul – em sua maior parte sob influência destes.

Aliás, após a lei de 1901, quando o controle de saúde tornou-se ainda mais rigoroso, uma das principais preocupações dos emigrantes que esperavam pelo embarque era de serem rejeitados na inspeção médica. Na viagem para os Estados Unidos, a comissão de visita previa a presença do chamado “médico americano”, funcionário de confiança do governo estadunidense, cuja figura aterrorizava aos emigrantes e era mal vista pelos médicos do serviço sanitário italiano.

Alertando que a clandestinidade correspondia à sétima parte do fluxo transoceânico, Malnate, no entanto, acreditava não ser apenas culpa dos agentes informais, pois até mesmo agentes legalizados, nos momentos de grande afluxo de emigrantes, quando seus vetores não conseguiam dar conta de todos, acabavam por enviar recrutados para as agências clandestinas; também era rotina esses representantes não resistirem aos apelos financeiros de outras agências para afrontar os interesses de seus mandatários. Por outro lado, em algumas cidades importantes, próximas a potenciais áreas de recrutamento, existiam representantes de vetor que nem se preocupavam em realizar o arrolamento, simplesmente recebiam os emigrantes dos agentes clandestinos, dividindo com estes a recompensa.

Em 1901, a nova lei de emigração estabeleceu a tutela a todo emigrante embarcado em portos italianos mediante o pagamento de 8 liras destinadas ao Fondo per l’emigrazione. Permitiu também a quase completa liberdade de obtenção de passaporte pelas massas populares. Apesar disso, a emigração clandestina ainda era sentida e incomodava as autoridades e as companhias de navegação italianas. O estudo de Bernardino Frescura corrobora tal fato. Através da leitura atenta percebe-se claramente quais eram seus compromissos ao condenar a emigração clandestina e tentar propor algum tipo de solução para contê-la: debelada a concorrência dos agentes clandestinos, a emigração afluiria aos portos italianos, proporcionando maior tráfico e melhores condições de investimentos na indústria marítima.

Sem esse compromisso, e talvez por isso, o diagnóstico de Natale Malnate era semelhante, porém mais direto: Pois se é verdade que reprimindo a emigração ilegal se asseguram as lágrimas e se evitam os maiores prejuízos de milhares de infelizes, também é verdade que se privilegiam as companhias marítimas que fazem o tráfico de emigrantes na Itália (...). Ou seja, segundo seus cálculos, em uma situação ideal, se fosse possível induzir os emigrantes clandestinos a embarcar em portos do reino, os 55 mil bilhetes de 3classe corresponderiam a 8,8 milhões de liras para os cofres das companhias de navegação italianas. 


Resumo de tese da USP


Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

Erechim RS