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quarta-feira, 25 de junho de 2025

Sob os Vinhedos da Esperança


 

Sob os Vinhedos da Esperança


Giuseppe Montello apertava entre os dedos o bilhete amarelado com a força de quem se despede não apenas de um lugar, mas de uma vida inteira. O vento frio descia impiedoso das montanhas Dolomitas, trazendo consigo o cheiro de terra úmida e madeira queimada, um lembrete pungente da vila que ele estava prestes a abandonar. A pequena vila de Col San Vito, comune de Cesiomaggiore, encravada no coração das montanhas, era mais do que sua casa; era uma extensão de sua alma, um lugar onde cada pedra e trilha carregava a história de sua família. Mas aquela terra, que outrora oferecia sustento, agora mal conseguia manter viva a chama de uma vela.

Era 1887, e a crise econômica e agrícola haviam atingido o Vêneto com força devastadora. Giuseppe observava o campo em que havia passado tantas horas debaixo do sol abrasador e da chuva gelada. Os sulcos rasos no solo, resultado de safras fracassadas, pareciam refletir sua própria desesperança. O bilhete para o Brasil que segurava não era apenas uma passagem; era uma promessa, uma fuga para o desconhecido que, apesar de assustador, carregava o eco de esperança.

Maria, sua esposa, estava ajoelhada no chão da cozinha, organizando os poucos pertences que levariam na longa travessia. A expressão em seu rosto era uma mistura de determinação e tristeza. Giuseppe sabia que ela chorava quando ninguém a observava, mas também sabia que não questionaria sua decisão. Ao contrário, Maria era sua fortaleza. Seus filhos, Antonio e Chiara, brincavam descalços no quintal, inconscientes do peso daquela partida.

A jornada realmente começou no porto de Gênova, onde o vapor La Speranza esperava, imponente e desgastado pelo tempo. Subir na embarcação foi como atravessar um portal para outro mundo. Giuseppe, Maria e as crianças foram conduzidos ao porão apertado da terceira classe, onde centenas de outras famílias dividiam o mesmo espaço exíguo. O ar era pesado, saturado pelo cheiro de suor e de maresia, e o burburinho de vozes sussurrando orações ou consolando crianças pequenas preenchia o ambiente.

As semanas no mar foram um teste de resistência física e emocional. Giuseppe improvisava maneiras de distrair Antonio e Chiara, inventando histórias sobre terras onde o solo era tão fértil que bastava jogar uma semente para colher uma árvore carregada de frutos. “No Brasil, tudo será diferente”, dizia ele, mais para si mesmo do que para os filhos, enquanto olhava para o horizonte interminável.

Quando finalmente avistaram o porto de Santos, uma onda de alívio percorreu o navio. O ar quente e úmido que os envolveu ao desembarcar era tão diferente do frio cortante das Dolomitas que parecia anunciar o início de um novo capítulo. Contudo, a realidade no Brasil era muito diferente das promessas. Após desembarcarem no porto de Santos, Giuseppe e sua família foram direcionados, junto com outros imigrantes, a um navio costeiro menor que os levou até o porto de Rio Grande. Lá, foram alojados em grandes barracões de madeira bruta, construídos para abrigar temporariamente as famílias até a chegada dos barcos fluviais. Durante quase duas semanas naquele espaço apertado e rudimentar, Giuseppe sentiu a incerteza pesar sobre todos, mas esforçou-se para manter a esperança viva para Maria e os filhos.

Quando finalmente receberam o aviso da partida, embarcaram nos barcos fluviais que os conduziram até Pelotas. A viagem seguiu pela vasta Lagoa dos Patos, com águas tranquilas e margens cobertas de vegetação selvagem, até Porto Alegre, a capital da província. Dali, subiram pelo estuário do Rio Caí, navegando contra a sua correnteza chegaram até São Sebastião do Caí, onde os Montello, junto com outros colonos, tiveram que seguir a pé, em carroças ou no lombo de mulas, pelas trilhas que cortavam as densas matas da região.

Ao chegarem finalmente às terras destinadas à colônia italiana de Dona Isabel, na Serra Gaúcha, Giuseppe se deparou com uma visão que era ao mesmo tempo desafiadora e opressora: um lote de terra cercado por uma floresta densa e aparentemente impenetrável. Ele parou por um momento, observando o ambiente ao seu redor — as árvores altas que lançavam sombras sobre o chão, a vegetação entrelaçada que parecia resistir a cada passo, e o som constante da natureza que dominava tudo. Sentiu o peso de uma nova batalha se instalando sobre seus ombros. Não seria fácil transformar aquela terra selvagem em um lar, mas ele sabia que não tinha escolha.

Giuseppe respirou fundo, apertou a mão de Maria e disse com determinação:

Vamos começar.

As primeiras semanas foram marcadas pelo cansaço extremo. Ele e Maria trabalhavam até tarde da noite, derrubando árvores e limpando o terreno. Chiara ajudava como podia, enquanto Antonio, ainda pequeno, observava os pais com olhos grandes e atentos. As mãos de Giuseppe, já calejadas de anos de trabalho no Vêneto, agora sangravam ao manejar o machado e a enxada. Mas aos poucos, começaram a abrir clareiras na mata e a vislumbrar o potencial da terra. Plantaram milho e feijão, sementes de sobrevivência, e Giuseppe recebeu de um vizinho italiano algumas mudas de videira.

O isolamento, porém, era uma dor constante. Maria, apesar de sua força, chorava à noite pela mãe e pelas irmãs que ficavam na Itália. Giuseppe sentia um nó na garganta toda vez que se lembrava da missa de despedida na igreja da vila, onde havia prometido que voltaria um dia. Ele não podia demonstrar fraqueza, mas sentia saudade até do aroma do pão assado no forno comunitário.

O primeiro ano passou como um longo teste de resistência. O desmatamento, a construção de uma cabana rústica e as primeiras plantações consumiram suas forças, mas a terra mostrou-se generosa. Quando as videiras finalmente começaram a crescer, Giuseppe sentiu pela primeira vez que talvez houvesse um futuro ali. As dificuldades ainda eram imensas, mas uma centelha de esperança surgia a cada novo broto que despontava na terra.

Em 1889, quando a febre amarela se espalhou como uma sombra mortal pela região, Giuseppe Montello enfrentou o medo mais profundo de um pai. Antonio, com apenas seis anos, foi um dos primeiros a adoecer na colônia. O pequeno corpo ardia em febre, enquanto os olhos, que sempre brilhavam de curiosidade, agora estavam opacos e fatigados. Maria, movida por um amor que desafiava a exaustão, permaneceu ao lado do filho, lavando seu rosto com panos frios e sussurrando orações desesperadas em um dialeto vêneto que parecia atravessar os tempos e chegar aos ouvidos dos antepassados.

Giuseppe, sentindo-se impotente diante da cena, decidiu que não poderia ficar parado. Ele caminhou por horas até a vila mais próxima, em busca de remédios ou de qualquer pessoa que pudesse ajudar. As estradas eram estreitas, cortadas por riachos e ladeadas por árvores que pareciam se fechar sobre ele. A cada passo, sua mente era assaltada por lembranças de Antonio correndo entre as fileiras de milho e rindo com Chiara. Ele não podia deixá-lo partir.

Antonio sobreviveu. A febre cedeu gradualmente, e sua recuperação trouxe um alívio que parecia devolver a vida ao coração de Giuseppe. No entanto, quando ele olhou para Maria, percebeu algo diferente. Nos olhos de sua esposa, antes cheios de uma chama inabalável, havia agora um reflexo do peso acumulado pelas lutas diárias. Mesmo assim, ela sorriu. Um sorriso cansado, mas carregado de gratidão.

Os anos que se seguiram trouxeram progresso. Giuseppe encontrou um aliado inesperado em Lorenzo Vitale, um vizinho italiano que havia se estabelecido na região alguns anos antes. Lorenzo tinha um conhecimento profundo sobre a produção de vinho e, vendo o esforço incansável de Giuseppe, ofereceu-se para ensiná-lo. As primeiras safras foram humildes, garrafas modestas que guardavam mais o suor e a esperança dos Montello do que qualquer promessa de riqueza. Mas a qualidade do vinho surpreendeu. As uvas, cultivadas com cuidado quase reverencial, resultavam em um sabor que evocava as colinas do Vêneto.

Com o tempo, o trabalho árduo começou a dar frutos. Antonio e Chiara cresceram em meio aos vinhedos, aprendendo a cuidar das plantas e a participar da colheita. Maria, com a habilidade de quem nunca deixou de ser agricultora, mantinha uma horta vibrante e contribuía para a vida comunitária, trocando receitas e sementes com as outras mulheres da colônia.

Em 1890, a emancipação da Colônia Dona Isabel marcou um novo capítulo. Giuseppe, agora um homem respeitado entre os colonos, viu sua pequena produção de vinho expandir-se. Em 1895, o vinho Montello já era vendido em vários pontos da cidade. A prosperidade não apagava as lembranças das dificuldades, mas trazia uma sensação de pertencimento que Giuseppe jamais imaginara alcançar. A terra que um dia parecia tão estranha agora era o lar.

Em uma noite tranquila, sob um céu pontilhado de estrelas, Giuseppe levou Antonio até o vinhedo. O ar estava impregnado pelo aroma das uvas maduras, e a luz da lua lançava sombras longas sobre as fileiras de videiras. Giuseppe parou e, com um tom grave, disse:

Lembre-se, filho, essas terras nos deram tudo, mas custaram tudo também. Nunca tome o que temos como garantido.

Essas palavras ecoaram no coração de Antonio, tornando-se um princípio que guiaria sua vida.

Quando Giuseppe Montello faleceu em 1922, aos 67 anos, deixou para trás muito mais do que vinhedos bem cuidados. Deixou um legado de resiliência, de coragem diante do desconhecido e de uma determinação que se tornara a essência de sua família. Os vinhedos Montello prosperaram, transformando-se em um símbolo do espírito indomável dos imigrantes italianos na Serra Gaúcha.

Hoje, sob as colinas de Bento Gonçalves, onde as videiras dançam ao ritmo do vento, o nome Montello ainda é reverenciado. Seus descendentes continuam a produzir vinho, e a história de Giuseppe é contada com orgulho, como um lembrete de que sonhos, mesmo os mais difíceis, podem florescer quando plantados com fé e cultivados com amor. E assim, na vastidão verde das colinas, vive o espírito de um homem que ousou sonhar e transformar seu sonho em realidade.

Nota do Autor

Escrever Sob os Vinhedos da Esperança foi uma jornada de emoção e descobertas, uma travessia literária que me levou a explorar as raízes da coragem humana diante da adversidade. Esta história não é apenas sobre Giuseppe Montello e sua família, mas também sobre os milhares de homens, mulheres e crianças que deixaram tudo o que conheciam para trás em busca de um sonho — um sonho que muitas vezes parecia tão distante quanto as terras para onde navegavam.

No coração deste livro está a força de vontade que transforma o impossível em realidade. Giuseppe, Maria, Antonio e Chiara são personagens fictícios, mas suas lutas e esperanças ecoam as histórias reais de tantas famílias italianas que cruzaram oceanos e enfrentaram desafios monumentais no Brasil do século XIX. Desde os barracões improvisados no porto de Rio Grande até os vinhedos que hoje embelezam a Serra Gaúcha, cada detalhe foi cuidadosamente pesquisado e inspirado pelas vidas e legados desses pioneiros.

Como autor, senti-me imerso na dor de deixar para trás a terra natal, no isolamento das florestas virgens, no cansaço das mãos calejadas e, ao mesmo tempo, na alegria de cada pequena vitória: o brotar de uma videira, o primeiro vinho compartilhado, a união da comunidade em tempos difíceis. Este é um tributo à resiliência e ao espírito humano, que persiste mesmo nas circunstâncias mais adversas.

Minha intenção ao escrever este livro foi transportar você, caro leitor, para aquele tempo e lugar. Quis que sentisse o aroma das videiras sob o sol da Serra Gaúcha, ouvisse o som das machadadas na mata, visse o brilho nos olhos de uma família ao construir um futuro com as próprias mãos. Mais do que uma história de imigração, esta é uma celebração da capacidade humana de sonhar e construir, mesmo quando as probabilidades parecem estar contra nós.

É importante mencionar que o que está apresentado aqui é apenas um resumo da obra completa. Nas páginas do livro, mergulho mais profundamente nas vivências de Giuseppe, nos detalhes históricos e emocionais que deram forma a essa saga. 

Espero que, ao terminar estas páginas, você se sinta inspirado pelo legado que essas famílias nos deixaram. Que esta história sirva como um lembrete de que, sob as sombras dos maiores desafios, nascem as sementes da esperança e da transformação.


Com gratidão e emoção,


Piazzetta