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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Os Navios de Lázaro: A Saga de Francesco e Elena


Os Navios de Lázaro: A Saga de Francesco e Elena


No final do século XIX, Francesco Bettine e sua esposa, Elena, viviam em San Vito, uma pacata localidade no município de Altivole, na província de Treviso, região do Vêneto, ao norte da Itália. O lugar, cercado por colinas onduladas e pequenos vinhedos, parecia ser um recanto de tranquilidade, mas a realidade estava longe de ser idílica. A terra que cultivavam, uma pequena parcela herdada de gerações anteriores, era árida e pouco produtiva. As colheitas eram insuficientes para alimentar a família adequadamente, e Francesco passava longas horas tentando arrancar da terra seca o sustento para os filhos, Giulia e Marco, ainda pequenos. Além da pobreza natural da região, os altos impostos cobrados pelos proprietários de terras e pelo governo local tornavam o esforço diário quase inútil. A fome era uma presença constante na casa dos Bettine, um lembrete cruel das limitações que os aprisionavam em um ciclo interminável de miséria. Por anos, Francesco e Elena resistiram, sustentados pela esperança de que as coisas poderiam melhorar. Mas, à medida que os invernos se tornavam mais rigorosos e os barris de farinha esvaziavam cada vez mais rápido, a esperança deu lugar à necessidade.

Quando os primeiros rumores sobre oportunidades no Brasil chegaram a San Vito, trazidos por outros camponeses ou por cartas de parentes já emigrados, o casal viu ali uma saída. Partir significava abandonar tudo o que conheciam, mas também era uma chance de dar aos filhos a vida que eles próprios nunca tiveram. Assim, com o coração dividido entre a dor da despedida e a promessa de um futuro mais digno, decidiram arriscar tudo e cruzar o oceano em busca de uma nova vida.

A jornada começou com uma longa e desconfortável viagem de trem desde a estação mais próxima de San Vito até o porto de Gênova. As pequenas economias que haviam guardado foram gastas na compra de bilhetes de terceira classe, onde os vagões estavam lotados e o cheiro de carvão e suor impregnava o ar. Francesco e Elena mantinham os filhos junto a si, temerosos de que pudessem se perder no caos da viagem.

Ao chegarem a Gênova, a visão do porto era ao mesmo tempo fascinante e assustadora. Era um cenário de confusão: multidões de emigrantes, maltrapilhos e carregando suas vidas em sacos e malas improvisadas, aguardavam instruções. Entre gritos de carregadores e o apito dos navios, a família Bettine foi direcionada para o grande vapor que os levaria ao outro lado do Atlântico: o Sant’Antonio.

O navio, imponente à distância, perdia parte de sua grandiosidade ao se aproximarem. O casco escurecido pela fuligem e a madeira desgastada denunciavam os anos de uso intenso. Conhecido pelos jornais como o “Navio de Lázaro”, ele já havia transportado milhares de emigrantes e ganhara essa alcunha devido à miséria que o acompanhava. Era um símbolo da resiliência de quem partia em busca de uma nova vida, mas também uma lembrança cruel das condições sub-humanas que aguardavam os passageiros.

A bordo, o ambiente era ainda mais opressivo. O porão, onde Francesco e Elena foram alocados com seus filhos, era um espaço apertado e insalubre, iluminado apenas por lâmpadas fracas e mal ventilado. O ar era pesado, carregado de odores de comida estragada, fumaça e corpos amontoados. Muitos dos passageiros já demonstravam sinais de doença: tosses secas ecoavam entre os corredores, e o semblante abatido era quase universal.

Enquanto se acomodavam no pequeno espaço que lhes foi designado, Francesco e Elena trocavam olhares de preocupação, mas também de determinação. Sabiam que a travessia seria um teste cruel, mas cada onda enfrentada, cada dificuldade superada, os aproximaria de um futuro em que seus filhos poderiam crescer com mais dignidade e esperança.

A Travessia

No convés inferior, onde ficavam os passageiros de terceira classe, as condições eram precárias. Francesco e Elena se acomodaram no chão, ao lado de outras famílias, sem espaço para se mover. Nos dias de chuva, todos se espremiam nos corredores apertados, onde o ar se tornava irrespirável. A comida era escassa e mal preparada; muitas vezes, os passageiros comiam de pratos que seguravam no colo, sentados onde podiam. Doenças se espalhavam rapidamente. Durante a segunda semana de viagem, Marco começou a apresentar febre alta e manchas pelo corpo. O médico a bordo, sobrecarregado e sem recursos, diagnosticou sarampo e recomendou apenas repouso. A falta de ventilação e as más condições sanitárias pioraram a saúde do menino.

Tragédia no Mar

Marco não resistiu à doença e faleceu em uma madrugada em que uma tempestade castigava o navio. No porão abafado, iluminado apenas por lâmpadas trêmulas, a presença da morte tornou o ambiente ainda mais sombrio. O som das ondas violentas do lado de fora parecia ecoar a dor dos que, como Francesco e Elena, sofriam perdas irreparáveis durante a travessia.

Na manhã seguinte, enquanto o Sant’Antonio enfrentava o mar revolto, Francesco e Elena tiveram que realizar a despedida mais dolorosa de suas vidas. O corpo de Marco foi envolto em um pedaço de tecido simples, um gesto simbólico para resguardar sua dignidade na morte. Com uma pedra amarrada aos pés para que o pequeno corpo não retornasse à superfície, ele foi preparado para seu destino final.

A cerimônia improvisada foi breve e silenciosa, marcada apenas pelo som das ondas negras e do vento que chicoteava o convés. Quando o corpo foi lançado ao mar, o impacto da água produziu um ruído surdo que ficou gravado na memória de Elena como um símbolo do fim abrupto e cruel da curta vida do filho.

No convés, outros emigrantes observavam com olhares mistos de pesar e resignação. A perda de Marco era um lembrete da fragilidade de todos a bordo e da incerteza que os cercava. Para Francesco e Elena, porém, a dor da despedida era amplificada pela necessidade de seguir em frente, carregando a memória de Marco enquanto enfrentavam os desafios da travessia e buscavam forças para cuidar de Giulia, sua filha sobrevivente.

A Chegada

Após semanas extenuantes a bordo do Sant’Antonio, marcadas por privação, doenças e o luto pela perda de Marco, o vapor finalmente atracou no movimentado porto de Santos, no Brasil. A visão da costa tropical era ao mesmo tempo uma promessa e um enigma para os Bettine. Os morros cobertos de vegetação exuberante e o calor úmido contrastavam com o cenário que haviam deixado no Vêneto.

O desembarque foi tumultuado. Junto com centenas de outros emigrantes, Francesco e Elena enfrentaram a burocracia e as longas filas de inspeção. Após uma breve quarentena, a família foi encaminhada ao destino que lhes havia sido designado: uma colônia agrícola no interior da província. A viagem continuou, desta vez por estradas empoeiradas e apertadas trilhas em carroças, até a região de Alfredo Chaves, um pequeno núcleo de imigrantes italianos situado em terras que começavam a ser desbravadas.

Ao chegarem, os Bettine encontraram um ambiente que parecia promissor à primeira vista. A terra era rica e fértil, muito diferente das parcelas áridas de San Vito, mas o trabalho era árduo. Francesco dedicava-se ao cultivo de café e milho, enquanto Elena cuidava da horta, dos animais e de Giulia, agora a única filha do casal.

Os desafios eram imensos. As longas jornadas de trabalho sob o sol tropical exauriam as forças de todos. Além disso, as doenças tropicais, como malária e febre amarela, eram ameaças constantes, agravadas pela falta de acesso a cuidados médicos adequados. Para Elena, cada nova dificuldade fazia crescer a saudade da terra natal, onde as montanhas e o clima ameno do Vêneto ainda habitavam suas memórias.


Apesar disso, os Bettine não desistiram. Francesco acreditava que a perseverança seria recompensada, e lentamente a família começou a se adaptar à nova realidade. O vínculo com outros imigrantes italianos na colônia trouxe algum alívio, permitindo-lhes compartilhar experiências, tradições e uma língua comum. Alfredo Chaves se tornou, com o tempo, um novo lar – não sem dificuldades, mas com a promessa de um futuro melhor para Giulia e as gerações que viriam.

Com o passar dos anos, a determinação de Francesco e Elena começou a dar frutos. Apesar das adversidades iniciais, a família conseguiu construir uma pequena casa de madeira, simples mas sólida, em meio às colinas férteis de Alfredo Chaves. A casa, com um telhado inclinado coberto de telhas feitas à mão, tornou-se um símbolo do esforço coletivo e da capacidade de adaptação. Era ali que os Bettine encontraram, pela primeira vez em muito tempo, um senso de estabilidade.


A lavoura que antes parecia um sonho distante começou a prosperar. Francesco dedicava-se ao cultivo de café e milho, enquanto Elena administrava uma pequena horta de subsistência que incluía ervas, legumes e frutas tropicais que aprendera a cultivar com outros colonos. O trabalho árduo transformou a terra em uma fonte confiável de sustento para a família, permitindo-lhes escapar, mesmo que parcialmente, da constante ameaça da fome.


Giulia cresceu forte e saudável, ajudando os pais nas tarefas do campo e absorvendo os valores de resiliência e união que moldavam a vida da família. Para ela, o sacrifício dos pais e a memória do irmão Marco tornaram-se inspirações profundas. Embora Marco nunca tivesse a chance de viver plenamente naquela nova terra, sua lembrança era mantida viva em cada conversa e em cada conquista, como um símbolo do preço pago para que a família pudesse recomeçar.


Com o tempo, a pequena propriedade dos Bettine transformou-se em um ponto de referência na comunidade. Apesar das dificuldades, Francesco e Elena se tornaram conhecidos pela generosidade e pelo espírito de colaboração com outros imigrantes. A história deles era contada com reverência, um testemunho de que, mesmo diante das maiores perdas, a coragem e a determinação podiam criar raízes profundas e florescer em solo estrangeiro.

Um Legado de Esperança

Décadas mais tarde, a trajetória dos Bettine não era apenas a história de uma família, mas parte de uma narrativa grandiosa que unia milhões de emigrantes italianos espalhados pelo mundo. Eles foram protagonistas de uma saga épica, marcada por coragem, sacrifício e determinação, que ajudou a moldar a identidade de comunidades inteiras em terras estrangeiras. Os chamados “Navios de Lázaro” — símbolos de sofrimento, perdas e incertezas — também foram veículos de um sonho coletivo: a busca por uma vida mais digna e a promessa de um futuro que justificasse todo o sacrifício.

Para os descendentes de Francesco e Elena, a memória dos antepassados é um patrimônio inestimável, preservado com reverência. Eles reconhecem que o presente confortável que desfrutam hoje só foi possível graças à força de vontade daqueles que enfrentaram mares turbulentos, terras inexploradas e desafios inimagináveis. Essa lembrança não é apenas uma homenagem, mas uma inspiração.

Ao longo das gerações, os valores que guiaram Francesco e Elena foram transmitidos como uma herança invisível, mas poderosa. O espírito de resiliência, a dedicação ao trabalho e a importância da união familiar permanecem como pilares fundamentais. Giulia, que cresceu sob o peso das histórias de sacrifício, tornou-se a matriarca de uma geração que viu Alfredo Chaves transformar-se em uma próspera comunidade.

Hoje, os descendentes dos Bettine mantêm viva a conexão com suas raízes italianas, celebrando tradições, compartilhando histórias e honrando o legado de coragem de seus ancestrais. A saga dos Bettine tornou-se um emblema da jornada de todos os imigrantes que, movidos pela esperança, cruzaram oceanos e enfrentaram adversidades para construir novos começos. Suas vidas provaram que, mesmo em meio à escuridão das maiores dificuldades, a luz do sonho por um futuro melhor pode ser o farol que guia gerações.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Uma Jornada de Esperança: A História de Giovanni Montelli

 


Uma Jornada de Esperança 

A História de Giovanni Montelli


Giovanni Montelli nasceu em 1852 em Campolongo, uma pequena vila de Conegliano, no interior de Treviso, região do Vêneto. O cenário de sua infância foi moldado por uma economia rural em declínio. A terra era infértil, os recursos escassos, e o trabalho árduo, porém mal recompensado. Seu pai, Pietro, era agricultor, enquanto sua mãe, Maria, costurava para complementar a renda. A vida era uma luta constante, e os Montelli muitas vezes iam dormir com fome.

Os anos que antecederam a partida de Giovanni foram particularmente difíceis. A Itália enfrentava o período pós a unificação, a criação do novo reino e as políticas econômicas que beneficiavam as cidades industriais enquanto sufocavam as áreas rurais. Em Treviso, a fome e a pobreza levaram muitos a buscarem uma saída desesperada. Giovanni, então com 2o anos, viu sua família enfrentar a dura realidade de que permanecer significava perpetuar o sofrimento.

Foi em uma tarde de inverno que Giovanni ouviu falar das promessas do Brasil, uma terra distante onde havia abundância de terras e oportunidades. Após muita hesitação e noites insones, sua família decidiu vender os poucos pertences que possuíam para financiar a passagem. Giovanni partiu com sua jovem esposa, Lucia, e o filho recém-nascido, Marco.

A Travessia do Oceano

A viagem começou no porto de Gênova. O navio a vapor, abarrotado de imigrantes, partiu rumo ao desconhecido. No início, havia esperança no ar, mas, com o passar dos dias, os desafios se tornaram evidentes. As condições no navio eram precárias; a comida era escassa e de má qualidade, e doenças se espalhavam rapidamente. Lucia adoeceu durante a travessia, e Giovanni teve que cuidar de Marco sozinho enquanto fazia o possível para confortar a esposa.

No entanto, entre as dificuldades, surgiram também laços. Os passageiros compartilhavam histórias, ajudavam-se mutuamente e sonhavam com um futuro melhor. Giovanni encontrou consolo em conversar com outros imigrantes, ouvindo sobre os planos e esperanças que todos tinham para a nova vida no Brasil.

A Chegada a Alfredo Chaves

Depois de semanas de tormenta, o navio finalmente aportou em Porto Alegre. Giovanni e sua família foram encaminhados para Alfredo Chaves, uma colônia que acolhia imigrantes italianos. A paisagem era diferente de tudo que já haviam visto: densas florestas, montanhas exuberantes e uma terra que parecia promissora, mas desafiadora.

Os primeiros meses foram uma mistura de dificuldade e adaptação. Giovanni trabalhou arduamente para limpar a terra e plantar as primeiras sementes. Lucia, mesmo ainda frágil, ajudava como podia, enquanto Marco começava a dar seus primeiros passos.

Com o passar dos anos, o esforço começou a dar frutos. Giovanni e Lucia construíram uma pequena casa de madeira, e a terra que antes parecia hostil começou a produzir o suficiente para alimentar a família e gerar algum excedente para venda. Eles também encontraram conforto na comunidade de outros imigrantes italianos, que se uniram para preservar suas tradições e apoiar uns aos outros.

O Legado de Giovanni Montelli

Décadas depois, a história de Giovanni tornou-se um exemplo de resiliência e determinação. Seus filhos cresceram e expandiram as terras da família, contribuindo para o desenvolvimento da região. Embora Giovanni nunca tenha retornado à Itália, sempre falava do Vêneto com saudade e orgulho, mas sem arrependimento de sua decisão de buscar uma vida melhor no Brasil.

Hoje, a história de Giovanni Montelli é contada como um tributo às centenas de famílias italianas que, com coragem e esperança, cruzaram o oceano em busca de um futuro melhor.

Nota do Autor

Esta narrativa faz parte do livro Uma Jornada de Esperança – A História de Giovanni Montelli e nasceu do desejo de preservar a memória daqueles que, movidos pela fé em um futuro melhor, deixaram suas aldeias na Itália e enfrentaram a dura travessia do oceano rumo ao Brasil.

Os nomes dos personagens foram alterados a pedido de alguns descendentes, com o objetivo de resguardar a intimidade de famílias que ainda hoje carregam em suas histórias as marcas dessa jornada. No entanto, os fatos, o contexto histórico e o espírito que os sustentou permanecem fiéis à realidade vivida por centenas de pioneiros.

Escrevi esta obra como uma homenagem. Uma forma de reconhecer a coragem daqueles homens e mulheres que, em meio à incerteza, encontraram forças para recomeçar em terras desconhecidas. Suas lutas, sacrifícios e conquistas formaram os alicerces de comunidades inteiras e ajudaram a construir parte importante da identidade cultural do Brasil.

Que este relato sirva não apenas como lembrança, mas também como gratidão. Um tributo às gerações que abriram caminho, para que hoje possamos compreender de onde viemos e valorizar a herança deixada por aqueles que, com resiliência e esperança, transformaram sonhos em realidade.

Dr. Piazzetta




quinta-feira, 3 de julho de 2025

Além do Mar

 


Além do Mar

O ano era 1885. Vittorio Mancoretti, um homem de constituição robusta e com olhos escuros e profundos que refletiam tanto a dureza da vida quanto a obstinação de quem nunca desiste, nascera e crescera na pequena e quase esquecida aldeia de San Daniele, ainda agarrada às montanhas do Friuli. Essa aldeia era um lugar onde o vento trazia histórias de gerações marcadas pelo trabalho árduo e pela resignação diante de uma terra ingrata. Vittorio era o filho mais velho de uma família de pobres camponeses, onde a única herança era o saber como arrancar de uma terra árida o pouco que bastava para viver.

Desde menino, ele compreendera que o nascer do sol trazia consigo o peso do trabalho, e que as noites eram feitas de esperanças silenciosas, muitas vezes esquecidas pelas promessas de uma Itália unificada há pouco. Aos trinta e cinco anos, seus ombros já estavam curvados pelos mesmos gestos repetidos: arar, plantar, colher – uma dança infinita que retornava apenas cansaço.

A seca, uma companheira cruel das colheitas, e a pobreza, sempre à espreita, haviam transformado a vida dos Mancoretti em um ciclo amargo de escassez. A pequena faixa de terra herdada, exausta por anos de exploração, não era mais capaz de sustentar sua esposa Bianca, uma mulher forte com olhos azuis desbotados pelo tempo, e seus dois filhos pequenos, Matteo, de sete anos, e Rosa, que tinha apenas quatro anos. Matteo já havia começado a ajudar o pai nos campos, mas seu espírito ainda estava cheio da inocência dos jogos. Rosa, por outro lado, frágil e frequentemente doente, necessitava de cuidados que muitas vezes eram mais do que podiam oferecer.

Vittorio sentia o peso de suas responsabilidades como uma corrente que o mantinha preso a um destino que parecia nunca mudar. Cada dia passado naquela terra lhe roubava um pedaço de força, mas nunca sua determinação. Dentro dele, ardia uma chama viva – uma inquietação que o levava a olhar além das montanhas de Valdorsi, sonhando com uma vida onde o trabalho não fosse apenas sobrevivência, mas uma promessa de algo mais.

As notícias de uma nova terra, rica e generosa no sul do Brasil, chegavam devagar pelos vizinhos que haviam lido cartas de parentes emigrados. Falavam de florestas vastas, rios caudalosos e promessas de terras próprias, longe dos patrões que lhes tiravam tudo. Vittorio, inicialmente cético, não podia mais ignorar a miséria crescente ao redor de sua casa.

Bianca, prática e decidida, disse ao marido:

“Se ficarmos aqui, morreremos. Se partirmos, ao menos teremos uma esperança.”

Com o coração pesado, Vittorio decidiu vender tudo o que possuíam — o velho arado, uma vaca magra e até mesmo a aliança de casamento de sua esposa.

O Vapor Umberto I

A jornada até o porto de Gênova foi uma verdadeira odisseia, cheia de dificuldades e sacrifícios. A família percorreu estradas empoeiradas e acidentadas, viajando por dias em uma carroça carregada de pertences, depois em vagões apertados de trem e, finalmente, a pé, atravessando povoados e colinas com os poucos bens que possuíam bem embrulhados.

No cais, o ambiente era uma mistura de névoa e expectativa, cheio de vozes em dialetos diferentes, carregadas de esperança e desespero. Foram agrupados com dezenas de outros emigrantes, todos com destino ao Brasil, formando uma massa de rostos ansiosos e olhares perdidos.

Umberto I, ancorado, imponente diante deles, parecia uma cidade flutuante, com suas enormes chaminés e os conveses lotados de pessoas. Para quem nunca tinha visto o mar, a visão do colosso de ferro era tão fascinante quanto assustadora. Mas o cheiro de óleo e sal, misturado ao burburinho dos passageiros já embarcados, criava uma sensação sufocante antes mesmo de entrarem no vapor.

No porão do navio, escuro, úmido e abafado, as condições eram ainda mais opressivas. Famílias inteiras estavam amontoadas em redes penduradas no teto, enquanto outras improvisavam camas com trapos e malas. A travessia do Atlântico era um verdadeiro tormento: a fome corroía os estômagos, doenças se espalhavam como fogo, e a saudade dos entes queridos deixados para trás parecia pesar mais a cada dia, com cada onda que o navio enfrentava.

Matteo, o menino de sete anos, era um raio de sol no meio da escuridão do porão. Com sua energia infinita, organizava jogos e brincadeiras, arrancando sorrisos das outras crianças e aliviando, ainda que por um momento, o peso da viagem. Rosa, sua irmã menor, porém, era frágil e, dia após dia, parecia definhar, arrancando lágrimas silenciosas de seus pais.

Certa noite, especialmente longa, enquanto o vapor deslizava sob um céu sem estrelas, Vittorio, o patriarca, estava no convés, segurando a mão de Bianca, sua esposa. Olhava para o mar escuro como se buscasse respostas na vastidão desconhecida. O peso de sua decisão apertava seu peito. E se tivesse cometido um erro irreparável? E se sua busca por uma vida melhor condenasse sua família à miséria ou, pior, à morte?

Mas Bianca, com sua força inabalável e seu olhar sereno, apertou sua mão e sussurrou:
“Mantenha a fé, meu amor. A terra que encontrarmos será a promessa de um novo começo. Basta resistirmos.”

Essas palavras ecoaram no coração de Vittorio, uma centelha de esperança no meio de uma escuridão que parecia infinita.

Os Primeiros Anos na Colônia

Quando desembarcaram no porto de Rio Grande, os Mancoretti sentiram uma mistura de alívio e incerteza. A longa travessia do Atlântico havia terminado, mas a verdadeira jornada estava apenas começando. Foram enviados para a Colônia Conde d’Eu, situada entre as verdes encostas da Serra Gaúcha.

Ao chegarem ao destino, encontraram uma terra vastíssima, mas de uma beleza selvagem: cheia de florestas densas e habitada apenas pelo silêncio das árvores e pelo canto distante dos pássaros.

Os primeiros dias foram marcados por novos desafios a cada instante. A família construiu um abrigo improvisado com troncos e folhas, um barraco rudimentar que mal os protegia das chuvas incessantes e do frio das noites. Mas, para os Mancoretti, aquele refúgio simples representava o primeiro passo para um lar. Vittorio, com o machado nas mãos, passava as manhãs derrubando árvores gigantescas e lutando contra os espinhos, enquanto Bianca, com maestria e paciência, limpava pedaços de terra para plantar repolhos e legumes.

As dificuldades pareciam insuperáveis. A comida era escassa, os braços não bastavam para todo o trabalho, e a solidão pesava como um fardo invisível. Rosa, ainda fraca após a viagem, contraiu uma febre alta que rapidamente drenou suas forças. Sem médicos ou remédios, Bianca cuidou da menina com compressas de ervas e orações todas as noites. Milagrosamente, Rosa se recuperou, mas aqueles dias de medo deixaram marcas profundas em todos os corações da família.

Foi a solidariedade dos outros colonos que trouxe algum alívio e esperança. Os recém-chegados logo entenderam que sobreviver era possível apenas com o esforço coletivo. Juntos, homens e mulheres trabalhavam para abrir trilhas na floresta, erguer casas simples e compartilhar a pouca comida que tinham. Vittorio, com sua determinação calma e talento natural para liderar, tornou-se uma referência para a comunidade. Sua voz firme e serena era como uma âncora em meio às tempestades da vida.

O Florescer da Esperança

Após cinco anos de luta contínua contra a terra, o tempo e suas próprias incertezas, a vida dos Mancoretti começou a mudar de forma. As terras, antes uma extensão selvagem de floresta densa, agora exibiam fileiras ordenadas de trigo dourado, pés de feijão verde e vinhedos carregados de uvas suculentas. O cheiro da terra fértil, conquistada com suor e perseverança, permanecia como um lembrete do que o esforço humano podia alcançar.

Vittorio, incansável, dedicou cada minuto de seus dias a construir uma casa digna para sua família. A nova casa de madeira, erguida com tábuas robustas cortadas por suas próprias mãos, era um símbolo de vitória. Na sala principal, pendurou com reverência o crucifixo que haviam trazido da Itália, um lembrete de fé e esperança que os sustentou nos anos mais difíceis. A casa, embora simples, tinha um calor humano que nenhuma mansão poderia replicar.

Matteo, agora um jovem forte e curioso, tornara-se o braço direito do pai nos campos. Mas, enquanto suas mãos calejadas trabalhavam a terra, sua mente sonhava mais alto. Ele desejava mais do que uma vida de trabalho agrícola; sonhava em criar uma escola para as crianças da colônia, oferecendo-lhes um futuro onde pudessem escrever, ler e sonhar como ele fazia. Rosa, por sua vez, havia se transformado de uma menina frágil em uma jovem cheia de vida. Sua saúde agora florescia, e sua voz, melodiosa e cheia de emoção, conquistava os corações dos colonos durante as missas na capela improvisada, um pequeno barraco decorado com flores e devoção.

Na primavera de 1890, a primeira colheita de vinho da família Mancoretti foi realizada, marcando um momento de grande satisfação. O aroma doce do mosto invadiu a casa, e os barris, armazenados no recém-construído celeiro, simbolizavam mais do que trabalho árduo: eram a promessa de um futuro próspero.

Naquela noite, sob um céu estrelado, os Mancoretti e seus vizinhos permitiram-se sonhar. Eles não estavam apenas sobrevivendo; estavam criando raízes profundas, tão sólidas quanto os vinhedos que começavam a dar frutos.

Naquele tempo, ele pensava, troquei a comodidade pelo risco, o hábito pelo desafio. E a liberdade, esta terra generosa, nos retribuiu com raízes que jamais imaginei que pudessem se aprofundar tanto.” Às vezes, ele sussurrava ao vento, como se conversasse com Bianca: “Conseguimos. Não apenas por nós, mas por todos aqueles que vieram depois.”

Com o som distante das risadas dos seus netos, que se divertiam entre as fileiras de videiras, Vittorio fechava os olhos por um momento, sentindo-se em paz. Ele sabia que havia cumprido seu dever e que o legado dos Mancoretti não era apenas a terra que ele havia cultivado, mas também os sonhos que havia plantado e as vidas que havia tocado. No coração da Serra Gaúcha, sob um céu que parecia mais luminoso do que nunca, a história de Vittorio tornava-se parte desta terra que ele tanto amava.

Nota do Autor

A história da família Mancoretti é uma ficção inspirada em muitos relatos de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX. Assim como Vittorio e Bianca, centenas de milhares de famílias deixaram suas terras natais, especialmente das regiões do Vêneto, Lombardia e Trentino-Alto Ádige, em busca de uma vida melhor. Fugiam da miséria, das crises econômicas e da falta de perspectivas que assolavam a Itália após a unificação, encontrando no Brasil um novo lar, embora cheio de desafios.

As colônias italianas no Rio Grande do Sul, como Caxias, Dona Isabel (atual Bento Gonçalves) e Conde d’Eu (hoje Garibaldi), foram fundadas em meio à mata virgem da Serra Gaúcha. Os primeiros anos desses imigrantes foram marcados por um profundo isolamento, condições de trabalho adversas e a falta de infraestrutura básica, como estradas, médicos e escolas. Muitos enfrentaram doenças, perdas pessoais e uma saudade profunda, mas, ao mesmo tempo, construíram comunidades vivas e resilientes, que moldaram a identidade cultural e econômica dessa região.

O personagem de Vittorio representa o espírito de liderança e perseverança que emergiu entre os colonos, enquanto Bianca simboliza a força e a fé que sustentavam tantas famílias. Matteo e Rosa refletem as gerações seguintes, que sonhavam e trabalhavam para ampliar os horizontes conquistados por seus pais.

A inclusão do vinho como parte do legado da família Mancoretti é uma homenagem à introdução da viticultura pelos italianos no Brasil, um feito que transformou a Serra Gaúcha em um dos principais centros vinícolas do país. Ainda hoje, as festas da colheita e as celebrações comunitárias são ricas em tradições trazidas da Itália, repletas de música, dança e gratidão pela terra que os acolheu.

Esta história é uma ode à resiliência humana, ao poder dos sonhos e à força de um legado que transcende fronteiras. Que os Mancoretti sejam um espelho para todos aqueles que, em momentos difíceis, tiveram a coragem de recomeçar e criar raízes em terras distantes, transformando o desconhecido em lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

sábado, 28 de junho de 2025

Esperança em Terras Brasileiras As Cartas de Rosa Ricciardi


  

Esperança em Terras Brasileiras

As Cartas de Rosa Ricciardi 


Era o ano de 1910 quando Rosa Ricciardi, uma jovem de 22 anos da pitoresca localidade de Monferrato, no coração da Itália, tomou a difícil decisão de cruzar o oceano rumo ao Brasil. Ao lado de seu irmão mais velho, Pietro, Rosa carregava consigo mais do que uma mala de pertences simples; trazia sonhos moldados por promessas de terras férteis e de um futuro mais próspero. A Itália, com seus campos castigados pela pobreza e pela falta de oportunidades, tornara-se um lugar de limitações, enquanto o Brasil despontava no horizonte como uma terra de possibilidades.

Monferrato, com suas colinas cobertas de vinhedos e igrejas que ecoavam a fé ancestral, era um lar impregnado de tradições. Mas, para Rosa, cada rua conhecida parecia sufocar a ânsia por algo maior. A despedida foi marcada por lágrimas contidas e abraços apertados, com a mãe entregando à filha um pequeno terço, dizendo: “Para que nunca esqueça de rezar, onde quer que esteja.

A viagem no vapor foi longa e exaustiva, repleta de desafios que Rosa não podia ter previsto. Nos primeiros dias, ela se deixava maravilhar pelas águas infinitas do oceano, mas logo vieram o enjoo, o desconforto das cabines apertadas e o cheiro constante de maresia e combustível. A comida era escassa e monótona, e o convívio forçado com dezenas de famílias desconhecidas frequentemente levava a pequenos atritos. Pietro, sempre o protetor, fazia o possível para manter o ânimo de Rosa, contando histórias da infância e descrevendo com entusiasmo as vastas terras que os aguardavam no Novo Mundo.

Apesar disso, os desafios não eram apenas físicos. Cada milha que afastava o navio da Itália parecia arrancar um pedaço do coração de Rosa. A saudade dos pais, dos amigos e do som dos sinos da igreja de Monferrato pesava mais a cada dia. Havia noites em que Rosa, sob a luz pálida da lua, se perguntava se o sacrifício valeria a pena. Contudo, seu espírito resiliente, alimentado pela fé e pelo sonho de um recomeço, a fazia prometer a si mesma que transformaria o sofrimento em força.

Quando finalmente avistaram o porto do Rio de Janeiro, o coração de Rosa se encheu de esperança e apreensão. A exuberância da paisagem tropical, com montanhas verdejantes e palmeiras que pareciam tocar o céu, era deslumbrante, mas o desconhecido também era intimidante. O desembarque foi apenas o início de uma jornada ainda mais árdua. Logo na manhã seguinte embarcaram em outro navio, o Maranhão, rumo ao porto de Santos. 

As promessas de terras férteis escondiam as dificuldades de adaptarem-se a uma realidade completamente nova. A barreira do idioma, o isolamento nas colônias e a luta diária para desbravar e cultivar a terra eram desafios que apenas os mais determinados podiam superar. Rosa sabia que a jornada seria longa, mas também acreditava que, com coragem e união, ela e Pietro conseguiriam transformar aquele pedaço de terra estrangeira em um lar.

Ao desembarcarem no porto de Santos, Rosa e Pietro foram encaminhados para trabalhar nas plantações de café em uma grande propriedade no interior do estado, próxima à cidade de Campinas. As condições na fazenda eram duras: alojamentos precários, que antes tinham servido de senzala, as longas jornadas sob o sol escaldante e uma comunicação limitada com a família na Itália. A saudade era uma constante em sua vida, e Rosa encontrava conforto escrevendo cartas aos pais, relatando sua rotina e seus sentimentos.

Em uma de suas cartas, Rosa escreveu:

"Queridos pais, aqui estou, escrevendo neste pedaço de papel humilde, para responder à vossa tão esperada carta. Ler vossas palavras foi um consolo para meu coração. Saber que todos estão com boa saúde – o senhor, querido pai, a senhora, querida mãe, minhas irmãs Mariuccia e Angelina, meus tios, sobrinhos e até mesmo a pequena Gostina – encheu-me de alegria. Mas, ah, como sinto falta de vossas vozes e de vossos rostos! Imaginem que esperamos ansiosos todas as manhãs pelo retrato que prometestes enviar. Mesmo que seja apenas uma imagem em papel, será como vos rever após cem anos de distância, embora tenham se passado apenas dezesseis meses."

Apesar de sua saudade, Rosa não deixava de reconhecer as pequenas vitórias conquistadas em terras brasileiras. A cada mês, ela e Pietro conseguiam juntar um pouco mais de dinheiro. Sonhavam com o dia em que poderiam adquirir um pedaço de terra próprio e começar uma nova vida, longe das plantações dos fazendeiros, onde não se sentiam em casa. Dizia que deveriam mudar para outro local, onde o clima e o povo eram mais parecidos com a terra natal. Mas, primeiro precisavam cumprir até o fim o contrato firmado e pagar todas as dívidas contraídas com o patrão.

Em uma noite chuvosa, Rosa escreveu outra carta emocionante:

"Queridos pais, hoje escrevo com o coração apertado, mas também esperançoso. Pietro também conseguiu trabalho,  e já estamos economizando para comprar uma pequena propriedade, se conseguirmos, no Rio Grande do Sul. As dificuldades aqui são muitas, mas a fé e o desejo de melhorar nos sustentam. Há dias em que choro de saudade, mas penso em vossas palavras e em vossos rostos, que um dia verei novamente, nem que seja apenas em sonhos."

Cinco anos depois, Rosa e Pietro finalmente realizaram o sonho de suas vidas, estabelecendo-se em uma região mais ao sul do Brasil. Com as economias cuidadosamente poupadas ao longo dos anos, adquiriram um lote de terra nos arredores de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. O terreno, que pertencia a uma imigrante italiana pioneira, viúva recente e sem filhos, que decidira abandonar tudo e retornar à sua terra natal, já possuía um belo parreiral em plena produção. Ali, o casal deu início a uma nova fase: ampliaram o cultivo de videiras e dedicaram-se com paixão à arte da vinicultura, transformando uvas em vinho e sonhos em realidade. A comunidade italiana na região era mais unida, e Rosa logo fez amigos que se tornaram sua nova família. Ela organizava festas tradicionais e compartilhava suas receitas italianas, mantendo vivas as memórias de sua terra natal.

Anos mais tarde, Rosa enviou uma carta à Itália, relatando sua nova vida:

"Queridos pais, escrevo agora com uma alegria que mal consigo conter. Nossa terra em Caxias prospera, e o vinho que produzimos já é conhecido na região. As dificuldades do início foram muitas, mas sinto que todo o sacrifício valeu a pena. Aqui, em nosso pequeno pedaço de chão, encontro a paz e a esperança que tanto busquei. Pietro está casado, e eu também espero, um dia, formar minha própria família. Rezo para que um dia possamos nos reunir novamente, seja aqui ou na Itália, mas enquanto isso, carrego-vos sempre em meu coração."

Rosa Ricciardi pelo seu espírito comunitário tornou-se um símbolo de resistência e coragem na cidade. Sua história, como a de muitos imigrantes italianos, é uma lembrança do poder da esperança e do esforço em busca de uma vida melhor. Embora a saudade fosse uma constante, Rosa encontrou no sul do Brasil não apenas um novo lar, mas também uma razão para seguir em frente e construir um futuro cheio de possibilidades.

Nota do Autor


"Esperança em Terras Brasileiras: As Cartas de Rosa Ricciardi" é uma obra de ficção concebida pela imaginação do autor, mas que encontra suas raízes em eventos históricos reais. A história de Rosa Ricciardi, embora fictícia, é um reflexo fiel das experiências vividas por milhares de imigrantes italianos que, no final do século XIX e início do século XX, deixaram sua terra natal em busca de melhores oportunidades no Brasil. Os desafios enfrentados por Rosa e seu irmão Pietro, como a longa travessia oceânica, as duras condições de trabalho nas plantações de café e a saudade imensurável da família e das tradições italianas, são representativos das lutas e esperanças desses pioneiros. Esses homens e mulheres, impulsionados pela fé e pela determinação, desempenharam um papel fundamental na construção das comunidades italianas no Brasil, especialmente em regiões como a Serra Gaúcha. As cartas de Rosa, que compõem o fio condutor desta narrativa, simbolizam não apenas sua ligação com o passado, mas também a perseverança em manter vivas as memórias e os laços afetivos, mesmo em meio às dificuldades de um novo mundo. Estas linhas são apenas um pequeno resumo do livro que leva o mesmo nome. Na obra completa, o leitor poderá mergulhar mais profundamente nos detalhes da jornada de Rosa, seus dilemas emocionais, a relação com sua terra natal e a construção de um futuro que, embora repleto de desafios, é marcado pela superação e pelo triunfo da esperança. Este livro é dedicado a todos os descendentes de imigrantes que, como Rosa, carregam em suas histórias o legado de coragem, sacrifício e resiliência de seus antepassados. Que estas páginas sirvam de homenagem à memória de tantas vidas que moldaram a história de nossa nação.

Dr. Piazzetta

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Horizontes de Esperança

 


Horizontes de Esperança

Marmora, província de Cuneo em 1883

Um romance histórico inspirado enm fatos reais


Giovanni Morandello nasceu em 1883 na pacata vila de Marmora, situada a poucos quilômetros de Dronero, na província de Cuneo. A família Morandello era composta por camponeses humildes, que dependiam da agricultura de subsistência para sobreviver. Giovanni, desde muito jovem, conheceu o peso da responsabilidade. Aos dezesseis anos, seguiu os passos de muitos jovens da região e tornou-se um emigrante sazonal, viajando para a França para trabalhar nas colheitas e economizar o máximo possível.

A vida na casa dos Morandello seguia um ciclo imutável: primavera e verão eram dedicados ao plantio e à colheita nos campos da família, enquanto o inverno levava Giovanni de volta à França, onde enfrentava jornadas árduas no frio intenso. Todo o dinheiro que ele ganhava era entregue aos pais, que o utilizavam para manter a família à tona. Contudo, o passar dos anos trouxe um sentimento crescente de insatisfação e inquietação a Giovanni.

Em 1905, aos 22 anos, Giovanni tomou uma decisão que mudaria sua vida para sempre. Dois conhecidos de Marmora, que haviam emigrado para o Brasil, enviaram cartas cheias de promessas sobre as oportunidades no novo continente. Eles afirmavam que, com trabalho duro, era possível construir um futuro melhor, longe da pobreza e das restrições do Piemonte. Giovanni não hesitou. Conversou com os pais, que venderam uma vaca para financiar sua viagem, e decidiu partir.

Giovanni não viajou sozinho. Na mesma caravana estavam Rosa e Teresa, duas jovens de Marmora. Rosa queria reencontrar o noivo, que trabalhava como pedreiro em São Paulo, enquanto Teresa buscava escapar das perspectivas limitadas oferecidas às mulheres de sua aldeia. Os três partiram a pé em direção a Nice, onde pegaram um trem para Le Havre. Ali, no movimentado porto, embarcaram no navio “La Bourgogne” em uma manhã fria de janeiro de 1906.

A travessia do Atlântico foi tudo menos tranquila. As tempestades de inverno agitavam o mar com fúria, e o balanço constante do navio deixava muitos passageiros debilitados. Giovanni, no entanto, parecia incansável. Ele ajudava Rosa e Teresa quando elas ficavam doentes, mantendo a esperança viva com histórias sobre o que encontrariam do outro lado do oceano.

Ao chegar ai Porto do Rio de Janeiro, o trio passou pelo controle de imigração na Ilha das Flores. Giovanni carregava pouco dinheiro mas sua saúde robusta e disposição para o trabalho o ajudaram a atravessar o processo sem maiores problemas. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, Giovanni seguiu viagem para São Paulo, onde ouviu falar de empregos na construção civil.

São Paulo era um mundo completamente diferente de Marmora. Giovanni ficou fascinado e assustado com o tamanho da cidade, mas não deixou que isso o intimidasse. Trabalhou em várias obras, levantando pontes e prédios que moldariam o horizonte da metrópole. Foi nesse período que conheceu Luigi Bruni, outro imigrante italiano, que lhe falou sobre oportunidades no sul do Brasil. Decididos a buscar melhores condições, Giovanni e Luigi embarcaram em um outro navio no porto de Santos rumo ao Rio Grande do Sul.

No Sul, Giovanni enfrentou os maiores desafios de sua vida. Em Porto Alegre contratado para trabalhar na construção de uma barragem, um projeto colossal em meio à paisagem semi tropical ao lado do rio Guaíba. Em um trágico incidente, uma explosão acidental de dinamite matou dois colegas de trabalho, lembrando Giovanni dos perigos constantes daquele ambiente. Ainda assim, ele perseverou, economizando cada centavo com o sonho de voltar para a Itália.

Mais tarde, Giovanni se juntou a uma equipe de operários que instalava trilhos para a expansão da ferrovia que ligava o Rio Grande do Sul com resto do país. Embora o trabalho fosse exaustivo, ele encontrou conforto no fato de estar ao ar livre, rodeado por montanhas e vastas planícies. Durante as noites, escrevia cartas para sua amada, Maria, que havia prometido esperá-lo em Marmora.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, Giovanni decidiu que era hora de retornar à Itália. Com uma pequena economia acumulada, ele embarcou em um navio em direção ao Rio de Janeiro e dali para Gênova. No entanto, ao chegar, encontrou um país devastado pela inflação e pela iminente guerra. O dinheiro que ele havia economizado com tanto sacrifício perdeu rapidamente o valor.

Giovanni voltou a Marmora, onde casou-se com Maria e retomou a vida de camponês. Devido a sequela da ferida em uma das pernas devido a explosão de dinamite na barragem brasileira, ele não foi chamado para servir o exército. Apesar das dificuldades, ele nunca perdeu a esperança. Contava histórias sobre suas aventuras no Brasil para seus filhos e netos, lembrando-os de que a coragem e a resiliência eram as maiores riquezas que um homem podia possuir.


Nota do Autor

A história de Horizontes de Esperança nasceu do desejo de dar voz aos milhares de imigrantes italianos que deixaram suas terras em busca de um futuro melhor no Brasil. Embora este romance seja uma obra de ficção, ele é profundamente inspirado nas experiências reais dos pioneiros que enfrentaram desafios imensuráveis, desde a travessia do Atlântico até a luta por dignidade e progresso em terras desconhecidas.

Giovanni Morandello representa o espírito resiliente de tantas pessoas que, como ele, partiram de vilarejos como Marmora, na província de Cuneo, deixando para trás famílias, histórias e raízes. Ao longo de sua jornada, ele se depara com dificuldades que refletem as condições de muitos imigrantes: trabalhos árduos, a distância de seus entes queridos e a constante busca por um lugar no mundo.

Minha intenção ao escrever este romance foi trazer à tona não apenas as adversidades, mas também a coragem, a esperança e os pequenos triunfos que moldaram essas vidas e ajudaram a construir a história do Brasil. Que esta obra seja um tributo aos sonhos e sacrifícios daqueles que cruzaram oceanos carregando consigo a força de sua cultura e a esperança de dias melhores.

Dr. Piazzetta



terça-feira, 6 de maio de 2025

Horizontes Perdidos: A Tragédia de Bianca Mareni

 

Horizontes Perdidos: A Tragédia de Bianca Mareni


Bianca Mareni nasceu em Borgo Rotondo, uma aldeia escondida entre as montanhas da província de Savona, em 1888. Filha mais nova de um carpinteiro, Giacomo Mareni, e de sua esposa, Teresa, Bianca cresceu em uma família marcada pela pobreza e pela dura realidade de um país dividido entre modernidade e tradição. Desde cedo, aprendeu o peso do trabalho doméstico e os segredos da costura, habilidades que mais tarde se tornariam sua única fonte de sobrevivência.

Em 1915, enquanto a Europa era consumida pelas chamas da Primeira Guerra Mundial, Bianca decidiu abandonar a Itália. Aos 27 anos, partiu acompanhada de seu irmão mais velho, Ernesto, e de sua cunhada, Maria Ricci. Os três embarcaram em um trem rumo à cidade portuária de Gênova, onde o navio Santa Lucia os aguardava. A atmosfera na estação era carregada de emoção; famílias se despediam entre lágrimas e esperanças silenciosas, enquanto os emigrantes carregavam suas malas repletas de sonhos e saudades.

A bordo do Santa Lucia, Bianca enfrentou uma jornada que testou os limites de sua coragem. O Atlântico, em sua fúria habitual, ergueu ondas que pareciam querer engolir o navio. Os passageiros, comprimidos em compartimentos estreitos, lutavam contra o enjoo e o desespero. Bianca recordaria mais tarde como o cheiro de sal e vômito permeava o ar, enquanto o choro das crianças se misturava às preces dos mais velhos. “Cada balanço do navio era um lembrete de nossa fragilidade”, diria ela em uma carta.

Finalmente, após quase um mês de travessia, o Santa Lucia atracou em Nova York. Bianca, com apenas 40 dólares e uma pequena mala, passou pelos rigorosos exames em Ellis Island. Ali, convencida por outras mulheres, declarou ser costureira – um ofício que esperava lhe garantir emprego em terras estrangeiras.

Bianca e sua família seguiram para San Francisco, onde parentes os aguardavam. A cidade, com suas colinas ondulantes e bondes barulhentos, oferecia um contraste agudo à tranquilidade das montanhas de Borgo Rotondo. Bianca encontrou trabalho em uma fábrica de calçados, onde a jornada de 12 horas era pontuada pelo som ensurdecedor das máquinas e pelo cheiro acre de couro. As condições insalubres logo cobraram seu preço: uma tosse persistente começou a atormentá-la, acompanhada de febre e fraqueza.

Em 1918, Bianca foi diagnosticada com tuberculose. O tratamento rudimentar oferecido em um hospital local foi insuficiente, e as autoridades americanas, seguindo as leis de imigração da época, decidiram repatriá-la. Mais uma vez, Bianca embarcou em um navio, agora sem esperanças e com um futuro incerto.

De volta a Borgo Rotondo, Bianca foi acolhida pela família, que fez de tudo para cuidar dela. Ernesto e Maria, por outro lado, permaneceram nos Estados Unidos, estabelecendo-se em um rancho no interior da Califórnia. Eles nunca mais retornariam à Itália, enquanto Bianca enfrentava os últimos anos de sua vida lutando contra a doença.

Em 1921, aos 33 anos, Bianca faleceu, deixando para trás uma história de sacrifício e resiliência. Sua jornada, como a de tantos outros emigrantes, foi marcada pela busca de um sonho que, para muitos, nunca se concretizou. Hoje, seu nome está gravado em uma lápide simples no pequeno cemitério de Borgo Rotondo, como um silencioso tributo a uma vida interrompida pelas adversidades de um mundo em transformação.


Nota do Autor

"Horizontes Perdidos: A Tragédia de Bianca Mareni" é uma obra que nasceu do desejo de dar voz aos incontáveis emigrantes que, como Bianca, enfrentaram os desafios de um mundo dividido por guerras, preconceitos e desigualdades sociais. Essa narrativa mesmo que fictícia é uma homenagem aos sonhos despedaçados, às lutas invisíveis e à resiliência de quem buscou além do horizonte uma promessa de vida melhor, muitas vezes paga com o preço da própria saúde e dignidade. Ao explorar a história de Bianca Mareni, busquei retratar não apenas os fatos que marcaram sua jornada, mas também as emoções e os dilemas que permeiam a experiência do exílio. Suas decisões, carregadas de coragem e desespero, representam uma geração que foi arrancada de suas raízes em nome de um futuro incerto. Embora Bianca não tenha alcançado o sonho americano, sua história reflete o heroísmo silencioso de tantas vidas interrompidas.

Escrever esta obra foi também um exercício de reflexão sobre as cicatrizes que a emigração deixa, tanto nos que partem quanto nos que ficam. Espero que os leitores encontrem em Bianca uma figura que transcende sua época, um testemunho da fragilidade e da força humanas diante das adversidades.

Agradeço a cada leitor que se dispõe a ouvir a voz de Bianca e a reviver, por meio dela, as esperanças e dores que ainda ecoam em tantas histórias de emigração ao redor do mundo. Que seu nome, gravado em uma lápide simples em Borgo Rotondo, inspire empatia e memória.

Dr. Piazzetta

domingo, 20 de abril de 2025

A Vida do Dr. Martino: Um Médico Italiano no Brasil - Capítolo 1

 


A Vida do Dr. Martino: Um Médico Italiano no Brasil


Era o ano de 1898. O século XIX agonizava, e o novo milênio despontava no horizonte com promessas incertas, mas carregadas de esperança para os habitantes da região do Vêneto. A expectativa permeava o ar, tingida pelo desejo de dias melhores, como um fiapo de luz que se infiltra por entre as fendas de uma porta fechada. Trinta anos haviam transcorrido desde o fim das guerras de independência, cujo rastro de sangue e destruição marcara cada canto da nação unificada. Ainda assim, as feridas permaneciam abertas, ecoando na vida cotidiana de um povo que lutava para sobreviver.

No Vêneto, como em tantas outras regiões italianas, a situação era sombria. O país ainda permanecia atrasado em comparação à maioria das nações europeias, enredado em um ciclo de carestia e dificuldades. O custo de vida subia sem controle, alimentado por colheitas fracassadas devido às inclemências climáticas, que se tornavam mais frequentes e severas. Fenômenos naturais, antes suportáveis, agora pareciam conspirar contra os agricultores. Somava-se a isso a queda nos preços dos cereais, sufocados pela abundância de importações vindas de países como os Estados Unidos e o Leste Europeu. O progresso industrial, tão desejado, continuava a ser um sonho distante, enquanto métodos antiquados de produção mantinham a Itália prisioneira de seu próprio passado.

Nas cidades, a pressão social crescia como uma tempestade inevitável. O aumento populacional dos últimos vinte e cinco anos sobrecarregava as áreas urbanas, que não conseguiam absorver a massa de trabalhadores desempregados que fugia dos campos. O êxodo em direção ao Novo Mundo, iniciado há mais de duas décadas, tornara-se uma constante. Milhões de italianos desesperados atravessavam o Atlântico, em busca de um futuro melhor em terras como Brasil, Argentina e Estados Unidos. Esses emigrantes não eram apenas camponeses pobres ou artesãos famintos. Entre eles, encontravam-se também membros da classe média — pessoas com casas e, em alguns casos, trabalhos, ainda que mal remunerados.

Foi nesse cenário de incertezas que Martino, um jovem médico de 32 anos, decidiu abandonar tudo e unir-se à corrente humana que fluía para o Novo Mundo. Formado com distinção na renomada Faculdade de Medicina da Universidade de Pádua, e com especializações em cirurgia geral e obstetrícia pela Universidade de Nápoles, Martino tinha o futuro garantido em sua terra natal. No entanto, sua alma inquieta ansiava por algo maior. Nascido em 1866, em Nápoles, ele era fruto de uma família abastada. Seu pai, um advogado agora aposentado, construíra uma fortuna com um prestigiado escritório de advocacia. Sua mãe, de origem veneta, era uma rica herdeira de comerciantes venezianos cujas propriedades rurais se estendiam pelos arredores de Treviso.

Martino herdara o espírito aventureiro de seus antepassados navegadores. Entretanto, não foi o desejo de explorar o desconhecido que o levou a tomar essa decisão, mas sim seu lado humanitário. Sensível às dores alheias, ele não podia ignorar a miséria que via diariamente. Os trens que partiam lotados de camponeses famintos em direção ao porto de Gênova eram testemunhas silenciosas de um drama humano que o comovia profundamente. Certo dia, movido por sua curiosidade insaciável, decidiu acompanhar um desses trens até o porto. A cena que encontrou ali mudou sua vida. Homens, mulheres e crianças, com rostos marcados pela exaustão e esperança, aguardavam o embarque rumo ao desconhecido.

Foi nesse momento que Martino tomou sua decisão. Soubera da existência de colônias formadas quase exclusivamente por imigrantes venetos no sul do Brasil. Histórias de sofrimento chegavam a seus ouvidos: cidades onde não havia médicos suficientes, e muitos morriam por falta de atendimento adequado. O Brasil, com sua vastidão e riquezas, parecia uma terra de oportunidades, mas também de desafios imensuráveis.

Ao retornar, procurou seu pai para compartilhar a decisão. O velho advogado, um homem pragmático, reagiu com ceticismo inicial. Tinha planejado um futuro confortável para o filho, comprando-lhe um espaço privilegiado para estabelecer seu consultório médico na cidade. Contudo, ao ouvir os argumentos de Martino, reconheceu a nobreza de sua intenção. Com o apoio da esposa, não apenas deu sua bênção, mas também antecipou parte da herança familiar para que o jovem tivesse os recursos necessários.

Agora, com a bênção dos pais e os meios financeiros assegurados, Martino preparava-se para sua nova jornada. O destino era uma colônia no sul do Brasil, recentemente elevada à condição de cidade, com apenas nove anos de existência, mas em franco desenvolvimento. Ali, esperava não apenas exercer sua profissão, mas também transformar vidas e, quem sabe, encontrar seu próprio caminho em meio às incertezas de um mundo em mudança.


Nota do Autor

"A Vida do Dr. Martino: Um Médico Italiano no Brasil" é um romance fictício inspirado no rico contexto histórico da imigração italiana para o Brasil no final do século XIX. Apesar de os cenários, eventos históricos e circunstâncias socioeconômicas descritos serem baseados em fatos reais, os personagens e suas histórias são inteiramente fruto da imaginação do autor.

Este livro busca explorar a força humana em meio a adversidades e a resiliência de indivíduos que deixaram suas terras natais em busca de um futuro melhor. O protagonista, Dr. Martino, é uma figura fictícia, mas sua jornada representa os desafios enfrentados por muitos que embarcaram nessa travessia para terras desconhecidas, carregando consigo sonhos, esperanças e o desejo de reconstruir suas vidas.

Ao dar vida a esta narrativa, espero que o leitor seja transportado para uma época de transformações, desafios e conquistas. Que possam sentir o peso das decisões que moldaram gerações, a saudade que permeava os corações e a determinação que levava homens e mulheres a desafiar o desconhecido.

Este é, acima de tudo, um tributo à coragem, à humanidade e ao espírito de aventura que definiram um capítulo tão significativo na história de dois países, Itália e Brasil, cujos destinos se entrelaçaram para sempre através da imigração.

Com gratidão por embarcar nesta jornada,

Dr. Piazzetta



segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Travessia de Domenico Valtieri


A Travessia de Domenico Valtieri


Domenico Valtieri tinha 31 anos quando decidiu abandonar sua cidadezinha natal, San Pietro di Barbozza, uma pequena localidade nas belas colinas de Valdobbiadene. A terra na verdade era boa, mas, naqueles tempos, em finais do século XIX, o trabalho era muito escasso, e o futuro para ele, sua esposa Elena e a filha pequena, Maria, parecia cada vez mais sombrio. Toda a zona rural do Veneto sofria com safras magras, inclemência do clima, preço baixo dos grãos, desemprego cada vez maior e fome. As cartas de parentes e vizinhos que já haviam emigrado para o Brasil falavam de terras férteis, acessíveis e oportunidades, ainda que conquistadas com muito esforço. Para Domenico, o apelo de um novo começo era irresistível.

No outono de 1892, ele vendeu tudo o que possuía: algumas galinhas, uma velha mula e utensílios de arado. Com o dinheiro arrecadado e um empréstimo feito a um comerciante local, comprou passagens para o vapor L'Esperanza, que partiria do porto de Gênova rumo ao Rio de Janeiro. A viagem seria longa e cheia de incertezas, mas Domenico acreditava que nada poderia ser pior do que o desespero de permanecer na miséria.

A realidade da travessia revelou-se cruel. Na terceira classe, onde estavam Domenico e sua família, havia uma mistura de corpos, vozes e odores. Homens, mulheres e crianças dividiam espaços apertados, com camas de madeira dura e pouca ventilação. Os dias no mar eram monótonos, interrompidos apenas por tempestades que traziam momentos de tensão. À noite, o som de tosses persistentes, sussurros de orações e o choro de crianças famintas preenchiam o ambiente. Elena tentava distrair Maria com histórias sobre a nova vida que os aguardava, enquanto Domenico, observador, via na travessia uma metáfora de sua luta: um intervalo entre o sofrimento deixado para trás e a esperança que brilhava no horizonte.

Porém, a jornada foi mais implacável do que poderiam imaginar. Uma epidemia de sarampo se espalhou entre as crianças nos porões do navio, e Maria foi uma das primeiras a adoecer. Domenico e Elena fizeram tudo o que podiam, mas a falta de medicamentos e atendimento transformou cada dia em uma batalha perdida. Maria faleceu uma semana antes da chegada ao Brasil. Seu corpo foi dolorosamente sepultado no mar, enrolado em uma mortalha feita de lençóis, amarrada com cordas envolta ao corpo, seguido de uma despedida silenciosa e devastadora, que marcou para sempre a memória dos pais e de tantos outros passageiros e tripulantes que presenciaram aquela impressionante cena.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, Domenico e Elena encontraram um mundo novo, mas longe do que haviam sonhado. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, foram enviados para o sul do país, para uma colônia agrícola no interior do Rio Grande do Sul. A viagem até lá foi mais uma prova de resistência: dias de viagem rio acima, em pequenos bracos, depois em carroças puxadas por bois, atravessando picadas lamacentas e enfrentando o frio das serras. Quando finalmente chegaram à colônia de Dona Isabel, encontraram uma paisagem desafiadora, mas promissora: florestas densas, rios caudalosos e terras férteis, que exigiriam esforço para serem cultivadas.

A vida na colônia começou de forma precária. Domenico, junto a outros colonos, derrubava árvores para construir uma casa de madeira simples. Enquanto isso, Elena cuidava do pouco que tinham e preparava o terreno para a nova rotina. Não havia médicos por perto, e o isolamento entre as famílias fazia da saudade uma presença constante. A lembrança de Maria e dos parentes deixados na Itália era dolorosa, mas o trabalho árduo mantinha o casal focado no futuro.

Com o tempo, os sacrifícios começaram a dar frutos. Domenico conseguiu quitar as terras adquiridas do governo e expandir sua propriedade. Tinham finalmente conseguido realizar o sonho da propriedade. Ele plantou videiras, como fazia na sua terra natal que, anos depois, deram origem a um grande vinhedo, tornando-se um dos pioneiros na produção de vinho da região. A família cresceu com o nascimento de novos filhos, e os Valtieri se tornaram um símbolo de resiliência e trabalho árduo na colônia.

Nos momentos de descanso, Domenico gostava de caminhar entre as videiras, contemplando os cachos de uvas balançando ao vento. Sentia orgulho do que havia construído, mas também carregava o peso das perdas do passado. Ele sabia que a vida na colônia era difícil, mas representava uma vitória sobre as adversidades.

O sacrifício de Maria e de tantas outras crianças que não sobreviveram à travessia não foi em vão. Para Domenico, a saga dos imigrantes era uma lição sobre a força e a fragilidade humanas. Cada um era, ao mesmo tempo, testemunha e vítima de um sistema que prometia um futuro brilhante, mas frequentemente entregava abandono e exploração.

Anos depois, já bem estabelecido, Domenico costumava sentar no alpendre de sua casa e contemplar os campos cultivados. Ali, refletia sobre os sacrifícios feitos, os sonhos interrompidos e as vidas perdidas durante a travessia. Sua história, como a de tantos outros, era um testemunho de coragem e resiliência. Movidos pela necessidade e pela esperança, ele e Elena ousaram atravessar o oceano, construindo uma nova chance para si e para os filhos que viriam.



domingo, 16 de fevereiro de 2025

La Polenta


 

La Polenta


Nata da la farina de mìlio portà sècoli prima da le Amèriche, la ze diventà el sostegno indispensàbile de un pópolo che gavea da afrontar le adversità del sècolo XIX, in tempi de guerre, fame e misèria. Ntei campi sfinì e sule tole poarete de le famèie contadine, la polenta regnava come pan de i poareti, preparà con aqua e sal, cusinà pian pianin inte le caliere de rame o fero che portava el peso de la tradission. Gialla o bianca, secondo la provìnsia, lei ocupava el sentro de i pasti, a volte servida ferma, taiada su un panaro in tole de legno; brustolà, con na crosta crocante che portava conforto ´ntei zorni duri; o compagnà, quando se podea, de formai, carni o sughi semplici, anca pena mescolà con qualche verdure del orto.

Tutavia, la so presenssa contìnua ´ntele tole poarete portava un paradosso crudele. Par i pì poareti, la polenta la zera l’ùnico magnar disponibile, e, consumada sensa variassion o complementi, la ze diventà anca un peso. El mílio, spesso el zera mufà o vècio, no el gavea le sostanse necessàrie, e la mancansa de vitamine, spessialmente la niassina, la gavea portà la pelagra. Sta malatia devastante, segnalà da lesioni ´ntela pele, problemi mentali e fìsici, la colpì forte le provìncie del Veneto, come Vicensa, Treviso e Verona, portando miliaia de persone ´ntei pelagrosari, ospedali par curar chi che ne sofriva. No obstante, la polenta restava quel che empieniva i stomeghi vodi e dava forsa ai corpi strachi de chi laorava ´ntei campi.

Atorno al fogolaro, ndove la caliera cusinava pian pianin, le mare le girava la grande cuciara de legno con man calose, mentre le contava stòrie de tempi miliori. La polenta zera ben pì che un magnar; la zera sìmbolo de resiliensa e identità, un legame che univa el presente duro con el passato de tradission, mantenendo viva la forsa del pópolo. Ogni pasto el zera un ato de resistensa, un rito che confermava el legame con la tera e la speransa che zorni miliori vegnisse.

Con el passar de i ani, con le condission de vita miliorà e con na diversità alimentare pì grande, la polenta la ze passà da èsser solo na necessità a diventar un orgòglio. Incòi lei risplende sule tole festive, compagnà de piati rafinà come carni de cassa, funghi e pesse, ma lei porta ancora con sé la dignità del so passato.

Pì che un magnar, la polenta la ze sìmbolo de la forsa e de la lota de un pópolo che, anca davanti a le pì grandi adversità, el ga trovà in ela un filo de speransa. In ogni cuciarada ghe ze la memòria de chi che ze vignesto prima, un testimónio de superassion e de la simplissità che se trasforma in fortesa. Da i tempi in cui la zera solo sopravivensa ai zorni in cui la ze selebrà, la polenta ze na stòria che rimbomba in ogni famèia véneta, na prova che la resiliensa nasse anca da le cose pì semplici.



terça-feira, 5 de novembro de 2024

Fin de 'l Sècolo XIX - Perìodo de Povertà Granda in Itàlia

 



Fin de 'l Sècolo XIX - Perìodo de Povertà Granda in Itàlia


In Itàlia a la fin del sècolo XIX, la misèria e 'l fame i zera presentà in miàia de famèie, dal nord al sud de la penìnsula. Segundo la "Investigassion Agrària Jacini", che la parlava del mondo agrìcolo italian, la ga dito:

"Ne i vali de le Alpi e de i Apenini, ne le pianure del sud de Itàlia e anca in qualche provìnsia pì ben coltivada del nord, ghe ze catà 'sti casoti ndove, in una stansa 'nfumegà, sensa ària e sensa lume, i vive inseme omo, capre, porchi e gali. E 'sti casoti i se conta forse in sentenare de miàia per tuto el Paese."

Sempre ne l'istessa investigassion agrària Jacini ghe se trova anca 'sto raconto:

"La stala ze la parte principale de la casa del contadino picinin; ze anca el posto par el bestiame, el salon e el santoàrio de la famèia. Ze nte la stala che lori passa i lunghi inverni; ze là che la dona de casa la ciama parenti e amici; ze là che la famèia laora, se diverte, magna e dorme. Mentre le done le cusìa, le ramendàa e giràa el fuso, i òmeni i se meteva a zugar a carte o a contar stòrie"

Ancora dai raconti de 'sta investigassion:

"El consumo essessivo e quasi esclusivo de polenta, con na mèdia de 33 chili per persona l'ano, qualche volta anca de pì ´ntele provìnsie del nord, portava spesso a la pelagra, che la zera conossuda come malatia dei '3 D': dermatite, diarrea e demènsia. El pì grande ospedal dei pelagrosi in Itàlia el zera a Mogliano Veneto, in provìnsia de Treviso."

De novo par 'sta investigassion de l'època:

"Xe tanto dura la vita ´nte la pianura padana e ´nte la zona de la pedemontana vèneta e lombarda che, nei posti con i vigneti, i piceni contadini i ghe mete el vin a 'sta dieta poara, fata de polenta sensa gusto tuti i giorni. Par darghe un poco de gusto, ogni membro de la fameja ghe passava ‘na volta sora un toco de arenche affumegà. ‘El vin fa sangue,’ i diseva. Secòndo la "Revista Vèneta de Scienze Mèdiche", sitada da Eduardo Pittalis nel so libro "Dale Tre Venéssie al Nordest", fra i sècoli XIX e XX, in una ricerca su dodose mila studenti de elementari in provìnsia, solo tre mila no beve, cinquemila beve robe alte de gradassion alcòlica e nove mìa beve de continuo vin, con el meso che ne abusava."

La povertà, negli ùltimi desseni del sècolo XIX, la ze tanta, spiega Marco Porcella nel libro "La fatica e la Mèrica", che una gran fonte de guadagno par le famèie de contadini zera el sacrifìssio de le done (le bàlie) par crescer i orfani al posto del stato. Spiega:

"I zera òrfani, fiòli quasi sempre ilegìtimi, che no mancava mai ne le grandi sità, abandonà ne le "Rode" (degli orfanatèi). Nei paesi picini, ndove no ghe zera "Rode" dei orfanatèi, i putéi i zera abandonà sui scalini de le cese, sui porti de i pàroci o anca in man de le ostetriche. Tanti de lori i zera denutriti, infredolì, e qualche volta nati prematuri, i muriva ntei primi zorni. In perìodo sensa epidemie, ghe se calculava una mortalità infantil del 33%. Nte le sità, la maior parte de lori i zera abandonà parchè se credeva che 'el fiol de la colpa' portasse malatie a le bàlie e dunque ai so fiòi, tipo la sifìlide, diagnosticà come causa de morte. Dopo un ano, el 'fiol de late' diventava 'fiol de pan' e el podèa vegner su fino a dodese ani, dopodiché el ospedale se ne disinteressava."

Nei racconti del mèdico Luigi Alpago Novello, che laorava tra i picini agricoltori in provìnsia de Treviso, a la metà del sécolo XIX, el ze descrito come, par famèie poare, ze paragonata l’importanza de i membri maladi rispeto ai animali che ghe davea sostegno. El dotore disi:

"I membri de na famèia i ze valorà par quel che i podea far de ben par tuto el grupo. La morte de chi no pol laorar, o de chi ze malato e restà sempre in leto, ze meno importante de un animale grande, no dirò una vaca o un boe, ma anca solo na pecora o na capra. Se un boe se ga amalà, la famèia la ze disperà e core dal veterinàrio – se ze gratis – o da un curador, e i fa tuto quel che el disi. Tanti i va anca tanto distante par portar el veterinàrio par 'l vitel che no ga la voia de magnar'. Invese i làssia che i putéi i vaga a mal e i muri sensa ciamar 'l dotore, e tante volte no i segue gnanca quel che el ghe ordinà."

I progresi de la medicina e le campagne de igiene par tuto el Véneto, sopratuto durante la dominassion austrìaca, i ga fato sì che in 1911 l’età mèdia de morte la ze aumentà da solo sei ani e meso a trenta ani. Però, la mortalità infantìl restava altìsima. Sempre in 1911, i putéi soto i sinque ani i rapresentava el 38% de tuti i morti.