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domingo, 14 de setembro de 2025

Raízes e Tempestades A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes e Tempestades 

A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes Rotas

Lendinara, Rovigo, Vêneto — Outubro de 1886.

As folhas amareladas dançavam ao vento como se soubessem o que estava por vir. Enrico Bellò passava o dedo pelas tábuas gastas da janela, enquanto observava o horizonte enevoado. Sua esposa, Marianna Zardini Bellò, dobrava silenciosamente as últimas peças de roupa dos filhos. Ela não respondeu. Apenas olhou os filhos — Ernesto e Giacomo — que dormiam lado a lado no catre de palha. A decisão já estava tomada havia dias, mas ali, diante da última manhã na pátria, o peso era quase insuportável. Venderam o pouco que tinham — o terreno herdado do pai de Enrico, duas vacas, e a prensa de uva que por gerações havia produzido o vinho da família. Trocaram tudo por passagens de terceira classe num navio com destino ao Brasil. A travessia foi um inferno de tosses, gemidos e náuseas. Marianna passava noites em claro, com os meninos febris no colo. Enrico cuidava do pouco que tinham com olhos de lobo: um baú com ferramentas, uma fotografia dos pais, e o caderno onde anotava sonhos e cálculos de futuro.

A Dor Verde

Desembarcaram em Santos com os corpos curvados, mas os olhos acesos. A viagem para o interior os levou a Piracicaba, onde a natureza parecia querer engolir tudo — até mesmo a esperança. Foram designados à fazenda do Barão de Alvarenga, uma imensidão de canaviais onde italianos, espanhóis e negros libertos se misturavam em silêncio e suor. O barraco de madeira cheirava a mofo e solidão. Enrico era hábil na terra, mas a lida ali era desumana. Marianna cuidava dos filhos durante o dia e cozinhava a polenta à noite, com farinha comprada a crédito no armazém da fazenda. As dívidas cresciam. A febre também. Em menos de seis meses, Giacomo faleceu. Três semanas depois, Ernesto o seguiu. Marianna não gritou. Nem chorou diante dos outros. Apenas cavou a cova com as próprias mãos. Enrico ficou três dias sem dizer palavra. Na noite do terceiro, rabiscou no caderno:

“Se ghe ze un Dio, el ghe de forsa a chi no la ga pì.”


Polenta, Suco e Sobrevivência

Depois da dor, veio o silêncio. E logo depois, o trabalho ainda mais duro. Enrico trocava milho por farinha no engenho da Fazenda São Benedito. Comia-se polenta e laranja. Era pouco, mas era constante. Os anos trouxeram três filhos: Guido, Rosina e Natale. Marianna voltava a sorrir, aos poucos. Nas noites de sábado, Enrico contava histórias aos filhos: de Veneza, de neve, de campos de papoula. Os meninos ouviam como se escutassem lendas de um outro mundo — e de fato, era. Rosina aprendeu a fazer queijo com a mãe. Guido alimentava os porcos. Natale, ainda pequeno, já se enfiava entre os canaviais como se fosse parte da terra. A esperança recomeçava a brotar.

La Terra Prometida

Com o pouco que economizaram em mais de vinte anos, Enrico arriscou tudo de novo. Compraram um terreno em Mombuca — terra escura, úmida, fértil como ventre de mulher nova. Era pequena, mas era deles. E isso mudava tudo. Construíram uma casa de madeira, sólida e aberta ao sol. Guido casou-se com uma moça de origem calabresa. Natale seguiu o irmão. Rosina, bela e decidida, ficou para cuidar dos pais. A cada novo neto que nascia, Marianna plantava uma árvore no quintal. A terra deu café, mandioca, milho e, aos poucos, também prosperidade. A família Bellò se espalhou pelos arredores como raízes subterrâneas.

A Lavoura da Memória

Os primeiros anos em Mombuca foram marcados por um silêncio novo — não mais o silêncio da dor, mas o silêncio do trabalho em terra própria. Ali, cada amanhecer era uma promessa. Enrico passava os dias examinando o solo, corrigindo falhas, construindo com paciência uma fazenda que pudesse resistir ao tempo. A vida na colônia era ainda rudimentar, mas o simples fato de não depender mais de ordens alheias era um luxo impensável em outros tempos.

Marianna reorganizava a casa com mãos firmes e uma serenidade adquirida nas perdas. Suas rotinas tinham agora um sentido mais profundo. A horta crescia como uma extensão de seu cuidado — alfaces, batatas, tomates, ervas. No quintal, as árvores plantadas em nome dos filhos cresciam altas, e ela as regava como se conversasse com o passado.

O pequeno celeiro virou centro de produção. O queijo feito por Rosina e os pães que Marianna assava em forno de barro passaram a ser trocados com vizinhos, criando laços com outras famílias de imigrantes: lombardos, piemonteses, alguns trentinos. A terra, antes estrangeira, agora tinha nomes italianos espalhados por cada curva de estrada.

Ciclos que se Repetem

Os netos chegaram como vindima farta depois de um verão generoso. As crianças corriam pelos canteiros, aprontavam nas cocheiras, escondiam-se entre os milharais. Enrico assistia de longe, em silêncio, com os olhos cansados e satisfeitos. Sentia o corpo pesar como nunca, mas a alma leve como não se lembrava de ter sido um dia.

Guido prosperava com o plantio de café e a criação de porcos. Natale seguiu para a cidade, atraído pela modernidade de Rio Claro, onde tornou-se marceneiro. Rosina permaneceu fiel à terra, cuidando dos pais e da pequena capela erguida sob uma figueira, onde se rezavam terços nas noites de sábado.

Com o tempo, os filhos construíram suas próprias casas ao redor da sede principal. Um núcleo familiar tomou forma como uma aldeia invisível, unida por sangue e por história. Nas festas de colheita, os tambores improvisados e os violinos dos imigrantes enchiam o ar de um entusiasmo quase ancestral. Marianna olhava para aquilo tudo com uma expressão que misturava gratidão e cansaço.

A Última Estação

Os últimos anos de Enrico foram silenciosos. Seus passos tornaram-se lentos, os olhos demoravam mais tempo observando o horizonte do que o necessário. Ele passava horas sentado sob o alpendre, com um caderno no colo e um lápis já tão pequeno quanto sua respiração. Anotava datas de nascimentos, mortes, safras, doenças, nomes. Era como se quisesse registrar cada detalhe para impedir que o tempo os engolisse.

Quando faleceu, em 1943, foi enterrado sob a mesma figueira onde Rosina mantinha as velas acesas. Não houve discurso, apenas o som das enxadas abrindo a terra para mais uma semente — não de planta, mas de permanência.

Marianna viveu ainda nove anos. Seus cabelos embranquecidos se tornaram símbolo da família, sua presença era reverenciada pelos netos como a de uma matriarca silenciosa. Já não costurava tanto, nem cuidava dos porcos, mas sua autoridade se manifestava em pequenos gestos — um olhar, um aceno, um gesto de aprovação ou correção.

No dia de sua morte, um verão abafado de 1952, a família se reuniu inteira no terreno. Ninguém chorou alto. Não era preciso. Sua ausência se impunha com uma solenidade silenciosa, como o fim de uma colheita abundante.

Herdeiros do Silêncio

Com a partida de Marianna, Rosina assumiu o centro da casa. Já velha, sabia que a sua missão era diferente: preservar. Os filhos e netos dos Bellò se espalharam pelo interior paulista, muitos se urbanizaram, alguns se tornaram professores, outros comerciantes. Mas o nome resistia.

Na casa original, as paredes foram reforçadas, o forno de barro mantido. As árvores frutíferas plantadas por Marianna ainda davam sombra às novas gerações. O velho caderno de Enrico foi descoberto por um bisneto curioso, que se tornaria historiador e usaria aquelas anotações como base para um livro sobre imigração italiana no Brasil.

Na lápide do casal, sob a figueira que crescia firme, uma frase gravada por Rosina resumia tudo o que haviam vivido:

“Radise che no se spaca — solo cámbia tera.”


Nota do Autor

A história que o leitor tem em mãos é uma obra de ficção histórica, construída com base em um fragmento autêntico da vida de emigrantes italianos que, como milhares de outros, cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de terra, trabalho e um futuro menos incerto.

O texto se inspira livremente em uma carta escrita por um imigrante vêneto e preservada nos arquivos públicos do interior paulista. Nesse testemunho silencioso, revelam-se os traços de uma jornada marcada por perdas profundas, resistência cotidiana e uma fé obstinada no valor do esforço.

Embora os personagens desta narrativa — Enrico e Marianna Bellò, seus filhos e descendentes — sejam fictícios, suas vivências ecoam as experiências reais descritas na carta: a travessia atlântica, o luto por filhos perdidos, os anos de trabalho duro nas fazendas de café e, por fim, o triunfo discreto da terra conquistada com suor e perseverança.

A escolha por evitar diálogos é intencional. O silêncio, que permeia esta narrativa, busca refletir o modo como tantos desses homens e mulheres viveram: com dignidade contida, gestos firmes e palavras medidas. Suas histórias foram escritas mais com as mãos do que com a voz.

Esta obra é dedicada a todos os que partiram sem promessa de retorno, levando consigo apenas a memória dos que ficaram — e semeando, em solo estranho, as raízes do que viria a ser um novo lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Do Vêneto ao Brasil: A Jornada de Vittorio Zanetti


 

Do Vêneto ao Brasil

A Jornada de Vittorio Zanetti


1878 – Província de Treviso, Vêneto, Itália


A pequena vila de San Fior permanecia envolta em um silêncio inquietante nas primeiras horas daquela manhã de outono. Os campos, que deveriam estar cobertos de trigo dourado, eram agora meros traços de terra exaurida, incapazes de sustentar até mesmo as ervas daninhas. Vittorio Zanetti estava em pé na soleira da porta de sua casa de pedra desgastada pelo tempo, observando o horizonte como se pudesse decifrar ali algum indício de esperança. Ele havia passado noites em claro ao lado de Teresa, sua esposa, debatendo-se entre a lealdade ao solo que havia pertencido à sua família por gerações e a cruel realidade que o cercava. A crise econômica não era mais uma ameaça distante, mas uma presença impiedosa em suas vidas. As terras tornaram-se inférteis após anos de exploração intensiva, os impostos corroíam qualquer resquício de lucro, e o mercado local estava saturado, deixando os agricultores em uma luta constante por migalhas. Naquela manhã, Vittorio tomou uma decisão que alteraria para sempre o destino de sua família. Ele passou os dedos calosos pela borda de um velho mapa, cujas margens estavam marcadas por manchas de umidade e anotações feitas à mão. “Brasil”, dizia uma delas, com letras simples, mas carregadas de promessa. Era uma terra distante, quase mítica, que prometia o que a Itália não podia mais oferecer: terras férteis, trabalho honesto e, acima de tudo, um futuro. Teresa, que até então remendava um lenço desfiado, ergueu os olhos com uma mistura de medo e resignação. Ela conhecia aquele olhar no rosto do marido — firme, decidido, inabalável. Pietro, o filho mais velho, com apenas dez anos, ouviu a conversa à distância, sem compreender completamente o peso das palavras. Já Anna, de apenas seis anos, brincava com um pedaço de tecido, alheia à gravidade da situação.

— Nós partiremos antes do inverno — anunciou Vittorio, com a voz embargada, mas firme.

A frase pairou no ar, como se o tempo tivesse parado para ouvi-la. Deixar a Itália não era apenas abandonar um pedaço de terra; era cortar laços com uma história, uma identidade, uma linhagem. Mas era também uma chance de escapar do ciclo de miséria que ameaçava aprisionar seus filhos. A jornada prometia ser dura, e as incertezas eram tantas quanto as estrelas no céu noturno. Mas, naquela casa humilde, uma centelha de esperança começava a iluminar o escuro horizonte. Enquanto Vittorio enrolava o mapa e Teresa recolhia os poucos pertences que poderiam levar, eles não imaginavam que estavam prestes a se tornar parte de uma história maior — uma saga de coragem, sacrifício e reinvenção que ecoaria por gerações.

A despedida no porto de Gênova foi marcada por uma mistura de dor e resignação. Vittorio e sua família avançavam em meio à agitação do cais, os passos firmes contrastando com a incerteza do futuro que os aguardava. Carregavam consigo os poucos pertences que simbolizavam tanto o peso de um passado impregnado de memórias quanto a esperança de um novo começo. Ao redor, o burburinho do porto misturava-se ao som das ondas, enquanto o navio aguardava silencioso, como uma ponte para o desconhecido. O vapor Príncipe de Napoli, ancorado no cais, era imponente em sua estrutura metálica e suas imensas chaminés que lançavam colunas de fumaça negra no céu. O som das máquinas a vapor, combinado ao barulho dos animais embarcados e ao constante movimento de trabalhadores, criava uma cacofonia que parecia amplificar a gravidade do momento. Subir a prancha de embarque foi como cruzar uma fronteira invisível, deixando para trás o mundo conhecido e entrando em uma nova realidade cheia de incertezas. Nos primeiros dias de viagem, o oceano manteve sua superfície relativamente tranquila. As condições climáticas favoreceram o progresso do navio, mas a vida a bordo era tudo menos confortável. No convés inferior, onde estavam os passageiros de terceira classe, o espaço era apertado e abafado, e o ar carregava uma mistura de odores: suor, comida rançosa e o cheiro persistente dos animais confinadosOs dias transcorriam em uma rotina monótona. A maioria dos passageiros tentava ocupar o tempo como podia, alguns rezando, outros cuidando de tarefas simples ou conversando em voz baixa. As crianças exploravam os corredores estreitos e faziam amizades rápidas, enquanto os adultos lidavam com o cansaço físico e emocional.

Foi em uma tarde clara, quando o oceano parecia um espelho refletindo o céu, que um grito cortou a monotonia: havia fogo na estrebaria. O alarme se espalhou rapidamente, e o caos tomou conta do navio. O incêndio havia começado no compartimento onde os bois estavam confinados, e as chamas, alimentadas pelo feno seco, avançavam com rapidez assustadora.

O pânico foi imediato e generalizado. Mães seguravam seus filhos com força, enquanto muitos passageiros, dominados pelo desespero, lançavam objetos ao mar ou caíam de joelhos em oração silenciosa. Homens formaram correntes humanas, passando baldes de água salgada para tentar conter o fogo. O calor era insuportável, e a fumaça densa tornava cada respiração uma luta.

Após o que pareceram horas, mas na verdade foram apenas minutos, as chamas foram finalmente controladas. O incêndio, embora grave, não alcançou as áreas críticas do navio, evitando assim uma tragédia maior. Contudo, o incidente deixou uma marca profunda em todos a bordo. O cheiro de fumaça persistia, e o semblante dos passageiros era agora de apreensão. A jornada que prometia ser um recomeço transformara-se em uma lembrança de sua própria vulnerabilidade.

Os dias seguintes foram mais silenciosos. O Santa Esperanza prosseguia em sua rota, mas a tensão era palpável. O mar, vasto e indiferente, parecia um lembrete constante da precariedade da condição humana. A promessa de um futuro melhor na América permanecia como a única âncora emocional para aqueles que, mesmo diante do perigo, continuavam a olhar para frente.

Tempestades e Calor

No dia seguinte ao Natal, o Santa Esperanza foi engolido por um dos piores temporais de sua jornada. O céu, que começara o dia apenas nublado, escureceu até se tornar uma massa opressiva de nuvens carregadas. Os primeiros ventos chegaram como mensageiros de algo maior, chicoteando o convés e arrancando pedaços das velas de segurança. Quando as primeiras gotas caíram, eram quase morna, mas logo se transformaram em uma torrente gelada que encharcava tudo e todos.

Ondas colossais se erguiam como muralhas líquidas, golpeando a embarcação com força implacável. A cada investida, o Santa Esperanza rangia e gemia, como se a madeira e o metal que o compunham estivessem prestes a ceder. No interior do convés inferior, os passageiros estavam comprimidos uns contra os outros, agarrando-se a qualquer coisa que oferecesse estabilidade. As lâmpadas balançavam violentamente, projetando sombras inquietantes nas paredes já úmidas.

Teresa segurava Pietro e Anna com tanta força que seus braços doíam, mas ela não afrouxava o aperto. Cada vez que o navio inclinava-se perigosamente para um lado, um suspiro coletivo de medo e orações abafadas preenchiam o espaço. A água que invadia pelas frestas trazia um frio penetrante, e o cheiro de sal e óleo enchia o ar. Vittorio, ajoelhado próximo a um pilar de sustentação, murmurava orações inaudíveis, não apenas para sua família, mas para o navio inteiro, como se sua fé pudesse servir de amuleto contra a ira do oceano.

Por trinta horas, o mundo não era nada além de escuridão, vento e o rugido incessante do mar. Finalmente, ao amanhecer, o temporal começou a perder força. As ondas, ainda altas, já não ameaçavam consumir o navio, e os ventos recuaram, deixando apenas um sussurro nas velas rasgadas. O Santa Esperanza emergiu da tempestade como um sobrevivente ferido, seu casco manchado de sal e os mastros inclinados.

Após o caos da tempestade, os dias que se seguiram trouxeram uma calmaria quase surreal. O oceano parecia agora um espelho reluzente sob o sol inclemente. Quando cruzaram a linha do Equador, a mudança no clima foi imediata e brutal. O calor tornava o ar pesado, e os passageiros, já desgastados pela jornada, eram obrigados a suportar temperaturas sufocantes no convés inferior.

A vida a bordo seguia em um ritmo arrastado. Os adultos abanavam-se incessantemente com pedaços de papel, enquanto as crianças, muitas vezes nuas da cintura para cima, procuravam qualquer sombra disponível. As noites, embora ligeiramente mais frescas, eram abafadas pela superlotação. Ainda assim, o calor era suportado com uma dose renovada de esperança. Cada dia os aproximava de seu destino, e as histórias dos que haviam chegado antes deles alimentavam o espírito de resistência.

Finalmente, no dia 11 de janeiro de 1878, um murmúrio percorreu o navio, crescendo até se transformar em um clamor de emoção. No horizonte, emergindo da neblina matinal, estavam as montanhas do Brasil. As formas escuras e onduladas pareciam um sonho depois de semanas encarando apenas o azul interminável do oceano. A bordo, lágrimas e sorrisos se misturavam enquanto os passageiros se apinhavam nos conveses superiores, tentando absorver cada detalhe da paisagem distante.

Para Vittorio e sua família, a visão do litoral era mais do que um marco geográfico; era a promessa de que seus sacrifícios não haviam sido em vão. Embora os desafios que os aguardavam na nova terra permanecessem desconhecidos, naquele momento, sob o céu limpo e o calor tropical, havia apenas um sentimento predominante: esperança.Chegada ao Brasil

O desembarque no Rio de Janeiro foi emocionante. Muitos gritavam "Viva a América!" enquanto deixavam o navio. De lá, Vittorio e sua família seguiram para Santa Catarina e depois ao Rio Grande do Sul. Após uma parada em Porto Alegre, chegaram a Rio Pardo, onde a jornada continuou por terra.

O trajeto até Santa Maria Boca do Monte foi extenuante. As famílias viajaram em carroções, enquanto os homens caminhavam a pé. Durante 15 dias, atravessaram pradarias, florestas e bosques. Alimentavam-se no campo, matavam um novilho por dia e preparavam sopa e pão para sustentar o grupo. As noites eram passadas sob tendas improvisadas.

Um Novo Lar

Chegando à região de Santa Maria, Vittorio e outros três imigrantes de Belluno iniciaram uma exploração cuidadosa das redondezas, determinados a encontrar terras que pudessem transformar em um futuro para suas famílias. A paisagem era vasta e variada, marcada por densas florestas tropicais que se abriam em pradarias ondulantes, rios de águas cristalinas serpenteando pelas colinas e uma fauna que despertava tanto fascínio quanto cautela.

Os dias de busca eram extenuantes. Caminhavam por horas sob o calor sufocante, as botas afundando na lama espessa de trilhas mal definidas. À noite, acampavam sob o dossel das árvores, iluminados apenas pela luz vacilante das fogueiras, enquanto os sons da floresta ao redor — o farfalhar das folhas, o chamado distante de um jaguar — mantinham todos em alerta. A comida era escassa, e as discussões sobre a viabilidade das terras que encontravam às vezes se tornavam tensas. Mas a determinação de cada homem, alimentada pela promessa de um novo começo, nunca vacilava.

Depois de quase uma semana, chegaram a uma propriedade que parecia saída de um sonho. Era uma colônia que combinava todos os elementos que buscavam: bosques densos com madeira de qualidade, pradarias que prometiam pastagens para o gado, plantações já produtivas de milho, arroz e mandioca, além de animais domésticos que poderiam ser integrados rapidamente à rotina das famílias. O mais importante, no entanto, era a presença de um riacho de águas cristalinas que corria com abundância e regularidade, uma garantia de sustento e fertilidade para as terras.

O proprietário, um estancieiro de origem portuguesa, parecia ansioso para vender. As dificuldades econômicas recentes e o desejo de se mudar para uma região mais próspera haviam transformado a propriedade em um fardo para ele. O preço, 5.000 francos, era significativo, mas dentro do alcance dos imigrantes, especialmente com a possibilidade de um pagamento parcial à vista e o restante a prazo.

Quando o acordo foi fechado, os homens apertaram as mãos, uma mistura de alívio e excitação refletida em seus rostos marcados pelo sol e pela fadiga. A propriedade tinha duas casas de madeira, simples, mas sólidas, que poderiam abrigar confortavelmente as quatro famílias enquanto planejavam construções futuras. A extensão de terras férteis parecia quase ilimitada, oferecendo espaço não apenas para o cultivo, mas também para a criação de gado e a construção de um pequeno moinho no futuro, impulsionado pelas águas do riacho.

Vittorio, enquanto explorava os limites da nova terra, sentiu uma rara onda de otimismo. Ele observava os campos de milho com espigas maduras, prontos para a colheita, e as fileiras de mandioca que prometiam uma fonte imediata de alimento. Pela primeira vez desde que haviam deixado Belluno, a sensação de estabilidade parecia tangível.

Mas a sorte sorrir para eles não significava que o trabalho estava terminado. Ao contrário, era apenas o início de um novo tipo de luta. Cada árvore derrubada, cada hectare arado e cada construção erguida seriam marcados pelo esforço coletivo das famílias, cujo futuro dependia não apenas da generosidade da terra, mas também da união e da perseverança de todos.

Enquanto o sol se punha no horizonte, tingindo o céu de laranja e púrpura, Vittorio ficou em pé em uma colina, observando a propriedade que agora era sua. Naquele momento, ele não via apenas terras; ele via a promessa de uma vida que valia a pena ser construída.

Os Primeiros Anos

Apesar da conquista inicial, os primeiros anos na nova terra trouxeram desafios que testaram cada fibra da determinação de Vittorio e sua família. Os 5.000 francos pagos pela propriedade eram apenas o começo de uma série de custos que pareciam intermináveis. Ferramentas, sementes, animais e até itens básicos para a sobrevivência tinham preços exorbitantes, agravados pela distância até o comércio mais próximo. As economias que haviam trazido da Itália logo começaram a se esgotar, e o trabalho pesado tornou-se a única moeda de troca.

Vittorio, no entanto, não era homem de recuar diante das dificuldades. Antes mesmo que o sol surgisse no horizonte, ele já estava nos campos, empunhando sua enxada ou guiando os bois que lentamente aravam a terra dura. Cada sulco aberto era uma promessa de colheita, uma batalha vencida contra a natureza desconhecida e muitas vezes hostil do Brasil. Teresa, por sua vez, tornou-se o eixo da casa, organizando os escassos suprimentos com precisão quase militar e transformando o pouco que tinham em refeições que sustentavam a família e os vizinhos em momentos de necessidade.

Com o tempo, mais casas foram erguidas. As quatro famílias que haviam adquirido a propriedade trabalharam juntas, compartilhando recursos e dividindo o território em parcelas que podiam ser cultivadas de maneira eficiente. Os dias de construção eram exaustivos, marcados pelo som constante de martelos e serrotes, e os troncos derrubados das matas próximas serviam de matéria-prima para as paredes e os telhados. Cada casa erguida era um monumento à colaboração, uma prova de que o esforço conjunto poderia transformar sonhos em realidade.

A decisão de diversificar as culturas foi tanto prática quanto visionária. Além de milho e mandioca, que garantiam a base alimentar, começaram a cultivar uvas, batatas e hortaliças, inspirados nas práticas agrícolas que haviam aprendido no Vêneto. As primeiras fileiras de videiras foram plantadas com cuidado quase cerimonial, e cada safra bem-sucedida era celebrada como um triunfo coletivo. A terra, antes selvagem, começava a devolver os frutos do trabalho árduo, mas o progresso vinha a um custo: jornadas intermináveis e um cansaço que parecia nunca desaparecer.

A adaptação ao Brasil, por sua vez, exigiu mais do que esforço físico. A língua, os costumes locais e o clima tropical muitas vezes pareciam barreiras intransponíveis. As chuvas torrenciais destruíam caminhos e plantações, enquanto o calor do verão tornava o trabalho no campo uma provação constante. Ainda assim, a promessa de um futuro melhor para Pietro e Anna dava a Vittorio e Teresa forças para seguir em frente. Eles sabiam que o sacrifício presente era o preço de uma vida mais digna para seus filhos.

Para Vittorio, havia uma satisfação singular em olhar para os campos cultivados e as casas de madeira, mesmo nos dias mais difíceis. Sentia-se renovado ao pensar que, após anos de incerteza e sofrimento, finalmente possuíam algo que era verdadeiramente seu. Naqueles momentos, ele permitia-se um raro sorriso de orgulho, embora soubesse que ainda havia muito a ser feito.

A cada colheita, a cada videira que crescia, e a cada parede erguida, a família de Vittorio escrevia uma nova página de sua história. A terra não era apenas um lugar para plantar ou viver; era o alicerce de um legado, algo que ele esperava que Pietro e Anna valorizassem e preservassem por gerações.

O Legado de Vittorio Zanetti

Décadas se passaram, e a colônia Calpestre transformou-se em uma comunidade vibrante e próspera, um testemunho vivo da visão e do trabalho incansável dos pioneiros que ali se estabeleceram. O cenário que antes era dominado por densas florestas e pradarias selvagens agora exibia uma paisagem ordenada de vinhedos, campos cultivados e caminhos bem traçados, conectando fazendas e casas que transbordavam de vida e atividade.

Vittorio e Teresa viveram para ver seus filhos crescerem, assumirem responsabilidades e ajudarem a expandir as terras que um dia haviam sido apenas um pedaço isolado de mata desconhecida. Pietro tornou-se o coração prático da família, liderando os esforços para modernizar a produção agrícola e introduzir métodos inovadores de cultivo. Anna, com uma determinação que lembrava a da mãe, fundou uma pequena escola comunitária, onde as crianças da colônia aprendiam a ler, escrever e sonhar além dos limites da terra que cultivavam.

A história de Vittorio e Teresa transformou-se em uma espécie de lenda local, contada de geração em geração ao redor das mesas de jantar e durante as festividades da colônia. Era mais do que uma memória; era um lembrete constante da coragem necessária para cruzar um oceano em busca de um novo começo. Para os mais velhos, era uma fonte de orgulho; para os jovens, um exemplo a ser seguido.

O sacrifício e a resiliência que definiram a jornada dos Zanetti estavam gravados em cada sulco da terra fértil de Santa Maria. As árvores frutíferas que Vittorio plantara décadas antes agora ofereciam sombra e frutos abundantes, enquanto os vinhedos, cultivados com paciência e cuidado, produziam vinhos que haviam se tornado conhecidos além das fronteiras da região.

Hoje, os descendentes de Vittorio Zanetti contemplam as terras que herdaram com um misto de reverência e gratidão. Cada pedaço de solo, cada fileira de plantações, é uma prova tangível do esforço e da visão de um homem que se recusou a aceitar a derrota, mesmo quando enfrentava desafios monumentais. Para eles, o legado de Vittorio não era apenas a terra em si, mas também os valores que ele personificava: trabalho árduo, fé inabalável e a crença de que o futuro sempre pode ser melhor do que o presente.

O sonho de Vittorio — oferecer um futuro digno e próspero à sua família — havia se concretizado de maneiras que ele talvez nunca tivesse imaginado. E enquanto os campos continuavam a florescer sob o sol de Santa Maria, o nome Zanetti permanecia vivo, um símbolo de perseverança e esperança, ecoando no riso das crianças e no som do vento que atravessava os vinhedos.


Nota do Autor

Esta narrativa é uma obra de ficção baseada em eventos históricos reais que marcaram a experiência dos imigrantes italianos no Brasil. A saga de Vittorio Zanetti e sua família reflete os desafios e triunfos vividos por inúmeras famílias que cruzaram o Atlântico em busca de esperança e oportunidades durante o final do século XIX.

Embora o contexto histórico seja autêntico, os nomes dos personagens e alguns detalhes específicos foram alterados ou adaptados para preservar a privacidade das pessoas reais e para permitir uma maior liberdade criativa. Esses ajustes também têm o objetivo de representar, de forma mais ampla, o espírito de coragem, sacrifício e determinação que caracterizou a trajetória dos imigrantes italianos.

A intenção deste relato é homenagear a memória desses pioneiros, que, com trabalho árduo e uma fé inabalável, ajudaram a construir uma nova vida em terras distantes, transformando desafios quase insuperáveis em um legado duradouro. Que esta história sirva como um tributo à sua resiliência e inspire os leitores a valorizar as raízes e os caminhos percorridos por aqueles que vieram antes de nós.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

domingo, 7 de setembro de 2025

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


 

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


Vittorio Belinazzo nasceu em 1875, em Fratta Polesine, um pequeno município da província de Rovigo. A infância se desenrolara na monotonia das terras planas do Polesine, onde os campos, cortados pelos canais e cercados pelas cheias do Pó, sustentavam com dificuldade as famílias camponesas. A vida era feita de um trabalho constante e de recompensas escassas. O pai, Giuseppe, ganhava a vida como diarista nos vastos arrozais da região, passando os dias dobrado sobre a enxada em terras que nunca seriam suas. A mãe, Rosa, governava a casa e mantinha unidos os sete filhos, enquanto o tempo parecia arrastar-se em um ciclo de pobreza resignada.

Quando a Itália se unificara, muitos em Fratta esperaram por um futuro mais justo. Mas o que chegara às portas da aldeia não fora prosperidade, e sim impostos mais pesados e as crises do trigo que minavam qualquer esperança. Na juventude, Vittorio viu vizinhos e parentes partirem em grupos rumo à América. A ideia o perseguia: deixar a planície, os rios e os arrozais, atravessar o mar e tentar a sorte em terras onde a fome não fosse companheira diária.

No início dos anos 1890, tomou a decisão de partir junto com a família de um seu tio materno. Despediu-se dos pais e dos irmãos menores com a promessa de jamais esquecê-los e embarcou no porto de Genova para o Brasil. A travessia foi longa, marcada pelo aperto dos porões e pelo cheiro sufocante de corpos amontoados. Mas, ao desembarcar em Santos e seguir para São Paulo, sentiu que uma nova vida começava.

Instalou-se primeiro como operário em pequenas oficinas. O trabalho era duro, mas o ritmo frenético da cidade crescia junto com suas oportunidades. Com o tempo, aprendeu o ofício de relojoeiro, profissão que exigia paciência, precisão e um olhar atento aos detalhes, virtudes que lhe serviriam pela vida inteira.

Foi nessa época que conheceu Elisa, filha de imigrantes de Brescia. Casaram-se em 1898. A casa modesta que ergueram em São Paulo foi o primeiro refúgio estável que Vittorio conheceu. Pouco depois, nasceram os filhos: Maria, em 1899, e Alfredo, em 1901. O orgulho de ser pai dava-lhe forças para suportar a exaustão das longas horas de trabalho.

A lembrança da família em Fratta, contudo, jamais o abandonou. O irmão mais novo, Giulio, permanecera na Itália e buscava aprender um ofício. Para Vittorio, ele simbolizava uma esperança: que as gerações seguintes pudessem escapar do destino de servidão ao campo. A irmã Teresa, casada com um funcionário público de Rovigo, representava a estabilidade que ele mesmo buscava no Brasil. E até os sobrinhos, crianças que jamais vira, ocupavam um lugar no seu coração.

Apesar do esforço diário, a prosperidade não vinha. Os ganhos eram sempre consumidos pelas necessidades da família. O Brasil oferecia uma vida mais segura do que o Polesine, mas estava longe das promessas de abundância que haviam circulado nas aldeias italianas. Vittorio, realista, aceitava essa condição. Entendia que sua verdadeira conquista não estava em enriquecer, mas em oferecer aos filhos uma vida que não começasse já marcada pela fome.

Os anos se sucederam, e sua identidade passou a ser dividida entre dois mundos. No Brasil, era marido, pai e artesão. Na Itália, permanecia filho e irmão, ligado por laços invisíveis que nem a distância do oceano conseguia romper. Era a vida de um emigrante: suspensa entre a memória de uma terra perdida e a construção de outra, que nunca deixava de ser estrangeira.

O tempo avançou rápido sobre a vida de Vittorio Belinazzo. A oficina de relojoeiro, modesta mas respeitada, tornara-se seu refúgio durante décadas. Entre engrenagens, ponteiros e cordas de aço, ele via o tempo passar não apenas nos relógios que consertava, mas também no rosto que se transformava diante do espelho.

Os filhos cresceram. Maria, a primogênita, herdara da mãe a firmeza e do pai a delicadeza dos gestos. Tornou-se professora, ocupação que enchia Vittorio de orgulho, pois simbolizava a ruptura com o destino de servidão que ele conhecera na infância. Alfredo, inquieto e enérgico, não quis seguir o ofício paterno; preferiu o comércio, atraído pelo movimento das ruas do centro de São Paulo.

Aos poucos, a cidade mudava. Bondes elétricos substituíam os puxados por mulas, fábricas se multiplicavam, e a enxurrada de imigrantes continuava a transformar o cenário urbano. Vittorio, já homem maduro, sentia-se parte dessa transformação, mas guardava dentro de si uma nostalgia persistente das planícies do Polesine.

Durante anos alimentou a ideia de voltar a Fratta Polesine, ainda que apenas em visita. Imaginava a mãe diante da velha casa de pedra, o irmão Giulio já adulto, talvez dono de uma oficina própria, e os sobrinhos, crescidos sem jamais conhecê-lo. Mas a vida não lhe deu essa chance. A morte da mãe chegou-lhe pela notícia tardia de um vizinho que regressara à Itália. Depois, a guerra de 1915 a 1918 devastou a Europa, tornando impossível qualquer retorno. O sonho de rever a aldeia desfez-se em silêncio.

A velhice chegou discreta. Elisa, companheira de todas as lutas, adoeceu primeiro. Vittorio cuidou dela até o último instante, com a mesma paciência com que cuidava de um relógio frágil. Sua partida abriu um vazio irreparável. Viúvo, continuou vivendo na mesma casa, cercado de lembranças e da presença esporádica dos filhos e netos.

Com os anos, o ofício deixou de ser necessidade e passou a ser companhia. Continuava sentado à bancada, ajustando engrenagens com mãos já trêmulas, como se os relógios fossem testemunhas silenciosas de sua própria resistência. A memória, porém, permanecia viva. Em certos fins de tarde, fechava os olhos e via-se de novo menino em Fratta, correndo pelos campos encharcados, ouvindo a voz da mãe chamando para casa.

Assim viveu Vittorio Belinazzo, homem comum e anônimo, mas cuja coragem em atravessar o mar e recomeçar do nada ecoaria nas gerações seguintes. O sacrifício silencioso de sua existência fazia parte de uma história maior: a de milhares de italianos que, como ele, trocaram as margens do Po pelas ruas de São Paulo, levando consigo saudades, esperanças e a obstinada fé no futuro.

Morreu em 1949, com setenta e quatro anos, cercado pelos filhos e netos. Não deixou riquezas, mas legou à família algo mais duradouro: a coragem de ter cruzado o oceano e a dignidade de uma vida erguida sobre trabalho, fidelidade e amor.

Na pequena sepultura de São Paulo, longe das margens do Pó, repousou Vittorio Belinazzo. Mas, na memória dos descendentes, sua figura jamais ficou confinada ao cemitério. Para eles, ele era o elo entre dois mundos, o homem que carregara na alma a planície de Rovigo e a plantara, invisível, no solo do Brasil.

Nota do Autor

Esta história é baseada em fatos verídicos, embora os nomes tenham sido alterados a pedido de um de seus descendentes, aquele que generosamente forneceu os dados que tornaram possível reconstruir a vida de Vittorio. O objetivo desta narrativa não é apenas preservar a memória de sua trajetória, mas também transformá-la em algo mais amplo: uma homenagem a todos aqueles que, como Vittorio, enfrentaram as adversidades com coragem, honra e perseverança. Ao compartilhar esta história, espero que ela transcenda os limites de uma família, tocando a todos que reconhecem a força e a dignidade de quem se aventura a construir uma vida nova, mesmo diante das dificuldades. 

Dr. Piazzetta




sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Os Navios de Lázaro: A Saga de Francesco e Elena


Os Navios de Lázaro: A Saga de Francesco e Elena


No final do século XIX, Francesco Bettine e sua esposa, Elena, viviam em San Vito, uma pacata localidade no município de Altivole, na província de Treviso, região do Vêneto, ao norte da Itália. O lugar, cercado por colinas onduladas e pequenos vinhedos, parecia ser um recanto de tranquilidade, mas a realidade estava longe de ser idílica. A terra que cultivavam, uma pequena parcela herdada de gerações anteriores, era árida e pouco produtiva. As colheitas eram insuficientes para alimentar a família adequadamente, e Francesco passava longas horas tentando arrancar da terra seca o sustento para os filhos, Giulia e Marco, ainda pequenos. Além da pobreza natural da região, os altos impostos cobrados pelos proprietários de terras e pelo governo local tornavam o esforço diário quase inútil. A fome era uma presença constante na casa dos Bettine, um lembrete cruel das limitações que os aprisionavam em um ciclo interminável de miséria. Por anos, Francesco e Elena resistiram, sustentados pela esperança de que as coisas poderiam melhorar. Mas, à medida que os invernos se tornavam mais rigorosos e os barris de farinha esvaziavam cada vez mais rápido, a esperança deu lugar à necessidade.

Quando os primeiros rumores sobre oportunidades no Brasil chegaram a San Vito, trazidos por outros camponeses ou por cartas de parentes já emigrados, o casal viu ali uma saída. Partir significava abandonar tudo o que conheciam, mas também era uma chance de dar aos filhos a vida que eles próprios nunca tiveram. Assim, com o coração dividido entre a dor da despedida e a promessa de um futuro mais digno, decidiram arriscar tudo e cruzar o oceano em busca de uma nova vida.

A jornada começou com uma longa e desconfortável viagem de trem desde a estação mais próxima de San Vito até o porto de Gênova. As pequenas economias que haviam guardado foram gastas na compra de bilhetes de terceira classe, onde os vagões estavam lotados e o cheiro de carvão e suor impregnava o ar. Francesco e Elena mantinham os filhos junto a si, temerosos de que pudessem se perder no caos da viagem.

Ao chegarem a Gênova, a visão do porto era ao mesmo tempo fascinante e assustadora. Era um cenário de confusão: multidões de emigrantes, maltrapilhos e carregando suas vidas em sacos e malas improvisadas, aguardavam instruções. Entre gritos de carregadores e o apito dos navios, a família Bettine foi direcionada para o grande vapor que os levaria ao outro lado do Atlântico: o Sant’Antonio.

O navio, imponente à distância, perdia parte de sua grandiosidade ao se aproximarem. O casco escurecido pela fuligem e a madeira desgastada denunciavam os anos de uso intenso. Conhecido pelos jornais como o “Navio de Lázaro”, ele já havia transportado milhares de emigrantes e ganhara essa alcunha devido à miséria que o acompanhava. Era um símbolo da resiliência de quem partia em busca de uma nova vida, mas também uma lembrança cruel das condições sub-humanas que aguardavam os passageiros.

A bordo, o ambiente era ainda mais opressivo. O porão, onde Francesco e Elena foram alocados com seus filhos, era um espaço apertado e insalubre, iluminado apenas por lâmpadas fracas e mal ventilado. O ar era pesado, carregado de odores de comida estragada, fumaça e corpos amontoados. Muitos dos passageiros já demonstravam sinais de doença: tosses secas ecoavam entre os corredores, e o semblante abatido era quase universal.

Enquanto se acomodavam no pequeno espaço que lhes foi designado, Francesco e Elena trocavam olhares de preocupação, mas também de determinação. Sabiam que a travessia seria um teste cruel, mas cada onda enfrentada, cada dificuldade superada, os aproximaria de um futuro em que seus filhos poderiam crescer com mais dignidade e esperança.

A Travessia

No convés inferior, onde ficavam os passageiros de terceira classe, as condições eram precárias. Francesco e Elena se acomodaram no chão, ao lado de outras famílias, sem espaço para se mover. Nos dias de chuva, todos se espremiam nos corredores apertados, onde o ar se tornava irrespirável. A comida era escassa e mal preparada; muitas vezes, os passageiros comiam de pratos que seguravam no colo, sentados onde podiam. Doenças se espalhavam rapidamente. Durante a segunda semana de viagem, Marco começou a apresentar febre alta e manchas pelo corpo. O médico a bordo, sobrecarregado e sem recursos, diagnosticou sarampo e recomendou apenas repouso. A falta de ventilação e as más condições sanitárias pioraram a saúde do menino.

Tragédia no Mar

Marco não resistiu à doença e faleceu em uma madrugada em que uma tempestade castigava o navio. No porão abafado, iluminado apenas por lâmpadas trêmulas, a presença da morte tornou o ambiente ainda mais sombrio. O som das ondas violentas do lado de fora parecia ecoar a dor dos que, como Francesco e Elena, sofriam perdas irreparáveis durante a travessia.

Na manhã seguinte, enquanto o Sant’Antonio enfrentava o mar revolto, Francesco e Elena tiveram que realizar a despedida mais dolorosa de suas vidas. O corpo de Marco foi envolto em um pedaço de tecido simples, um gesto simbólico para resguardar sua dignidade na morte. Com uma pedra amarrada aos pés para que o pequeno corpo não retornasse à superfície, ele foi preparado para seu destino final.

A cerimônia improvisada foi breve e silenciosa, marcada apenas pelo som das ondas negras e do vento que chicoteava o convés. Quando o corpo foi lançado ao mar, o impacto da água produziu um ruído surdo que ficou gravado na memória de Elena como um símbolo do fim abrupto e cruel da curta vida do filho.

No convés, outros emigrantes observavam com olhares mistos de pesar e resignação. A perda de Marco era um lembrete da fragilidade de todos a bordo e da incerteza que os cercava. Para Francesco e Elena, porém, a dor da despedida era amplificada pela necessidade de seguir em frente, carregando a memória de Marco enquanto enfrentavam os desafios da travessia e buscavam forças para cuidar de Giulia, sua filha sobrevivente.

A Chegada

Após semanas extenuantes a bordo do Sant’Antonio, marcadas por privação, doenças e o luto pela perda de Marco, o vapor finalmente atracou no movimentado porto de Santos, no Brasil. A visão da costa tropical era ao mesmo tempo uma promessa e um enigma para os Bettine. Os morros cobertos de vegetação exuberante e o calor úmido contrastavam com o cenário que haviam deixado no Vêneto.

O desembarque foi tumultuado. Junto com centenas de outros emigrantes, Francesco e Elena enfrentaram a burocracia e as longas filas de inspeção. Após uma breve quarentena, a família foi encaminhada ao destino que lhes havia sido designado: uma colônia agrícola no interior da província. A viagem continuou, desta vez por estradas empoeiradas e apertadas trilhas em carroças, até a região de Alfredo Chaves, um pequeno núcleo de imigrantes italianos situado em terras que começavam a ser desbravadas.

Ao chegarem, os Bettine encontraram um ambiente que parecia promissor à primeira vista. A terra era rica e fértil, muito diferente das parcelas áridas de San Vito, mas o trabalho era árduo. Francesco dedicava-se ao cultivo de café e milho, enquanto Elena cuidava da horta, dos animais e de Giulia, agora a única filha do casal.

Os desafios eram imensos. As longas jornadas de trabalho sob o sol tropical exauriam as forças de todos. Além disso, as doenças tropicais, como malária e febre amarela, eram ameaças constantes, agravadas pela falta de acesso a cuidados médicos adequados. Para Elena, cada nova dificuldade fazia crescer a saudade da terra natal, onde as montanhas e o clima ameno do Vêneto ainda habitavam suas memórias.


Apesar disso, os Bettine não desistiram. Francesco acreditava que a perseverança seria recompensada, e lentamente a família começou a se adaptar à nova realidade. O vínculo com outros imigrantes italianos na colônia trouxe algum alívio, permitindo-lhes compartilhar experiências, tradições e uma língua comum. Alfredo Chaves se tornou, com o tempo, um novo lar – não sem dificuldades, mas com a promessa de um futuro melhor para Giulia e as gerações que viriam.

Com o passar dos anos, a determinação de Francesco e Elena começou a dar frutos. Apesar das adversidades iniciais, a família conseguiu construir uma pequena casa de madeira, simples mas sólida, em meio às colinas férteis de Alfredo Chaves. A casa, com um telhado inclinado coberto de telhas feitas à mão, tornou-se um símbolo do esforço coletivo e da capacidade de adaptação. Era ali que os Bettine encontraram, pela primeira vez em muito tempo, um senso de estabilidade.


A lavoura que antes parecia um sonho distante começou a prosperar. Francesco dedicava-se ao cultivo de café e milho, enquanto Elena administrava uma pequena horta de subsistência que incluía ervas, legumes e frutas tropicais que aprendera a cultivar com outros colonos. O trabalho árduo transformou a terra em uma fonte confiável de sustento para a família, permitindo-lhes escapar, mesmo que parcialmente, da constante ameaça da fome.


Giulia cresceu forte e saudável, ajudando os pais nas tarefas do campo e absorvendo os valores de resiliência e união que moldavam a vida da família. Para ela, o sacrifício dos pais e a memória do irmão Marco tornaram-se inspirações profundas. Embora Marco nunca tivesse a chance de viver plenamente naquela nova terra, sua lembrança era mantida viva em cada conversa e em cada conquista, como um símbolo do preço pago para que a família pudesse recomeçar.


Com o tempo, a pequena propriedade dos Bettine transformou-se em um ponto de referência na comunidade. Apesar das dificuldades, Francesco e Elena se tornaram conhecidos pela generosidade e pelo espírito de colaboração com outros imigrantes. A história deles era contada com reverência, um testemunho de que, mesmo diante das maiores perdas, a coragem e a determinação podiam criar raízes profundas e florescer em solo estrangeiro.

Um Legado de Esperança

Décadas mais tarde, a trajetória dos Bettine não era apenas a história de uma família, mas parte de uma narrativa grandiosa que unia milhões de emigrantes italianos espalhados pelo mundo. Eles foram protagonistas de uma saga épica, marcada por coragem, sacrifício e determinação, que ajudou a moldar a identidade de comunidades inteiras em terras estrangeiras. Os chamados “Navios de Lázaro” — símbolos de sofrimento, perdas e incertezas — também foram veículos de um sonho coletivo: a busca por uma vida mais digna e a promessa de um futuro que justificasse todo o sacrifício.

Para os descendentes de Francesco e Elena, a memória dos antepassados é um patrimônio inestimável, preservado com reverência. Eles reconhecem que o presente confortável que desfrutam hoje só foi possível graças à força de vontade daqueles que enfrentaram mares turbulentos, terras inexploradas e desafios inimagináveis. Essa lembrança não é apenas uma homenagem, mas uma inspiração.

Ao longo das gerações, os valores que guiaram Francesco e Elena foram transmitidos como uma herança invisível, mas poderosa. O espírito de resiliência, a dedicação ao trabalho e a importância da união familiar permanecem como pilares fundamentais. Giulia, que cresceu sob o peso das histórias de sacrifício, tornou-se a matriarca de uma geração que viu Alfredo Chaves transformar-se em uma próspera comunidade.

Hoje, os descendentes dos Bettine mantêm viva a conexão com suas raízes italianas, celebrando tradições, compartilhando histórias e honrando o legado de coragem de seus ancestrais. A saga dos Bettine tornou-se um emblema da jornada de todos os imigrantes que, movidos pela esperança, cruzaram oceanos e enfrentaram adversidades para construir novos começos. Suas vidas provaram que, mesmo em meio à escuridão das maiores dificuldades, a luz do sonho por um futuro melhor pode ser o farol que guia gerações.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Uma Jornada de Esperança: A História de Giovanni Montelli

 


Uma Jornada de Esperança 

A História de Giovanni Montelli


Giovanni Montelli nasceu em 1852 em Campolongo, uma pequena vila de Conegliano, no interior de Treviso, região do Vêneto. O cenário de sua infância foi moldado por uma economia rural em declínio. A terra era infértil, os recursos escassos, e o trabalho árduo, porém mal recompensado. Seu pai, Pietro, era agricultor, enquanto sua mãe, Maria, costurava para complementar a renda. A vida era uma luta constante, e os Montelli muitas vezes iam dormir com fome.

Os anos que antecederam a partida de Giovanni foram particularmente difíceis. A Itália enfrentava o período pós a unificação, a criação do novo reino e as políticas econômicas que beneficiavam as cidades industriais enquanto sufocavam as áreas rurais. Em Treviso, a fome e a pobreza levaram muitos a buscarem uma saída desesperada. Giovanni, então com 2o anos, viu sua família enfrentar a dura realidade de que permanecer significava perpetuar o sofrimento.

Foi em uma tarde de inverno que Giovanni ouviu falar das promessas do Brasil, uma terra distante onde havia abundância de terras e oportunidades. Após muita hesitação e noites insones, sua família decidiu vender os poucos pertences que possuíam para financiar a passagem. Giovanni partiu com sua jovem esposa, Lucia, e o filho recém-nascido, Marco.

A Travessia do Oceano

A viagem começou no porto de Gênova. O navio a vapor, abarrotado de imigrantes, partiu rumo ao desconhecido. No início, havia esperança no ar, mas, com o passar dos dias, os desafios se tornaram evidentes. As condições no navio eram precárias; a comida era escassa e de má qualidade, e doenças se espalhavam rapidamente. Lucia adoeceu durante a travessia, e Giovanni teve que cuidar de Marco sozinho enquanto fazia o possível para confortar a esposa.

No entanto, entre as dificuldades, surgiram também laços. Os passageiros compartilhavam histórias, ajudavam-se mutuamente e sonhavam com um futuro melhor. Giovanni encontrou consolo em conversar com outros imigrantes, ouvindo sobre os planos e esperanças que todos tinham para a nova vida no Brasil.

A Chegada a Alfredo Chaves

Depois de semanas de tormenta, o navio finalmente aportou em Porto Alegre. Giovanni e sua família foram encaminhados para Alfredo Chaves, uma colônia que acolhia imigrantes italianos. A paisagem era diferente de tudo que já haviam visto: densas florestas, montanhas exuberantes e uma terra que parecia promissora, mas desafiadora.

Os primeiros meses foram uma mistura de dificuldade e adaptação. Giovanni trabalhou arduamente para limpar a terra e plantar as primeiras sementes. Lucia, mesmo ainda frágil, ajudava como podia, enquanto Marco começava a dar seus primeiros passos.

Com o passar dos anos, o esforço começou a dar frutos. Giovanni e Lucia construíram uma pequena casa de madeira, e a terra que antes parecia hostil começou a produzir o suficiente para alimentar a família e gerar algum excedente para venda. Eles também encontraram conforto na comunidade de outros imigrantes italianos, que se uniram para preservar suas tradições e apoiar uns aos outros.

O Legado de Giovanni Montelli

Décadas depois, a história de Giovanni tornou-se um exemplo de resiliência e determinação. Seus filhos cresceram e expandiram as terras da família, contribuindo para o desenvolvimento da região. Embora Giovanni nunca tenha retornado à Itália, sempre falava do Vêneto com saudade e orgulho, mas sem arrependimento de sua decisão de buscar uma vida melhor no Brasil.

Hoje, a história de Giovanni Montelli é contada como um tributo às centenas de famílias italianas que, com coragem e esperança, cruzaram o oceano em busca de um futuro melhor.

Nota do Autor

Esta narrativa faz parte do livro Uma Jornada de Esperança – A História de Giovanni Montelli e nasceu do desejo de preservar a memória daqueles que, movidos pela fé em um futuro melhor, deixaram suas aldeias na Itália e enfrentaram a dura travessia do oceano rumo ao Brasil.

Os nomes dos personagens foram alterados a pedido de alguns descendentes, com o objetivo de resguardar a intimidade de famílias que ainda hoje carregam em suas histórias as marcas dessa jornada. No entanto, os fatos, o contexto histórico e o espírito que os sustentou permanecem fiéis à realidade vivida por centenas de pioneiros.

Escrevi esta obra como uma homenagem. Uma forma de reconhecer a coragem daqueles homens e mulheres que, em meio à incerteza, encontraram forças para recomeçar em terras desconhecidas. Suas lutas, sacrifícios e conquistas formaram os alicerces de comunidades inteiras e ajudaram a construir parte importante da identidade cultural do Brasil.

Que este relato sirva não apenas como lembrança, mas também como gratidão. Um tributo às gerações que abriram caminho, para que hoje possamos compreender de onde viemos e valorizar a herança deixada por aqueles que, com resiliência e esperança, transformaram sonhos em realidade.

Dr. Piazzetta




quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O Último Adeus a Feltre

 


O Último Adeus a Feltre

Memórias de um emigrante entre a partida e o silêncio

Feltre, no início do século XX, era uma pequena joia de pedra incrustada no coração agreste dos Dolomitas italianos. Cercada por montanhas que pareciam erguer muralhas contra o mundo exterior, a cidade vivia sob um ritmo próprio. As ruas estreitas, calçadas com pedras irregulares, guardavam um silêncio antigo, interrompido apenas pelo som grave das badaladas da torre da igreja, que marcavam as horas como se fossem capítulos de uma história imutável.

Aldo Bernardi nasceu e cresceu nesse cenário, filho de um lenhador. Desde cedo aprendeu a acompanhar o pai nos bosques que se estendiam como muralhas verdes ao redor da cidade. Os invernos eram longos e duros, cobrindo tudo de um branco silencioso; as manhãs de trabalho traziam o hálito gelado da montanha e o cheiro da madeira recém-cortada. A vida era dura, mas sólida. As casas de pedra, as colinas suaves, as feiras silenciosas onde mais se trocavam notícias que moedas — tudo construía um laço profundo com aquela terra.

Mas a juventude, ao contrário das montanhas, não é imóvel. Aldo cresceu num tempo em que o mundo parecia mudar rápido demais, mesmo para um lugar tão isolado. A Primeira Guerra Mundial levou rapazes conhecidos, vizinhos, primos — alguns não voltaram; outros regressaram mutilados, com um silêncio que pesava mais que qualquer relato. As fachadas da cidade carregavam marcas de estilhaços, mas eram as pessoas que traziam as cicatrizes mais fundas.

Quando a paz chegou, não trouxe alívio. Trouxe um silêncio inquietante. A guerra havia terminado, mas a pobreza permanecia. As pequenas indústrias, que haviam florescido para alimentar o conflito, fecharam suas portas. Os campos já não rendiam o suficiente para sustentar todas as famílias. Jovens circulavam sem destino, oferecendo braços fortes a quem já não tinha como pagá-los.

Foi nesse cenário que Aldo, ainda muito jovem, deixou Feltre pela primeira vez. Atravessou os Alpes rumo à França, onde trabalhou nas minas do Jura. Passava dias inteiros embaixo da terra, respirando poeira de rocha e convivendo com o silêncio sufocante das galerias. Três anos depois, regressou à sua cidade. Voltava com as mãos mais calejadas, os ombros mais curvados e um bolso quase vazio. A França dera sustento, mas não futuro.

1924: A hora da decisão

Naqueles anos, a Itália vivia sob as mudanças do regime de Mussolini, que consolidava o poder em Roma. O discurso fascista chegava às vilas mais distantes, prometendo ordem e unidade, mas também trazendo incerteza e tensão. Para muitos, a esperança passou a se depositar em lugares distantes — na América, onde cartas de parentes e conhecidos falavam de terras férteis, trabalho abundante e, talvez, um futuro digno.

Aldo começou a ouvir cada vez mais a palavra “Brasil” nos encontros de taberna e nas conversas baixas nas feiras. Em cozinhas modestas, enquanto o pão era repartido com parcimônia, famílias falavam de navios, portos, passagens e oportunidades. Aos poucos, o inevitável se impôs: o futuro não estava mais em Feltre.

A despedida

Na madrugada de 15 de julho de 1924, Feltre acordou antes do sol. Não havia festa na despedida, apenas um silêncio pesado. A mãe de Aldo mantinha os dedos entrelaçados, como se suas orações pudessem deter o inevitável. O pai, firme, olhava o filho sem palavras. A carroça de aluguel aguardava na praça para o levar até a estação de trem. Ao comando do cocheiro, as rodas começaram a girar, e Aldo permaneceu mudo, vendo as ruas se afastarem lentamente. Só depois de algumas curvas ousou virar-se para lançar o último olhar — o adeus às montanhas de sua infância.

Longarone foi apenas passagem: documentos, esperas, burocracia. Em Veneza, Aldo obteve o passaporte. Comprou pão, salame e vinho, alimento e memória comprimidos para a viagem até o porto de Gênova.

Gênova o recebeu com cheiro de sal e o barulho incessante do porto. Agentes de imigração o conduziram a um hotel barato, onde depositou bagagem e se misturou a centenas de outros viajantes. Em uma caminhada pelo cais, viu pela primeira vez o colosso metálico: o vapor Giulio Cesare, um gigante pronto para cortar o Atlântico.

Na manhã de 30 de julho, o porto fervilhava. Antes de embarcar, Aldo comprou limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e escreveu dois cartões para os familiares em Feltre. Ao som de três apitos longos, o navio começou a afastar-se lentamente. Em terra, centenas acenavam. Era um adeus carregado de dor e orgulho. O mar se abriu à frente como promessa e abismo.

Travessia e chegada ao Brasil

Durante a travessia, o oceano tornou-se um espaço suspenso no tempo. No porão da terceira classe, os beliches eram estreitos e o ar rarefeito. A comida era pouca e sem sabor. No convés, quando o clima ou o capitão permitia, Aldo olhava o horizonte e imaginava a nova vida. As noites eram povoadas pelo som das ondas e pela saudade de Feltre.

Ao desembarcar no Porto de Santos, o calor do Brasil o envolveu como um muro invisível. A língua era outra, os sons diferentes, o cheiro carregado de café, frutas e maresia. Dali, seguiu de trem para o Rio Grande do Sul, acompanhando um grupo de vênetos que já tinham parentes estabelecidos desde as grandes levas de emigrantes do século anterior.

Nova vida no Sul

O destino final foi a região de Bento Gonçalves, uma terra de colinas verdes que, à distância, lembrava vagamente as encostas do Vêneto. Aldo começou trabalhando como empregado em vinhedos de outros imigrantes. A poda, o plantio, a vindima — tudo era trabalho duro, mas não havia patrão estrangeiro. Aqui, o suor poderia, um dia, se transformar em terra própria.

Com o tempo, juntou economias e comprou um pequeno lote. Casou-se com Lucia Morette, filha de imigrantes estabelecidos muitos anos antes. A casa era simples, feita de madeira e pedra, mas abrigava o som de crianças e o aroma de polenta. Os filhos cresceram entre as cantinas e os parreirais, aprendendo a língua dos pais e a nova língua da terra.

Aldo ajudou na construção de uma capela, participou de mutirões para abrir estradas e plantou parreiras que, décadas depois, dariam frutos para seus netos.

E, ainda que o Atlântico o separasse de Feltre, em cada parreira carregada de uvas, em cada laje de pedra que sustentava sua casa, havia o eco distante da cidade entre as montanhas. Um eco que não se apagaria nunca.

Epílogo

O tempo, com seu ritmo silencioso, seguiu desenrolando a vida sobre as colinas da Serra Gaúcha. Aldo Bernardi partiu em um inverno calmo, quando as videiras estavam despidas e o vento trazia o mesmo frio que ele conhecera nas montanhas de Feltre.

No dia do enterro, o cortejo percorreu a pequena estrada ladeada por parreiras já antigas, plantadas por suas mãos. Filhos, netos e vizinhos carregavam não apenas o caixão, mas a memória viva de um homem que, um dia, deixou tudo para cruzar o oceano.

Seu túmulo, simples, de pedra lavrada, tinha o nome gravado em letras firmes, e ao lado um pequeno ramo de uma parreira, trazida de Feltre anos antes por um conterrâneo. Era como se as duas terras finalmente repousassem juntas, unidas para sempre.

No silêncio daquela tarde, a Serra parecia suspensa, como se os vales, as parreiras e o céu carregassem a certeza de que o sangue e o suor dos que partiram jamais seriam esquecidos.

E, nas gerações seguintes, cada vindima, cada copo erguido e cada canção entoada em dialeto vêneto, agora chamado de talian, seriam, sem saber, um brinde ao homem que ousou atravessar o mar.

Nota do Autor

A história de Aldo Bernardi foi inspirada em um relato real, de um emigrante da província de Belluno, que deixou a Itália em 1924, após breve passagem pela França anos antes, para tentar a vida no Brasil.

Sua narrativa, preservada, revela não apenas o itinerário físico — de Feltre a Longarone, de Veneza a Gênova, do vapor Giulio Cesare até as terras do Rio Grande do Sul —, mas, sobretudo, a paisagem humana de um tempo: a despedida da pátria, a travessia incerta, a adaptação em uma nova terra. Nesta versão ficcional, os nomes foram alterados, mas a essência foi mantida. Busquei preservar o tom emocional e a atmosfera histórica, dando voz ao silêncio que tantas vezes se impôs aos emigrantes.

Dedico esta obra a todos os descendentes que, espalhados pelo Brasil, ainda carregam no sotaque, nos costumes e na memória o eco distante das colinas do Vêneto.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



domingo, 17 de agosto de 2025

Tra Erbe e Novi Orisonti



Tra Erbe e Novi Orisonti


Giuseppe lu el ze partì de Ciósa soto ‘n cielo pesà de nuvole scure, portando no so ‘na valisa de corame consumà dal tempo, ma anca el vècio peso del sapere che la mare ghe gavea lassà — ‘na farmacopea viva de la famèia, ‘na eredità pì pressiosa de ogni moneda. In quele tera del Vèneto, ‘ndove le erbe medicinài le cresseva drento ogni orto e el poso el zera fonte de vita e de cura, el gavea imparà che la natura la regala remèdi sèmplisse, ma potenti. Decoti de malva, camomila, tamarindo e rebarbaro i zera el solievo contro le pene che la povertà e el fredo no sparagnava; la santonina, ‘na amara infusion de fiori de artemìsia, la zera l’arma contra i vermi che tormentava i putei e confondeva medéghi e mare.

Ai oci de tanti, quela medesina popolar pareva superstission o ritardo, ma par Giuseppe e la so zente la zera l’essenssa de la sopravivensa. Lu el se ricordava de le sere che le mare preparava con cura le posion, i bagni caldi par levar la testa pesà, le sanguesughe messe con pressision brusca par tirà fora el mal, e le pomade fate de òlio, sapon e erbe, spalmà sora le zone malà silensiose che nissun vardava.

El viaio fin al Brasile el ze stà longo e crudele. L’Atlàntico pareva sensa fin, e l’insertessa la zera compagna de ogni zorno. Quando lu el ze sbarcà, Giuseppe el ga trovà ‘na tera de caldo brusente, foreste dense e un cielo massa vasto par i so oci acostumà a le coline italiane. La lèngua la zera un muro, el laoro duro e massacrante, e la nostalgia un pugnal piantà drento el peto. Ma drento el cuor, el gavea la forsa de le radise, de quele erbe sèmplisse e de quel sapere popular che, anca se ele gavea lassà la so tera, no la gavarìa mai lassà lu.

In colònia, tra la foresta serà e la tera nova, Giuseppe e i so compagni i dovea rifar tuto — case, piantagioni, vite. El caldo fasea colar el sudor come un fiume, e le malatie portava paura e morte. Le febri malàrighe le atacava sensa pietà, e lu vedeva tanti cascar, vìtime del scognossiù. Ma come in Vèneto, la risposta la zera drento la tera e ´ntel sapere antico: compresse de gelo, chinino in pòlvere misturà con el late e zeo, bagni par calmar el dolor e pomade par le feride zera i remèdi che tegnea viva la comunità. El vin caldo, desmentegà da tempo, el zera stà rimpiassà da ‘na coraio sèmplisse che nutriva ogni matina.

Le mare continuava a dar la santonina ai putei, con la stessa passiensa e fede de ‘na volta, intanto che Giuseppe, adesso cognossù come cùstode dei remèdi naturài, spargeva el so sapere a chi che gavea bisogno. El insegnava che le tinture fate con òlio e scorpioni pestai, par quanto strane le pareva, le gavea radise profonde in quel mondo antico; che i bagni con i piè in aqua calda e le compresse de senape no zera mica riti sensa senso, ma ponti tra el corpo e la cura.

No el ze stà fàssile abituarse. Tra le piantagion de cafè e le case de pàia e fango, le vose del dialeto ciosoto le se misturava con i canti dei ìndios e con el portoghese che i tentava de imparar. Le feste, le preghiere e le tradission zera la cola che tegnea in pé l’ànima dei emigranti, salvando l’identità davanti al perìcolo del desmentegarse. E intanto che el sudor lavea la fàssia e el laoro induriva le man, Giuseppe el sentiva che resistea — resistea no solo a le adversità de la tera e del clima, ma anca al fantasma del abandono, de la pèrdita de la memòria.

Qualche volta, el se sentava al’ombra de ‘na pianta e serava i oci, lassando che le imagine de Ciosa le ghe tornasse drento la mente: el poso ‘ndove el cavava l’àqua par i decoti, la cusina de la mare ‘ndove le erbe le sechea pendurà, la piassa ‘ndove i putei i corea lìbari e sani, proteti dal sapere vècio. Lì, in quel momento, el capia che quela farmacopea sèmplisse la zera pì che un remèdio — la zera ´na union sacra tra el passà e el futuro, la certessa che, anca lontan, el sangue e la cultura de la so zente no sarìa mai desmentegà.

Cussì, tra el profumo de le piante brasilian e la memòria de le coline italiane, Giuseppe el se el ga fato ‘na vita. Lu el ga vivù par contar stòrie, par passar avanti i segreti de le erbe e dei bagni, par far vardar che, anca drento al mondo novo, le radise piantà ´ntela tera vècia continuava a fiorir. Lu el ga resistì come ‘na vècia oliva, piegà dal tempo, ma incurpàbile.

E sta resistensa, fata de sciensa popular e speransa, la ze stà l’eredità che el ga lassà ai so fiòi e ai so nepoti — ‘na eredità invisìbile, ma viva come le erbe che guarisce, e forte come el sònio de chi che el ga traversà el mar in serca de un novo scomìnsio.

Nota del Autor

Scrivendo Tra Erbe e Novi Orisonti, mi go volù salvar un capìtolo poco cognossùo de la gran saga dei emigranti italiani che, a la fin del sècolo XIX, i ga traversà i osseani in serca de ‘na vita mèio. Sta narativa la ze ‘na onoransa a la coraio e al sapere de quei che, anca davanti a un mondo estraneo e duro, i ga trovà ´ntela semplessità de le erbe e ´ntel sapere vècio ´na union vitale con le so radise e ‘na fonte de speransa.

La stòria la vien fora de ‘na ricerca longa e del desiderio de dar vose a personagi che tante volte i ze restà invisìbili ´nte le gran cronache de l’emigrassion: i curandéi, i savi del campo, quei che tegnea in piè la comunità, aiutandola a sopravìivar e a adaptarse sensa perder la so identità. Atraverso lori, mi go volù far vardar come la natura e el sapere tradissional i ze stà compagni indispensàbili ´nte la costrussion de nove case e vite.

Tra Erbe e Novi Orisonti el ze, sora de tuto, un invìto a rifletar sul valor de le memòrie, de le pràtiche populari e de la perseveransa umana davanti a le adversità. Ai dessendenti dei emigranti, lasso sto raconto come un riconossimento de la forsa che core ´ntel so sangue e del patrimònio che i porta drento — ‘na stòria de lota, sapere e rinassenssa.

Dr. Piazzetta