segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Os Riscos da Travessia do Oceano no Século XIX

 

Emigrantes a bordo 

Os Riscos da Travessia do Oceano no Século XIX

Homens, mulheres e crianças viajando em direção à América do Sul, atravessando o grande e desconhecido oceano durante mais de trinta dias a bordo de lentos e velhos navios a vapor — quase sempre com a lotação muito acima da permitida — é a imagem que melhor caracteriza o início da grande emigração italiana a partir de 1875. Esse movimento continuou até o final do século XIX e nos primeiros anos de 1900, pouco antes de estourar a Primeira Guerra Mundial.

Atravessar o oceano nessas condições era, sem dúvida, uma aventura de risco. As embarcações raramente eram projetadas para o transporte humano. Eram cargueiros adaptados às pressas, onde os passageiros de terceira classe — os emigrantes — ficavam amontoados em porões úmidos e escuros, sem janelas, dormindo em redes ou em tábuas empilhadas. O ar era pesado, quase irrespirável, e o chão permanecia coberto por água salgada, excrementos e restos de comida. A ração diária consistia em biscoito duro, arroz, feijão e, quando muito, um pequeno pedaço de carne salgada. A água, guardada em tonéis de madeira, tornava-se rapidamente turva e intragável.

Durante a viagem podia-se morrer de fome, de sufocamento nos porões mal ventilados, pelas diversas epidemias que surgiam a bordo e também pelos naufrágios das embarcações. As doenças eram o terror de todos. Bastava um único passageiro embarcar doente para que o contágio se espalhasse como fogo em palha seca. Tifo, cólera, varíola e escorbuto ceifavam vidas sem distinção. Médicos de bordo, quando existiam, pouco podiam fazer — dispunham de remédios improvisados e raramente conseguiam conter a propagação das epidemias. Os doentes eram isolados em pequenos compartimentos, verdadeiras celas, onde aguardavam a morte em silêncio.

Os mais atingidos eram sempre os mais fracos: crianças, mulheres e idosos. Quando ocorria uma epidemia a bordo, os mortos eram lançados ao mar, envoltos apenas em um lençol costurado em torno do corpo, com uma pedra amarrada aos pés ou à cabeça. Muitas vezes, devido à pressa da tripulação em se desfazer desses pobres infelizes, alguns ainda respiravam e vinham morrer afogados. Isso era feito, segundo explicava um médico de bordo, para evitar sofrimentos maiores e impedir que os sobreviventes fossem contaminados.

Não raras vezes, em navios onde surgiam casos de cólera, os passageiros eram impedidos de desembarcar mesmo já atracados ao largo do porto de destino. E ainda pior: em várias ocasiões, esses navios eram obrigados a empreender a “torna viagem” — o retorno forçado ao porto de partida — obrigando os emigrantes a enfrentar novamente mais trinta dias de uma aterradora travessia.

As companhias de navegação lucravam com cada corpo embarcado. Quanto mais passageiros, maior o lucro. As listas oficiais de embarque eram frequentemente falsificadas, omitindo o verdadeiro número de emigrantes a bordo. Assim, muitos navios partiam superlotados, levando o dobro da capacidade permitida. As autoridades italianas e sul-americanas, movidas por interesses econômicos e pela pressa em “exportar braços”, pouco faziam para fiscalizar as condições de viagem.

Os riscos dessa longa travessia não se limitavam à fome e às epidemias. Havia também as tempestades e os naufrágios, causados por ventos violentos e ondas que varriam o convés. Em noites de furacão, as embarcações balançavam como cascas de noz no oceano escuro, enquanto o pavor se espalhava entre os passageiros. Muitos se agarravam a imagens de santos, rezando em dialetos diferentes e pedindo apenas para chegar vivos. Outros, descrentes, fitavam o horizonte, imaginando se algum dia veriam terra firme novamente.

Entre os naufrágios mais trágicos envolvendo emigrantes italianos que se dirigiam à América, podem ser lembrados: em 1880, o navio a vapor Ortigia; em 1891, o Utopia; em 1898, o Borgonha; em 1906, o Sirio; e em 1927, o Principessa Mafalda, cujas mortes comoveram o mundo inteiro. Em cada um desses desastres, centenas de sonhos e famílias foram tragados pelas águas do Atlântico.

Havia ainda os “enganos” ou desvios deliberados de rota. Não foram raros os casos em que os comandantes, por ordem das companhias, mudavam o destino sem aviso. Um navio que deveria chegar ao Brasil e à Argentina acabou desembarcando seus passageiros em Nova York. Outro, destinado ao porto de Santos, desembarcou furtivamente seus emigrantes nas praias de Marselha, na França. Os passageiros, sem compreender a língua e sem documentos, tornavam-se prisioneiros do acaso.

Mesmo entre os que conseguiam sobreviver à travessia e alcançar o continente americano, muitos carregavam para sempre as cicatrizes do medo. Mulheres que perderam filhos jamais conseguiram esquecer o som das ondas levando os pequenos corpos. Homens que sobreviveram a naufrágios jamais voltaram a embarcar. E todos, sem exceção, traziam no olhar o peso de uma travessia que os havia mudado para sempre.

A travessia do Atlântico, mais do que uma viagem, foi uma prova de fé e resistência. Cada família que sobreviveu deixou às gerações futuras um legado de coragem anônima — escrito não em livros, mas nas lágrimas, nas preces e nas cicatrizes daqueles que ousaram desafiar o oceano em busca de uma vida melhor.

Nota do Autor

Os fatos aqui relatados não pertencem apenas às páginas esquecidas da história, mas à memória viva de milhões de famílias italianas que, entre o final do século XIX e o início do XX, arriscaram tudo o que tinham na esperança de um novo começo. A travessia do Atlântico, descrita nestas linhas, foi uma das mais dolorosas etapas da emigração italiana — e talvez a que melhor revele a dimensão humana desse êxodo.

A precariedade dos navios, o lucro desenfreado das companhias de navegação e o descaso dos governos criaram um cenário em que a vida humana pouco valia. Os emigrantes, tratados como carga, eram embarcados em porões sem ventilação, sujeitos à fome, à doença e ao desespero. Muitos não sobreviveram para ver as terras prometidas. Seus corpos, lançados ao mar sem sepultura, tornaram-se parte silenciosa do oceano que separava a miséria da esperança.

Essas tragédias — esquecidas nos registros oficiais — moldaram o caráter de uma geração inteira. O medo, a coragem e a fé desses viajantes anônimos foram herdados por seus descendentes, que hoje vivem nas Américas sem imaginar que, para que existissem, outros precisaram desafiar o impossível. Cada nome perdido nas listas de embarque e cada lágrima derramada sobre o convés de um navio formam a verdadeira epopeia da imigração italiana: uma história de sacrifício e sobrevivência, escrita nas ondas do Atlântico e gravada na alma dos que vieram depois.

Recordar esses episódios não é apenas prestar homenagem aos que partiram, mas reconhecer o preço humano de um sonho coletivo — o sonho de viver.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta




A vida de Matteo Oste – Da planície de Rovigo às terras vermelhas do Brasil


 

A vida de Matteo Oste – Da planície de Rovigo às terras vermelhas do Brasil


Matteo Oste nasceu em Lendinara, pequena localidade da província de Rovigo, no Vêneto, em 1º de novembro de 1861. A infância dele desenrolou-se em meio a campos de arroz que cintilavam ao sol como lâminas douradas e às extensas planícies onde o milho, plantado com sacrifício, sustentava famílias inteiras. Mas por trás da paisagem fértil escondia-se a amarga realidade: a terra já não bastava para todos, e cada colheita parecia menor que a anterior.

Desde menino, Matteo cresceu cercado por histórias de miséria e endividamento. As conversas nas tavernas falavam de impostos que esmagavam os camponeses, de senhores de terra cada vez mais ricos e de famílias inteiras que não tinham mais o que comer. À noite, quando o silêncio caía sobre a aldeia, ele via homens despedindo-se às pressas, partindo em direção a Turim, Milão ou até mais longe, em busca de trabalho nas fábricas nascente da revolução industrial. Ficavam as mulheres, imóveis nos umbrais das portas, com crianças agarradas às saias, olhando para o horizonte como se esperassem que de lá viesse algum milagre.

Para Matteo, essas imagens tornaram-se parte da vida cotidiana. O som dos sinos da igreja misturava-se ao murmúrio de rezas pedindo fartura, enquanto os campos, castigados ora pelas enchentes do Pó, ora pela seca implacável, entregavam colheitas incertas. Na memória do menino, a abundância era apenas um lampejo breve: algumas semanas de saciedade logo substituídas pela dureza do inverno e pela monotonia da polenta, servida dia após dia como único sustento.

Essa infância moldou nele duas certezas. A primeira era que a terra natal, por mais bela que fosse, não oferecia futuro. A segunda, ainda vaga e silenciosa, era que um destino diferente o aguardava além das fronteiras invisíveis de Lendinara.

Foi nesse cenário de penúria e de esperanças frágeis que Matteo conheceu Rosa Zanetti, nascida também em Lendinara, em 8 de setembro de 1867. Ela crescera entre os mesmos arrozais alagados e os mesmos campos de milho castigados pelas enchentes do Pó. Desde menina aprendera a lidar com o peso dos baldes de água, a paciência de ceifar trigo sob o sol inclemente e a resignação de ordenhar vacas magras, cujo leite mal bastava para alimentar os irmãos menores.

A juventude dos dois foi marcada pelo trabalho incessante, de sol a sol. Matteo passava as manhãs inclinado sobre a terra, com a enxada cavando sulcos estreitos, enquanto Rosa, ao lado da mãe, cuidava da horta e das galinhas, preparando a refeição escassa que sustentaria a família até o anoitecer. A mãe de Rosa trabalhava também em arrozais como "mondina". Os dois se viam nas colheitas de arroz, nas festas paroquiais, nos domingos em que a missa reunia toda a comunidade. Entre olhares tímidos e breves conversas à sombra da igreja, nasceu um afeto silencioso, sólido como as pedras que sustentavam as casas da aldeia.

Casaram-se cedo, não apenas por amor, mas também porque o casamento parecia ser, naquela época, um abrigo contra a precariedade da vida. Para Rosa, significava trocar a casa paterna por um lar próprio; para Matteo, significava ter alguém com quem dividir o peso da terra ingrata. Mas nem a união, nem a juventude dos corpos, nem a obstinação dos braços eram suficientes para conter a realidade que se espalhava como uma sombra sobre o Vêneto.

A região mergulhava em uma crise silenciosa: a terra, dividida geração após geração, tornava-se cada vez menor; os impostos devoravam os parcos lucros; e as más colheitas traziam fome ano após ano. A miséria não respeitava lares. Havia dias em que o prato de polenta era o único alimento disponível, e noites em que Matteo e Rosa iam para a cama com o estômago vazio, consolando-se apenas com a esperança de que a manhã seguinte fosse menos dura.

No coração deles, contudo, começava a germinar uma semente de inquietação. O Vêneto, com seus campos dourados e suas aldeias de pedra, era belo demais para ser abandonado — mas, ao mesmo tempo, cruel demais para ser o destino final de suas vidas.

Em 1886, Matteo e Rosa tomaram a decisão que mudaria para sempre o destino de sua linhagem: deixar Lendinara e cruzar o oceano rumo ao Brasil. Não foi escolha fácil. Durante semanas, as conversas na pequena casa de pedra giraram em torno de dívidas impagáveis, colheitas insuficientes e do medo de ver os filhos crescerem na mesma pobreza que eles haviam conhecido. Partir significava arriscar tudo; ficar significava definhar lentamente. A esperança, ainda que remota, venceu o medo.

Com dois filhos pequenos, apresentaram-se ao porto de Gênova, junto a centenas de outros camponeses vindos do Veneto e Lombardia. Ali, diante do gigante de ferro que os esperava, Rosa sentiu um frio no peito, como se estivesse prestes a romper para sempre com o mundo que conhecia. Matteo, firme, segurou-lhe a mão: já não havia retorno.

O navio estava abarrotado de homens exaustos, mulheres assustadas e crianças inquietas. Nos porões, o ar era denso, impregnado de suor, de sal e de um leve odor de mofo que parecia grudar na pele. Cada família defendia com unhas e dentes um pequeno espaço onde espalhava cobertores e trouxas de roupas. O barulho incessante das ondas misturava-se ao ranger das madeiras e ao resfolegar das máquinas, criando uma sinfonia áspera que embalava os dias.

À noite, quando o convés se tornava um palco de ventos fortes e céu estrelado, os imigrantes reuniam-se para rezar, cantar ou simplesmente chorar em silêncio. Lá embaixo, no porão, as crianças choravam de fome ou de enjoo. Rosa embalava seus pequenos contra o peito, murmurando cantigas em dialeto vêneto para disfarçar a própria angústia. Matteo permanecia acordado por horas, deitado sobre o chão duro, ouvindo o som pesado das ondas que batiam contra o casco como se quisessem arrancar o navio do mar.

A travessia parecia interminável. Dias de calor sufocante alternavam-se com tempestades que faziam o navio inteiro estremecer. Houve noites em que o medo percorreu cada olhar: uma única onda mais forte poderia engolir tudo. Mas havia também manhãs de calma, em que os passageiros subiam ao convés e, pela primeira vez em semanas, sentiam o sol e o vento livres no rosto. Nessas horas, Matteo erguia os olhos para o horizonte e imaginava o futuro. Não via riquezas nem facilidades — apenas a chance de oferecer aos filhos uma vida em que a fome não fosse companheira diária.

No coração de Rosa, o medo convivia com a esperança. Enquanto cantarolava baixinho, ela se perguntava se algum dia veria novamente os campanários de Lendinara ou os arrozais de sua infância. Mas quando olhava para Matteo, imóvel, com o rosto endurecido pela determinação, sabia que não havia mais recuo: a travessia já não era apenas geográfica, mas também de destino.

E assim, embalados entre rezas e tempestades, suor e saudade, o casal Oste avançava para um continente desconhecido — um mundo novo que os receberia com a dureza da terra vermelha e, ao mesmo tempo, com a promessa silenciosa de um futuro possível.

Após semanas de tormenta e calor sufocante, finalmente avistaram o Brasil. O destino era uma grande fazenda chamada Santa Gertrudes, no interior de São Paulo, onde o nome do Conde do Prado já se impunha sobre vastas áreas plantadas com café. Ali os Oste foram lançados num mundo de trabalho sem descanso. O sol queimava como fogo, a terra parecia não ter fim, e o idioma dos feitores soava áspero aos ouvidos dos recém-chegados.

O peso do destino mostrou-se cruel: Matteo e Rosa em poucos meses perderam os dois filhos para febres desconhecidas e incuráveis com os remédios caseiros que conseguiram. A dor foi silenciosa, sufocada no trabalho diário, mas nunca esquecida.

Com o tempo, a vida se recompôs. Nasceram-lhes outros filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. A pequena casa de madeira, perdida entre laranjais, encheu-se outra vez de vozes infantis. Matteo, homem prático, instituiu uma disciplina rígida: a mesa de sua família teria apenas o necessário — polenta de milho, que ele adquiria no armazém da própria fazenda. Alguma carne de porco de a de aves que criavam completavam a dieta. Nada era desperdiçado. Cada moeda era guardada como se fosse ouro.

Durante anos, o casal trabalhou de sol a sol, suportando calos, dívidas com o patrão, e o peso de uma vida que parecia nunca melhorar. Mas Matteo carregava consigo uma obstinação férrea. Aos poucos, juntou pequenas economias, fruto do sacrifício de cada um dos dias vividos.

Finalmente, depois de quase seis anos, o momento chegou. Deixaram para trás o trabalho assalariado e adquiriram um pedaço de terra fértil em local promissor conhecido como Mombuca. Aquele chão representava não apenas propriedade, mas dignidade. Ali, Matteo e Rosa reuniram filhos e netos, erguendo casas, plantando lavouras, transformando o mato em cultivos e o medo em esperança. Apenas Teresa não os acompanhou: casara-se com Ângelo Mariani, descendente de italianos, e permanecera mais alguns anos na Santa Gertrudes, junto do marido.

Matteo Oste envelheceu cercado pela família, vendo no rosto dos netos a prova de que sua decisão de emigrar não fora em vão. Partiu deste mundo em 11 de abril de 1942, em Rio Claro. Rosa sobreviveu mais de uma década, falecendo em 19 de janeiro de 1953. Seus olhos se fecharam longe da Itália, mas seu coração estava enraizado no Brasil.

A trajetória dos Oste é um retrato do destino de milhares de imigrantes: camponeses pobres que trocaram o frio de Rovigo pelo calor abrasador das terras paulistas. Homens e mulheres que suportaram perdas inimagináveis, mas legaram aos seus descendentes não apenas a memória da dor, e sim o valor do trabalho, da esperança e da terra conquistada com suor.

Nota do Autor

A história de Matteo Oste e de sua esposa Rosa Zanetti é uma recriação literária, construída a partir de relatos orais que chegaram até mim por meio de uma de suas netas. Foi ela quem, com emoção na voz e brilho nos olhos, narrou a trajetória de seus avós, emigrantes vindos de Rovigo, no Vêneto, em 1886, que deixaram a pátria e atravessaram o oceano rumo ao Brasil.

Embora os nomes tenham sido modificados para preservar a intimidade das famílias envolvidas, os fatos aqui relatados guardam raízes verdadeiras. A pobreza da Itália setentrional no final do século XIX, a travessia em navio abarrotado de imigrantes, as primeiras jornadas em fazendas de café do interior paulista, a perda dolorosa de filhos, a persistência no trabalho agrícola, a vida marcada pela polenta, pelas laranjeiras e pela disciplina severa à mesa, tudo isso é parte de uma memória transmitida de geração em geração.

A neta de Matteo, ao reconstituir a história, não apenas ofereceu datas e lugares, mas também o sentimento de quem cresceu ouvindo sobre o sacrifício dos antepassados. Coube a mim, como escritor, vestir essas lembranças com a roupagem da narrativa, ampliando-as em forma de romance histórico, sem nunca trair a essência do vivido.

Assim, esta obra não é biografia, mas tampouco é invenção gratuita. É a fusão entre memória familiar e literatura, um gesto de respeito aos que partiram do Vêneto em busca de uma vida melhor e acabaram por construir, no interior de São Paulo, raízes tão profundas quanto as árvores que plantaram.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta