Os Riscos da Travessia do Oceano no Século XIX
Homens, mulheres e crianças viajando em direção à América do Sul, atravessando o grande e desconhecido oceano durante mais de trinta dias a bordo de lentos e velhos navios a vapor — quase sempre com a lotação muito acima da permitida — é a imagem que melhor caracteriza o início da grande emigração italiana a partir de 1875. Esse movimento continuou até o final do século XIX e nos primeiros anos de 1900, pouco antes de estourar a Primeira Guerra Mundial.
Atravessar o oceano nessas condições era, sem dúvida, uma aventura de risco. As embarcações raramente eram projetadas para o transporte humano. Eram cargueiros adaptados às pressas, onde os passageiros de terceira classe — os emigrantes — ficavam amontoados em porões úmidos e escuros, sem janelas, dormindo em redes ou em tábuas empilhadas. O ar era pesado, quase irrespirável, e o chão permanecia coberto por água salgada, excrementos e restos de comida. A ração diária consistia em biscoito duro, arroz, feijão e, quando muito, um pequeno pedaço de carne salgada. A água, guardada em tonéis de madeira, tornava-se rapidamente turva e intragável.
Durante a viagem podia-se morrer de fome, de sufocamento nos porões mal ventilados, pelas diversas epidemias que surgiam a bordo e também pelos naufrágios das embarcações. As doenças eram o terror de todos. Bastava um único passageiro embarcar doente para que o contágio se espalhasse como fogo em palha seca. Tifo, cólera, varíola e escorbuto ceifavam vidas sem distinção. Médicos de bordo, quando existiam, pouco podiam fazer — dispunham de remédios improvisados e raramente conseguiam conter a propagação das epidemias. Os doentes eram isolados em pequenos compartimentos, verdadeiras celas, onde aguardavam a morte em silêncio.
Os mais atingidos eram sempre os mais fracos: crianças, mulheres e idosos. Quando ocorria uma epidemia a bordo, os mortos eram lançados ao mar, envoltos apenas em um lençol costurado em torno do corpo, com uma pedra amarrada aos pés ou à cabeça. Muitas vezes, devido à pressa da tripulação em se desfazer desses pobres infelizes, alguns ainda respiravam e vinham morrer afogados. Isso era feito, segundo explicava um médico de bordo, para evitar sofrimentos maiores e impedir que os sobreviventes fossem contaminados.
Não raras vezes, em navios onde surgiam casos de cólera, os passageiros eram impedidos de desembarcar mesmo já atracados ao largo do porto de destino. E ainda pior: em várias ocasiões, esses navios eram obrigados a empreender a “torna viagem” — o retorno forçado ao porto de partida — obrigando os emigrantes a enfrentar novamente mais trinta dias de uma aterradora travessia.
As companhias de navegação lucravam com cada corpo embarcado. Quanto mais passageiros, maior o lucro. As listas oficiais de embarque eram frequentemente falsificadas, omitindo o verdadeiro número de emigrantes a bordo. Assim, muitos navios partiam superlotados, levando o dobro da capacidade permitida. As autoridades italianas e sul-americanas, movidas por interesses econômicos e pela pressa em “exportar braços”, pouco faziam para fiscalizar as condições de viagem.
Os riscos dessa longa travessia não se limitavam à fome e às epidemias. Havia também as tempestades e os naufrágios, causados por ventos violentos e ondas que varriam o convés. Em noites de furacão, as embarcações balançavam como cascas de noz no oceano escuro, enquanto o pavor se espalhava entre os passageiros. Muitos se agarravam a imagens de santos, rezando em dialetos diferentes e pedindo apenas para chegar vivos. Outros, descrentes, fitavam o horizonte, imaginando se algum dia veriam terra firme novamente.
Entre os naufrágios mais trágicos envolvendo emigrantes italianos que se dirigiam à América, podem ser lembrados: em 1880, o navio a vapor Ortigia; em 1891, o Utopia; em 1898, o Borgonha; em 1906, o Sirio; e em 1927, o Principessa Mafalda, cujas mortes comoveram o mundo inteiro. Em cada um desses desastres, centenas de sonhos e famílias foram tragados pelas águas do Atlântico.
Havia ainda os “enganos” ou desvios deliberados de rota. Não foram raros os casos em que os comandantes, por ordem das companhias, mudavam o destino sem aviso. Um navio que deveria chegar ao Brasil e à Argentina acabou desembarcando seus passageiros em Nova York. Outro, destinado ao porto de Santos, desembarcou furtivamente seus emigrantes nas praias de Marselha, na França. Os passageiros, sem compreender a língua e sem documentos, tornavam-se prisioneiros do acaso.
Mesmo entre os que conseguiam sobreviver à travessia e alcançar o continente americano, muitos carregavam para sempre as cicatrizes do medo. Mulheres que perderam filhos jamais conseguiram esquecer o som das ondas levando os pequenos corpos. Homens que sobreviveram a naufrágios jamais voltaram a embarcar. E todos, sem exceção, traziam no olhar o peso de uma travessia que os havia mudado para sempre.
A travessia do Atlântico, mais do que uma viagem, foi uma prova de fé e resistência. Cada família que sobreviveu deixou às gerações futuras um legado de coragem anônima — escrito não em livros, mas nas lágrimas, nas preces e nas cicatrizes daqueles que ousaram desafiar o oceano em busca de uma vida melhor.
Nota do Autor
Os fatos aqui relatados não pertencem apenas às páginas esquecidas da história, mas à memória viva de milhões de famílias italianas que, entre o final do século XIX e o início do XX, arriscaram tudo o que tinham na esperança de um novo começo. A travessia do Atlântico, descrita nestas linhas, foi uma das mais dolorosas etapas da emigração italiana — e talvez a que melhor revele a dimensão humana desse êxodo.
A precariedade dos navios, o lucro desenfreado das companhias de navegação e o descaso dos governos criaram um cenário em que a vida humana pouco valia. Os emigrantes, tratados como carga, eram embarcados em porões sem ventilação, sujeitos à fome, à doença e ao desespero. Muitos não sobreviveram para ver as terras prometidas. Seus corpos, lançados ao mar sem sepultura, tornaram-se parte silenciosa do oceano que separava a miséria da esperança.
Essas tragédias — esquecidas nos registros oficiais — moldaram o caráter de uma geração inteira. O medo, a coragem e a fé desses viajantes anônimos foram herdados por seus descendentes, que hoje vivem nas Américas sem imaginar que, para que existissem, outros precisaram desafiar o impossível. Cada nome perdido nas listas de embarque e cada lágrima derramada sobre o convés de um navio formam a verdadeira epopeia da imigração italiana: uma história de sacrifício e sobrevivência, escrita nas ondas do Atlântico e gravada na alma dos que vieram depois.
Recordar esses episódios não é apenas prestar homenagem aos que partiram, mas reconhecer o preço humano de um sonho coletivo — o sonho de viver.
Dr. Luiz C. B. Piazzetta