terça-feira, 20 de maio de 2025

Sob o Sol de Curitiba


Sob o Sol de Curitiba


Em uma fria manhã de janeiro de 1889, Pietro Lazzarini estava de pé no cais do porto de Gênova. O vento do Mediterrâneo soprava com uma insistência que cortava até os ossos, mas Pietro quase não percebia o frio. Seu olhar estava fixo no imponente navio a vapor que o levaria ao outro lado do Atlântico, rumo ao desconhecido.

Atrás dele, sua esposa, Giovanna, segurava firmemente a mão do pequeno Matteo, de apenas cinco anos. Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar, mas ela mantinha a cabeça erguida, decidida a não mostrar fraqueza diante do marido e do filho. A família não tinha escolha. A pobreza que assolava o norte da Itália não os deixara alternativas senão arriscar tudo em busca de uma nova vida no Brasil.

Pietro, tem certeza de que estamos fazendo o certo?” Giovanna perguntou, sua voz quase engolida pelo som das águas contra o cais.

Pietro não respondeu de imediato. Ele apertou a alça do pequeno baú de madeira que continha todas as suas posses e finalmente disse: “Giovanna, não é uma questão de escolha. É sobrevivência. Lá, no Brasil, dizem que a terra é fértil e que há trabalho para quem está disposto. Aqui…” Ele deixou a frase no ar, mas ambos sabiam o que ele queria dizer.

Com a última chamada para o embarque, a família Lazzarini deu seus passos mais difíceis — o adeus definitivo à terra natal. A cada passo, o peso das incertezas crescia, mas também a chama da esperança brilhava um pouco mais forte.

A travessia pelo Atlântico foi um teste de resistência. Durante semanas, os passageiros enfrentaram mares revoltos, a superlotação do navio e a ameaça constante de doenças. Matteo, porém, parecia encontrar alegria em qualquer situação. Ele corria pelos corredores estreitos do navio, seu riso ecoando como um alívio momentâneo para os pais exaustos.

Matteo, cuidado!” alertava Giovanna, embora com um sorriso nos lábios. Pietro, por sua vez, passava boa parte do tempo conversando com outros imigrantes, coletando informações sobre o Brasil e, em especial, sobre Curitiba, a cidade onde haviam decidido recomeçar. As histórias eram variadas — algumas pintavam um quadro de prosperidade; outras, de dificuldades quase insuperáveis.

Quando o navio finalmente atracou no porto do Rio de Janeiro, Pietro sentiu um misto de alívio e temor. O Brasil era tudo o que ele esperava: vibrante, cheio de cores e de uma energia que ele nunca tinha visto antes. Mas também era caótico e imprevisível. A família não podia se demorar; precisavam seguir para o Paraná, onde terras promissoras os aguardavam.

Depois de uma nova e exaustiva viagem em outro navio de menor calado, os Lazzarini finalmente chegaram a Curitiba, passando pelo porto de Paranaguá. Era uma cidade em crescimento, com ruas de terra batida, casarões de madeira e um mercado movimentado. A comunidade italiana já estava estabelecida ali, e Pietro logo encontrou outros conterrâneos dispostos a ajudar.

Pietro e Giovanna se instalaram em um pequeno lote de terra na periferia da cidade, na região rural vizinha, onde Pietro passou seus primeiros meses limpando a mata e preparando o solo para o plantio. O trabalho era duro e parecia interminável, mas Pietro nunca reclamava. Ele sabia que cada golpe de enxada era um passo mais perto de um futuro melhor para Matteo.

Enquanto Pietro trabalhava, Giovanna transformava a casa improvisada em um lar. Ela cozinhava com os poucos ingredientes que tinham e cantava velhas canções italianas para manter viva a memória da terra que deixaram para trás. Matteo, por sua vez, explorava a floresta ao redor, encantado com as novas descobertas — desde os pássaros de cores vibrantes até os riachos cristalinos.

Mas a vida não era feita apenas de trabalho e maravilhas. Pietro logo descobriu que a terra que lhes fora prometida não era tão fértil quanto disseram. As colheitas iniciais foram escassas, e a fome bateu à porta mais de uma vez. Pietro precisou fazer escolhas difíceis, incluindo aceitar trabalho nas plantações de erva-mate da região para complementar a renda.

Era uma tarde comum quando Matteo voltou correndo para casa, o rosto iluminado por uma mistura de excitação e mistério. “Papai, mamãe, encontrei algo na floresta!” Ele puxou Pietro pela mão, levando-o até uma clareira escondida. No centro, havia o que parecia ser uma antiga estrutura de pedra coberta por musgo.

Pietro examinou o local com cuidado. Não era apenas uma ruína qualquer; havia algo estranhamente familiar naquelas pedras. Ao limpar parte do musgo, ele encontrou carvões de um desenho — um brasão que ele reconheceu de livros de história sobre os colonizadores europeus. Seria possível que aquilo fosse um antigo assentamento esquecido?

A descoberta despertou um novo senso de propósito em Pietro. Ele começou a investigar a história do local, descobrindo que aquelas terras carregavam segredos que poderiam mudar tudo. Mas nem todos estavam felizes com suas investigações. Forças locais, incluindo fazendeiros influentes e misteriosos homens de terno que surgiram do nada, pareciam determinados a impedir que Pietro revelasse o que encontrara.

Enquanto Pietro buscava respostas, ele encontrou um aliado improvável: o professor Ernesto, um historiador aposentado que vivia na cidade. Conhecido por seu extenso conhecimento sobre a região, Ernesto ficou intrigado com os relatos de Pietro.

Se o que você diz é verdade, essas ruínas podem ser mais antigas do que pensamos. Talvez até do tempo dos jesuítas ou, quem sabe, algo ainda mais remoto,” disse Ernesto, os olhos brilhando de empolgação.

Os dois passaram dias analisando mapas antigos e documentos empoeirados. A cada pista, a história se tornava mais complexa. Descobriram que a região abrigara um posto de trocas secreto entre europeus e indígenas, algo que não constava nos registros oficiais. Porém, a revelação desse segredo poderia ameaçar os interesses de poderosos fazendeiros, que não desejavam trazer atenção para suas terras.

Uma noite, enquanto Pietro revisava os documentos que Ernesto havia lhe emprestado, ouviu passos fora de sua casa. Ao abrir a porta, encontrou um bilhete pregado na madeira com uma faca enferrujada.

Pare agora ou pague o preço,” dizia o bilhete, escrito com uma caligrafia rude.

O coração de Pietro disparou. Ele sabia que não podia ignorar a ameaça, mas também não queria desistir. Sua família estava em risco, mas a descoberta poderia mudar não apenas sua vida, mas a de muitos outros.

Giovanna tentou convencê-lo a parar, temendo pela segurança de Matteo. “Pietro, por favor. Já temos tantos desafios. Por que provocar ainda mais problemas?

Mas Pietro estava decidido. “Se nós não lutarmos por um futuro melhor, quem vai fazer isso? Essa terra tem histórias que precisam ser contadas. E talvez… talvez essa seja nossa chance de fazer algo grandioso.”

Com isso, Pietro continuou sua busca, consciente de que cada passo o levava mais perto de uma verdade perigosa — e de um clímax que poderia mudar tudo para ele e sua família.

Poucos dias depois, Pietro e Ernesto decidiram explorar as ruínas à noite, longe dos olhos curiosos. Munidos de lanternas e ferramentas, os dois homens começaram a cavar em uma área onde Pietro acreditava haver algo enterrado. O trabalho foi lento e exaustivo, mas, ao final de horas de escavação, encontraram um pequeno baú de metal corroído pelo tempo.

Dentro do baú, havia documentos e moedas antigas. Ernesto ficou boquiaberto ao identificar os símbolos gravados nas moedas. “Isso aqui é do século XVI! Essas terras foram palco de uma aliança secreta entre os jesuítas e líderes indígenas.

Os documentos, porém, contavam uma história ainda mais intrigante. Eles mencionavam um tesouro escondido, destinado a financiar uma revolta contra os colonizadores europeus. Ernesto acreditava que, se encontrado, esse tesouro poderia reescrever parte da história do Brasil.

Mas a descoberta não passou despercebida. Naquela mesma noite, enquanto os dois retornavam à casa de Ernesto para estudar os achados, foram seguidos. Um grupo de homens encapuzados os cercou, exigindo os documentos e o baú.

Vocês não sabem com quem estão lidando,” disse um dos homens, antes de agredir Ernesto e ameaçar Pietro com uma arma. Pietro relutantemente entregou o baú, mas manteve alguns documentos escondidos em sua roupa.

Ernesto foi gravemente ferido e precisou ser levado às pressas ao hospital. Pietro, agora sozinho, enfrentava uma escolha impossível: proteger sua família abandonando a investigação ou continuar lutando pela verdade, mesmo com sua própria vida em risco.

Giovanna, embora temerosa, viu a determinação nos olhos do marido. “Se você acredita que isso vale a pena, Pietro, eu estarei ao seu lado. Mas precisamos ser inteligentes. Eles têm força, mas nós temos a verdade.

Com a ajuda de outros imigrantes e de um jovem jornalista local, Pietro começou a divulgar as descobertas. Ele sabia que a única maneira de proteger sua família era tornar a verdade pública antes que os poderosos pudessem silenciá-lo.

A cidade de Curitiba, embora ainda em desenvolvimento, já possuía uma rede de informações que circulava pelos cafés e pelo pequeno jornal local, A Gazeta Paranaense. Pietro encontrou um aliado inesperado no jovem repórter Álvaro Mendes, um idealista que acreditava na luta contra os abusos dos grandes latifundiários.

Enquanto Ernesto se recuperava, Pietro e Álvaro passaram noites analisando os documentos que haviam sido salvos. Entre as páginas amareladas, havia registros de transações ilícitas feitas por fazendeiros locais com oficiais corruptos do Império. Os documentos revelavam que a terra onde os imigrantes italianos estavam se estabelecendo fora, na verdade, tomada ilegalmente dos povos indígenas décadas antes.

Além disso, havia indícios de que um grande tesouro fora escondido pelos jesuítas antes de sua expulsão, um tesouro que agora despertava o interesse de forças perigosas.

“Se publicarmos isso, faremos inimigos poderosos,” alertou Álvaro, folheando as páginas. “Mas também daremos voz aos injustiçados.”

Giovanna observava com preocupação. Ela admirava a coragem do marido, mas temia pelo futuro de Matteo. “Pietro, e se eles vierem atrás de nós? Não posso perder você.

Ele segurou as mãos da esposa. “Giovanna, se eu fugir agora, que tipo de exemplo darei ao nosso filho? Precisamos enfrentar isso juntos.

Naquela noite, Álvaro redigiu um artigo explosivo para A Gazeta Paranaense. Mas antes que pudesse ser publicado, o jornal foi incendiado misteriosamente. O recado era claro: silenciar Pietro a qualquer custo.

Com a imprensa destruída, restava a Pietro uma última cartada. Ele decidiu procurar o presidente da província do Paraná e apresentar as provas. Mas antes que pudesse fazê-lo, sua casa foi invadida por capangas armados.

Giovanna e Matteo conseguiram escapar pela porta dos fundos, enquanto Pietro foi levado a um galpão abandonado. Lá, encontrou-se cara a cara com o mandante de tudo: um barão da erva-mate, conhecido como Coronel Almeida.

O senhor cavou fundo demais, Lazzarini,” disse o coronel, acendendo um charuto. “Mas ainda pode salvar sua pele. Queime esses documentos e suma de Curitiba.

Pietro respirou fundo. Seu destino parecia selado. Mas antes que Almeida desse a ordem para matá-lo, um grupo de imigrantes italianos, liderados por Ernesto, agora recuperado, invadiu o galpão.

Um tiroteio se seguiu. No caos, Pietro conseguiu escapar com os documentos e correu para a sede do governo provincial. Sob pressão, as autoridades foram forçadas a investigar, e em poucos dias, o império do Coronel Almeida desmoronou.

Meses depois, Pietro e sua família retomaram a vida. O nome dos Lazzarini ficou marcado na história dos imigrantes em Curitiba. Ernesto continuou suas pesquisas, Álvaro reergueu o jornal e Matteo crescia com a certeza de que seu pai havia lutado pelo que era certo.

No alto da colina, onde as ruínas jesuíticas ainda repousavam, Pietro contemplava o horizonte. A luta pela verdade custara caro, mas ele sabia que, sob o céu de Curitiba, a esperança e a justiça finalmente encontravam seu lugar.


Nota do Autor


O conto "Sob o Sol de Curitiba" é uma obra de ficção baseada em relatos históricos e memórias compartilhadas pelos pioneiros italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX. A narrativa foi construída com o intuito de homenagear a coragem, a resiliência e os desafios enfrentados por esses imigrantes que, em busca de uma vida melhor, cruzaram o Atlântico rumo ao desconhecido. Embora os personagens e eventos descritos sejam fictícios, as circunstâncias de pobreza extrema, as duras condições de viagem e as dificuldades iniciais no Brasil são inspiradas em testemunhos e documentos históricos da época. Os imigrantes italianos, como Pietro e Giovanna no conto, foram peças fundamentais na construção de uma nova identidade cultural e econômica no Paraná e em outras regiões do país.
Esta história busca explorar, de forma simbólica, os dilemas morais, os laços de família e as questões de identidade que marcaram a experiência desses imigrantes. Ao incorporar elementos de mistério e aventura, o conto também presta tributo ao espírito explorador e ao desejo de pertencimento que movia tantas famílias na construção de suas novas vidas.
"Sob o Sol de Curitiba" é, acima de tudo, uma reflexão sobre a força humana diante da adversidade, a preservação de memórias e o impacto que as histórias individuais podem ter na formação de uma sociedade mais justa e consciente. Que esta narrativa inspire a valorização de nossas raízes e das histórias que moldaram o Brasil como o conhecemos hoje.
Com gratidão aos pioneiros que desbravaram caminhos e plantaram sonhos sob o céu de um novo mundo.
Dr. Piazzetta