sábado, 6 de setembro de 2025

A Investigação Agrária de Jacini no Vêneto do século XIX

 

Interior de uma choupana do Vêneto do século XIX


A Investigação Agrária de Jacini no Vêneto do século XIX


No decorrer do século XIX, ainda no período liberal, entre os anos de 1845 e 1877, o parlamento do Reino da Itália determinou a realização de uma investigação de grande alcance destinada a examinar de forma minuciosa a situação real da classe agrícola italiana.

Esse vasto inquérito passou a ser conhecido como Inquérito Jacini, em referência ao senador Stefano Jacini, que foi escolhido para presidir a comissão executiva responsável pelos trabalhos. Essa comissão era formada por doze integrantes, sendo quatro indicados pelo governo, quatro pela Câmara e outros quatro pelo Senado.

A primeira sessão ocorreu em 30 de abril de 1877, ocasião em que Jacini, além de senador, também presidente do Conselho de Agricultura do Reino, foi oficialmente eleito presidente da investigação.

Trata-se do primeiro levantamento estatístico de âmbito nacional voltado para a agricultura, abrangendo não apenas a produção, mas também a distribuição da terra e os tipos de cultivo existentes no território do Reino da Itália.

Durante todo o século XIX, a agricultura permaneceu praticamente como a única fonte de sustento da maioria dos municípios do Vêneto. Outras formas de produção com expressão econômica quase não existiam, à exceção da sericultura (criação do bicho-da-seda), que obteve algum êxito por um período limitado e apenas em certas localidades específicas da região.

No que se refere ao panorama agrícola do Vêneto, as informações históricas são escassas, razão pela qual o relatório Jacini constitui o documento mais completo e confiável de que se dispõe.






As condições dos agricultores no Vêneto

Salvo raras exceções em alguns poucos municípios, em quase todos os demais repetiam-se os mesmos relatos: queixas constantes, lamentos idênticos e uma realidade marcada pela penúria. Isso se tornava ainda mais evidente nas áreas de montanha, onde a produção agrícola não ia além da subsistência.

Os depoimentos fornecidos por grande número de prefeitos, em resposta ao questionário enviado pela investigação agrária, revelam com clareza a precariedade da vida rural no Vêneto. Essa situação atingia indistintamente pequenos proprietários de terra, arrendatários, meeiros, trabalhadores pagos por diária e até mesmo os artesãos locais, que, diante da escassez de emprego e da alta dos preços, já não conseguiam garantir sua sobrevivência. Todos, sem distinção, encontravam-se reduzidos à mesma condição de miséria, como indigentes abandonados à própria sorte.

A habitação, por sua vez, era considerada reflexo direto da vida social e econômica de cada família, servindo como verdadeiro espelho da condição material de toda uma comunidade.

Para compreender melhor essa realidade, os responsáveis pela investigação formularam diversas perguntas destinadas aos prefeitos de cada município. A participação foi bastante ampla, com forte adesão, e a maioria respondeu às solicitações feitas pela comissão.

Na província de Belluno, apenas dois municípios — Chies d’Apago e Sedico — declararam possuir casas em razoável estado de conservação.

Em todos os demais, inclusive nas sedes municipais, os relatórios descrevem uma situação crítica: moradias apontadas como péssimas, deploráveis, miseráveis, segundo as palavras utilizadas pelos próprios sindaci.

Tratava-se de casas estreitas, frágeis, mal arejadas, mal construídas, sem piso, muitas vezes cobertas de palha, onde se amontoava grande número de moradores. Frequentemente, eram habitações úmidas, baixas, escuras e com montes de esterco acumulados ao redor.




Quando questionados se as moradias eram salubres, muitos prefeitos responderam negativamente, afirmando tratar-se de cabanas insalubres, a ponto de que alguns homens solteiros preferiam dormir no celeiro a residir nelas.

Essas casas em condições tão precárias eram habitadas, em sua maioria, pelos próprios donos. Casos de locatários eram muito raros: apenas excepcionalmente alguém pagava um aluguel de cerca de 5 liras anuais, ou pouco mais, por cada quarto que compunha a residência.

Contudo, o simples fato de ser “proprietário” dificilmente se traduzia em algum tipo de conforto ou em segurança patrimonial. Como escreveu o sindaco de Valle di Cadore, “a miséria impede a conservação das casas, que correm o risco de desabar”.

Ocorreu, em algumas situações, de certas prefeituras prestarem auxílio a esses desvalidos; porém, os consertos costumavam se arrastar por longo tempo, em virtude da escassez quase absoluta de recursos nas administrações locais.




A pobreza observada no Friuli não diferia muito da registrada no Vêneto, embora nessa região houvesse um número maior de localidades onde as casas se encontravam em condições relativamente aceitáveis.

Na província de Treviso, entretanto, os problemas apontados pela investigação eram quase uniformes. Em Breda di Piave, os prefeitos descreveram as moradias como infectadas, mais próximas de antros do que de habitações humanas; em Povegliano, compararam-nas a tocas de animais ou a algo ainda pior; já em Zero Branco, os relatos falavam da disseminação da pelagra e de furtos constantes.

Em Istrana, as casas eram tão antigas que se fazia necessária uma reconstrução completa. Em certas vilas de Conegliano, famílias inteiras viviam amontoadas “como sardinhas em lata”, situação semelhante à de Pieve di Soligo, onde a recomendação também era demolir e reconstruir.

Em Moriago, a descrição era de residências em estado lastimável, com inquilinos que sequer conseguiam pagar aluguel. Em San Pietro di Barbozza, registrou-se a ausência de varandas e janelas; em Cavaso e Volpago, falava-se de moradias arruinadas e abandonadas. A situação em Oderzo também era crítica, com raras exceções; já em Chiarano, além das casas precárias, havia o agravante de propriedades avançando sobre o espaço público das estradas.

Nas demais províncias venetas, as respostas dos prefeitos mantinham o mesmo padrão, confirmando um quadro generalizado de miséria e degradação das habitações rurais.

De cada dez casas examinadas, em nove não se encontrava uma moradia digna desse nome: faltava sol, faltava proteção contra o frio rigoroso do inverno e contra a umidade vinda do solo, faltava espaço suficiente para a família em crescimento e até mesmo condições mínimas de ventilação.

Mesmo quando não estavam prestes a ruir — ou quando não eram piores que simples palheiros — continuavam expostas ao calor excessivo do verão e às geadas do inverno, quase sempre sem piso, com a terra nua servindo de chão e janelas incapazes de oferecer ventilação adequada.

Na maioria das vezes, os moradores se acotovelavam nesses cubículos sombrios, homens e mulheres, crianças e adultos, dividindo os mesmos espaços insalubres. Eram, em essência, moradias indignas, antros de doença e desconforto.

Em todas as províncias do Vêneto, a realidade era praticamente a mesma: miséria generalizada, somada à incapacidade financeira das administrações locais para auxiliar as famílias que necessitavam de reparos urgentes em suas casas.

O prefeito de Cirignago, município da província de Veneza, relatou em seu parecer:

“Pergunto-me muitas vezes por que os estudiosos da pelagra não levam em conta essa causa tão evidente de insalubridade. Talvez não baste, por si só, para explicar a enorme difusão dessa doença no Vêneto; mas, somada a outros fatores, exerce um poder devastador. Essas paredes, feitas de entulhos e fragmentos, que só permanecem de pé por um equilíbrio quase milagroso, não pelo reboco gasto ou pela argila rachada, incapazes de proteger contra o tempo ou contra ladrões, são uma defesa miserável contra febres e enfermidades de todo tipo, que ameaçam os corpos fatigados dos camponeses”.

O relatório observava ainda que as mulheres pouco se ocupavam da manutenção das casas. Frequentemente eram acusadas de descuido e de falta de higiene, mas a própria investigação levantava a questão: como manter limpo o que já nasce condenado, como conservar em ordem ruínas?

Segundo os investigadores, a razão estava no próprio trabalho agrícola, que impedia as mulheres de permanecer em casa. Os teares haviam se tornado escassos, e a migração temporária dos homens para regiões montanhosas obrigava muitas delas a buscar ocupações nos campos. Nas planícies, eram empregadas em quase todas as tarefas, exceto as mais pesadas: desde a capina e o preparo do trigo-miúdo, até o trabalho com arroz ou tabaco. Além disso, o desejo crescente de obter algum dinheiro próprio — fosse para se enfeitar um pouco, fosse para imitar o estilo masculino no modo de vestir — fazia com que se afastassem com mais frequência do lar, deixando em segundo plano os cuidados domésticos.

O documento prosseguia reunindo os depoimentos dos prefeitos, abrangendo desde pequenos municípios do Friuli e de Bolzano até localidades da planície padana, e trazia também recomendações para que o governo central adotasse medidas eficazes diante do grave problema habitacional.

Quanto à questão dos salários rurais, os prefeitos apontavam inúmeras dificuldades. Propunham a revisão dos contratos vigentes e dos valores pagos, questionando se deveria haver remuneração diferenciada para jovens, mulheres e trabalhadores ocasionais. Observavam ainda que a introdução das máquinas agrícolas podia estar contribuindo para a redução dos estipêndios.

Ficava evidente, nas respostas, que uma intervenção mais firme do Estado seria necessária. Alguns prefeitos defendiam a criação de linhas de crédito hipotecário, com juros baixos e prazos longos; outros solicitavam maior fiscalização do governo e apoio direto às comissões municipais; havia também aqueles que pediam a elaboração de leis obrigando os proprietários a adaptar suas casas às condições mínimas de habitabilidade.

No relatório final, o investigador resumiu:

“Se a investigação agrária pretende gerar efeitos concretos aqui no Vêneto, é preciso, antes de tudo, voltar os maiores cuidados às casas dos camponeses mais pobres. Oferecer educação, sem ao mesmo tempo garantir um teto — ainda que modesto, mas minimamente salubre e habitável — é uma farsa e um absurdo. Construir sedes confortáveis para os conselhos municipais (e já vi algumas até elegantes), e deixar de pé os casebres de que falei, parece-me uma contradição que não sei como descrever”.

Na sequência, o relatório trazia uma análise detalhada dos salários pagos aos diaristas, ressaltando que os valores variavam muito de uma província para outra, e até mesmo entre os municípios de uma mesma província. De modo geral, porém, eram insuficientes para atender às necessidades básicas das famílias.

Além disso, o estudo examinava o aspecto moral e social da vida rural em todas as sete províncias venetas. Tratava também da criminalidade, sobretudo furtos, e das medidas empregadas para reprimi-los.

Os dados mostravam que as lesões e agressões físicas eram incomuns, surgindo em geral de discussões motivadas pelo excesso de vinho. Casos passionais apareciam de forma esporádica, enquanto crimes ligados a rivalidades ou disputas eram ainda mais raros.

Entre 1866 e 1877, a média de assassinatos no Vêneto foi de 16 por milhão de habitantes. Para efeito de comparação, na Ligúria esse índice chegava a 25, e no Lazio era muito mais elevado: 135 casos registrados entre 1872 e 1877.

O relatório encerrava-se com descrições minuciosas das condições em cada província do Vêneto, reforçando os testemunhos dos prefeitos locais e oferecendo uma visão abrangente da realidade rural da região.


Nota Explicativa sobre A Investigação Agrária de Jacini

A chamada Investigação Agrária Jacini não é uma criação literária, mas um episódio real da história italiana do século XIX. Em 1877, o parlamento do recém-unificado Reino da Itália instituiu uma comissão nacional para estudar de forma ampla e detalhada as condições da agricultura e da vida rural no país. Essa investigação, concluída em 1885, foi a primeira grande pesquisa estatística e social do Estado italiano e marcou profundamente a compreensão das desigualdades regionais da época.

O senador Stefano Jacini (1826–1891), político e economista lombardo, foi nomeado presidente da comissão que reuniu 12 membros designados pelo governo, pela Câmara e pelo Senado. O trabalho consistiu em questionários enviados a prefeitos, visitas locais e coleta sistemática de informações sobre habitação, salários, contratos de trabalho, formas de propriedade e produção agrícola em todas as regiões.

No Vêneto, a investigação revelou um quadro alarmante de miséria e precariedade, sobretudo nas zonas montanhosas e rurais. As casas dos camponeses, frequentemente descritas como insalubres, úmidas e mal ventiladas, simbolizavam a penúria da população. O relatório destacou também os salários insuficientes, a disseminação de doenças como a pelagra e a ausência de alternativas econômicas além da agricultura de subsistência e, em alguns locais, da criação do bicho-da-seda.

As conclusões da Investigação Jacini tiveram enorme repercussão política e social. Elas alimentaram o debate sobre a “questão meridional” e a pobreza rural, serviram de base para propostas de reforma agrária e ajudaram a explicar as razões estruturais que impulsionaram a grande emigração italiana para as Américas, entre o final do século XIX e início do XX.














A Jornada de Giovanni Bianconi

 

A Jornada de Giovanni Bianconi

Natural da província de Treviso, na região do Vêneto, Giovanni Bianconi cresceu em um ambiente marcado pelo esforço da terra e pelo peso da tradição. As colinas verdejantes, salpicadas de vinhedos e oliveiras, eram cenário de histórias contadas por seus pais e vizinhos, relatos que falavam de terras longínquas onde o trabalho árduo era recompensado com fartura e dignidade. Para Giovanni, essas narrativas plantaram uma semente de esperança e inquietação. Ele sonhava com a possibilidade de oferecer à sua família um futuro que não estivesse limitado pela escassez ou pelas dificuldades enfrentadas na Itália de sua época. Foi em 1895, após um período de reflexão e planejamento, que Giovanni decidiu transformar sonho em realidade. Motivado pelas promessas de prosperidade do outro lado do Atlântico, ele tomou a difícil decisão de vender sua pequena propriedade rural, fruto de anos de trabalho e herança de seus antepassados. A venda representava mais do que a troca de um bem material; era a ruptura com suas raízes e com a segurança, em nome de uma aposta no desconhecido. Ao lado de sua esposa, Maria, uma mulher resiliente que compartilhava tanto de suas esperanças quanto de suas apreensões, e de seus dois filhos pequenos, Giovanni iniciou a jornada rumo ao Brasil. O destino era a Colônia Alfredo Chaves, no Rio Grande do Sul, uma terra ainda em formação, habitada por outros imigrantes que, como eles, buscavam recomeçar. A travessia não foi fácil. Enfrentaram o desafio da longa viagem de navio, marcada por enjoos, saudades e a incerteza do que os aguardava. Mas, em meio às dificuldades, havia um sentimento compartilhado de determinação e coragem. Giovanni acreditava que, com esforço e união, poderiam construir uma vida melhor. Ele levava consigo não apenas suas ferramentas e pertences mais preciosos, mas também a memória de sua terra natal e a promessa de que faria valer o sacrifício por um futuro mais próspero para sua família. Ao desembarcar em terras brasileiras, o céu parecia imenso e o horizonte, infinito. Era um novo capítulo, repleto de desafios e oportunidades, e Giovanni estava decidido a escrever nele a história de sua redenção.

O Chamado da Nova Terra

A inspiração para a grande mudança na vida de Giovanni veio de cartas repletas de detalhes vívidos e emocionantes enviadas por seu tio Marco Bianconi, um homem corajoso que havia deixado a Itália um ano antes. Marco se estabelecera na Colônia Dona Isabel, no coração do Rio Grande do Sul, e suas palavras eram uma mescla de advertência e esperança. Ele descrevia a vida no Brasil como um campo aberto de possibilidades, mas não deixava de alertar sobre os inúmeros desafios: o trabalho extenuante, as dificuldades de adaptação ao clima e à cultura, e as saudades que pareciam nunca cessar. Nas entrelinhas, no entanto, havia algo que capturava o espírito de Giovanni: a promessa de que, com esforço e determinação, era possível construir uma vida melhor, livre das restrições impostas pela pobreza e pela rigidez das oportunidades na Itália. Marco contava sobre as vastas terras que, com suor e persistência, podiam ser transformadas em campos férteis; sobre os vizinhos, uma comunidade solidária de imigrantes unidos pela mesma ambição de prosperar; e sobre a liberdade de sonhar com um futuro onde o trabalho fosse recompensado.

Essas cartas se tornaram leituras recorrentes nas noites de inverno na modesta casa de Giovanni. Ele as lia em voz alta para Maria, sua esposa, e discutia cada detalhe com ela. As palavras de Marco ressoavam fundo, acendendo uma chama de esperança e de ousadia que Giovanni já sentia pulsar dentro de si. Ele sabia que a decisão não seria fácil, mas acreditava que o sacrifício de abandonar a terra natal poderia valer a pena, principalmente por seus filhos. Determinando-se a mudar o curso de sua vida, Giovanni começou a planejar cada passo. Reuniu o pouco dinheiro que possuía ao vender sua pequena propriedade e alguns pertences pessoais, bens que haviam sido acumulados com dificuldade ao longo dos anos. Para ele, cada item vendido era um pedaço de sua história, mas também um ingresso para uma nova jornada. Ele encarava o processo não como uma perda, mas como um investimento no futuro de sua família. A cada moeda contada, Giovanni sentia que estava mais próximo de alcançar a promessa de um recomeço, por mais incerto que fosse.

No dia da despedida, a pequena vila de Giovanni tornou-se um mosaico de emoções profundas e contraditórias. O sol daquela manhã parecia brilhar com um vigor especial, como se quisesse eternizar a memória daquele momento. A casa simples onde ele e sua família viveram por tantos anos estava cercada por vizinhos, amigos e familiares, todos reunidos para um último adeus. Havia uma mistura de alegria por sua coragem e tristeza pela iminente separação.

O som das conversas era intercalado por silêncios carregados de significado. As mulheres da vila, com lenços nos cabelos e mãos calejadas, entregavam pequenos presentes – pães, frutas secas e até medalhas religiosas – como gestos de proteção para a longa jornada. Os homens, tentando esconder a emoção, ofereciam palavras de encorajamento, palmadinhas firmes nas costas e abraços que diziam mais do que qualquer frase. As crianças, alheias à complexidade do momento, brincavam entre si, mas ocasionalmente paravam para olhar a mala de Giovanni e Maria, imaginando o que significava partir para terras tão distantes. Para eles, o conceito de "Brasil" parecia tão distante quanto uma história de conto de fadas. Giovanni, apesar da firmeza de sua decisão, não conseguia evitar um nó na garganta enquanto se despedia de cada pessoa querida. Seu coração pesava ao ver os rostos daqueles que talvez nunca mais encontrasse. Já Maria, com os olhos marejados, mantinha-se ao lado dos filhos pequenos, oferecendo-lhes um sorriso encorajador enquanto, em seu íntimo, lutava contra as dúvidas e o medo do desconhecido. As lágrimas nos olhos dos que ficaram para trás misturavam-se com palavras de esperança. “Vá com Deus, Giovanni!”, disse um velho amigo. 

“Que as terras novas te acolham e que você volte um dia para nos contar sobre as riquezas do outro lado do oceano.”

Embora a tristeza fosse palpável, havia também uma corrente de esperança que percorria o grupo. A promessa de melhores condições de vida dava forças a Giovanni e Maria para enfrentar o desconhecido. Eles sabiam que não apenas deixavam para trás uma vila, mas carregavam consigo as expectativas de todos que ficavam, de todos que também sonhavam com um futuro mais próspero, mas que não podiam ou não tinham a coragem de partir. Quando finalmente chegaram à carroça que os levaria ao porto, Giovanni virou-se para olhar uma última vez sua terra natal. Aquele momento parecia congelar no tempo, uma despedida não apenas de um lugar, mas de uma fase inteira de suas vidas. Com o coração dividido entre a dor da separação e a força de suas convicções, ele apertou a mão de Maria, e juntos embarcaram rumo ao futuro que haviam decidido construir.

A Travessia do Atlântico

A viagem de navio até o Brasil foi, para Giovanni e sua família, um verdadeiro teste de resistência física, emocional e espiritual. Durante os quarenta longos dias de travessia, eles enfrentaram a rotina extenuante de um convés lotado, compartilhando o espaço com centenas de outros emigrantes que, como eles, haviam deixado para trás tudo o que conheciam em busca de um futuro incerto. O ambiente era marcado por uma mistura de ansiedade, esperança e um constante esforço para lidar com as condições desafiadoras a bordo. Os dias começavam com o som de passos apressados e vozes misturadas em diferentes dialetos italianos. Homens e mulheres tentavam se organizar em espaços apertados, cuidando de suas famílias e dos poucos pertences que carregavam. Muitos viajantes trouxeram caixas e sacos cheios de ferramentas, convencidos pelos rumores de que o Brasil era uma terra desprovida de madeira, onde seria necessário construir tudo do zero. Entre eles, Giovanni mantinha uma presença firme, frequentemente encorajando os companheiros de viagem com palavras otimistas e gestos solidários, mesmo enquanto enfrentava suas próprias preocupações. O ar no navio era denso, carregado com o cheiro de sal, comida simples e o esforço humano. Maria, com a paciência e a força de quem sabia o peso de sua missão, dedicava-se a cuidar das crianças. Ela improvisava brincadeiras para distraí-las, contava histórias sobre a nova vida que os aguardava e fazia o possível para transformar o ambiente austero do navio em um lar temporário. Ao mesmo tempo, ocupava-se em preparar as refeições com os escassos suprimentos disponíveis, esforçando-se para manter a família alimentada e saudável.

As noites eram tanto um alívio quanto um desafio. Sob o céu estrelado e o balanço do navio, Giovanni se permitia breves momentos de introspecção. Ele se sentava próximo às amuradas, contemplando a vastidão do oceano e permitindo que seus pensamentos vagassem entre as memórias da Itália e as expectativas do Brasil. Naqueles momentos de solidão, sentia o peso da responsabilidade que carregava, mas também uma profunda determinação de honrar o sacrifício de sua família e de tantos outros que compartilhavam a mesma jornada. Ao longo da viagem, a convivência com os outros emigrantes criou laços inesperados. Trocas de histórias e experiências ajudavam a aliviar o fardo da travessia, e a solidariedade se tornou uma constante. Quando algum passageiro adoecia, os demais se uniam para oferecer apoio e conforto. Giovanni, com seu espírito colaborativo, tornou-se um ponto de referência para muitos, sempre disposto a ajudar ou a ouvir. Apesar das dificuldades – os enjoos, o cansaço e a saudade que parecia pesar mais a cada dia –, a promessa de uma nova vida continuava a alimentar suas esperanças. Giovanni e Maria encontravam forças um no outro, compartilhando sorrisos encorajadores e trocando palavras de fé. Para eles, cada dia que passava não era apenas uma superação, mas um passo a mais em direção ao futuro que sonhavam construir.

A Caminhada até Alfredo Chaves

Ao chegarem ao porto de Porto Alegre, a família Bianconi enfrentou uma nova etapa desafiadora da viagem. Embora já tivessem deixado para trás o oceano, a jornada até a Colônia Alfredo Chaves ainda não estava concluída. Sem muitos recursos, eles precisaram economizar ao máximo, mas contavam com a vantagem de que, no final do século XIX, parte do trajeto poderia ser feita por trem — um avanço significativo para quem vinha do interior da Itália. Giovanni e Maria embarcaram no trem que os levaria pelas linhas férreas recém-estabelecidas, cortando paisagens ondulantes e pequenas vilas ainda em formação. O barulho constante das rodas nos trilhos e o movimento ritmado do trem ofereciam um alívio temporário às pernas cansadas, enquanto a família contemplava a vastidão daquele Brasil rural, tão diferente do que conheciam. Porém, ao desembarcarem na estação mais próxima da Colônia Alfredo Chaves, a realidade voltou a se impor. O restante do trajeto era feito por estradas de terra irregulares, muitas vezes apenas caminhos estreitos rodeados por mata fechada e vegetação densa. Sem transporte e com poucos recursos, Giovanni liderou a pequena caravana familiar a pé, carregando o pouco que possuíam e desbravando o caminho com a ajuda de uma foice para abrir passagem entre os arbustos e galhos baixos.

Maria, sempre atenta, cuidava das crianças com um carinho que disfarçava a exaustão, preparando refeições simples e racionando os suprimentos durante as paradas para descanso. O ritmo era lento e pesado, mas a determinação os mantinha firmes. A cada passo, a promessa de um futuro melhor se renovava, mesmo diante das dificuldades que só tornavam a chegada mais desejada.


A Luta pela Sobrevivência

O terreno montanhoso que receberam era coberto por uma densa vegetação, mas Giovanni não se intimidou. Com ferramentas básicas, ele começou a desmatar e preparar o solo para o cultivo. Maria, por sua vez, cuidava da criação de porcos e galinhas, além de garantir que a casa permanecesse organizada.

Os primeiros anos foram marcados por trabalho árduo e poucas recompensas imediatas. No entanto, a união entre os colonos ajudou Giovanni a superar os desafios. Em mutirões, abriam caminhos e se apoiavam mutuamente, criando uma comunidade forte e resiliente.

O Legado de Giovanni Bianconi

Com o tempo, a terra começou a dar frutos, e a família Bianconi conseguiu prosperar. Giovanni plantou milho e feijão, enquanto Maria administrava a casa e cuidava dos filhos. A saudade da Itália era constante, mas a satisfação de construir algo duradouro em solo brasileiro crescia a cada conquista.

Giovanni viveu para ver Alfredo Chaves se desenvolver e, anos depois, tornar-se Veranópolis. Sua determinação e trabalho árduo deixaram um legado não apenas para sua família, mas para a história da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Seu nome permanece como símbolo de coragem e resiliência, um exemplo vivo de que a esperança pode transformar o desconhecido em um lar.