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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Settimo Manfrino – Entre as Dolomitas e os Cafezais

 


Settimo Manfrino

Entre as Dolomitas e os Cafezais


Settimo Manfrino nasceu em 1870, em Sappade, uma pequena localidade encravada nas Dolomitas, no comune de Falcade, província de Belluno. Era o sétimo filho de Masueto e Giuseppina, batizado com um nome que carregava tanto a marca da numerosa família quanto o peso da esperança de sobrevivência em uma terra dura. Ali, os campos eram estreitos, pedregosos, de cultivo ingrato. O trigo rareava, o centeio crescia baixo e os invernos cobriam tudo com neve densa, que transformava as montanhas num espetáculo belo e cruel. As casas de pedra lutavam contra o frio que descia noite após noite a temperaturas que congelavam até as fontes.

A vida era trabalho incessante e ganhos mínimos. Nos últimos anos, a instabilidade climática havia trazido ainda mais dificuldades. Colheitas já escassas se tornaram quase inexistentes. Os celeiros, outrora modestos mas suficientes, agora guardavam apenas restos. O pão de cada dia vinha misturado com batata e farinha de castanha, numa luta contra a fome. O pai, envelhecido pelo peso da enxada e das dívidas, sabia que os filhos não teriam futuro ali.

Foi Giuseppe, o primogênito, quem primeiro tomou a decisão: partir para o Brasil, onde, diziam, as terras eram fartas e o trabalho garantido. A notícia correu pelas encostas como um murmúrio de esperança. Settimo, ainda rapaz de dezessete anos, sem laços de matrimônio, aceitou seguir o irmão. Deixaria para trás a paisagem familiar das montanhas, o cemitério dos antepassados, a pequena igreja de Falcade onde fora batizado.

Em 1887, atravessaram a Itália em trem até o porto de Gênova, levando um baú de madeira e duas pequenas malas de couro, pão seco, queijo curado e as lembranças de uma vida inteira. No navio, uma travessia longa e penosa até Santos trouxe febres, enjoos e a saudade da terra natal. Mas ao pisarem no cais paulista, não houve tempo para contemplações. Junto de outras vinte famílias de emigrantes italianos, embarcaram no trem da Mogiana. O percurso pelos campos tropicais, sob um sol abrasador, mostrou um mundo radicalmente oposto às neves das Dolomitas.

Ribeirão Preto, destino final, era uma terra de horizontes planos, marcados por fileiras intermináveis de cafeeiros. A fazenda que os acolheu, imensa e isolada, impunha regras severas. Contratados por quatro anos, substituíam a mão de obra escrava recém-liberta. Logo compreenderam a realidade: a distância até a cidade tornava impossível buscar auxílio em caso de doença, e quando recebiam seus pagamentos, os colonos eram obrigados a deixar grande parte deles no armazém da própria fazenda, que, por ser o único existente, praticava preços elevados. 

Settimo, ainda franzino e sem a experiência do irmão, conheceu logo o peso do trabalho. As jornadas começavam antes do sol nascer e terminavam quando a lua já brilhava sobre os cafezais. O calor lhe queimava a pele, as mãos se cobriam de calos, e os pés, acostumados a trilhas de montanha, sangravam nos sulcos da terra vermelha. A fazenda era um universo fechado: não existiam médicos, remédios eram luxo, e a solidão corroía a todos.

Apesar disso, o jovem guardava uma força silenciosa. Ao lado de Giuseppe, de Chiara e dos sobrinhos — os meninos Lorenzo e Paolo, e a pequena Bianca —, sustentava-se na ideia de futuro. Aprendeu a manejar a enxada, a colher os grãos maduros, a suportar as longas fileiras sob o sol impiedoso.

Os anos no Brasil moldaram Settimo. Aos poucos, perdeu o aspecto de rapaz e se fez homem, com o corpo marcado pela labuta. Guardava, entretanto, um olhar profundo, herança das montanhas que o viram nascer. Cada dia resistido era também um tributo aos que haviam ficado em Sappade.

Quando o contrato de quatro anos terminou, a família não tinha muito mais que dívidas e fadiga. Mas Settimo já não era o mesmo. A miséria de Falcade havia ficado para trás, e diante dele se abria um novo caminho. Permaneceria no Brasil, na esperança de conquistar um pedaço de terra próprio, onde pudesse finalmente plantar não apenas para sobreviver, mas para viver.

A história de Settimo Manfrino confundia-se com a de milhares de italianos que trocaram as montanhas da Europa pelos cafezais do Brasil. Entre a beleza congelada das Dolomitas e a vastidão quente do interior paulista, sua vida se inscreveu como um testemunho da dureza e da perseverança de uma geração que buscou nos horizontes distantes aquilo que sua pátria não pôde oferecer.

Quando o contrato na fazenda expirou, Settimo Manfrino tinha pouco mais de vinte anos. Não possuía quase nada além das roupas gastas, algumas moedas mal guardadas e o corpo endurecido pelo esforço. Mas possuía também algo que não tinha ao deixar as Dolomitas: a certeza de que o Brasil seria sua pátria definitiva. Voltar não fazia parte de seus pensamentos.

Giuseppe, mais cauteloso, permaneceu na fazenda, aceitando novo contrato. Tinha mulher e filhos para sustentar, não podia arriscar. Settimo, livre de responsabilidades familiares, arriscou o passo seguinte. Juntou-se a outros colonos solteiros que haviam decidido tentar a sorte nos arredores das pequenas vilas que cresciam ao redor dos trilhos da Mogiana.

Foi trabalhar como meeiro em uma pequena plantações da região. Plantava milho e feijão trabalhando sem descanso, movido pela lembrança de sua terra natal, onde os campos pedregosos nunca lhe permitiram sonhar com algo além da sobrevivência. Ali, no interior paulista, a terra parecia infinita, vermelha e fértil, esperando apenas a persistência de quem a cultivasse.

Aos poucos, formou uma rede de amizades com outros imigrantes: vênetos, lombardos, piemonteses, cada um carregando seu sotaque e suas histórias de miséria deixadas para trás. Juntos construíam capelas improvisadas, partilhavam as festas religiosas, ajudavam-se nas colheitas. O Brasil os moldava, mas a Itália permanecia em seus gestos, na língua misturada e nas comidas que preparavam.

Em 1893, já com vinte e três anos, Settimo conseguiu sozinho arrendar um pequeno pedaço de terra. Foi o início de sua independência. O contrato era precário, mas para ele simbolizava vitória. O solo respondia ao esforço, e colheitas regulares lhe garantiam não apenas o sustento, mas algum lucro. Guardava cada moeda com disciplina, sonhando em comprar a própria gleba.

O tempo, no entanto, não era generoso. Febres tropicais rondavam os colonos. Muitos tombaram sem jamais ver cumprido o sonho de possuir terras. Settimo resistiu, ainda que debilitado em algumas temporadas. A lembrança da carta que lera em Ribeirão Preto — avisando sobre a falta de médicos e a solidão das fazendas — se confirmava ano após ano. Mas havia também uma energia nova, uma sensação de que aquele sacrifício poderia finalmente romper o ciclo de pobreza herdado.

No início da década de 1890, reencontrou a família do irmão Giuseppe. As crianças haviam crescido, Bianca já se tornava moça. A vida seguia dura para eles, ainda presos a contratos de fazenda, mas também sonhando com um futuro independente. A união entre as duas famílias tornou-se ainda mais forte. Juntos, arrendavam terras maiores, trocavam dias de trabalho, ajudavam-se a resistir às crises.

Foi nesse período que Settimo conheceu a filha de outro imigrante vêneto, vinda de Treviso. O casamento lhe trouxe estabilidade e, pouco depois, filhos que nasceram já em solo brasileiro. A vida mudava de rumo: da condição de colono sem nada, transformava-se em pequeno agricultor.

Em 1898, após mais de dez anos no Brasil, Settimo conseguiu comprar suas primeiras braças de terra, pagando com a economia de colheitas passadas. Era pouco, mas para ele equivalia a uma conquista histórica. Sobre o lote ergueu uma casa simples de madeira, coberta com telhas de barro que comprara na vila próxima. Ao redor, cercou o quintal, plantou frutas, levantou um pequeno galinheiro.

Os anos seguintes consolidaram a transformação. Settimo já não era apenas o rapaz de dezessete anos que chegara perdido e atônito à fazenda de Ribeirão Preto. Tornara-se um homem de respeito, conhecido entre os vizinhos pela coragem e pelo silêncio. Seus filhos corriam pelos cafezais, falando já mais português que o vêneto dos pais, sinal de que uma nova geração se enraizava naquela terra distante das montanhas dolomitas.

A memória da Itália permanecia como uma sombra distante. O frio de Sappade, as neves que cobriam os telhados, os campos estreitos e inférteis já não eram lembrados com dor, mas com uma melancolia suave. A vida agora estava no Brasil, e a terra vermelha, conquistada com suor e esperança, era a pátria real que ele escolhera.

Settimo Manfrino encerrou o século XIX como proprietário de seu próprio pedaço de mundo. Ainda pequeno, ainda modesto, mas conquistado com a dignidade de quem, ao atravessar o oceano, não levou consigo mais que o desejo de sobreviver.

O século XX encontrou Settimo Manfrino já como um homem feito, dono de um pequeno lote que conquistara com suor e disciplina. A casa de madeira, simples, tornara-se ponto de referência para vizinhos e parentes. O quintal era vivo: galinhas ciscavam soltas, pés de laranja e de goiaba cresciam junto ao cercado, e a horta fornecia milho verde, mandioca e feijão. O café, espalhado em linhas retas pelo terreno, começava a produzir com regularidade, transformando-se na base da renda familiar.

Sua esposa, mulher de temperamento firme, cuidava da casa e dos filhos, impondo uma ordem que lembrava a rigidez das vilas italianas. O sotaque vêneto ainda dominava dentro de casa, mas fora dela os filhos se adaptavam ao português, à escola improvisada na capela e ao convívio com outras famílias, algumas italianas, outras de imigrantes espanhóis e até de libertos que haviam recebido lotes pequenos.

Os filhos de Settimo cresceram entre as fileiras de café e os campos de milho. Aprendiam desde cedo a capinar, colher e transportar. Mas também traziam novidades: a leitura, ensinada por professores itinerantes, e a curiosidade pelo mundo além da colônia. Um deles sonhava em ser comerciante, outro falava em estudar na cidade, e a menina, ainda pequena, repetia o desejo de ser professora. Settimo observava essas mudanças com uma mistura de orgulho e estranheza. Na sua juventude, ninguém tivera escolha; o destino era apenas sobreviver ao frio e às pedras da montanha. Agora, seus filhos ousavam sonhar com horizontes mais largos.

A vida no interior paulista seguia dura, mas o tempo começava a recompensar os colonos. As ferrovias avançavam, as vilas cresciam, e o café transformava-se em ouro verde. Settimo, que começara como colono sem nada, agora vendia parte de sua produção a compradores que chegavam de trem, carregando o café em sacas até Santos. Cada safra bem-sucedida lhe permitia ampliar o lote, comprar ferramentas melhores e garantir uma reserva contra os anos ruins.

Por volta de 1910, Settimo já era considerado um pequeno proprietário respeitado. Não era rico, mas estava longe da miséria que marcara sua infância em Sappade. Os vizinhos o procuravam para conselhos, e os mais novos viam nele um exemplo de perseverança. A barba grisalha e o corpo curvado pelo trabalho davam-lhe uma presença austera. Ainda assim, carregava consigo uma serenidade que vinha da consciência de ter vencido a adversidade. 

Com o tempo, a comunidade italiana ao redor se organizou. Construíram igrejas maiores, fundaram sociedades de auxílio mútuo e até pequenas escolas mantidas pelos próprios colonos. As festas religiosas, como a de São José, reuniam famílias inteiras, que levavam vinho caseiro, polenta e queijos produzidos nos quintais. Nessas ocasiões, Settimo sentia novamente a Itália presente, não nas paisagens, mas nas vozes e gestos dos conterrâneos.

Os anos, porém, também cobraram seu preço. Epidemias de gripe e febre amarela rondaram a região. Settimo perdeu amigos, vizinhos e até parentes, lembrando-se sempre do aviso que ouvira décadas antes: as fazendas estavam distantes dos médicos, e muitas vezes a doença levava os mais fortes sem dar chance de resistência. Ele próprio enfrentou febres que o deixaram de cama, mas sobreviveu, sustentado pela robustez construída em anos de labuta.

Ao aproximar-se dos cinquenta anos, via os filhos trilharem caminhos próprios. Um se tornara tropeiro, transportando mercadorias entre vilas; outro abriu uma pequena venda, misturando português e vêneto com clientes brasileiros; a filha mais velha, como sonhara, tornou-se professora numa escola rural. Para Settimo, cada conquista deles era uma prova de que a travessia do oceano não fora em vão.

No fundo da memória, ainda guardava as imagens das Dolomitas cobertas de neve, da aldeia de Sappade onde nascera, dos campos pedregosos que nunca deram sustento. Mas agora essas lembranças não lhe traziam dor. Pelo contrário, davam-lhe a medida da distância percorrida. Do sétimo filho sem herança, condenado a um destino estreito, erguera-se um homem com terra, família e raízes fincadas em outra pátria.

Quando a primeira década do novo século terminou, Settimo Manfrino já podia olhar para trás e reconhecer: sua vida era o retrato de uma geração que abandonara a miséria da Europa para reinventar-se nas planícies tropicais. Não tivera facilidades, não fora poupado da dureza, mas alcançara aquilo que seus pais jamais imaginaram possível: um futuro.

As décadas de 1920 e 1930 trouxeram para Settimo Manfrino o tempo da colheita tardia da vida. Ele já passava dos cinquenta anos, os cabelos grisalhos se confundindo com o pó vermelho da terra, as mãos deformadas pelos calos de décadas de trabalho. Caminhava devagar entre os cafezais, apoiado num bastão, mas sua presença ainda impunha respeito entre os vizinhos. Era um dos colonos mais antigos da região, daqueles que haviam chegado quando Ribeirão Preto ainda não passava de uma promessa e a terra era apenas selva e lavoura bruta.

O café continuava sendo o sustento, mas o mundo ao redor começava a mudar. A ferrovia levava as sacas até Santos, os armazéns das vilas cresciam, e o dinheiro circulava com mais frequência. Alguns imigrantes prosperaram, tornando-se grandes fazendeiros. Settimo permaneceu como pequeno proprietário, fiel à rotina, sem jamais aspirar ao luxo. A ele bastava ter garantido terra para plantar, casa para os filhos e a segurança de que a miséria das Dolomitas não se repetiria em sua linhagem.

Na década de 1920, viu os filhos formarem famílias próprias. A filha professora mudou-se para uma vila maior, onde lecionava para crianças de diferentes origens — filhos de italianos, portugueses, espanhóis e brasileiros pobres. O filho comerciante ampliou sua venda, que já era ponto de encontro de toda a colônia, lugar onde notícias da Itália e do Brasil se misturavam em vozes altas e risadas. O tropeiro, inquieto como sempre, tornou-se carreteiro, transportando mercadorias entre fazendas e cidades. Cada um seguiu seu destino, mas todos retornavam nas festas religiosas e nos domingos de missa, quando a mesa da casa de Settimo voltava a encher-se de vozes e de pão.

O ano de 1929 trouxe um golpe inesperado. A crise econômica mundial derrubou o preço do café. Sacas inteiras foram queimadas ou lançadas fora, e os pequenos produtores viram o valor de sua produção se reduzir a nada. Settimo, já envelhecido, sofreu o impacto, mas resistiu com a mesma tenacidade de sempre. Plantou milho e feijão nos espaços entre os cafezais, garantiu comida antes de pensar em lucro. Os filhos o ajudaram a atravessar os anos difíceis, dividindo recursos e apoiando-se mutuamente. A pobreza ameaçou, mas não venceu.

Com a Revolução de 1930 e a instabilidade política, o interior paulista viveu tempos de tensão. Os colonos ouviam falar de conflitos e de mudanças nas cidades, mas no campo a vida seguia marcada pelo ritmo das colheitas. Settimo já não trabalhava como antes; suas forças haviam diminuído. Passava mais tempo sentado à sombra de um pé de jabuticaba, observando os netos correrem pelo quintal. O sorriso das crianças lhe trazia uma paz que não conhecera na juventude.

Naqueles anos, começou a recordar com mais frequência a aldeia de Sappade. Pedia aos filhos que lhe descrevessem novamente as cartas enviadas por parentes que haviam ficado na Itália. Lia nelas a fome e a guerra que ameaçavam a Europa, e sentia uma estranha mistura de tristeza e alívio. Tristeza por saber que sua terra natal continuava a sofrer; alívio por ter escolhido partir em 1887, garantindo aos seus uma vida diferente.

Ao final da década de 1930, Settimo já não saía mais de casa com frequência. Caminhava pouco, falava menos, mas ainda tinha nos olhos o brilho dos que sabem que venceram a luta essencial da vida. Vivia cercado de filhos e netos, cada um carregando nos gestos uma parte da Itália que ele trouxera consigo.

Quando morreu, por volta de 1938, aos sessenta e oito anos, a comunidade inteira se reuniu. O corpo foi velado na capela erguida pelos imigrantes, e a missa atraiu colonos de todas as redondezas. Muitos o consideravam símbolo de uma geração que atravessara o oceano sem nada e deixara no Brasil raízes profundas. Sua sepultura, simples e de cruz de madeira, foi coberta por coroas de flores trazidas pelos vizinhos e parentes.

Settimo Manfrino partira, mas sua vida já estava impressa no solo vermelho do interior paulista. Os filhos e netos dariam continuidade ao que ele começara, misturando o sangue das Dolomitas ao destino brasileiro. A travessia de 1887, feita por um rapaz franzino de dezessete anos, agora se revelava como o marco fundador de uma nova linhagem. Entre as montanhas pedregosas da Itália e os cafezais do Brasil, Settimo construíra uma ponte eterna.

sábado, 16 de agosto de 2025

O Fio, o Couro e o Mar


O Fio, o Couro e o Mar

Entre a Agulha e o Couro, o Sonho de um Novo Mundo


No coração de uma pequena cidade costeira da Apúlia, nascia e crescia uma geração moldada pela pobreza, pelo trabalho manual e pelas rígidas regras de um mundo em que a mulher pouco decidia sobre a própria vida. Entre as casas baixas e as ruas de pedra irregular, viviam artesãos de mãos calejadas — sapateiros, barbeiros, alfaiates — homens que raramente sabiam ler ou escrever, mas dominavam como poucos o ofício herdado dos pais. As mulheres, em sua maioria, permaneciam no lar ou se dedicavam a tecer, costurar e cultivar a terra. Para poucas, a distinção social lhes concedia o título de donna, reservado às esposas de homens com certo prestígio.

Era uma sociedade onde até o casamento obedecia a uma ordem severa. A bênção para a união partia primeiro do pai; se este tivesse partido, passava ao avô paterno. Só na ausência de ambos a mãe podia conceder o consentimento. Era um patriarcado tão sólido que até o amor precisava aguardar a permissão dos homens da família.

A vida era frágil. A mortalidade infantil rondava cada casa como um vento frio. Registros de óbitos mostravam páginas e mais páginas de nomes de crianças que mal haviam aprendido a respirar. Quando um filho morria, o nome era frequentemente passado ao próximo recém-nascido, como se, ao repetir a palavra, pudessem enganar a morte. Algumas famílias batizavam três filhos com o mesmo nome, numa tentativa silenciosa de perpetuar algo que lhes fora arrancado cedo demais.

Nessa realidade, também havia as crianças sem pai declarado — os proietti. Muitas vezes, a parteira do vilarejo as levava ao oficial de registro. Algumas jovens, contrariando as convenções, ousavam criar sozinhas o próprio filho, pagando com o isolamento social essa escolha.

Foi assim com Lucia Bertoni. Nascida em uma família de tecelões pobres, aprendeu desde cedo o ofício de costureira. Quando, aos vinte anos, deu à luz uma filha sem casamento, chamou-a de Rosa e ensinou-lhe a manejar a agulha e o pano. Rosa, apesar da habilidade, carregava o peso do estigma que afastava pretendentes.

Anos depois, cruzou o caminho de Matteo Branciforte, um sapateiro que havia deixado a aldeia natal nas montanhas do Abruzzo para buscar vida nova na costa. Trazia consigo um passado marcado por vergonha e tragédia: filho de um contrabandista abatido pela guarda alfandegária. Essa mancha, no entanto, não lhe roubara a dignidade do trabalho.

Lucia e Matteo uniram suas vidas e, com paciência, construíram um lar sólido. Ela continuava a costurar para sustentar a casa, ele moldava o couro em calçados resistentes que ganhavam fama na cidade. Não eram ricos, mas ofereciam aos filhos aquilo que nunca tiveram: estabilidade e algum prestígio.

Mas, em 1879, as ruas estreitas da cidade começaram a encher-se de boatos vindos de além-mar. Falava-se de terras férteis no Brasil, de um trabalho que, embora duro, poderia abrir caminho para a propriedade e a liberdade. Eram palavras que encontravam terreno fértil nos corações aflitos, pois a Itália daquele tempo, recém-unificada, carregava feridas profundas. No Mezzogiorno, os campos secavam sob o sol implacável, e a terra, fragmentada e insuficiente, já não sustentava as famílias. A pobreza, quase endêmica, misturava-se à falta de oportunidades; o trabalho escasseava e os salários, quando existiam, mal compravam o pão. Muitos viam seus filhos crescerem com o ventre vazio e o olhar cansado antes mesmo da juventude. Nessa atmosfera de fome e desesperança, qualquer rumor sobre um lugar distante, onde a terra esperava braços dispostos e o pão não faltava à mesa, tornava-se mais do que uma notícia — era uma promessa de salvação. 

Os dois sabiam que, se ficassem, a vida seguiria o mesmo traçado das gerações anteriores e falta de futuro para os filhos. Venderam o pouco que possuíam e, com Rosa já moça e o filho pequeno nos braços, embarcaram em um navio abarrotado de famílias como a deles, partindo de Gênova rumo ao desconhecido.

A travessia foi longa e áspera. No porão úmido, o cheiro de maresia se misturava ao de corpos cansados e barris de provisões. O balanço constante fazia muitos adoecerem. Ainda assim, a promessa de uma vida nova sustentava cada manhã.

Chegaram ao porto de Santos exaustos, mas logo foram conduzidos de trem para o interior, rumo à região de Ribeirão Preto. Ali, sob um sol inclemente, trabalharam como colonos em uma fazenda de café. O contrato com o proprietário era de quatro anos: dias começando antes do amanhecer, acordando ao som de um sino da fazenda, mãos feridas pelo manejo das ramas durante as colheitas e costas curvadas pelo peso do trabalho. O calor abafado do verão e a umidade das madrugadas paulistas moldaram seus corpos à nova terra.

Ao término do contrato, tinham guardado o suficiente para não voltar à condição de servos. Estavam decididos a permanecer no Brasil e não mais retornar para a Itália. Corajosamente, seguiram para um pequeno núcleo de povoamento que, com o tempo, ganharia o nome de Batatais. Ali, retomaram as profissões que carregavam da Itália. Matteo abriu uma modesta oficina de sapatos, oferecendo botas para lavradores e calçados finos para comerciantes locais. Lucia montou seu pequeno ateliê de costura, atendendo esposas de fazendeiros e moças que preparavam o enxoval.

Os filhos cresceram respirando o cheiro de couro curtido e tecidos recém-passados. Rosa, a primogênita, tornou-se a assistente de Lucia, reproduzindo com paciência e perfeição os pontos aprendidos desde a infância. Jamais se casou, mas deixou um legado silencioso nas roupas que confeccionou para toda uma geração. Angelo, o segundo filho, abriu um bar e cafeteria na praça principal, onde mais tarde também veio a funcionar a pequena rodoviária da cidade, que se tornaria ponto de encontro de imigrantes e brasileiros, onde se discutiam colheitas, negócios e notícias do velho continente. Pietro, o terceiro, herdou a determinação do pai e se tornou sapateiro, expandindo o negócio familiar e abastecendo armazéns das cidades vizinhas. O mais novo, Ernesto, estudou com afinco graças ao sacrifício dos irmãos e formou-se guarda livros, sendo o primeiro da família a terminar o segundo grau.

As filhas caçulas, Maria e Antonietta, não tiveram as mesmas oportunidades de estudo, mas sustentaram a família em momentos de dificuldade, costurando, atendendo no bar e cafeteria, e cuidando dos sobrinhos. Entre eles, nasceria uma nova geração que já se considerava brasileira, embora o sotaque e as tradições ainda denunciassem as raízes italianas.

Com o passar dos anos, o casarão simples de Batatais tornou-se o centro das reuniões familiares, onde as histórias da Itália e da travessia eram contadas ao redor da mesa. Matteo envelheceu curvado, mas orgulhoso, sempre com um pedaço de couro nas mãos. Lucia, mesmo com a visão turva, ainda passava os dedos pelas costuras para verificar a firmeza do ponto.

Quando Matteo partiu, numa manhã fria de inverno, a cidade já o reconhecia como um dos pioneiros que haviam ajudado a erguer Batatais. Lucia resistiu alguns anos mais, guardando numa caixa de madeira as cartas não enviadas para a Itália e as ferramentas gastas do marido. Foi sepultada ao lado dele, sob uma lápide simples que trazia apenas os nomes e as datas.

O fio e o couro, que um dia haviam sido apenas instrumentos de sobrevivência, tornaram-se o símbolo de uma família que atravessara o oceano para costurar, com trabalho e coragem, o tecido de um novo destino. E, embora o mundo tivesse mudado, cada geração que descia à praça de Batatais para tomar café ou comprar sapatos feitos à mão ainda carregava, invisível mas intacta, a marca da travessia de 1879.

Nota do Autor

Esta história é inspirada em acontecimentos reais, reconstruídos a partir de cartas preservadas ao longo de gerações e dos relatos orais de familiares que, com emoção, mantiveram viva a memória de seus antepassados. As experiências narradas refletem as dificuldades, esperanças e decisões que marcaram a vida de homens e mulheres no final do século XIX, quando a emigração era, para muitos, a única saída diante da pobreza e da falta de oportunidades.

Por respeito à privacidade dos descendentes e para preservar a intimidade das famílias envolvidas, todos os nomes e alguns detalhes de identificação foram modificados. Ainda assim, buscou-se fidelidade ao contexto histórico e à essência das vivências descritas, de modo que o leitor possa sentir o peso das escolhas e a força da esperança que conduziu aqueles personagens rumo a um futuro incerto, mas desejado.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





quinta-feira, 14 de agosto de 2025

El Fil, el Corame e el Mar

 


El Fil, el Corame e el Mar
Tra l’Ago e el Corame, el Sònio de ‘na Tera Nova

Drento el cuor de ‘na sitadeta costiera de l’Apulia, nassea e cresseva ‘na generassion segnà da la povertà, dal laoro a man e da le règole rìgide de un mondo ´ndove la dona la dessidea poco de la so vita. Tra le case basse e le stradete de piera scompagna, vivea mestieri con le man dure — scarper, barbiere, sartore — òmeni che rade volte savea lesar o scrivar, ma che dominea come pochi l’arte ciapà dai pari. Le done, la pì parte, restea in casa o se dedicava a tesser, cusir e coltivar la tera. Poche, par distinssion, portava el tìtolo de dona, riservà a le mòier de òmeni con un serto prestìgio.

Zera ‘na società ‘ndove anca el maridar seguiva ‘na òrdine severa. La benedission par el unìr de ‘na copia vegniva prima dal pare; se ‘sto zera morto, passava al nono paterno. Solo in mancansa de tuti do, la mare podia dar el consenso. Zera un patriarcà talmente sòlido che anca l’amor dovea spetar el permesso dei òmeni de casa.

La vita zera fràgile. La mortalità dei putei stava drento ogni casa come un vento fredo. I registri de morto mostrava pàgine e pàgine de nomi de creature che no gavea gnanca imparà a respirar. Quando un filo morìa, el nome el zera speso dà al pròssimo nato, come se, ripetendo la parola, se podia inganar la morte. Ghe zera famèie che batesava tre fioi con el stesso nome, in ‘na prova silensiosa de tegner vivo el che zera stà cavà via massa presto.

In ‘sta realtà ghe zera anca i putei sensa pare dichiarà — i proietti. Tante volte, la levadora del paeseto i portava dal segretàrio comunal. Qualche zòvena, contraria a le usanse, oseva cresser soleta el proprio fiol, pagandola con l’isolamento sossial ‘sta scelta.

Cussì zera anca par Lucia Bertoni. Nata in ‘na famèia de tessitori pòvari, s’imparò presto el mestier de sarta. Quando, a vent’ani, la mete al mondo ‘na fiola sensa marìo, lei la ciamò Rosa e ghe insegnò a manegiar ago e tela. Rosa, benché brava, portava con sé el peso del stigma che scampava i pretendenti.

Ani dopo, la incrosò la strada de Matteo Branciforte, un scarpar che gavea lassà el so paeseto su per le montagne de l’Abruzzo par cercar vita nova in costa. Portava drìo un passato segnà da vergogna e tragèdia: fiol de un contrabandier copà da la guardia daziaria. ‘Sta macia, però, no ghe gavea cavà via la dignità del laoro.

Lucia e Matteo i mete insieme la vita e, con pasiensa, i costruì un nido sòlido. Lei continuava a cusir par mantegner la casa, lu modelava el corame in scarpe resistenti che se guadagnava fama in sità. No i zera richi, ma i podìa dar ai fiòi quel che lori no gavea mai avù: stabilità e un certo prestìgio.

Ma, ´ntel 1879, le strade strete de la sità se empieni de boati che vegniva da oltre mar. Se parlava de tere fèrtili in Brasile, de un laoro che, benché duro, podia portar a posseder tera e libartà. Parole che trovava teren fèrtile ´ntei cuori strachi, perché l’Itàlia de quel tempo, apena unida, portava ferìe profonde. In tuto el sud, i campi se secava soto el sole rovente, e la tera, spesà e scarsa, no mantegnea pì le famèie. La misèria, quasi crònica, se mescolava con la mancansa de ocasion; el laoro scassegiava e i salari, quando ghe zera, no bastava gnanca par el pan. Tanti vadava i fiòi cresser con la pansa voda e l’òcio straco prima ancora de la zoventù. In ‘sta ària de fame e disperassion, ogni boato de un posto lontan, ‘ndove la tera spetava brassi disposti e ‘l pan no mancava in tola, diventava pì che ‘na notìssia — zera ‘na promessa de salvassion.

I do savea che, se restava, la vita la seguiria el stesso segno de le generassion passà e gnente futuro par i fiòi. Lori i ga vendù quel poco che gavea e, con Rosa za zòvena e el fiol pìcolo in brasso, i se imbarcò su un navio pien de famèie come la sua, partindo da Génova verso l’scognossù.

La traversia zera longa e dura. ´Nte la tersa classe ùmida, l’odor de mar se mescolava con quelo de corpi strachi e dei barili de provision. El dindolar contìnuo fasea vegnir mal a tanti. Ma la promessa de ‘na vita nova tegneva vivi ogni matina.

Rivà al porto de Santos strachi morti, i ze stà portà in treno verso l’interno, ´ntela zona de Ribeirão Preto. Là, soto un sole infocà, lori i ga laorà come coloni ´int ‘na fasenda de cafè. El contrato con el paron zera de quatro ani: zornade che tacava prima del sole, sveià dal campanel de la fasenda, man ferì dal strapar dei rami in racolta e schena curve dal peso del laoro. El caldo pesante de l’istà e l’umidità de le matine pauliste i forsiava i corpi a la tera nova.

Finì el contrato, i gavea risparmià abastansa par no tornar servi. I zera stà decisi a restar in Brasile e no pì ritornar in Itàlia. Con coraio, i se move verso un nùcleo pìcolo de coloni che, con el tempo, vegnaria se ciamà Batatais. Là, lori i riprese i mestieri portà da casa. Matteo verte ´na botega modesta de scarpe, fornindo stivai ai lavoradori e scarpe fini ai mercanti. Lucia mete su ‘na sartoria pìcola, servendo mòie de i fazenderi e zòvene che se preparea el corredo.

I fiòi i ga cressiù respirando l’odor de corame concià e de tela nova. Rosa, la pì granda, diventò la man drita de Lucia, rifacendo con pasiensa e precision i punti imparai da putea. Mai se sposò, ma lassò un lassà silensioso ´nte le robe cusì par ‘na intera generassion. Angelo, el secondo, vertì un bar e cafetaria in piassa granda, ‘ndove dopo ani vegnè anca la stasioneta dei autobus, che diventò punto de incontro de imigranti e brasilian, ‘ndove se discutea de racolte, negosi e notìssie dal continente vècio. Pietro, el terzo, ciapò la determinassion del pare e diventò scarpar, ingrandindo l’afare de famèia e fornindo i magazin dei paesi visin. El pìcolo, Ernesto, studiò con impegno gràssie al sacrifìssio dei fradèi e se diplomò contador, el primo de la famèia a finir el secondo grado.

Le fiole ùltime, Maria e Antonietta, no gavea le stesse ocasion de stùdio, ma tegnìa su la famèia ´ntei momenti duri, cusindo, servendo al bar e cafetaria e curando i nevodi. Tra lori, nassea ‘na nova generassion che se sentìa za brasilian, anca se el parlar e le usanse tradiva le radìse taliane.

Con el passar dei ani, la casa granda ma sèmplisse de Batatais diventò el sentro de le incontro de famèia, ‘ndove se contava le stòrie de l’Itàlia e de la traversia del osseano intorno a la tola. Matteo inveciò curvo, ma orgoioso, sempre con un peseto de corame in man. Lucia, anca con la vista calà, passava ancora i diti su le cusidure par sentir se el ponto zera fermo.

Quando Matteo el ga partì, ‘na matina freda d’inverno, la sità lo conossea za come uno dei pionieri che gavea contribuì a far nasser Batatais. Lucia resisté ancora qualche ano, tegnendo in ‘na casseta de legno le lètare mai spedì in Itàlia e i strumenti consumaà del marìo. Fu sepolta a fianco de lu, soto ‘na piera semplice con solo i nomi e le date.

El fil e el corame, che ‘na volta zera solo strumenti par sopraviver, diventò el sìmbolo de ‘na famèia che traversò el osseano par cusir, con laoro e coraio, la tela de un destin novo. E, anca se el mondo zera cambià, ogni generassion che passava per la piassa de Batatais par bever un cafè o comprar scarpe fate a man, portava ancora, invisìbile ma intata, la marca de la traversia del 1879.

Nota de l’Autor

‘Sta stòria la ze ispirà a fati veri, ricostruì da lètare tegnù par generassion e dai conti orai de fameiari che, con emossion, i ga tegnù viva la memòria dei so antepassà. Le esperiense contà le riflete le dificoltà, le speranse e le decision che ga segnà la vita de òmeni e done a la fin del XIX sècolo, quando l’emigrassion zera, par tanti, l’ùnica strada contro la misèria e la mancansa de ocasion.

Par rispeto a la privassità dei discendenti e par tegner nascosta l’intimità de le famèie, tuti i nomi e qualche detàio de identificassion i ze stà cambià. Ma se ga sempre ciaro de tegner fede al contesto stòrico e al’essensa de le vite descrite, cussì che el letor possa sentir el peso de le scelte e la forsa de la speransa che ga portà quei personai verso un futuro incerto, ma tanto desiderà.

Dr. Piazzetta


quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta


sexta-feira, 25 de julho de 2025

La Stòria de Francesco Bernardel

 

La Stòria de Francesco Bernardel

Francesco Bernardel, un contadin italiano de ùmile origine, el ga deciso de partir par el Brasile in serca de un futuro miliore. Lassando indrio le coline de la provìnsia de Treviso, lu el ga scampà via con la so mòier, Maria, e i so do fiòi ancora picinin, Pietro e Rosa. El so destino el zera São José do Rio Pardo, ´ntel interior de São Paulo, ndove le tere fèrtili e le promesse de laoro pareva la solussion par la misèria che lori i ga lassà in Itàlia.

Quando quando lu el ze rivà a Santos, a la Casa del Emigrante, Francesco el ga trovà ´na realtà caòtica. El posto el zera pien de famèie de diverse region del’Itàlia, tuti con la speransa de ´na oportunità. Lì, lu el ze sta testimone de ´na rivolta: i emigranti, descontenti con le condission precàrie e con el cibo scadente, i se ga ribelà, butando el mangnar fora de le finestre e obligando l’intervento dei militari. Anche se nissun s’era ferì, sto episòdio el ga segnà Francesco, mostrando ghe che el camìn verso la tanto sperà prosperità el saria sta pien de dificoltà.

Dopo zornate turbulente, la famèia Bernardel la ze sta mandà a ´na grande piantassion de café aministrà da un italiano ciamà Giovanni Toffel. Lì, con altre sei famèie, lori i ga tacà a laorar ´ntei campi. Le condision le zera dure: erba alta, caldo forte e un salàrio che no bastava gnanca par le spese de base. Però, Francesco el ga trovà consolassion ´ntela solidarietà tra i coloni e ´ntela bontà del administrador, che faseva tuto quel che podia par dar cibo e ´na casa dignitosa.

La vita de ogni zorno la zera massacrante, ma ghe bastava qualchi momento de meravèia par dar senso al laoro. Francesco se incantava a vardar le coline pien de piantaion de café, con i grani che lusea come pìcoli gioieli soto el sol. "Se el Signor podesse vardar che meravèia che ze ´na colina de café!", lu el ga scrito in una lètara al maestro che l’aveva lassà in Itàlia.

La casa ndove i stava la zera semplice, fata de legno greso e coerta de vècie tègole de argila, ma ghe dava un conforto inesperà. Ogni sabo, i amasava un porzel e la carne la vegniva spartì tra le famèie, un lusso che Francesco no ga mai provà in Itàlia. Ma la nostalgia de casa restava sempre, specialmente ´ntei zorni de festa religiosa, quando la distansa da la cesa e la mancansa de preti rendeva difìssile far le celebrassion.

Con el tempo, Francesco lu el ze diventà un sìmbolo de resiliensa. Lu el ga imparà a coltivar secondo le usanse locai, conservando el formento con la paia par farlo durar de pì e afrontando le intempèrie tropicai. Maria, dal canto so, la se curava del orto e dei fiòi, insegnando a Pietro e Rosa le tradision italiane par che no le vegnisse mai desmentegà.

No stante le dificoltà, la famèia Bernardel la ga prosperà. Pietro el ze diventà un bravo falegname, costruindo case par i novi emigranti. Rosa, con la so voce delicà, la la ze diventà la cantante prinsipal de le feste de la colónia, unindo italian e brasilian in celebrasion che simbolisava la fusion tra le culture.

Francesco no el ga mai smesso de scriver al so vècio maestro, contando le so vitòrie e dificoltà. Lu el savea che tanti emigranti no i ga avù la stessa fortuna, ma el se sentiva grato par aver trovà un posto ndove el laoro duro el zera recompensà. In una de le so ùltime lètare, el ga scrito: "Qua, in sta tera lontan, go trovà quel che l’Itàlia no me gavea mai podesto dar: la oportunità de ricominsiar. Anche se la nostalgia la ze granda, gavemo costruì ´na casa, e questo ze un tesoro che nissun ossean pol cancelar."

Francesco Bernardel el ze diventà un sìmbolo de coraio e perseveransa, rapresentando i mìliai de italiani che, con sudore e sacrifìssio, i ga contribuì a formar el Brasile. La so stòria, come tante altre, ze na prova che anca ´ntei momenti pì difìssili, la speransa pol fiorir e transformar la vita.

Nota del Autor

Scriver La Stòria de Francesco Bernardel la ze sta un viaio de esplorasion dele radise del coraio umano e dela forsa che ne porta verso l’ignoto in serca de na vita miliore. Inspirà dai raconti dei emigranti italiani che i ga traversà l’Atlàntico a la fine del XIX sècolo e al inìsio del XX, sta narativa la vol render omaio no solo a Francesco e a la so famèia fitìssia, ma anca ai mìlai de òmini, done e putei che i ga afrontà tante aversità par costruir un novo futuro in Brasile.

La stòria de Francesco Bernardel la rispechia la realtà de tanti italiani che i ga lassà indrio le so aldeie, le so tradision e, a volte, anca i so cari, par afrontar lo sconossesto. Ze un omaio a le speranse e ai sacrifìssi de chel che i ga trovà ´ntele tere brasilian un novo scomìnsio, anca quando i sfidi i pareva insormontàbili.

La me intension la ze sta de caturar no solo i fati stòrici, ma anca le emosion e i dilemi interni de chi che i ga vissesto sto processo de spostamento e adatatasion. Dal caos de le Case del Emigrante fin a le durese dele fasende de café, La Stòria de Francesco Bernardel l’è un ritrato de resiliensa, solidarietà e reinvension.

Che sto libro el sia un ricordo che le stòrie dei emigranti no le ze solo parte del passà, ma che le continua a plasmar el presente e el futuro. E che ogni letore el possa trovar in Francesco Bernardel na ispirasion par crèder che, anca de fronte ai pì grandi dificoltà, la speransa e el laoro duro i pol transformar la vita.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

domingo, 15 de junho de 2025

Raízes da Esperança: Histórias de um Imigrante Italiano no Brasil

 

Raízes da Esperança 

A História de Giovanni, um Imigrante 

Italiano no Brasil


Em uma pequena localidade nas ondulantes colinas da Toscana, no final do século XIX, vivia Giovanni Bianchi, um jovem agricultor de 28 anos. A terra que cultivava era árida e pouco produtiva, tornando difícil sustentar sua esposa, Maria, e seus dois filhos pequenos, Luca e Sofia.

As histórias sobre oportunidades no Brasil começavam a circular entre os moradores do pequeno e quase esquecido município toscano, prometendo terras férteis e uma vida melhor.

Certa noite, após um dia exaustivo no campo, Giovanni sentou-se à mesa de madeira desgastada de sua modesta casa e falou à sua mãe, Letizia:

"Partiremos em um mês, minha mãe. Iremos para bem longe. Muitos estão indo para um novo mundo. Promete-se uma nova vida e terras extensas para plantar e colher. Deixarei a saudade ficar amarga, porque talvez eu nunca mais volte a este lugar."

A decisão de Giovanni não foi fácil. Deixar a terra natal, a velha mãe, os irmãos e os amigos era doloroso, mas a perspectiva de um futuro melhor para seus filhos pesou mais. Maria, embora apreensiva, apoiou o marido, compartilhando do sonho de prosperidade.

A viagem de navio foi longa e árdua. As condições a bordo eram precárias, com pouco espaço, água potável e alimentos escassos. Giovanni observava seus filhos tentando transformar o ambiente hostil em uma aventura, enquanto Maria cuidava deles com ternura, apesar do cansaço evidente.

Ao desembarcarem no porto do Rio de Janeiro, foram recebidos por um calor sufocante e uma língua desconhecida. Foram encaminhados a uma hospedaria de imigrantes, onde aguardariam a ordem de encontrar os encarregados do novo patrão. O ambiente era caótico, com famílias de diversas nacionalidades tentando se comunicar e entender o que viria a seguir.

Após semanas de espera, Giovanni e sua família já contratados por um fazendeiro paulista, foram direcionados ao interior de São Paulo, para trabalhar nas plantações de café. Isso os obrigou a embarcar novamente em outro navio até o porto de Santos e dali, de trem, subir a serra até São Paulo, onde os representantes do futuro patrão os esperavam para levá-los ao interior do estado. Junto com um grande grupo de famílias escolhidas, seguiram de trem até Araraquara. As terras eram vastas, mas o trabalho era exaustivo, e as condições de moradia rudimentares. Giovanni, porém, não desanimou. Via naquele solo vermelho a esperança de um futuro promissor.

As dificuldades enfrentadas pelos imigrantes italianos eram imensas e multifacetadas. A adaptação ao clima tropical era um desafio constante, já que vinham de regiões de clima temperado, onde as estações eram bem definidas e os verões não atingiam temperaturas tão altas. A umidade intensa, as chuvas tropicais e a vegetação densa tornavam o ambiente ainda mais opressivo. O impacto dessas condições sobre a saúde era severo: doenças tropicais, como febre amarela, malária e disenteria, rapidamente se tornaram ameaças reais para aqueles que haviam cruzado o oceano em busca de uma vida melhor.

A barreira linguística agravava o isolamento. Muitos colonos falavam apenas dialetos italianos e não dominavam o português, o que dificultava tanto a comunicação com os brasileiros locais quanto o acesso a informações vitais, como instruções agrícolas.

As casas destinadas aos colonos eram antigas habitações degradadas, que antes abrigavam os escravos da fazenda. Eram estruturas simples e precárias, feitas de barro e madeira, sem ventilação, iluminação ou conforto básico. Telhados frequentemente vazavam, as paredes apresentavam rachaduras e o chão de terra batida expunha as famílias a insetos e à umidade.

Apesar disso, os colonos começaram a transformar esses espaços com muito esforço e perseverança. Reparavam como podiam os telhados, reforçavam paredes e criavam pequenas hortas ao redor das casas, buscando recriar um pouco das vilas italianas. A vida na fazenda era marcada pelo intenso trabalho agrícola e pelas difíceis condições de moradia, mas os imigrantes italianos encontraram maneiras de fortalecer seus laços comunitários e preservar suas tradições. Ainda que sob as rígidas regras impostas pelo sistema de colonato, Giovanni e os demais colonos começaram a cultivar vínculos culturais e religiosos. Durante os raros momentos de descanso, reuniam-se para celebrar datas especiais, compartilhar histórias de sua terra natal e planejar o futuro.

Embora a construção de uma escola e igreja independente fosse quase impossível devido às restrições impostas pelos proprietários da fazenda, os colonos improvisavam espaços para encontros religiosos e atividades comunitárias. Em um barracão emprestado para o uso coletivo, Giovanni destacou-se pela liderança. Ele organizava missas conduzidas por padres itinerantes e, em ocasiões festivas, liderava a preparação de refeições típicas e danças tradicionais. Essas celebrações, ainda que simples, tornavam-se poderosos símbolos de resistência cultural e esperança.

Ao longo dos anos, esse espírito colaborativo ajudou os imigrantes a manterem vivas suas raízes, mesmo em meio às adversidades. Giovanni, com seu entusiasmo, tornou-se uma figura central nesses momentos de união, não apenas fortalecendo a identidade de sua comunidade, mas também deixando um legado de resiliência para as gerações futuras.

Com o passar dos anos, o trabalho árduo começou a dar frutos. Depois de economias rigorosas, Giovanni adquiriu um pedaço de terra próprio em uma vila nascente ao redor da fazenda. Plantou suas primeiras videiras, escolhendo mudas que remetiam aos vinhedos da Toscana.

A vila prosperou graças à dedicação das famílias que transformaram terras inóspitas em campos produtivos. Os filhos de Giovanni cresceram nesse ambiente de trabalho e esperança, fluentes em italiano e português, integrando-se à cultura brasileira sem abandonar suas raízes.

Em uma tarde ensolarada, sentado na varanda de sua casa, Giovanni escreveu à sua mãe:

"Querida mãe, a saudade de nossa terra é constante, mas o Brasil nos acolheu com generosidade. As crianças crescem fortes e felizes. A terra aqui é fértil e tem nos dado sustento. Sinto falta da Toscana, mas neste novo lar encontramos uma forma de honrar nossas origens."

A história de Giovanni, como tantas outras, é um testemunho de coragem e determinação. Neste livro, Piazzetta revela com sensibilidade como os imigrantes italianos ajudaram a moldar a história do Brasil, mantendo vivas suas tradições enquanto transformavam dificuldades em oportunidades.


quarta-feira, 30 de abril de 2025

La Zornada de Bepi Morettini: Un Lassado Tra Do Mondi


La Zornada de Bepi Morettini: 

Un Lassado Tra Do Mondi


Capìtolo 1: La Partensa

Albettone, Véneto, Itàlia, 1886

Bepi Morettini se sentava su la ponta del leto, con le man che mostravano i segnài del lavor, tegnendo un vècio capel. La dessision la zera ciara: el doveva partir par el Brasile in serca de ‘na vita mèio. Le lètare de un conoscente, che el zera partì do ani prima, parlava de tere vaste e de promesse de lavor. “Torno fra pochi ani, con abastansa schei par ripartir qua,” ghe diseva a tuti che ghe chiedeva del so viàio. Ma drento, el saveva che forse no l’avria mai pì rivisto la so tera".

La mama, Giulia, pianseva in silensio intanto che la meteva un rosàrio drento la so valisia. “Prega, Bepi, e Dio te protegerà. No importa quanto lontan te vadi, saremo sempre unì ´ntela preghiera.

Al porto de Genova, Bepi e altri sentenai de emigranti i ga salì sul Vittoria, un bastimento pien de speranse e de incertesse. Fra i passegièri, el conòsse la famèia Zanetti, che, come lù, sercava de rifar la vita in un posto sconossùo.

Capìtolo 2: La Quarantena

Isola dei Fiori, Brasile, 1886

El viàio in mar el zera duro, con poco magnar e la paura contìnua de le malatie. Quando el bastimento el ga rivà al porto de Rio de Janeiro, tuti i passegièri i ga dovù fare la vassina contra la variola. Bepi, però, el ga reasionà mal, gavendo ‘na forte reassion che i ga prostà. Lu el ze stà isolà in ‘na quarantena a l’Isola dei Fiori, mentre che i Zanetti i ga continuà el so viàio.

Par setimane, Bepi el gà lotà contra la solitudine e l’angosia. Ogni dì el vardava i bastimenti che partiva e se imaginava come saria sta la so vita. “Mi son solo, in un posto che no so manco pronunsiar. Ze questo el fin del me sònio?”

Finalmente liberà, el ga rivà a la grande sità de São Paolo sensa saver léser, scrìver o anca parlar portoghese. Se sentiva perso in ‘na sità agità che cresseva sgoelta, ma el ga trovà drento de lù ‘na determinassion incrolàbile.

Capìtolo 3: El Contadin

Inte la stassion de imigrassion, Bepi el ga incontrà con Bartolomeo Franco, un rico fasendero de Araraquara che sercava lavoradori italiani. Ma le famèie che ze arivà i zera zà destinà a altri posti. Sensa trovar lavorador par so propietà, Bartolomeo el ga deciso de portar Bepi da solo.

El viàio con el tren par Araraquara el zera interminàbile. Quando i ze rivà al capolinea, Bepi el ga scoprìo che el resto del traieto el saria stà fato a piè, in meso a la selva. La fasenda di Bartolomeo, Monte Alegre la zera isolà, sircondà da foresta vèrgine. Bepi el ze stà el primo taliano a lavorar lì, enfrentando condisioni quasi insalubri e zornade stracanti.

Capìtolo 4: Una Nova Comunità

Dopo la stinsion de la schiavitù ´ntel 1888, la fasenda la ga scomensià a recever pì imigranti taliani. Fra lori, ghe zera la famèia Paolon, de Treviso. Bepi el se ga sùito inamorà de Elena Paolon, na tosa con oci vivi e un soriso caloroso. Nonostante la resistensa inisiale del so pare, i do se ga sposà, mesi dopo, in ‘na serimónia semplice ´ntela pìcola capela de la fasenda.

Elena la ga portà speransa a Bepi. Insieme, i ga scomensià a costruir ‘na vita sòlida, coltivando cafè par el paron, tirando su par lori qualche pìcola bèstia, risparmiando ogni scheo e, con el tempo, dopo sinque ani i ga comprà un pìcolo poder ´ntela nova sità che cresceva vicina a la fasenda.

Capìtolo 5: El Legado

Tra el 1890 e el 1905, Bepi e Elena i ga avù oto fiòi. La fasenda la se ingrandiva, come anca la comunità italiana vissina. Bepi, che ga imparà a léser e scrìver gràssie a Elena, el ze diventà un capo locale, mediando confliti e aiutando i novi imigrà rivà ad ambientarse. Ma el sapea che, par lavorar la so tera nova, el doveva lassar la fasenda.

La nostalgia de l’Itàlia no la ze mia sparì, ma el sònio de tornar el se alontanava sempre de pì. Bepi el manteneva contati con la so famèia in Itàlia scrivendo lètare, ndove el contava le dificoltà e i trionfi de la so zornada. “Qua no ze mia fàssile, ma la tera la ze generosa con chi che lavora. Stamo construindo qualcosa de cui i nostri fiòi e i nostri nepoti i se pol vantar.

Capìtolo 6: Un Segno ´ntel Tempo

Nel 1938, a 72 ani, Bepi Morettini el ze morto, sircondà da la so grande famèia. Al so funerale, tanti i ga ricordà el so coràio e la so resiliensa. La tera, che ‘na volta la zera foresta vèrgine, la ga ora piantassion, case e na comunità vibrante.

Al sentro de la sitadina, un pìcolo monumento el ze stà ereto in so onor, con la iscrission:

A chi che ga trasformà i sòni in radisi profonde. El leassà de Bepi Morettini el vive in ogni racolta e in ogni generassion.

La stòria de Bepi la ze diventà un sìmbolo de la forsa e del spìrito dei imigranti italiani in Brasile, che, nonostante le adversità incredìbili, i ga costruì le so vite e lassà na eredità eterna.


Nota de l’Autor

Mi scrivo sta stòria con ´na gran passion e un profondo rispeto par i nostri antinati che i ga lassà tuto par ´ndar via, par inseguir ‘na speransa. "La Zornada de Bepi Morettini" no la ze solo ‘na stòria de emigrassion, ma anca un omaio a la forsa, al coraio e al spìrito de resiliensa de chi che, come tanti veneti, i ze partì sensa saver cossa che i li aspetava.

Con sto lavoro, mi vao onorar no solo la memòria de chi che ga vissuto sti momenti, ma anca tegner viva la léngoa talian, ´na léngoa che porta con lei no solo parole, ma anca emossion e tradission. Credo fermamente che costodir sta léngoa la ze un ato de amore verso la nostra identità culturale, che vive ´nte le voci dei nostri vèci e ´ntei nostri cuori.

Sta stòria anca se fitìssia, parla de radisi, de speransa e de un futuro che i nostri antinati i ga costruì con le so man, lassandose guidar dal sònio de na vita mèio. Che el viaio de Bepi possa inspirar chi che incòi se trova smarìo fra do mondi, parchè ogni transission, no importa quanto dura, la porta con se ´na promessa de rinassita.

Con afeto e gratitùdine,


Dr. Piazzetta

segunda-feira, 17 de março de 2025

A Jornada dos Irmãos Morette: Italianos que Forjaram um Legado em São Paulo



A Jornada dos Irmãos Morette: 
Italianos que Forjaram um Legado em São Paulo

Em 1878, no final do século XIX, em uma pequena vila nas planícies de Mantova, na Lombardia, Itália, os irmãos Giuseppe e Angelo  Morette passavam seus dias ajudando os pais no cultivo da pequena propriedade rural da família. A vida apesar de tranquila, não dava sinais de  trazer melhorias nas condições financeiras daqueles pobres agricultores. Apesar do pai ser proprietário do pequeno terreno, herdado dos seus antepassados, e o fato de estarem financeiramente muito melhores que a maioria dos outros habitantes do lugar, não os faziam imunes ao que estava acontecendo em todo o país, especialmente no período que se seguiu a unificação da Itália em um único reino. O crescente aumento dos preços dos produtos que precisavam adquirir, impulsionados por uma inflação crônica, somados a criação de novos impostos e,  principalmente, pela concorrência com os grãos importados, tornavam insustentável a continuação daquele trabalho na agricultura, já considerado sem futuro para os pequenos produtores. As frustrações seguidas de safras, devido alterações climáticas, agravavam a situação na zona rural também na Lombardia. Inúmeros outros produtores rurais, até mais abastados que eles, já tinham vendido as suas propriedades e partido em emigração para outros países, tanto vizinhos da Itália como, principalmente, para a distante América. O desejo de melhorar de vida, de fugir daquela falta de perspectiva de futuro e o desejo de aventura  estava gravado em seus corações.
Em 1893, movidos por histórias de sucesso no Brasil contadas pelas cartas que chegavam dos emigrantes, Giuseppe, que era o irmão mais velho, e Angelo, o caçula, decidiram embarcar em uma jornada incerta. Com a benção dos pais deixaram para trás sua família, esperando que a promessa de terras distantes e oportunidades os recompensasse. Para os pais asseguraram que assim que se estabelecessem no Brasil mandariam dinheiro para as passagens para eles os encontrar.
Depois de uma longa e tumultuada viagem, que durou um mês, chegaram no interior de São Paulo, onde começaram a vida em uma terra estrangeira. Aos poucos, com tenacidade foram construindo suas vidas em solo brasileiro. Com o pouco dinheiro que o pai lhes deu Giuseppe se aventurou no comércio local, abrindo uma pequena loja para venda de secos e molhados  que se tornou uma referência na cidade. Mais tarde ele também investiu em uma olaria, fabricando tijolos e telhas para atender  as necessidades de uma cidade em constante crescimento.
Angelo, por outro lado, viu uma oportunidade na criação suínos que os engordava e vendia para uma fábrica de salames e banha de uma cidade vizinha. Suas atividades muito contribuíram  para o desenvolvimento da economia local. Depois de cinco anos, como tinham prometido, mandaram dinheiro para os pais que então passaram a morar no Brasil.
Em 1913, Giuseppe, agora casado e pai de seis filhos, decidiu fazer uma viagem de volta à Itália para rever parentes e amigos que ainda lá moravam. Infelizmente, sua visita coincidiu com o início da Primeira Guerra Mundial, e ele foi recrutado, deixando para trás sua família e seu comércio. Só conseguiu retornar ao Brasil em 1919, onde foi recebido com alegria pela esposa e filhos, incluindo o seu sétimo filho, que recebeu por isso o nome de Settimo, que ainda não conhecia.
Nos anos que se seguiram, Giuseppe fez várias viagens à Itália, uma das quais acompanhado pelo filho mais velho Attilio, que permaneceu na península por três anos, absorvendo a cultura de seus ancestrais.
Infelizmente, em 1930, uma tragédia abalou a família Morette quando Angelo faleceu prematuramente, deixando para trás sua esposa e sete filhos. A família se uniu para superar a adversidade, mantendo o legado de trabalho árduo e perseverança deixado por Angelo.
Hoje, os descendentes dos irmãos Giuseppe e Angelo Morette estão espalhados em diversas cidades dos estados de São Paulo e Paraná, preservando as tradições e histórias de seus antepassados italianos, que deixaram sua marca na história da região.






quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Na Stòria de Vita

 


Na Stòria de Vita

Carmela la ze nassesta nel 1890, in te na pìcola frasion de la provìncia de Padova, in Itàlia, circondà de monti verdi e un fiume tranquilo. Fin da toseta, la gà imparà el valor de la famèia e del laoro duro, aiutando i so genitori ´ntel laoro nei campi e curando i fradèi pì pìcoli. Con alora 20 ani, qualchi ani prima de la Granda Guera, la se ga sposà con el sartor Michelle, un toso pien de sòni che ghe gà promesso na vita de aventure e amore. Insieme, lori i ze emigrà sùito dopo a São Paulo, in Brasile, che la zera deromai na grande sità, ndove i gà tirà su i so quatro fiòi in na casa modesta, ma sempre piena de risi, stòrie e con el olor consolante de la cusina casalinga.

Carmela la zera na gran cusiniera, conossùa par i so rotóli de carne mascinà e i so ovi farcì, che i fasea sempre festa ne le zornade de famèia. Oltre a questo, la so abilità nel pontacruzo trasformava teli semplici in òpere d’arte che ricamava la so casa e che i zera dati in regalo ai so cari. La vita la zera semplice, ma piena, e Carmela la zera fiera de vardar i so fiòi crèscer e intraprender la so strada.

Con el tempo, i fiòi i ze sposà e i gà avù i so fiòi. Carmela la ze diventà nona e, dopo, bisnona. La so casa, che una volta la zera silenssiosa, la se ze de novo impinì de risi de toseti e de stòrie contade intorno a la tola. Ma, con el passar de i ani, le visite le ze diventà sempre pì rare. I so nevòdi, ciapadi da le so vite, i gavea sempre manco tempo de vardarla. I fiòi, che i zera zà inveciài, i zera presi da le so responsabilità, e a la fine l’idea de vardar Carmela la ze diventà un peso che nessun parea pì disposto a portar.

Con la salute che la ze pegiorà e Michelle oramai morto, Carmela la ze stà portà in un ricovero par vèci. Là, in una stanza de 12 metri quadrati, la gà scomenssià a passar i so zornade. I mobili che i zera sui, i ze restà indrìo; solo qualche foto e ricordi i ze vignù con lei. Carmela, che la gavea 89 ani, la se catava circondada da zente sconossùa, in un ambiente che, anca se neto e ben organisà, ghe pareva fredo e lontan.

Lei tentava ancora de tegnerse ocupà con passatempo e parole incrosà, ma gnente la podea sostituir la giòia de gaver la so famèia visin. Le visite de i fiòi e dei nevòdi i ze diventà eventi sporàdici, e Carmela la se catava a contar i zorni par ogni visita, solo par restar delusa quando queste se fasea sempre pì rare. Ne le note solitàrie, la teneva le foto de la so famèia, tentandose de ricordar el calore de quei zorni che pariva tanto lontani.

Carmela la gà inisià a coinvolgersi ne le atività del ricovero, aiutando chi stava peso. Ma lei savéa che no dovea atacarse massa, parchè la vedea spesso questi novi amici sparir, portài via da la morte. La solitudine la ze diventà na so compagna constante, e Carmela, no ostante tuto, la tentava de mantegner la speransa e la dignità.

Ne le so riflession, Carmela la se domandava el senso de na vita longa, specialmente quando la ze vissùa in solitudine. Lei pensava a le generassioni pì zovani e a quel che lori i podea imparar da la so esperiensa. La famèia, lei la credeva, la ze la base de tuto, e la dovea èsser curada e preservada con amore e dedissione. Lei sentiva che la so vita, anca se longa, la stava rivando a la fine, ma la sperava che la so stòria la podesse servir de lession par quei che sareve vignùdi dopo de lei.

Carmela no la gà mai portà rancore, ma la sentiva na tristessa profonda par vardar la so vita, che na volta la zera tanto piena de significà, ridota a la spetativa de la fine. Lei ghe desirava che i so fiòi lori i capisse el valor del tempo, che i se ricordasse de l’amore che lei ghe gavea dà e che lori ghe lo restituisse fin che l’era ancora possibile. Lei savéa che la morte la zera inevitàbile, ma la ghe desirava che i so ùltimi momenti i fusse circondà de amore, no de muri vuoti.

Nei so ùltimi zorni, Carmela la vardava le foto, sussurrando orassioni silenssiose. Lei savéa che presto la se saria reunida con Michelle e con i amici che lei gavea perso lungo i ani. E, con un sospiro, la acetava el so destin, desiderando solo che la so vita, anca ne i ùltimi momenti, la ghe gavessi algun significà par quei che lei gavea amà.