domingo, 13 de maio de 2018

Relato Antigo de uma Grande Seca Ocorrida no Vêneto da Sereníssima República de Veneza no Ano de 1779




Addì 10 maggio 1779

Sarà cosa grata a posteri il sapere che in quest’anno si è patita terribile siccità, non avendo mai piovuto ne nevicato dalli mesi novembre 1778 sino addì 10 aprile 1779 - ed ancora oggi ha piovuto lentamente per due o tre ore e non più, cosicché l’umidità tanto bramata non penetrò un solo dito. Tale inaudita siccità si è stesa per tutta l’Italia e persino in Polonia, a molti luoghi dell’Alemagna così pure in Francia e in Spagna. Li 27 aprile verificò una lentissima pioggia. Finalmente il 7 e 8 maggio è piaciuto alla Divina Provvidenza consolarci intieramente, avendo piovuto abbondantemente ove i nostri fiumi Brenta e Piave, che erano quasi dissecati con tanto danno alla navigazione e specialmente con l’essersi resi quasi affatto inefficienti tanti molini sopra medesimi, ciò che arrecava una totale miseria agli afflitti popoli circonvicini. Nelle nostre montagne, tante restarono dissecate, quasi tutte, con estrema desolazione di quegl’infelici popoli che penavano enormemente per dissetare sé stessi e i loro bestiami, persino di notte. Quei pochi, che portati di benigna Provvidenza del Cielo restarono provveduti del bramito liquido, erano sempre circondati di gente da lontani paesi conversa per raccoglierne sino la più minuta stilla. In un pubblico rapporto in data di Madrid, 27 marzo, si legge ciò che segue: “ in tutto questo Regno fanno delle pubbliche Devozioni per ottenere la pioggia, poiché da 7 interi mesi non è caduta una goccia di acqua, lo che ha cagionato infinite malattie e grandissima mortalità”.

Dia 10 de maio de 1779

Será gratificante aos que virão saber que neste ano sofremos terrível seca, não tendo chovido, nem nevado, desde o mês de novembro de 1778, apenas no dia 10 de abril de 1779 – e ainda hoje choveu muito pouco, por não mais de duas ou três horas, sendo que a tão esperada umidade não penetrou um só dedo no solo. Esta rara seca se estendeu por toda a Itália e também na Polônia, em muitos locais da Alemanha e até na França e Espanha. Ali em 27 de abril ocorreu uma breve chuva. Finalmente nos dias 7 e 8 de maio a Divina Providência quis nos consolar inteiramente, tendo chovido abundantemente em nossos rio Brenta e Piave, os quais estavam quase secos, causando tantos danos a navegação, especialmente pelo fato de tornar ineficientes tantos moinhos ao longo dos mesmos, acarretando uma grande miséria às aflitas populações circunvizinhas. Nas nossas montanhas, tantas ficaram secas, com seus habitantes na extrema desolação, sofrendo enormemente para satisfazer as necessidades de água para si e para o gado, buscando água inclusive a noite. Aqueles poucos escolhidos pela providência do céu, que conseguiam obter o esperado líquido, eram sempre circundados de pessoas provenientes de cidades longínquas, ansiosos para obter algumas gotas. Em um documento público de Madrid, com data de 27 de março, se le o que segue: “em todo este reino se fazem súplicas públicas para obter a chuva, pois a 7 inteiros meses não caiu uma gota de água, o que ocasionou muitas doenças e elevado número de mortos”.
Questo racconto originale, ci parla di una gran calamità accaduta tanti anni fa, nel secolo XVIII, già nel finale del potere della Serenissima Repubblica di Venezia, che marcò profondamente i nostri antenati e certamente ha concorso per creare una situazione di miseria cronica nel Veneto. Scritto originalmente in latino dal parroco d’allora, dovuto la sua importanza storica, cent’anni dopo fu tradotta in italiano antico e messa nel libro parrocchiale di 1877, dal Pe. Cristiano Cera, con una calligrafia fatta a pena e con degli errori grammaticali. Molte parole hanno avuto bisogno di traduzione per essere capite, eppure lasciamo alcuni sbagli che danno una idea dell’epoca. Questo documento è stato trovato un mese fa, nel libro parrocchiale della Parrocchia di San Marco, comune di Camposampiero, provincia e diocesi di Padova, e ci fu inviata dal nostro lettore Cezar Scolari, della città di Costantina (RS), che con perspicacia l’ha veduto e fatto una copia quando ricercava i registri di suoi antenati in quella parrocchia veneta. Scolari ancora ci racconta che questa parrocchia è dell’anno 1300 e li ci sono custodite dati e documenti dal 1470.

Nota

Este relato original, nos fala de uma grande seca acontecida tantos anos atrás, no século XVIII, já no final do poder da Sereníssima República de Veneza, que marcou profundamente os nossos antepassados e certamente concorreu para criar uma situação de miséria crônica no Vêneto. Escrito originalmente em latim pelo pároco de então, devido a sua importância histórica, cem anos após foi traduzido em italiano antigo (documento acima) e colocado no livro paroquial de 1877, pelo padre Cristiano Cera, com uma caligrafia feita pena e com alguns erros gramaticais. Muitas palavras necessitaram de tradução para serem compreendidas, entretanto deixamos alguns erros que dão uma idéia da época. Este documento foi encontrado a poucos anos atrás, nos livros da Paróquia de San Marco, município de Camposampiero, província e diocese de Padova, e nos enviada pelo nosso leitor Cezar Scolari, da cidade de Costantina (RS), o qual com perspicácia a viu e fez uma fotocópia, quando pesquisava os registros dos seus antepassados naquela paróquia vêneta. Scolari ainda nos contou que esta paróquia é do ano de 1300 e ali estão guardados dados e documentos desde o ano de 1470.  

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS

Nós Os Ítalos-Gaúchos

Nós, Os Ítalos Gaúchos
  Darcy Loss Luzzatto







Nossos antepassados, aqui chegados no último quarto do século XIX, não eram, em sua grande maioria, italianos.
Paradoxal afirmação, quando “sabemos” que as três Colônias da Serra e a quarta de Santa Maria eram constituídas de “italianos”! Disse paradoxal porque a afirmação parece absurda, mas não é. Efetivamente, nossos antepassados não eram italianos. Quase todos os componentes das primeiras levas de imigrantes – pelo menos os adultos - , nasceram em território não italiano. Eram vênetos, lombardos, friulanos, trentinos, piemonteses... Explico melhor.

O Norte da atual Itália era, na época em que esses imigrantes adultos nasceram, governados por estrangeiros, direta ou indiretamente (o fantoche Reino Lombardo-Vêneto, Império Austro-húngaro). Essa região passou a fazer parte efetiva da Itália, do reino da Itália, tão somente em 1859 (o Piemonte e a maior parte da Lombardia), em 1866 (o Vêneto, o Friuli e o resto da Lombardia), como consequência da Unificação, e em 1918 (o Trentino e a Venécia Júlia), como resultado da Primeira Grande Guerra. Antes dessas datas, essas regiões nunca haviam sido Itália, pelo simples fato que a Itália, como país, jamais havia existido! Portanto, os nossos “velhos”, que nasceram sob outras bandeiras e nacionalidades foram “tornados” italianos. Não o eram de fato! Insisto: eram vênetos, lombardos, friulanos, trentinos, istrianos, ...

Cada um falava o idioma de sua cidade, de sua província, de sua região, isto é, utilizavam falares vênetos – belunês, trevisano, vicentino, veronês, veneziano... -, os vênetos; idiomas lombardos – mantuano, cremonês, milanês -, os lombardos; dialetos da língua friulana, os friulanos; um vêneto arcaico, os istrianos; o trentino – variante do vêneto -, os tiroleses; falares piemonteses, os que vieram do Piemonte. Praticamente ninguém falava o toscano, transformado em língua oficial italiana com a Unificação. Basta dizer que, em 1870, em toda a Itália, menos de 2% da população falava toscano, o idioma oficial, e menos de 1% sabia escrevê-lo!

Com isso, quero reforçar o que já disse: nossos antepassados não eram italianos! Eles não eram portadores de uma cultura italiana! Insisto: eles eram vênetos, ou lombardos ou friulanos ou trentinos ou piemonteses e possuíam a sua própria cultura, própria deles, de suas regiões, que nada têm a ver com as culturas das outras regiões que hoje constituem a Itália. (Não existe, ao meu ver, uma nação italiana, mas muitas nações dentro de um pequeno-grande país denominado Itália).

Pois essa gente, que pertencia a “nações” diferentes, que falava idiomas diferentes e que era portadora de culturas diferentes, ao chegar à “terra prometida”, foi assentada em colônias, linhas e travessões, no meio da selva inóspita, ao bel prazer do “chefe” da Colônia. Assim, um trentino de Primiero passou a ter por vizinhos um vêneto de Oderso e um lombardo da Mântua. Era preciso comunicar-se, entender-se. Era uma questão de sobrevivência! Foi dessa necessidade de comunicar-se, para poderem-se auxiliar, para sobreviver, que nasceu nosso belo idioma, o talian ou vêneto brasileiro, mescla bem dosada dos falares de nossos antepassados, com a língua do país de adoção, o português.
O talian, a koiné aqui surgida, que permitiu que piemonteses, treninos, friulanos, lombardos e a maioria veneta pudessem entender-se, não nasceu de repente e nem por decreto. Passaram-se anos e anos antes de tornar-se a verdadeira língua de comunicação em que se transformou. Os sotaques característicos de cada região persistiram por muito tempo. Os casamentos mistos – vênetos versus lombardos, trentinos versus friulanos – permitiram que, mais rapidamente, se uniformizasse a koiné. Algumas palavras, talvez por soarem estranhamente a certos participantes do grupo, foram sendo substituídas quase sempre pela correspondente portuguesa, embora devidamente venetizada, é claro! Em certas linhas onde a predominância fosse lombarda, por exemplo, a língua de comunicação local assumia uma forma acentuadamente lombarda, mas nas vilas (nte i paesi), em vista da preponderância veneta, apresentava já no inicio do século, forma semelhante ao talian atual. A inclusão de mais termos portugueses se acentuou com o desenvolvimento tecnológico: as novas palavras entraram íntegras no linguajar local, embora com sintaxe taliana.
Nos anos de 30 e 40, antes que o Brasil declarasse guerra ao Eixo (Alemanha – Itália – Japão), em toda a região dita de colonização italiana do Rio Grande do Sul, o talian era não apenas a língua mais falada, mas praticamente a única, pois apenas os mais velhos ainda utilizavam seu “dialeto” de origem, e pouquíssimos eram aqueles que se “defendiam” em português. Os professores (maestri), quase todos taliani, embora quisessem ensinar em português ou em italiano (leia-se toscano), não o conseguiam pelo simples fato de desconhecerem esses idiomas. É claro que havia exceções, mas eram exceções! Assim o nosso idioma, o talian, ficava cada vez mais forte – porque era ensinado! – e cada vez mais nosso.
Com a guerra iniciou-se o nosso calvário: não podíamos mais fazer uso de nossa língua materna! Muitos dos que se aventuraram a fazê-lo sofreram as consequência: foram presos. Nos tornamos gringos (particularmente, abomino esta expressão. Considero-a tremendamente depreciativa), isto é, estrangeiros em nossa própria pátria! Os mais renitentes, além da cadeia, eram chamados de Quintas-colunas, isto é traidores!
E, a partir de então, muitos baixaram a cabeça e sentiram vergonha de falar a nossa língua; hoje, inclusive, fingem nem sequer entendê-la. Pobres coitados! Deveriam ter orgulho, não vergonha. Um que fala tão somente uma língua é pouco mais que mudo! (A não ser que seja o inglês, dada a importância atual deste idioma). Nós que, além do português, falamos o talian, sabemos mais do que aqueles que falam exclusivamente o português, não acham? Imaginem, ter vergonha de falar o idioma que, por mais de mil anos, foi a língua oficial da “Sereníssima” República de Veneza! Seria simplesmente ridículo, se não fosse tão trágico. (Para os que não são “chegados” à História, um lembrete: Portugal não existia, e muito menos a língua portuguesa, quando os vênetos já dominavam as águas interiores do mar Adriático ao mar Negro, e sua língua, pouco diferente do nosso talian, era língua de comunicação nos portos e entrepostos comerciais!)
Os jovens – pessoas, países, nações – costumam cometer um grande erro: pensam que sabem tudo! E como tudo sabem, desprezam tudo aquilo que cheire a ontem, e pior ainda, a anteontem.
- Falar Vêneto? Isso é coisa de velho e de colono ignorante! Eu falo português e para mim basta!
Coitados, não sabem o que dizem. Que Deus Nosso Senhor os perdoe!
Alguém já disse que se a gente só consegue expressar as emoções mais profundas utilizando a língua materna. Santa verdade! Do carinho ao desprezo, da oração à blasfêmia, do amor ao ódio, do pasquim ao poema, são mais fortes, mais intensos, quando sussurrados/gritados/escritos/grafados na língua materna que aprendemos no colo de nossas mães, sentados nos joelhos de nossas avós! O talian me soa como uma música! É a língua do coração, a minha língua, a língua com a qual consigo expressar meus melhores/piores sentimentos. Ela me lembra a primeira infância, a adolescência, o tempo de liberdade, o não compromisso.
E então, com desrespeito, dizem que minha língua é um patuá de colonos ignorantes, de pobres coitados, que é um dialeto de segunda categoria! Será que essa gente enlouqueceu? O talian é a “nossa” língua e nós temos a obrigação não apenas de utilizá-la, mas também ensiná-la, a fim de que a mesma se perpetue, preservando dessa maneira a “nossa” cultura.
- Agora eu não falo mais o “dialeto”. Estou aprendendo italiano, o italiano gramatical!, disse-me um conhecido.
- Bravo! Respondi-lhe. Quanto mais línguas falares, mais saberás e maior facilidade terás em aprender outros idiomas! Mas não deverias deixar de falar a nossa língua, o vêneto brasileiro, que pode inclusive auxiliar-te a aprender não apenas o italiano, mas, e principalmente, as línguas irmãs do talian, o francês e o espanhol.
- Mas não é o que minha professora nos disse. Ela nos informou que devemos “esquecer o dialeto”, se quisermos aprender corretamente o italiano!
Santa ignorância! Isso contraria toda e qualquer técnica de aprendizagem de idiomas!
Depois de muito pensar, dei-me conta que não se trata apenas de ignorância, mas de uma bem orquestrada forma de tentar destruir/substituir a nossa cultura. Será que estão ressurgindo os movimentos fascistas? Temos ainda bem presentes as tropelias varguistas, aqui, e mussolinescas, lá. – as línguas e culturas regionais devem ser banidas! Lembram?
Com tantas maneiras de “vender” a importância de conhecer-se o italiano optam por menosprezar os outros idiomas. Convenhamos, é um não entender nada de marketing!
Poderiam dizer, por exemplo: “O italiano é a língua mais sonora do mundo!”, ou, Alguém já disse que se a gente só consegue expressar as emoções mais profundas utilizando a língua materna. Isso seria suficiente. Muita gente dedicaria algumas horas por dia para dominar esse belo idioma. Apenas não inventem que é a língua de nossos antepassados, pois é mentira.
Todos nós deveríamos falar com fluência, pelo menos, uma outra língua, além da nacional. Tanto pode ser o inglês, o espanhol, o francês, o alemão, alguma língua eslava...ou, por que não, o nosso talian?
Se quisermos manter nossa cultura – e temos o dever de fazê-lo -, devemos ensinar aos jovens a nossa língua, pois, enquanto nossa língua viver, nossa cultura não perecerá.


Texto parcial de Darcy Loss Luzzatto, extraído do seu livro “Nós, os Ítalo-Gaúchos”, coordenado por Mário Maestri, 1996.



Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS