quarta-feira, 26 de agosto de 2020

As Cruzadas


Os árabes haviam se estabelecido nos territórios que conquistaram formando um estado chamado califado árabe, mas, já nos anos finais da Idade Média, haviam se dividido em vários estados independentes. Nos territórios do oeste da Ásia, os turcos seljúcidas que se estabeleceram no século XI, era um povo originado da Ásia Central que tinha se convertido à religião muçulmana ainda no século X.

Os turcos invadiram a Pérsia e o Iraque, conquistando a importante cidade de Bagdá no ano de 1055. Após sucessivas campanhas militares eles conquistaram grande parte da Ásia Menor, até então pertencente ao Império Bizantino, como o território que hoje é a Turquia e  deram vida ao mais poderoso estado muçulmano presente no oeste asiático. 

Os turcos, avançando em seus conflitos militares, também conquistaram a Palestina, que para os cristãos era então denominada de Terra Santa, onde Jesus nasceu, pregou e morreu. 
A Terra Santa  era um local sagrado de culto para a cristandade , local visitado por milhares de cristãos que chegavam à Palestina em peregrinação. 
À partir do momento em que os turcos impediram essas peregrinações cristãs,  alguns líderes cristãos na Europa começaram a exigir que a Palestina fosse libertada, isto é,  fosse retomada das mãos dos turcos e reconquistada pelos cristãos. 

No ano de 1095, o Papa Urbano II, na cidade francesa de  Clermont, reuniu um conselho que contou com a presença dos clérigos franceses e de numerosos senhores feudais, os quais, já de algum tempo, estavam envolvidos em severas guerras por domínios na França. Com a finalidade de por um fim nessas lutas a Igreja francesa havia desenvolvido dois instrumentos de persuasão, a Pax e a trégua Dei (paz e trégua de Deus), com os quais toda pessoa que cometesse violências em determinadas épocas do ano seria atingida por uma sumária excomunhão.  Essas medidas também atingiriam os envolvidos com violências perpetradas em certos locais lugares, como santuários e mercados ou mesmo contra certas pessoas como clérigos, peregrinos, viúvas, órfãos e pobres em geral. Esses instrumentos de punição e coerção só tiveram um êxito parcial.  
Quando em Clermont Urbano II exortou os senhores feudais a aceitarem e favorecerem o processo de apaziguamento da França e só usarem suas armas para defenderem os cristãos de Bizancio, ameaçados pelos turcos. Essa peregrinações dos aristocratas à Terra Santa já se podiam ser comparadas a pequenas expedições militares devido a insegurança que reinava em todo o trajeto até Constantinopla.

Papa Urbano II na Catedral de Clermont quadro do século XIII

Na exortação feita pelo papa Urbano II não pretendia a conquista de  Jerusalém, ele queria pôr um fim às frequentes desavenças e conflitos que ocorriam entre os senhores feudais europeus. Ao mesmo tempo, também pretendia ele, enviar ajuda militar a Bizancio e tentar recompor a unidade da Igreja Católica, que tinha se dividido em duas quarenta anos antes, no chamado  cisma do Oriente. 
Entre as intenções do papa estava também o fortalecimento de seu poder e prestígio do seu cargo. 

O apelo papal foi bem sucedido e com o grito de "Deus quer isso!", muitos dos presentes, tanto nobres como simples pessoas do povo, concordaram em ir à Terra Santa. Diferentes eram as motivações que os motivavam a aderira essa perigosa empreitada. Muitos deles estavam sim motivados pela verdadeira fé religiosa, muito forte em todo o período da Idade Média. Na sua exortação em Clermont o Papa Urbano II havia prometido que todos aqueles que morressem durante a expedição, tanto aos atingidos por imprevistos da jornada ou aqueles mortos nas batalhas contra os infiéis, teriam a remissão de todos os pecados cometidos na vida. Os senhores feudais e príncipes por outro lado visavam, acima de tudo, criar um reino ou um feudo pessoal, conquistando territórios, poder e riqueza.  
Para o povo, e em particular para os camponeses, a cruzada oferecia a possibilidade de comprar terras, tiradas que seriam dos muçulmanos. Alguns desses que aderiram o pedido do papa participariam das expedições para escapar de condenações e começarem uma nova vida. Outros ainda, estavam participando por terem um espírito aventureiro, o desejo de conhecer novos países e ou por causa das oportunidades de enriquecimento que os saqueios proporcionavam.



Partida dos Cavaleiros Templários em um afresco do final do século XII na Capela Templária de Cressac. Os Templários constituíram a mais poderosa das ordens religioso militares, formadas para a defesa do Santo Sepulcro de Jerusalém

Esta primeira expedição e as outras sete que se seguiram são hoje chamadas de cruzadas, porque foram realizadas em nome da fé cristã, da qual a cruz era o símbolo maior. Também pelo fato dos peregrinos de expedições anteriores como agora os cruzados, costumavam prender nas suas vestes uma cruz de pano que  qualificava a sua missão. 

A partir do século XII, a entrega da cruz ao peregrino que iria à Terra Santa tornou-se um verdadeiro rito litúrgico. O peregrino se apresentava frente a um bispo, que o sinalava na testa e lhe entregava os símbolos da peregrinação, os quais consistiam do símbolo da cruz, o bordão ou bastão e a bolsa que pendurava no bastão. O peregrino deixava a igreja com os pés descalços e começava a sua jornada.


Três imagens de peregrinos medievais de diferentes tipos: na janela de uma igreja, em miniatura e em escultura

O termo cruzada não era até então usado, o qual começou apenas no século XVIII, na França, mas com um significado negativo.  Durante o final da Idade Média, expressões como iter (expedição militar) ou peregrinatio (peregrinação) ou succursus (isto é, ajuda implícita pelos cristãos da Terra Santa ou da Espanha, ameaçados pelos infiéis) ou mesmo passagem, no sentido de passagem pelo mar.


Cruzados em um design de fantasia que segue a imaginação comum desses personagens

A exortação do Papa Urbano II também foi recebida por muitos homens do povo, que decidiram sair espontaneamente para libertar Jerusalém, sem esperar que os nobres formassem um exército capaz de enfrentar os turcos. 
Assim próximo à primeira cruzada dos nobres, houve um outro chamado popular, que foi formado por alemães os quais, sob a guia de um monge errante, Pedro, o Eremita, e outros líderes, se moveram seguindo o curso dos rios Reno e Danúbio. 
Muitos desses cruzados haviam sido convencidos a participar seguindo orientações de vários tipos de pregadores que afirmavam que o fim do mundo estava próximo, que o advento do anticristo estava próximo, e assim animados por essas idéias que eram a da heresia, eles marcaram seu comportamento com uma brutalidade feroz, comprometendo acima de tudo os judeus. Desses cruzados, poucos chegaram a Jerusalém: muitos foram massacrados ainda no começo da viagem pelos exércitos húngaros e outros pelos turcos. Apenas alguns sobreviveram e puderam se juntar às tropas da cruzada dos nobres.


Pedro o Eremita lidera a cruzada popular (ilustração de 1311)

Em 1096, os cruzados deram início a sua empreitada, não se sabe quantos participaram, pois não existem dados estatísticos e também por que muitos que partiam retornavam antes de alcançar a meta, enquanto outros mais vinham se juntar à grande expedição ao longo do caminho. As avaliações dos pesquisadores são muito discordantes quanto ao número de participantes, variam de três a trinta mil cruzados armados, aos quais, no entanto, devemos acrescentar os servos que os acompanhavam e os normais peregrinos que não deixaram de seguir até Jerusalem, alcançando assim, um número credível de até cem mil pessoas.

Para comandar toda essa enorme multidão, existiam numerosos senhores da Europa de então: Raymond de Saint-Gilles, conde de Toulouse e marquês de Provence; Robert Duke da Normandia, filho do rei da Inglaterra Guilherme, o conquistador; Stefano conde de Blois e Chartres; Príncipe Ugo, irmão do rei da França; Roberto, conde de Flandres; Boemondo d'Altavilla, príncipe de Taranto; Goffredo di Bulhões, duque da Baixa Lorena, que veio a se tornar o mais famoso e conhecido de todos os cruzados, graças, sobretudo, a um poema épico de meados do século XIV, que o colocou entre os 9 homens mais corajosos da história, de acordo com os ideais cavalheirescos que se afirmaram no final da Idade Média. 


Goffredo di Buglione em uma miniatura do século XIV

A primeira cruzada transcorreu entre vitórias contra os turcos, pois estes inicialmente subestimaram o perigo que os cruzados representavam, e as violências que foram por eles cometidas contra os cristãos de Constantinopla. Também ela transcorreu entre a ignorância do clima e da geografia dos lugares que seriam atravessados, ignorância essa que levou os cruzados a cruzarem o platô desértico da Anatólia no auge do verão, e, especialmente, por constantes brigas entre os seus líderes. 

Contudo, contando com o fator surpresa, em 1099 os cruzados conseguiram conquistar Jerusalém e também toda a região costeira da Síria e da Palestina, onde ali alguns nobres fundaram estados feudais. Estes muitas vezes também eram chamados de reinos francos, porque no Oriente assim eram conhecidos todos os habitantes da Europa Ocidental.
 
No entanto, esses reinos foram se  enfraquecendo pelos conflitos entre os nobres, cada um deles  querendo fortalecer sua posição em detrimento dos demais, e também pela crescente hostilidade da população muçulmana, que vinha sendo perseguida.
A reconquista muçulmana começou no século XII e, em 1187, o sultão turco Salah-ad-din, conhecido como Saladino, derrotou o exército cristão na batalha de Hattin em terras da Palestina e vencendo a resistência dos cristãos entrou em Jerusalém. A conquista da última fortaleza cristã, Acri, em 1291, marcou o fim do domínio cristão na Terra Santa.

A batalha de Hattin em miniatura do século XIII

A primeira cruzada foi seguida por outras sete, organizadas inicialmente pelos monarcas europeus e depois diretamente pelo papa, que instituiu então dízimos específicos para financiá-los:

- a segunda cruzada aconteceu entre os anos de 1148 e 1151
- a terceira cruzada entre os anos de 1187 e 1192
- a quarta cruzada entre os anos de 1202 e 1204
- a quinta cruzada entre os anos de 1217 e 1221
- a sexta cruzada entre os anos de 1228 e 1229
- a sétima cruzada entre os anos de 1248 e 1254
- a oitava cruzada no ano de 1270. 

A segunda cruzada foi organizada após a conquista árabe da cidade de Edessa, no sul da Turquia, onde o primeiro estado cruzado foi formado; a cidade, no entanto, não foi reconquistada.





A terceira cruzada foi organizada como uma reação à conquista de Jerusalém por Saladino, mas transcorreu sem grandes resultados práticos, muito embora o Imperador Frederico Barbarossa, o rei da França Felipe Augustus e o rei da Inglaterra Ricardo, o Coração de Leão tenham dela participado. 

Cruzada dos Mendigos

A quarta cruzada foi organizada contra  a cidade de Constantinopla, a qual foi arrasada e saqueada: os cruzados dividiram as terras pertencentes a essa importante cidade, que foi  tomada de assalto e saqueada tendo ali sido criado um novo Império. Mas o verdadeiro vencedor desta cruzada foi Veneza, que em pagamento pelo transporte marítimo dos cruzados obteve grande parte das terras do Império e das principais bases marítimas no Mediterrâneo. Os cavalos de bronze que hoje enfeitam a fachada da Basílica de São Marco são réplicas, sendo que os verdadeiros foram aqueles trazidos  de Constantinopla estão protegidos no seu interior. 

A quinta, da qual o imperador Frederico II deveria ter participado, terminou com a derrota dos cruzados.


Manuscrito do século XIV, representando a conquista de Damietta (quinta cruzada)

Frederico II participou da sexta cruzada que foi travada não com armas, mas diplomaticamente, com negociações que deram ao imperador a cidade de Jerusalém, mesmo que apenas por alguns anos. 

A sétima e oitava cruzadas foram conduzidas pelo rei da França Luís IX, o Santo. A oitava cruzada foi marcada por uma grande epidemia de peste, que causou a morte do próprio rei.

Em resumo, pode-se dizer que todas essas duas  cruzadas foram um fracasso. 

Batalha entre cristãos e muçulmanos em miniatura do século XIV

O termo cruzada também é usado para outras expedições militares não direcionadas à conquista da Terra Santa, mas sim de outras terras habitadas por povos não cristãos. Elas ajudaram na expansão das fronteiras da Europa cristã.

No século XI a Península Ibérica ainda estava parcialmente sob domínio árabe, mas os reinos cristãos de Castela e Leão, Aragão, ao norte e depois Portugal, ampliaram seus domínios em uma guerra de conquista das terras ainda em mãos dos muçulmanos. 
Essa reconquista cristã fortaleceu a posição da nobreza ibérica, expandindo os seus domínios com as terras tomadas pelos invasores muçulmanos. 
No ano de 1212, os reis católicos obtiveram uma grande vitória militar em Las Navas de Tolosa, na Serra Morena, logo seguida de outras e já no final do século XIII, o domínio árabe na península estava reduzido somente ao reino de Granada, que só foi definitivamente conquistado em 1492.


A reconquista cristã na Espanha (página ilustrada e acompanhada por Las Cantigas de Santa Maria, um código musical escrito para o rei castelhano Alfonso X, o Sábio)

Outras cruzadas foram organizadas e dirigidas ao longo da costa oriental do Báltico, onde ainda existiam populações pagãs, as quais foram privadas de suas terras e quase sempre exterminadas.
Após as cruzadas contra os eslavos do Báltico no século XII, nas cruzadas da Livônia e Estônia no século XIII e as cruzadas da Prússia, no século XIII, esses territórios passaram para o controle dos senhores feudais germânicos. Como consequência muitos alemães se estabeleceram ao longo da costa, enquanto que algumas das populações originais foram desaparecendo ou tiveram os seus territórios drasticamente reduzidos, como no caso dos eslavos ocidentais. Não por acaso no século XIX, a Alemanha foi chamada de "cemitério eslavo”.


Desenho reconstituindo uma batalha durante as cruzadas do Báltico

Finalmente, algumas outras operações militares foram também denominadas como cruzadas. 

Além da cruzada contra os albigenses, ou as cruzadas dos filhos de pastores, que afetaram a França em 1251 e 1320, houve mais uma particularmente muito louca. Após a vitória ibérica em Las Navas de Tolosa, grupos de peregrinos liderados por crianças (daí o nome da cruzada dos pueri ou dos inocentes), que viajaram através da França, Alemanha e Itália, em direção à Terra Santa, com a intenção de conquistá-la, armados apenas com fé. Como se podia esperar ela terminou em tragédia, com esses jovens peregrinos acabando mortos por doenças, escravizados ou corrompidos no meio do caminho.

A cruzada dos inocentes segundo Gustave Doré