quarta-feira, 9 de julho de 2025

Vozes Ausentes: A Dor de uma Mãe Imigrante na Colônia Dona Isabel

 



Vozes Ausentes

A Dor de uma Mãe Imigrante na 
Colônia Dona Isabel

Na vastidão da colônia esquecida,
Entre o mato fechado e o pó da estrada,
Uma mãe leva a dor, sempre escondida,
E o tempo arrasta a vida, desgraçada.

Três filhos guarda — são seu bem maior —,
Mas dois lhe faltam, e o vazio a toma.
Silêncio fere — um silêncio sem cor —,
Quase um ano sem carta, sem diploma.

No fundo da mata, seu canto é oração,
Desejo de letras que nunca vieram.
Ecoa o clamor — dor sem redenção —,
Enquanto as estrelas as noites teceram.

Os dias rastejam no chão, sem calor,
E as lágrimas riscam seu rosto cansado.
A esperança tropeça no temor,
Sozinha, ferida, num tempo calado.

A saudade aperta — estilhaça o peito —,
E a dúvida bate, sem se anunciar:
"Estão bem? Estão longe? Por que esse jeito?
Em terras distantes, vão me escutar?"

No Brasil, vela a mãe com fé e ardor,
Por notícias que tragam algum consolo,
Das filhas casadas, perdidas no amor,
Na França e nos Estados — fora do solo.

A cada alvorada, renasce o querer:
Um amor que resiste ao tempo e ao mar,
A força de mãe, que jamais vai ceder
Às marés que insistem em lhe afogar.

No ermo da mata, em silêncio profundo,
Ela acende a fé — sua última espera —,
Sonhando que as cartas cruzem o mundo
E tragam, enfim, sua aurora primeira.

Em cada estrofe que aqui se apresenta,
Celebro essa mãe de esperança em flor:
A dor, o silêncio, a alma que aguenta,
Na fé de um reencontro cheio de amor.

lcbpiazzetta

A Saga de Um Imigrante Italiano no Brasil


 

A Saga de Um Imigrante Italiano no Brasil

No final do século XIX, nascia em Albettone, uma modesta vila aninhada entre as suaves colinas verdejantes do Basso Vicentino, Giuseppe Zanon, carinhosamente chamado de Beppi por todos que o conheciam. Era um jovem de espírito inquieto e sonhos vastos, que aos 23 anos carregava no peito o peso das dificuldades de sua terra natal — uma Itália marcada pela escassez, pelo trabalho árduo nas terras exauridas e pela esperança que teimava em resistir ao desânimo. Em 1886, movido pelo desejo ardente de um futuro melhor, Beppi decidiu deixar para trás as raízes que o sustentavam, embarcando rumo ao Brasil. Ali, acreditava, encontraria oportunidades que poderiam transformar sua vida, permitindo-lhe conquistar riqueza e prosperidade suficientes para, um dia, retornar à Itália e viver com a dignidade e o conforto que sempre lhe haviam sido negados.

A partida foi marcada por lágrimas e despedidas dolorosas na estação de trem de Vicenza. Sob o céu cinzento de uma manhã fria, o vapor do trem misturava-se ao hálito das palavras não ditas, à dor contida nos olhares que se cruzavam pela última vez. Ele se despedia de sua mãe, uma mulher cuja pele enrugada narrava anos de sacrifícios, marcada pelo tempo e pela luta incessante para alimentar a família.

Os dois irmãos mais novos, com os rostos banhados pela inocência e pelo medo, olhavam para o trem com olhos arregalados, como se pudessem adivinhar o destino incerto que aguardava o irmão mais velho. A cada apito do trem, sentiam a proximidade de uma ausência que não sabiam nomear, mas que pesava como uma pedra no coração infantil.

Atrás deles, o campo que a família cultivava com mãos calejadas permanecia silencioso, testemunha muda de um esforço que não mais bastava. A terra, ingrata e exausta, recusava-se a retribuir o suor derramado, oferecendo apenas colheitas magras e sem esperança. Ali, onde outrora brotavam sonhos de fartura, agora reinava um vazio que ecoava no peito daqueles que precisavam partir.

Naquele momento, cada detalhe parecia gravar-se na memória como uma fotografia desbotada, marcada por um ar de melancolia irremediável. O barulho ritmado das rodas de ferro contra os trilhos soava como o tique-taque de um relógio implacável, marcando o tempo que restava antes do adeus definitivo. O cheiro acre do carvão queimado misturava-se ao frio úmido da manhã, impregnando as roupas e os sentidos, tornando a cena ainda mais vívida e inesquecível.

As vozes abafadas dos viajantes ao redor criavam um pano de fundo quase irrelevante, distantes da sua bolha de solidão. Cada palavra dita parecia irrelevante diante da enormidade da partida. Ele mantinha os olhos fixos na figura frágil de sua mãe, que tentava, em vão, disfarçar as lágrimas que escorriam pelo rosto marcado pelo tempo. Ela segurava um lenço branco, um gesto meio inútil, mas carregado de significados. Era como se quisesse agarrar o momento, impedir que ele escapasse.

Ao lado dela, os irmãos mais novos, com seus rostos lívidos e olhos inquietos, mal compreendiam a profundidade do que estava prestes a acontecer. O mais velho segurava a mão do menor, como se fosse um escudo contra a ameaça invisível que sentiam no peito. Por instantes, ele se perguntou como estariam daqui a alguns anos, se seriam capazes de enfrentar a dureza da terra e da vida sem ele ali para dividir o peso.

Ele sabia que, ao cruzar a linha do horizonte, não apenas deixava para trás a terra natal — a aldeia de ruas estreitas, o cheiro de pão fresco nas manhãs, o murmúrio das rezas na pequena igreja — mas também um pedaço de si mesmo, um fragmento da identidade que lhe fora moldada por gerações de luta e sacrifício. Partir era uma espécie de morte lenta, um arrancar de raízes que sempre deixaria cicatrizes.

Enquanto o trem apitava, anunciando o embarque, um misto de medo e determinação tomou conta dele. Lá fora, um mundo desconhecido o aguardava, um lugar onde talvez houvesse oportunidades, mas também incertezas e solidão. Ele fechou os olhos por um instante, absorvendo cada detalhe do que deixava para trás, como um colecionador de memórias prestes a perder sua maior relíquia.

Quando o trem começou a se mover, ele sentiu o coração acelerar, não por expectativa, mas por um vazio profundo, uma consciência amarga de que, mesmo que um dia voltasse, nunca seria o mesmo. Cada metro percorrido parecia arrancar mais um fio invisível que o conectava àquela vida. E, enquanto a estação desaparecia lentamente na névoa da manhã, ele se perguntou se o que encontraria no futuro seria suficiente para preencher o que acabara de perder.

“Far l’America”, como muitos italianos repetiam com um misto de esperança e medo, era uma expressão que carregava tanto a promessa de um novo começo quanto o peso de um salto no escuro. A ideia de atravessar um oceano inteiro para alcançar uma terra que conheciam apenas por rumores era, ao mesmo tempo, sedutora e aterrorizante. Era a promessa de uma vida melhor, um futuro em que as crianças não dormiriam com o estômago vazio e os pais não se curvariam em campos áridos por tão pouco. Contudo, o que a maioria não sabia — ou talvez preferisse não encarar — era que o início daquela jornada seria um teste de fé e resiliência.

No cais de embarque, o frio cortante penetrava as roupas surradas, como se o próprio vento estivesse ali para questionar suas decisões. O ar era uma mistura de sal, carvão e suor, enquanto o murmúrio constante de centenas de vozes em diferentes dialetos criava um pano de fundo inquietante. Mulheres abraçavam crianças pequenas, tentando aquecê-las enquanto lançavam olhares nervosos para os imensos navios atracados, cujas sombras pareciam monstros prestes a engoli-los. Homens carregavam malas simples, algumas amarradas com cordas, contendo tudo o que possuíam — memórias, esperança e um pouco de pão duro.

A incerteza pairava no peito de todos. O que os aguardava do outro lado? Seria a terra prometida que tantos exaltavam em cartas e contos, ou mais uma armadilha do destino? Para muitos, o embarque era uma escolha forçada, uma última cartada contra a fome, a miséria e a opressão. Mesmo assim, ninguém falava disso em voz alta. Havia algo de sagrado naquele momento, um pacto silencioso entre todos os que estavam ali: se decidissem partir, teriam que enfrentar o que viesse sem olhar para trás.

E então havia o mar, um gigante vivo, misterioso e ameaçador. Para a maioria, acostumada às montanhas e vales da Itália, o oceano era uma força incompreensível, uma vastidão sem fim que parecia zombar da fragilidade humana. Muitos nunca haviam visto o mar antes, e sua imensidão trazia tanto fascínio quanto medo. As ondas batiam com força contra os cascos dos navios, como se quisessem impedir aquela travessia. As crianças choravam, assustadas pelo tamanho e pelos sons que não conseguiam entender, enquanto os mais velhos olhavam com resignação, murmurando preces em sussurros quase inaudíveis.

Quando o sino do navio ecoou, chamando os passageiros ao embarque, o movimento começou. Era como se uma corrente invisível puxasse a multidão para frente, um fluxo de corpos e emoções que não podia ser contido. Muitos hesitaram na base da rampa, olhando uma última vez para o porto, para as terras que conheciam tão bem e para os rostos daqueles que deixavam para trás. Lágrimas foram derramadas, não apenas pelas despedidas, mas pela certeza de que algo dentro deles mudaria para sempre.

Ao cruzarem o limiar do navio, um mundo novo se apresentava: corredores apertados, camarotes superlotados e um cheiro opressor de madeira úmida e corpos cansados. Era ali que passariam semanas, talvez meses, enfrentando um mar que não fazia promessas de segurança. Contudo, mesmo naquele ambiente hostil, havia um fio de esperança que os mantinha em pé. Porque “Far l’America” era mais do que uma viagem — era um ato de fé no futuro, uma declaração de que a vida, por mais dura que fosse, ainda valia a pena ser vivida com coragem.

No trem que se afastava lentamente, o rangido das rodas nos trilhos parecia acompanhar o compasso acelerado de seu coração, ecoando a angústia de uma partida irreversível. Ele olhou pela janela embaçada, tentando fixar na memória cada detalhe do que deixava para trás. O aperto no peito era quase insuportável, como se a própria alma estivesse sendo arrancada, pedaço por pedaço, e abandonada naqueles campos familiares que agora se tornavam mais distantes a cada segundo.

A figura de sua mãe permanecia imóvel na plataforma, seu corpo pequeno e curvado quase perdido na multidão. Ela acenava com mãos trêmulas, os dedos enrugados agarrados a um lenço que mal conseguia conter as lágrimas. Os olhos marejados dela encontraram os dele por um instante — um momento breve, mas eterno —, e ele sentiu como se todas as palavras não ditas, todas as histórias compartilhadas e todos os silêncios confortáveis fossem encapsulados naquele olhar. Era uma despedida, mas também um pedido mudo para que ele nunca esquecesse de onde vinha.

Mais atrás, seus irmãos pequenos corriam ao longo da plataforma, gritando algo que se perdeu no barulho do trem e no caos ao redor. Ele imaginava que pediam para que voltasse logo, que não os deixasse sozinhos com as responsabilidades pesadas demais para suas idades. Mas era impossível parar, impossível descer e prometer-lhes que tudo ficaria bem. Ele sabia que aquelas palavras de consolo seriam vazias, porque, no fundo, nem ele tinha certeza de que algum dia retornaria.

Enquanto o trem ganhava velocidade, a paisagem familiar começou a se transformar. Os campos áridos que ele conhecia tão bem passaram a dar lugar a montanhas e florestas desconhecidas, e ele sentiu o peso esmagador da promessa silenciosa que fizera: a de nunca abandonar suas raízes, mesmo que a distância fosse imensa. Mas como manter intactas as raízes quando se parte para uma terra completamente estranha? Como preservar o que era essencial quando a sobrevivência exigiria mudanças tão profundas?

Ele fechou os olhos por um momento, tentando conter as emoções que ameaçavam transbordar. A jornada seria longa, e a saudade já se instalava como uma companheira inevitável. Ao mesmo tempo, um lampejo de esperança brilhava em sua mente. A promessa de uma vida melhor, de dias em que sua mãe não precisaria mais trabalhar até a exaustão, em que seus irmãos teriam a chance de estudar e crescer sem a sombra constante da fome. Era esse sonho que o mantinha em movimento, que dava força às pernas cansadas e coragem ao coração pesaroso.

Mas, mesmo com essa esperança, ele sabia que algo dentro dele havia mudado para sempre. Naquele trem, enquanto o passado se desvanecia na linha do horizonte, ele se tornou alguém novo — um homem dividido entre dois mundos, carregando a memória de um lar que nunca deixaria de ser seu, mas que, aos poucos, se tornaria apenas uma lembrança.

Ao chegar ao porto, ele parou por um instante, encarando a imensidão que se abria diante de si. O navio, colossal e escuro contra o céu cinzento, parecia uma criatura mítica — parte promessa, parte ameaça. Suas chaminés vomitavam fumaça negra, e o casco de metal refletia a luz fraca do dia, como se carregasse os sonhos de centenas de almas amontoadas ao seu redor. Era uma embarcação para a salvação, sim, mas também um cárcere flutuante, pronto para engolir aqueles que ousavam deixar tudo para trás.

O cais fervilhava com uma energia nervosa, uma mistura de murmúrios, ordens gritadas pelos marinheiros e o choramingo abafado de crianças agarradas às saias de suas mães. Homens de olhar vazio arrastavam malas improvisadas, enquanto mulheres se apoiavam umas nas outras, os rostos marcados por linhas de cansaço e medo. Cada rosto era uma história — de perdas, de sonhos, de coragem arrancada das profundezas da necessidade. E, no entanto, ninguém falava sobre o que realmente temiam. Havia um pacto implícito de silêncio, como se admitir o medo pudesse transformá-lo em realidade.

Ele se juntou à multidão, sentindo-se pequeno e insignificante diante do tamanho do navio e do mar que se estendia além. As ondas batiam contra o cais com força, como se tentassem lembrar a todos da vastidão que teriam de enfrentar. Em meio à confusão, ele viu uma mulher segurando um terço e murmurando preces desesperadas. Ao lado dela, um jovem ajustava a alça de uma sacola, o olhar fixo no navio como se pudesse prever o que estava por vir. Ali, fé e esperança se misturavam com a miséria, criando um retrato cru da condição humana.

Quando os marinheiros começaram a chamar os passageiros, o movimento tornou-se mais caótico. Famílias agarravam-se umas às outras, como se o toque fosse a única coisa que os mantinha ancorados à realidade. Ele subiu a rampa de embarque com passos lentos, sentindo o peso da decisão em cada passo. Ao cruzar a entrada do navio, foi recebido por um ambiente opressor: corredores estreitos, cheios de corpos exaustos e malas encostadas nas paredes. O cheiro de madeira úmida misturava-se ao de suor e sal, um lembrete constante de que a travessia seria tão desafiadora quanto o destino.

As condições eram precárias. No porão, onde os imigrantes viajariam, havia pouco espaço para se mover. Camas improvisadas, feitas de tábuas e cobertas com lençóis finos, pareciam inadequadas para resistir às noites frias no mar. As vozes, antes abafadas pelo barulho do porto, agora ecoavam nas paredes de ferro do navio, criando uma sensação de confinamento que apertava o peito.

A travessia seria longa, com noites de tempestade e dias intermináveis em que o horizonte parecia imóvel. As histórias contadas por marinheiros sobre ondas gigantes e ventos impiedosos vinham à mente, trazendo um calafrio que não era apenas causado pelo clima. Mas, apesar de tudo, o desejo de um novo começo ardia como uma chama dentro de cada passageiro. Era isso que os mantinha de pé, que os fazia suportar as despedidas, o desconforto e o medo: a promessa de um futuro onde a fome seria apenas uma memória e a dignidade, um direito, não um luxo.

Ele olhou uma última vez para o porto que desaparecia no horizonte, sabendo que aquela visão seria gravada em sua mente para sempre. Enquanto o navio começava a balançar suavemente, o som ritmado das máquinas soava como um coração pulsando, levando-o, junto com tantos outros, para um destino desconhecido. Era o começo de uma nova vida — e, com ela, de desafios que ele ainda nem podia imaginar.

Ele sabia, com a certeza amarga de quem abandona tudo, que aquela terra seca e sofrida ficaria para trás por muito tempo — talvez para sempre. O pensamento era uma lâmina afiada: voltar significaria fracasso, um peso que ele não podia carregar. A América, distante e quase mítica, prometia liberdade e oportunidades, mas sussurrava também sobre os custos que cobraria: coragem para enfrentar o desconhecido, resistência para suportar as privações, e sacrifício para transformar sonhos em realidade.

Enquanto o navio deslizava pelo mar cada vez mais vasto, ele sentiu o peso de sua decisão como um fardo físico. Não era apenas uma viagem; era uma transição completa, um salto no escuro onde o futuro era tanto uma esperança quanto uma ameaça. A promessa de um novo mundo vibrava em sua mente, mas o preço a pagar começava a se revelar: noites sem sono, dias de trabalho extenuante e, mais do que tudo, a saudade sufocante que já ameaçava crescer no peito.

Ele se afastou da borda do convés, onde outros passageiros permaneciam em silêncio, encarando o horizonte. Muitos deles também sabiam que jamais voltariam. Cada rosto parecia carregado com uma história, uma vida deixada para trás em aldeias e campos que não mais os podiam sustentar. Homens com olhar endurecido, mulheres segurando crianças que choravam de cansaço, jovens que ainda acreditavam que poderiam dominar o mundo — todos partilhavam o mesmo destino incerto.

No fundo, ele sabia que a América era tanto uma promessa quanto um teste. Ela não ofereceria nada sem exigir tudo. A liberdade vinha com o preço da luta, e o sonho de prosperidade estava distante, escondido atrás de uma névoa de desafios ainda desconhecidos. Ele respirou fundo, tentando acalmar o turbilhão de emoções que o consumia. O horizonte, uma linha infinita e incerta, parecia um convite e um aviso ao mesmo tempo.

E assim, ele partiu. Partiu com o peito pesado de memórias, de lágrimas ainda quentes e promessas silenciosas. Mas também partiu com uma chama de determinação que não podia ser apagada. O sonho que pulsava em seu peito era mais do que uma esperança individual; era o grito de gerações que buscavam mais do que a terra árida e o destino de fome e miséria.

Enquanto o navio avançava, cada batida do motor parecia ecoar dentro dele, como um tambor de guerra, um lembrete constante de que o caminho seria árduo. Mas, no silêncio de seus pensamentos, ele fez um juramento: sobreviveria, lutaria, e, de alguma forma, construiria uma vida digna para que um dia pudesse olhar para trás e dizer que o sacrifício valeu a pena.

No navio que cortava as águas escuras e intermináveis do Atlântico, Beppi encontrou refúgio na companhia da família Zocante, oriunda de Treviso. Eles eram agricultores como ele, forjados pela dureza da terra e pela perseverança de quem não conhecia outra escolha senão resistir. A matriarca, uma mulher de olhos vivos e mãos calejadas, rapidamente adotou Beppi como um dos seus, oferecendo-lhe pedaços de pão e palavras de encorajamento durante os momentos mais difíceis da travessia. As crianças Zocante, curiosas e cheias de energia, enchiam o ambiente com risadas ocasionais, aliviando o peso do confinamento. O patriarca, um homem de poucas palavras, dava tapinhas firmes no ombro de Beppi, como se quisesse transmitir coragem sem precisar falar.

As noites no porão do navio eram uma mistura de barulho e silêncio desconfortável. O som constante do mar batendo contra o casco era acompanhado por tosses e murmúrios de preces em dialetos italianos. Entre as conversas, Beppi e os Zocante compartilhavam histórias de suas aldeias, seus campos e os sonhos que os haviam trazido até ali. Falavam sobre o Brasil como se fosse um paraíso distante, com terras férteis e oportunidades que os libertariam do ciclo de miséria. Esses momentos davam a Beppi um senso de pertencimento, uma âncora emocional que ele não sabia que precisava.

No entanto, a travessia também trouxe desafios inesperados. Antes de embarcarem, os passageiros foram obrigados a tomar a vacina contra a varíola, uma medida preventiva que gerou tanto alívio quanto apreensão. Para Beppi, o que parecia ser uma formalidade transformou-se em um pesadelo. Poucos dias após a aplicação, ele começou a sentir febre alta, dores pelo corpo e uma fraqueza que o deixava incapaz de se juntar às conversas no porão. A matriarca Zocante cuidava dele como podia, com compressas frias e orações sussurradas, mas a febre persistente não cedia.

Quando o navio finalmente chegou ao porto do Rio de Janeiro, o destino deu um golpe cruel. Beppi foi identificado pelos inspetores de saúde como doente e imediatamente separado da família Zocante. Ele mal teve tempo de se despedir, apenas um aceno fraco enquanto era levado em uma maca improvisada. Seus olhos encontraram os de seus companheiros pela última vez, cheios de uma tristeza mútua e da certeza amarga de que talvez nunca mais se vissem.

Levado à Ilha das Flores, Beppi foi colocado em quarentena com outros que haviam adoecido durante a viagem. O lugar era ao mesmo tempo um refúgio e uma prisão, com seus pavilhões austeros e o som constante do mar ao redor. Ele foi instalado em uma cama de madeira, cercado por outros pacientes, cujos rostos refletiam o mesmo desespero silencioso. A solidão era quase insuportável. A falta da presença calorosa dos Zocante, sua única rede de apoio, pesava mais que a febre que o consumia.

Dias se transformaram em semanas, e Beppi os passou entre surtos de febre e momentos de lucidez. Ele ouvia os gritos abafados dos outros doentes e os passos apressados dos médicos e enfermeiros, que pareciam lutar contra uma força invisível. O isolamento fazia com que o tempo se arrastasse, cada minuto marcado pela incerteza de um futuro que agora parecia mais distante do que nunca.

Apesar disso, uma centelha de determinação permanecia dentro dele. Beppi sabia que sobreviver significava mais do que apenas vencer a doença — significava cumprir o propósito que o trouxera até ali. O sonho de construir uma vida melhor no Brasil, por mais distante que agora parecesse, ainda pulsava em seu coração, como uma promessa que ele se recusava a abandonar.

Quando finalmente chegou a São Paulo, Beppi sentiu como se tivesse desembarcado em outro planeta. A cidade era uma massa confusa de sons, cheiros e rostos desconhecidos. Ele estava só, sem amigos, sem família, sem um único fio de familiaridade para se agarrar. O fato de ser analfabeto o deixava vulnerável, incapaz de entender os papéis que os funcionários da estação de imigração empurravam em sua direção, e a barreira da língua transformava cada interação em um jogo de adivinhação ansiosa. As vozes ao redor soavam como um zumbido incessante, uma mistura de palavras em português e fragmentos de outros idiomas que ele mal conseguia distinguir.

Na estação de imigração, Beppi foi recrutado por um homem que parecia estar acostumado a comandar. Giovanni Barba, dono da Fazenda Monte Alegre, era um fazendeiro robusto de rosto endurecido e olhos perspicazes. Ele estava ali para encontrar trabalhadores, e Beppi, com sua constituição forte e expressão determinada, parecia o candidato perfeito. Barba falava um italiano truncado, misturado com português, mas suas intenções eram claras. Ele precisava de mãos dispostas para trabalhar na terra, e Beppi precisava de um lugar para recomeçar.

"Você vai para Araraquara", disse Barba, apontando para um mapa tosco. "É longe daqui, mas há terra e trabalho. Se fizer o que é pedido, terá onde dormir e o que comer."

Araraquara parecia tão distante quanto o próprio Brasil havia sido quando Beppi ainda estava em Vicenza. Era uma cidade no fim da linha ferroviária, disseram-lhe, e além dela só havia mata fechada. Beppi não tinha escolha. Ele aceitou, sentindo o peso de mais uma decisão que parecia ser tomada por ele, e não por sua própria vontade.

A viagem até a Fazenda Monte Alegre foi longa e exaustiva. O trem sacudia violentamente nos trilhos, e cada parada parecia mergulhá-lo mais fundo em um mundo desconhecido. À medida que a paisagem urbana dava lugar a campos vastos e clareiras intercaladas com densas florestas, Beppi sentiu uma mistura de fascínio e medo. O Brasil era imenso, e sua imensidão era ao mesmo tempo promissora e esmagadora.

Quando o trem finalmente parou no que parecia ser o fim do mundo, Beppi desembarcou em uma pequena estação cercada por mata. Giovanni Barba estava esperando, acompanhado de dois homens com expressões tão endurecidas quanto a sua. Eles o conduziram a um carroção puxado por mulas e começaram a jornada final até a fazenda. O caminho era precário, ladeado por árvores altas que pareciam engolir a luz do sol.

A Fazenda Monte Alegre revelou-se como um pedaço de terra isolado, cercado por densas florestas e colinas ondulantes. As casas dos trabalhadores eram pequenas e simples, feitas de madeira bruta, com telhados de palha que prometiam pouco conforto. A casa principal, onde Barba morava, era um pouco mais imponente, mas igualmente rústica. Ao redor, plantações de café se estendiam até onde a vista alcançava, intercaladas com clareiras que ainda estavam sendo abertas à força de machados e enxadas.

Beppi foi levado a uma das cabanas mais afastadas e informado de que aquele seria seu lar. Não havia tempo para se acostumar. No dia seguinte, antes mesmo do amanhecer, ele estaria no campo, aprendendo a cuidar dos pés de café e a lidar com a terra vermelha que parecia impregnar tudo ao redor.

Enquanto se instalava em sua nova realidade, Beppi sentiu o peso da solidão como nunca antes. Estava a mais de 400 quilômetros da capital, em um lugar onde o horizonte era dominado por matas fechadas e campos intermináveis. Mas, mesmo ali, no meio do nada, ele sabia que não podia desistir. A promessa de um futuro melhor ainda era o que o mantinha de pé, mesmo que, naquele momento, esse futuro parecesse tão distante quanto as luzes de Vicenza em sua memória.

Beppi foi o primeiro imigrante italiano a trabalhar na Fazenda Monte Alegre, e logo percebeu que era um pioneiro em mais de um sentido. Não havia outros compatriotas para compartilhar sua língua ou sua cultura, e o isolamento tornava cada dia mais pesado do que o anterior. Os campos de café eram vastos, pareciam infinitos, e exigiam força e resistência que iam além do que ele achava ser capaz de oferecer.

O trabalho começava antes do amanhecer. O som do sino da fazenda arrancava os trabalhadores de suas camas duras, e todos se dirigiam ao campo ainda sob a luz pálida das estrelas. Beppi, que sonhara em "fazer a América" e construir uma nova vida, encontrou-se curvado sobre os pés de café, arrancando ervas daninhas sob o sol escaldante, enquanto sua pele clara adquiria um tom vermelho dolorido. Cada jornada era uma batalha contra a exaustão, a fome e o calor, e o suor fazia a terra vermelha grudar em sua pele como uma segunda camada.

Ao seu lado, trabalhavam antigos escravizados, libertos pela Lei Áurea em 1888, apenas alguns anos antes. Eles eram homens e mulheres com histórias que Beppi mal conseguia compreender, mas cujas cicatrizes físicas e emocionais eram visíveis até para um estranho. O italiano sentiu-se deslocado, ao mesmo tempo aliviado por não compartilhar aquele passado brutal e culpado por ser parte de um sistema que ainda os explorava. Eles se moviam no campo com uma eficiência que ele admirava e tentava imitar, mas seus olhares muitas vezes eram vazios, como se toda esperança já tivesse sido arrancada junto com os frutos dos pés de café.

Uma mulher chamada Maria, de rosto marcado pelo tempo e pela adversidade, tomou Beppi sob sua proteção informal. "Você precisa aprender rápido", disse ela em português com sotaque carregado, apontando para os calos que começavam a se formar nas mãos dele. "Aqui, quem não acompanha o ritmo não sobrevive." Maria lhe ensinou os segredos do cultivo, como identificar plantas doentes e lidar com as ferramentas. Ela falava pouco, mas seus gestos e expressões revelavam uma força que inspirava Beppi a continuar, mesmo quando seus músculos gritavam de dor.

As condições de trabalho eram implacáveis. A jornada começava às cinco da manhã e terminava ao anoitecer, com uma breve pausa para uma refeição frugal. O alojamento era precário, com telhados que mal protegiam contra a chuva e colchões de palha infestados de insetos. A comida consistia principalmente de farinha, feijão e carne salgada, fornecida pela fazenda em quantidade insuficiente. Beppi muitas vezes ia dormir com fome, seu estômago roncando como um protesto constante.

Apesar de tudo, havia momentos de trégua. À noite, depois do trabalho, os trabalhadores se reuniam ao redor de fogueiras improvisadas. Era ali que histórias eram compartilhadas, canções eram cantadas e risadas ecoavam, ainda que brevemente, pelo campo escuro. Beppi começou a aprender palavras em português, absorvendo fragmentos de histórias que o ajudavam a entender o mundo ao seu redor. Ele retribuía contando histórias de Vicenza, descrevendo as colinas italianas, os vinhedos e as festas que pareciam pertencer a outra vida.

Com o tempo, Beppi começou a perceber que a Fazenda Monte Alegre era um microcosmo do Brasil em transformação. Ele fazia parte de um experimento social — trabalhadores livres, tanto nacionais quanto estrangeiros, ocupando o espaço deixado pelo sistema escravocrata recém-extinto. Era uma convivência carregada de tensões, mas também de aprendizado mútuo. Beppi observava os antigos escravizados com admiração e respeito crescente, reconhecendo neles uma força e uma resiliência que o inspiravam.

Apesar das dificuldades, Beppi agarrou-se à esperança que o trouxera ao Brasil. Ele sabia que precisava sobreviver, não apenas para si mesmo, mas para honrar o sacrifício de sua mãe e dos irmãos que deixara para trás. Cada dia nos cafezais era uma pequena vitória, uma prova de que ele podia resistir. E em seu coração, ele mantinha viva a promessa de que um dia, de alguma forma, construiria algo que valesse a pena chamar de lar.


Nos anos seguintes, a paisagem da Fazenda Monte Alegre começou a mudar. A chegada de mais imigrantes italianos trouxe uma nova dinâmica ao lugar. As famílias, em sua maioria vindas de Treviso, começaram a formar uma pequena comunidade dentro da vasta solidão da fazenda. Entre elas estava a família Paolon, de Venegazzù, carregando poucas posses, mas uma rica bagagem de tradições, fé e resiliência.

Foi durante uma festa comunitária que Beppi conheceu Rosa Paolon. O evento, realizado ao ar livre sob o brilho das estrelas, era uma rara pausa no trabalho exaustivo. Havia comida simples, como polenta e pão caseiro, e música animada de um acordeão, tocado por um dos recém-chegados. O som alegre parecia afastar, ainda que momentaneamente, as sombras do cansaço e da saudade.

Rosa destacava-se entre os outros. Seus olhos brilhavam como a luz das lamparinas, e seu sorriso acolhedor era um bálsamo para o coração exausto de Beppi. Ela era uma jovem de espírito vibrante, com um ar de determinação que combinava perfeitamente com a vida dura que levavam. Durante a festa, os dois trocaram poucas palavras, mas foi suficiente para que algo inconfundível nascesse entre eles.

Beppi não perdeu tempo. Nos dias seguintes, começou a procurar maneiras de estar próximo de Rosa. Ele ofereceu ajuda à família Paolon, seja nos cafezais, seja reparando ferramentas. Esses gestos, embora simples, foram suficientes para criar um vínculo. Rosa, inicialmente tímida, começou a se abrir, contando histórias de sua terra natal e compartilhando os sonhos que trazia para o futuro.

O namoro foi breve, como era comum entre os imigrantes, que enfrentavam pressões constantes para estabilizar suas vidas rapidamente. Não havia tempo para longos cortejos quando o trabalho e a sobrevivência dominavam os dias. O casamento aconteceu em uma pequena capela improvisada, construída pelos próprios imigrantes com madeira da região. O padre, também italiano, celebrou a cerimônia em latim, enquanto os convidados, homens e mulheres cansados, mas felizes, cantavam hinos que ecoavam pela mata ao redor.

Para Beppi, o casamento com Rosa marcou um ponto de virada. A ideia de retornar à Itália, que antes o motivava a enfrentar os desafios do Brasil, começou a se dissolver. Ao lado de Rosa, ele percebeu que poderia construir algo novo, mesmo em terras estranhas. Sua visão de futuro deixou de ser o passado nostálgico das colinas italianas e tornou-se o presente — uma casa simples, mas acolhedora, uma pequena horta onde Rosa cultivava legumes, e a esperança de um dia ver os filhos correndo livres pelos campos.

Juntos, Beppi e Rosa começaram a transformar sua parcela de terra. Eles plantaram não apenas café, mas também vinhas, trazendo um pouco de Treviso para o Brasil. Rosa cultivava flores em torno da casa, dizendo que era preciso "embelezar o que nos foi dado, mesmo que seja pouco". Cada pequeno progresso era celebrado, não com festas, mas com olhares silenciosos e satisfeitos trocados ao final do dia.

Com o tempo, a vida na fazenda deixou de ser apenas sobrevivência. Tornou-se construção. E para Beppi, cada novo dia era a prova de que, mesmo longe das raízes, ele podia crescer e florescer. O sonho de "fazer a América" se transformou em algo mais simples e mais profundo: construir um lar onde o amor e a coragem pudessem prosperar.

Rosa e Beppi viram sua família crescer rapidamente — oito filhos vieram ao mundo, quatro homens e quatro mulheres, trazendo vida e esperança às manhãs da Fazenda Monte Alegre. O primogênito, Antonio, nasceu em 1891, um menino forte que, desde pequeno, acompanhava o pai nos campos e aprendia o ritmo pesado da terra e do trabalho.

Beppi, imerso na rotina exaustiva da lavoura, dedicava-se sem descanso. Seus dias começavam antes do sol nascer e só terminavam quando a última luz do crepúsculo desaparecia no horizonte. Ele cultivava o café com mãos calejadas, plantando cada pé como se ali repousasse o futuro de seus filhos. Além dos cafezais, criou galinhas que perambulavam livres pelo quintal, uma pequena fonte de alimento e sustento que aliviava o peso da fome constante.

A Fazenda Monte Alegre, aos poucos, começou a prosperar. O suor de Beppi e a força de Rosa transformavam aquela terra antes árida e esquecida em um pedaço vivo de esperança e resistência. O café, colhido com esforço e paciência, ganhou qualidade e reputação entre os mercados locais, e a produção aumentava ano após ano. Os filhos cresciam entre colheitas, brincadeiras na terra vermelha e as histórias que Rosa contava à sombra das árvores.

Mas, por mais que a vida fosse construída tijolo por tijolo, Beppi jamais conseguiu acumular o suficiente para realizar o sonho mais guardado em seu coração — voltar à Itália, rever os rostos amados que ficaram para trás, ouvir novamente a língua da terra natal e caminhar pelas ruas de Vicenza. Cada moeda poupada parecia escapar-lhe entre os dedos, consumida pelas necessidades diárias, pelos imprevistos da vida na fazenda, pelas pequenas crises que ameaçavam a frágil estabilidade da família.

Ainda assim, ele nunca deixou de olhar para o horizonte com um misto de saudade e determinação. As lembranças da mãe envelhecida, dos irmãos assustados na estação, da terra árida que o expulsara, continuavam vivas dentro dele — um impulso silencioso que o mantinha em pé, dia após dia, plantando e colhendo, lutando contra o tempo e contra a distância.

Naquela terra distante, entre as plantações e o calor do trabalho árduo, Beppi construiu seu legado — não feito de ouro ou riquezas, mas de resistência, amor e esperança. Um legado que crescia junto com os filhos e que, de algum modo, tornava o sonho da “América” real, mesmo que a Itália permanecesse uma estrela distante no céu da memória.

Apesar da imensa distância que os separava, Beppi jamais rompeu os laços com sua mãe e seus irmãos na Itália. Através de cartas cuidadosamente escritas, ele mantinha viva a conexão com aqueles que ficaram para trás. Muitas vezes, a caligrafia de Beppi era lenta e hesitante, e era Rosa quem, paciente e atenta, o ajudava a traduzir os sentimentos em palavras, guiando sua mão para que a mensagem atravessasse o oceano sem se perder no silêncio.

Essas cartas, marcadas pela saudade e pela esperança, eram o fio invisível que unia duas vidas distantes — o velho vilarejo de Vicenza e a pujante fazenda Monte Alegre, no interior de São Paulo. Cada envelope entregue levava um pedaço da história da família, notícias sobre o crescimento dos filhos, as dificuldades do trabalho, as festas e as pequenas vitórias do dia a dia. E também trazia, como retorno, relatos da terra natal, dos parentes idosos e das estações que se sucediam, recordando o passado que Beppi nunca poderia tocar novamente.

Quando Beppi faleceu, deixando um legado de esforço e perseverança, coube a Antonio, o primogênito, assumir esse delicado papel. O jovem, agora homem, passou a ser o elo entre as duas gerações, continuando a escrever e receber cartas com a mesma dedicação. Ele compreendia o valor dessas palavras, que transcendiam fronteiras e tempos, e que mantinham pulsando a chama da identidade e da memória familiar.

Assim, mesmo em meio às mudanças e às dificuldades da vida no Brasil, a ligação entre os Zanon das duas margens do Atlântico permaneceu viva. Era uma corrente invisível, feita de papel, tinta e sentimentos, que garantia que, apesar da distância imensa, o passado e o presente continuassem entrelaçados, firmes e indestrutíveis.

Hoje, os descendentes de Beppi carregam nas veias o sangue daquela coragem antiga — a mesma que o impulsionou a cruzar um oceano desconhecido, a enfrentar o medo e a solidão em busca de um futuro que parecia prometer tudo, mas exigia sacrifícios insondáveis. As histórias de luta e resiliência daquele jovem italiano ecoam em cada gesto, em cada palavra passada de geração em geração, como um legado invisível e poderoso que moldou não apenas uma família, mas uma identidade forjada no calor do trabalho árduo e na dureza da esperança.

Albettone, a vila onde Beppi nasceu e que jamais viu novamente, vive nas memórias contadas em voz baixa à mesa do jantar, nas fotografias amareladas guardadas em caixas de madeira, nas canções que Rosa ensinou aos filhos e que hoje embalam os netos e bisnetos. Embora distante e inacessível, Albettone nunca deixou de existir para eles. Tornou-se um símbolo sagrado, um ponto de origem fixo e imutável em meio ao turbilhão das mudanças, o elo que liga a terra do passado às raízes que permanecem firmes no presente.

Para cada um dos filhos e netos de Beppi, Albettone é mais do que um lugar no mapa — é o coração pulsante da família, o testemunho silencioso de onde vieram e da força necessária para recomeçar. Mesmo na vastidão das terras brasileiras, com seu céu aberto e seus horizontes amplos, o nome daquela vila italiana ressoa como uma promessa de pertencimento, um lembrete de que, apesar da distância, o passado permanece vivo dentro de cada um deles.

E assim, entre as histórias contadas em noites de festa, as lembranças que florescem nas palavras trocadas, e o esforço constante para manter viva a herança cultural, a família de Beppi honra a memória daquele jovem imigrante. Ele, que partiu com o olhar fixo no desconhecido, plantou não só café e esperança, mas raízes profundas — raízes que atravessaram mares, resistiram ao tempo e continuam a crescer, fortes e indomáveis, nas terras onde seus descendentes hoje vivem, amam e lutam por seus próprios sonhos.

Nota do Autor

Esta história é uma obra de ficção, mas profundamente enraizada na realidade histórica. Inspirada na experiência de milhares de imigrantes italianos que deixaram sua terra natal entre os séculos XIX e XX, ela busca homenagear a coragem, a resiliência e os sacrifícios dessas pessoas em busca de uma vida melhor. Embora Beppi e sua família sejam personagens fictícios, suas jornadas refletem as condições e os desafios enfrentados por aqueles que cruzaram o Atlântico, deixando para trás tudo o que conheciam. Albettone, Monte Alegre e tantos outros lugares tornaram-se cenários para o drama humano da imigração, e esta narrativa é uma tentativa de dar voz àqueles cujas histórias muitas vezes se perdem no tempo, mas que formam a base das comunidades que hoje prosperam.

Luiz Carlos B. Piazzetta