terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O Brasil Venetofono e as Condições Gerais da Primeira Emigração - artigo do Prof. Giovanni Meo Zilio

 




O Brasil venetofono e as condições gerais da primeira emigração


A primeira emigração organizada partindo do Veneto (em grande parte da província de Treviso e, em menor escala, da Lombardia e do Friuli) data de 1875. De fato, a partir desse ano começaram a chegar ao Brasil - nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo, e sobretudo na chamada "área de colonização italiana" localizada no nordeste do primeiro estado, que hoje tem a florescente cidade de Caxias do Sul como centro econômico, comercial e centro cultural com cerca de 500.000 habitantes: milagre de desenvolvimento e modelo de "outro veneto" transplantado e criado no ultramar. medida, em países menores, como o México.

As principais causas do fenômeno da emigração foram, como se sabe, a pobreza e a marginalização das classes rurais da época, ou mesmo a fome, aliadas ao sonho da posse da terra pelos nossos camponeses (na época verdadeiros "servidores da gleba"), muitas vezes iludidas por propagandas falaciosas e interesseiras, favorecidas, por sua vez, pela ignorância misturada com a esperança que é sempre a última a morrer. Mas também deve ser levado em conta aquele espírito irreprimível de aventura, aquela atração pelo novo e pelo distante que sempre marcou a humanidade e que muitas vezes é ignorada pelos historiadores da emigração.

A travessia do Atlântico nessa altura (no fundo dos porões) foi por si só uma epopeia que ainda hoje está presente na memória coletiva, transmitida em episódios pungentes nas memórias dos antigos e na farta literatura popular, sobretudo da Região veneto-brasileira (canções, poemas, histórias ), que, a partir das comemorações do centenário da primeira emigração "in loco" (1975), explodiu aqui e ali também em formas estilisticamente valiosas. Da mesma forma, fica na memória coletiva a epopeia das condições indescritíveis de chegada e povoamento e as lutas da primeira geração para desmatar a serra à mão, para se defender de animais silvestres, cobras, índios, doenças, para construir estradas de raiz e lares, para enfrentar continuamente o medo que se tornou uma obsessão…

Esta história de ilusões e sofrimentos, de heroísmo e humilhação, esta "história interna" da nossa emigração,

No que diz respeito ao sul do Brasil, que pode ser considerado emblemático, um primeiro grupo de emigrantes chegou, depois de inenarráveis ​​vicissitudes e sofrimentos, ao que hoje se chama Nova Milano, perto de Caxias do Sul. Do porto de Porto Alegre seguiram em barcos pelo Rio Caì e depois a pé, por quilômetros e quilômetros, pela mata, com os poucos utensílios domésticos nos ombros, abrindo caminho à força de "facão", até chegarem as terras que lhes foram atribuídas bem na floresta, ao norte dos territórios planos e mais férteis ocupados pela emigração alemã 50 anos antes. Pode-se imaginar o custo humano de tudo isso depois que eles cortaram os laços atrás deles, vendendo seus parcos bens antes de deixar a Itália.

Os vestígios da primeira colonização ainda hoje podem ser vistos em muitos topônimos, como os já referidos Nova Milano, Garibaldi, Nova Bassano, Nova Brescia, Nova Treviso, Nova Venezia, Nova Pádua, Monteberico...; enquanto outras, como Nova Vicenza e Nova Trento, posteriormente mudaram seus nomes originais para os nomes brasileiros de Farroupilha e Flores da Cunha em períodos caracterizados pela xenofobia. Essa xenofobia do governo central chegou a tal ponto que, nos anos da última guerra, os nossos imigrantes que não soubessem falar brasileiro eram proibidos (sob pena de prisão) de falar sua língua veneta, com as consequências morais de que é fácil imagine, além das dificuldades práticas (que muitas vezes levavam ao tragicômico!)

Trata-se, porém, de um fenômeno imponente - tanto no Brasil quanto na Argentina, tanto em termos de extensão e população (na ordem de milhões de descendentes), quanto de homogeneidade e vitalidade - que por mais de um século foi negligenciado sendo ignorado pelo governo italiano e suas instituições.

A grande maioria das primeiras correntes imigratórias era constituída por camponeses que plantavam no novo território as culturas e os métodos agrícolas típicos das suas zonas de origem (aos quais se juntavam artesãos e comerciantes). A cultura que prevaleceu sobre as demais foi a da vinha com a consequente industrialização do vinho e outros derivados da uva, que ainda hoje representa a maior fonte de riqueza do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, que abastece todo o Brasil.

Percorrendo o interior ainda é possível encontrar algumas ferramentas antigas (já quase desaparecidas) da agricultura do século XIX e da vida doméstica da época (em Nova Pádua, perto de Caxias, o monumento ao imigrante, na praça da cidade, é solenemente representada por uma verdadeira "caliera de la polenta" sobre um imponente pedestal). A alimentação no campo ainda é essencialmente a tradicional do Vêneto, à qual se acrescentou o autóctone e inevitável "churrasco" (carne grelhada). A religião ainda é intensamente seguida e sentida, até porque o clero católico e a organização religiosa acompanharam, desde o primeiro momento, o destino dos emigrantes. Basta dizer que as “capelas” foram até agora os principais centros comunitários da “colônia” (leia-se campo) não só religiosa, mas também de organização social e cultural, e que progressivamente em torno delas se formaram freguesias e câmaras municipais. Nos últimos anos, aldeias onde não havia pároco estável puderam assistir a cenas, para nós incríveis, como a da população reunida num celeiro que servia de igreja, para celebrar ritos religiosos sem pároco e sob a orientação do que o é chamado o "padre leigo", com a participação ativa e solene dos anciãos da aldeia.

Os que vivem na "colônia", e que guardaram na sua maioria os ofícios e tradições dos primeiros emigrantes, até há pouco tempo ainda eram considerados marginalizados e desprezados até pelos descendentes de venetos que viviam nas grandes cidades. Só há algumas décadas, desde a retomada dos contatos efetivos com a Itália, vem despertando e se difundindo uma consciência positiva das próprias origens (não mais opaca, um mito distante a ser esquecido) com um impulso para redescobrir a identidade histórica: uma pesquisa , muitas vezes comovente, de suas fontes para restaurar aquele "cordão umbilical" que havia sido cortado por mais de 100 anos.

O fenômeno mais impressionante dentro desta "história de imigrantes sem história", como alguém tristemente definiu, é a manutenção, depois de um século, da própria língua de origem (veneto), na família, entre famílias e, em certas ocasiões ( festas, aniversários, jogos, convívios, etc.) também ao nível da comunidade; com um grau de vitalidade e conservação, no campo, muitas vezes até superior ao do Vêneto da Itália que, como se sabe, ainda está bem enraizado entre nós. É o que os dialetólogos chamam de uma “ilha linguística” relativamente homogênea, onde a língua veneta acabou triunfando sobre o lombardo e o friuliano, estendendo-se como um “koinè” intervindo num contexto heterófono (luso-brasileiro). Permite-nos reconstruir, como se fosse "in vitro", depois de três ou quatro ou até mais gerações, a língua dos nossos avós e bisavós, sobretudo por aspectos orais não documentados como a pronúncia e entonação, ou pelo uso de certos provérbios, expressões idiomáticas, canções da época. Assim, através da história das palavras (as preservadas, as alteradas e as substituídas) podemos reconstruir alguns recortes da história (muitas vezes comovente) dessas comunidades. Ele, por sua vez, representa um vislumbre dramático e emocionante da história da Itália e da história do Brasil.

Quem escreve estas linhas é um velho emigrante que viveu pessoalmente o que viveram muitas centenas de milhares de compatriotas: testemunha direta da situação daqueles que, no imediato pós-guerra, atravessaram o oceano amontoados no porão do velho Liberty navios, resquícios de guerra, dormindo em beliches de quatro ou cinco beliches dispostos verticalmente, em um calor incrível e em condições infernais de promiscuidade. Ele viajou extensivamente pelas Américas por muitos anos, desde as áridas terras altas do México até a desolada Patagônia argentina. Por muitos anos como emigrante e depois como estudioso e pesquisador. Como tantos outros emigrantes, viveu o drama do transplante na própria carne, a mortificação dos seus afetos, a angústia de tantas ilusões, o naufrágio de tantas esperanças. Assim, a par do significado histórico do fenômeno migratório, não ignora a dor, o esforço e a coragem que o acompanharam, até porque também ele começou de baixo para cima - como dizem - fazendo trabalhos braçais de sobrevivência. Mas sua história pessoal é pequena se comparada à história geracional de nossas comunidades que viveram, sobretudo no imenso Brasil, uma épica indizível de lutas, sacrifícios, em condições de vida infra-humanas (especialmente as primeiras gerações); épica transmitida oralmente (porque na maioria dos casos eram pessoas que não sabiam ler nem escrever) de pai para filho, ou melhor, de mãe para filha porque as mulheres, como sempre, são as guardiãs das tradições mais vitais e essenciais. Como já foi dito, as primeiras gerações enfrentaram sacrifícios indescritíveis, abandonadas nas florestas; sem Lari e sem Penati, ou seja, sem casa e sem família, obrigados a sobreviver em condições dramáticas. Mesmo sem a palavra, como dissemos acima: sem a palavra não há identidade, não há comunidade nem comunicação, portanto não há vida que se possa chamar de humana. Mas eles resistiram relutantemente com dignidade e coragem, apesar das humilhantes e dolorosas condições de inferioridade.

Não só no Brasil, mas também na Argentina, e em outros lugares, sobretudo os venetos, lombardos e friulianos, os chamados polentoni (lembre-se que "polenta", na linguagem popular rio-platense, passou a significar força, coragem) juntamente com os sólidos piemonteses e os industriosos e parcimoniosos genoveses, eles davam, com as luzes e sombras naturais em todas as coisas humanas, uma contribuição de progresso ao país que os acolheu. Desde o último quartel do século passado guardam no coração o sonho e o mito da pátria, da mãe-madrasta que os abandonou por mais de cem anos. Em vez disso, continuaram a recordá-la e a sonhá-la nos fios intermináveis ​​das cavalariças camponesas, na intimidade familiar sentida e discreta, nas comoventes reuniões comunitárias, nas humildes orações quotidianas.

Através das gerações, eles preservaram incrivelmente sua língua, costumes, rituais, festivais, danças, jogos (o tresette, as tigelas, a mora, a cuccagna). Brincadeiras temperadas com algumas expressões da nossa aldeia, já não blasfemas, porque são eufemísticas, como “Ostrega!”, “Ostregheta!” ou “Sacramento!”. Ainda ouvimos as canções comunitárias do passado, que em grande parte perdemos, e que os ajudaram moralmente a viver, a sobreviver: nos países mais remotos. Nas praças de algumas aldeias encontramos, como monumentos, além da "caliera" da polenta, como já referido, a carroça ou carrinho de mão, a gôndola veneziana, o leão de S. Marco (até o símbolo do Conselho de Octavio Rocha, no Rio Grande do Sul, representa o leão de São Marcos segurando o cacho firmemente na pata em vez do tradicional livro!).

Desde o século passado, essas pessoas, com o saco nos ombros (com a mala de madeira em um segundo estágio e uma mala de papelão em um terceiro), aliviaram nossa pressão demográfica, prestaram um serviço histórico à Itália, aliviaram nós da fome, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, com suas remessas, e hoje compram produtos italianos "principalmente" e assim potencializam o comércio e a economia de nosso país. A renda induzida da colaboração econômica de nossos emigrantes é estimada em mais de 100.000 bilhões.

Essas pessoas são sangue do nosso sangue, pessoas que sofreram moral e materialmente com a marginalização secular e das quais também temos algo a aprender ou reaprender: aqueles valores que hoje estão sendo amplamente esquecidos.

A Itália, hoje, não pode deixar de honrar a sua dívida secular, histórica, moral e política.


Giovanni Meo Zilio


Giovanni Meo Zilio, professor emérito de literatura hispano-americana na Universidade de Veneza. Pesquisador incansável publicou inúmeros ensaios e artigos sobre o tema língua vêneta, assunto do qual é um estudioso.



Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

Erechim RS