segunda-feira, 19 de junho de 2023

Da Província de Treviso ao Pampa Gaúcho: A Jornada Épica de Genaro em Busca de um Futuro Melhor - parte 1

 



A Vida na Vila

Genaro era um jovem de quatorze anos. Tinha recebido esse nome dos seus pais pelo fato de ter nascido no mês de janeiro, do ano de 1866. Era o quinto filho de uma família de nove irmãos vivos, quatro meninas e cinco meninos. Sua mãe havia perdido três outros filhos, mortos ainda bebês, antes do primeiro ano de vida, por falta de uma melhor alimentação durante as seguidas gravidezes. Viviam na pobreza, como a maioria daqueles que moravam naquela pequena vila quase perdida à margem esquerda do rio Piave, no interior da província de Treviso. A vila, uma pequena fração do município de Segusino, que outrora já tinha vivido mais progresso, não passava agora de um amontoado de algumas poucas casas rurais, mal conservadas, com terrenos pequenos pouco produtivos, resultado dos seguidos desmembramentos quando das transmissões de posse deixadas como herança dos antepassados. A população da vila não ultrapassava, quando muito, duzentas pessoas, distribuídas entre a minúscula zona urbana e a rural. Uma pequena capela, uma pracinha e algumas antigas casas de comércio, entre elas, uma que vendia tabaco, sal, vinho e licores, administrada a muitos anos por uma viúva já idosa, a avó de Genaro. Era tudo que havia na vila. O prédio da prefeitura e a igreja matriz, com sua alta torre dos sinos e a praça, ficavam na sede do município, cerca de quatro quilômetros distantes. Aqui se podia sentir um pouco mais de movimento, principalmente aos domingos e dias santos, por ocasião das missas, quando também as diversas casas de comércio que vendiam vinho e licores também recebiam mais fregueses. Completava o cenário um pequeno hotel, com poucos quartos, agora quase sempre vazios, que em tempos passados dava abrigo às dezenas de balseiros que tinham descido pelo Piave com grandes balsas formadas com toras de madeira, provenientes sobretudo de Cadore e Cansiglio. Os "zattieri" como eram chamados esses trabalhadores, desciam com as balsas pelo rio  Piave até Veneza e retornavam a pé para começar uma nova viagem, muitos deles passando também por Segusino, onde faziam alguma refeição e pernoitavam. 
A família de Genaro tentava sobreviver como podia, plantando algumas hortaliças no pequeno lote de terra e criando alguns poucos animais domésticos, para ovos e abate. O pai Daniele tinha nascido no interior do município de Alano di Piave, localizado não muito distante, mas, já pertencente a província de Belluno e migrado muitos anos antes devido ao seu trabalho. Daniele conheceu a sua esposa Maria Augusta, a mãe de Genaro, no município de Vaz, também não longe de Segusino, quando, acompanhava o seu pai Antonio, que era um hábil carpinteiro, muito procurado em toda aquela região, e faziam um trabalho de reparo do telhado na casa dos pais de Maria. Depois de um namoro e noivado curtos, algum tempo depois, se casaram na Igreja Paroquial San Leonardo, de Vaz e depois de um ano, quando Maria já estava grávida do primeiro filho, Daniele resolveu se estabelecer por conta própria, descendo e costeando o rio Piave, rumando para Segusino, levando também a mãe viúva com eles. A situação de todo o Vêneto, e também da Itália, naquele período era muito difícil. O trabalho de carpinteiro estava cada dia mais difícil. Por falta de dinheiro as  pessoas não mais construíam e nem reformavam suas casas. As oportunidades de trabalho para Daniele foram ficando cada vez mais raras, chegando ao ponto que ele não mais aguentou e também passou a trabalhar como empregado rural diarista para alguns donos de grandes propriedades que ainda estavam sobrevivendo àquela economia que se seguiu a criação do novo país, a chamada Itália, que eles pouco conheciam. Genaro e suas irmãs mais velhas também trabalhavam o dia todo como diaristas em outras propriedades rurais da região. As dificuldades foram crescendo em casa e até as refeições, uma vez mais fartas, começaram a rarear e a polenta se tornou o único alimento ainda disponível. O pão branco e o vinho eram duas coisas que não conseguiam mais comprar. Genaro viu seu pai e irmãs mais velhas definhando a cada dia, por deixarem de fazer uma das refeições do dia, para sobrar comida para os irmãos menores. À mesa a polenta ficava cada vez menor, servida pela mãe e cortada com um fio de linha umedecido em água colocada em um prato fundo. Algumas poucas verduras amargas, tais como o "pissacan", completavam a pobre guarnição. Por cima da mesa ficava dependurada por um barbante, uma sardinha, ou outro peixe frito, em algumas raras vezes, um pequeno salame defumado, onde, cada um por sua vez o tocava com o seu pedaço de polenta, para obter algum sabor. Essa dieta quase única e muito fraca em nutrientes, fez o pai de Genaro e uma das suas irmãs ficarem muito doentes, com a pelagra, precisando internação em um hospital distante, na cidade de Mogliano Veneto. Depois de alguns meses de tratamento a irmã conseguiu se recuperar bem, mas, infelizmente, o seu pai voltou para casa para morrer pouco tempo depois. A morte de Daniele desestruturou completamente a família, deixando-os na miséria completa e as poucas economias, incluindo a vaca e o pequeno burro usado para o trabalho, foram vendidos para tentar salvá-lo. 
Um ano após o falecimento de Daniele, as duas irmãs mais velhas de Genaro se casaram. A primogênita, com um bravo rapaz de Vidor e no mesmo ano emigraram para os Estados Unidos. A outra irmã também se casou logo, em 1882, com um rapaz de família conhecida, moradores à localidade de Col Lonc e emigraram para Chipilo no México, com grande número de outros camponeses trevisanos e beluneses. 
Genaro já estava com dezessete anos, era agora o homem da família, responsável pela mãe viúva e mais seis irmãos e irmãs menores. Era o arrimo da família. Deveria se apresentar para o serviço militar no próximo ano, quando completaria 18 anos e isso o deixava muito preocupado. Pensava como a sua família poderia sobreviver sem ele. Em algumas ocasiões, nos tempos de paz, os rapazes arrimo de família eram dispensados do serviço militar, porém, não dava para ter certeza que isso aconteceria com ele. Não podia esperar pelo ano seguinte, quando então teria dezoito anos e se não conseguisse dispensa do serviço militar seria impedido de sair legalmente do país. Pensou até em migrar sozinho para a França e de lá embarcar em algum navio a caminho do Brasil, o destino que o pai sempre vinha sonhando para todos eles. Nos portos franceses de Le Havre e Marselha o controle do serviço militar era relaxado para os estrangeiros e passaria facilmente. Porém, lembrou que para  isso precisava ter dinheiro para comprar o bilhete de viagem, que não era pouco, e a família de muito tempo já não possuía mais recursos. Lembrou também de como ficariam a sua mãe e irmãos, pois, o outro irmão menor tinha somente 16 anos e não tinha ainda condições de assumir o seu lugar. Assim, em uma reunião da família, a mãe se impôs e resolveu seguir os conselhos do marido, que sempre falava que o Brasil era um grande e rico país no qual, certamente, encontrariam um local para eles. Daniele sempre alimentou a ideia de levar toda a família para o Brasil para fugir da carestia, do desemprego e da fome na Itália. Alguns dos seus conhecidos, anos antes, já tinham emigrado para a província do Rio Grande do Sul e contavam, nas suas cartas para as famílias, que estavam indo muito bem e aconselhavam os amigos a também irem para lá e jamais para a província de São Paulo. Sem discussão todos os irmãos concordaram com a mãe e começaram os preparativos para emigrarem juntos para o Brasil ainda naquele ano de 1883, quando Genaro estava com 17 anos. Na prefeitura fizeram um passaporte coletivo para todos da família, com destino ao Brasil. Ficaram sabendo que o governo do Império do Brasil continuava recrutando mão de obra na Itália e fornecia gratuitamente as passagens de navio e os deslocamentos até o novo local de trabalho. Genaro e quatro dos seus irmãos eram bem altos e muito corpulentos, acostumados desde cedo aos trabalhos pesados do campo, o que talvez compensaria a falta do pai, uma das exigências para obter a gratuidade da viagem, pois, aceitavam somente casais com filhos. Procuraram por um agente de viagens, também representante do governo imperial brasileiro, e sem maiores discussões foram aceitos para emigrar para o Brasil. Precisavam se desfazer das poucas coisas que possuíam e de tudo que não pudessem levar. Venderam até com facilidade a casa em que moravam, para um dos vizinhos. Venderam também a casa de comércio que era da avó, a qual tinha sido alugada e deixada pelo pai Daniele como a última reserva de capital, caso conseguissem emigrar. Conseguiram um bom valor por ela, até mais do que pensavam, por estar bem localizada, às margens da estrada que levava à sede do município.
Um dia antes de partirem, Maria Augusta e os filhos, após organizarem todas as caixas e sacos com a mudança, foram até o cemitério dar a última despedida para Daniele e a avó que ali estavam sepultados. Foram também até a igreja matriz se despedir do velho padre Michele, um antigo amigo da família, e pedir a sua benção para que a viagem transcorresse bem e que tivessem sucesso no Novo Mundo. Aproveitaram também para encomendar missas anuais, nas datas dos falecimentos de Daniele e da avó Giacinta, em intenção às suas almas. Se despediram de todos os amigos e vizinhos e em uma manhã bastante fria do início de dezembro, se dirigiram à estação ferroviária para pegar o trem até Gênova, e assim deixaram definitivamente a querida vila, para nunca mais voltarem.

Continua
Trecho do conto 
Em Busca de um Futuro Melhor
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS