sexta-feira, 8 de agosto de 2025

A Tragédia do Vapor Carlo R.


A Tragédia do Navio Carlo R.


Em 24 de agosto de 1893, o vapor italiano Carlo R - de Raggio o sobrenome de um dos armadores - atracou no porto do Rio de Janeiro, trazendo uma dolorosa realidade: cerca de 100 passageiros mortos devido a uma epidemia de cólera, além de inúmeros outros gravemente infectados. Testemunhos das autoridades sanitárias e portuárias brasileiras, que inspecionaram a embarcação, descrevem o ambiente a bordo como insuportável, devido ao forte odor que emanava do navio. Sem autorização para desembarcar no Brasil, o Carlo R foi forçado a retornar ao porto de origem, carregando de volta os doentes e os sonhos frustrados de uma vida melhor.

O final do século XIX foi marcado por um aumento significativo no fluxo migratório. Esse intenso movimento de pessoas entre diferentes regiões da Europa favoreceu a disseminação de epidemias, que se tornavam ainda mais graves durante os embarques e desembarques nos portos. A chegada do vapor Carlo R. ao Rio de Janeiro, em setembro de 1893, evidenciou os efeitos devastadores da epidemia de cólera, que assolava o continente europeu naquele período. Esse episódio afetou profundamente a trajetória de milhares de imigrantes italianos, muitos dos quais sonhavam em construir uma nova vida no Brasil.

Entre agosto e setembro daquele ano, aproximadamente seis mil imigrantes italianos viram suas jornadas interrompidas. Quatro vapores italianos, transportando cerca de 1500 passageiros cada, foram obrigados a retornar à Itália após cerca de um mês de viagem. Esse retrocesso representou o colapso de projetos de vida para inúmeras famílias que, ao cruzar o Atlântico, esperavam realizar o sonho de “fazer a América”. A preparação para essa empreitada exigia planejamento, economias, coragem, saúde e uma longa lista de documentos, incluindo passaporte, vistos, certificados de vacinação, inspeção médica e antecedentes penais.

Desde abril de 1893, os consulados brasileiros na Europa já alertavam sobre as condições sanitárias precárias em portos atingidos pela cólera. Navios provenientes dessas regiões ou com casos registrados a bordo só poderiam desembarcar no Brasil após passarem por rigorosos procedimentos de desinfecção. O Lazareto da Ilha Grande foi designado para esse fim, sendo responsável pela limpeza da embarcação, bagagens e pertences pessoais antes de qualquer desembarque. Como parte das medidas de contenção, o governo brasileiro suspendeu temporariamente a imigração de pessoas provenientes da Itália, Espanha, além de portos franceses e africanos no Mediterrâneo, considerados zonas infectadas após 16 de agosto de 1893. A quarentena tornou-se obrigatória para navios com suspeita ou confirmação de passageiros contaminados, e somente no início de 1894 as correntes migratórias puderam ser retomadas com segurança.

A medida extrema do “torna-viagem” – o retorno do navio ao porto de origem – foi aplicada em casos severos, quando a quantidade de mortos e infectados a bordo era alarmante. Esse foi o destino dos quatro vapores que chegaram ao porto do Rio de Janeiro entre agosto e setembro de 1893, marcando para sempre a história de muitos que ansiavam por uma nova vida, mas enfrentaram a dura realidade de uma tragédia em alto-mar.  

paquete Remo, que zarpou de Gênova no dia 15 de agosto, foi considerado “infectado” logo no dia seguinte, 16 de agosto, fazendo escala no porto de Nápoles no dia 17. Suas condições de higiene eram deploráveis, com excesso de passageiros — 1.494 pessoas amontoadas em um espaço insuficiente. Durante a viagem, três passageiros faleceram, e, ao chegar no ancoradouro do Lazareto da Ilha Grande, outros três já estavam gravemente enfermos. O Remo foi proibido de desembarcar no Brasil e recebeu a ordem de retornar à Itália após receber assistência mínima. No trajeto de volta, mais de 60 pessoas sucumbiram à epidemia. Relatórios do consulado brasileiro em Barcelona indicaram que o navio possivelmente trouxe o cólera à Espanha, com a doença começando a se espalhar em Tenerife logo após sua passagem pelo porto.

vapor Andréa Doria chegou ao Lazareto da Ilha Grande em 12 de setembro, tendo partido de Nápoles exatamente no dia 16 de agosto, quando o Brasil proibiu a entrada de imigrantes provenientes da Itália. Os passageiros viajavam em condições alarmantes de higiene, e 91 mortes por cólera ocorreram durante a travessia. Com muitos outros doentes ainda a bordo ao chegar ao Brasil, as autoridades determinaram o retorno do navio ao porto de origem.

Em 16 de setembro, o vapor Vincenzo Florio atracou na Ilha Grande em situação semelhante à do Remo. Mesmo após sua chegada, novos casos de cólera surgiram, e, sem permissão para desembarcar, o navio foi enviado de volta à Itália, frustrando as esperanças de seus passageiros.

vapor Carlo R., por sua vez, partiu de Gênova em 27 de julho, recolhendo 1.300 emigrantes em Nápoles antes de seguir viagem no dia 29 rumo ao Rio de Janeiro. O primeiro óbito ocorreu já em 31 de julho. Apesar disso, o comandante decidiu prosseguir, informando às autoridades brasileiras que os casos eram de gastroenterite, e não de cólera. Durante mais de 20 dias, mortes continuaram a ocorrer, mas o navio não voltou ao Lazareto de Nápoles, onde os doentes poderiam ter recebido assistência adequada. Sem espaço para isolar os enfermos, as condições se agravaram. Quando chegou ao Lazareto da Ilha Grande, em 24 de agosto, mais de 100 mortos estavam a bordo, além de muitos doentes em estado crítico. O ambiente exalava um odor nauseante, refletindo a precariedade da situação.

Relatórios oficiais sobre os quatro navios restringem-se a descrições breves, mas a tragédia do Carlo R. não passou despercebida. A dimensão do sofrimento abalou autoridades e a população carioca, que acompanhou, com consternação, os desdobramentos do caso. A incapacidade das instituições sanitárias, a precariedade das medidas tomadas, e o impacto diplomático gerado tornaram esse episódio singular. A imprensa do Rio de Janeiro reportou diariamente o drama dos imigrantes, ajudando a revelar a profundidade da tragédia e suas consequências para todos os envolvidos: imigrantes, autoridades, médicos e a sociedade como um todo.

Entre os quatro navios que aportaram no mesmo período, o caso do vapor italiano Carlo R. destacou-se como o mais trágico, gerando intensas discussões entre as autoridades sanitárias e recebendo ampla cobertura da imprensa. Em 29 de agosto de 1893, o Jornal do Commercio publicou a seguinte nota:

"Recebemos na noite de ontem a seguinte correspondência: o rebocador Victoria, carregando carvão mineral, provisões, medicamentos e outros suprimentos para o vapor italiano Carlo R., deixou esta capital ontem às 14h20, rumo à Ilha Grande. Provavelmente, só chegará ao destino à noite, para fornecer o necessário ao vapor, que permanece na enseada das Palmas desde a noite do dia 24 (...). Há notícias de que alguns coléricos faleceram a bordo, e os cadáveres foram lançados ao mar. Veremos quais serão as consequências dessa longa permanência do navio naquela enseada. Que os corpos não venham dar à costa é o que se deseja."

A opinião geral — da população, das autoridades e da imprensa — era unânime: o Carlo R. deveria deixar as águas brasileiras o quanto antes, permanecendo completamente isolado, sem permitir embarque ou desembarque de qualquer pessoa. Embora essa medida fosse considerada desumana, o medo do contágio era esmagador. A moléstia tinha fama de ser extremamente contagiosa e mortal, uma reputação construída em razão de sua devastação em portos da Europa, Ásia e África em menos de um ano.

Quando o Carlo R. partiu de Nápoles, em 29 de julho, o porto ainda não havia sido declarado como foco epidêmico. No entanto, o decreto brasileiro que proibia a entrada de navios oriundos de áreas contaminadas ou suspeitas de cólera foi emitido em 16 de agosto, quando o navio já estava em alto-mar. As autoridades consulares brasileiras enviavam, constantemente e via telégrafo, relatórios sobre a situação sanitária em portos e cidades estrangeiras. Paralelamente, as normas portuárias internacionais exigiam que os comandantes informassem as condições sanitárias do navio aos portos de escala e destino. Dessa forma, tornou-se de conhecimento oficial a aproximação de quatro embarcações vindas de áreas afetadas e transportando doentes a bordo.

O comandante do vapor Carlo R. cumpriu as exigências protocolares, reportando a presença de enfermidades a bordo. No entanto, insistiu em caracterizá-las como casos de diarreia comum ou gastroenterite, negando a presença de cólera. Essa atitude — seja por omissão, negligência ou erro — resultou em um trágico custo humano, com centenas de vidas perdidas.

Por ter chegado de um porto contaminado e transportando doentes, o navio foi proibido de atracar no Porto do Rio de Janeiro, conforme as regulamentações portuárias vigentes. Ele foi enviado ao Lazareto da Ilha Grande, localizado na enseada do Abraão. Ali, o vapor deveria passar por um processo de desinfecção; os passageiros saudáveis seriam mantidos em quarentena, enquanto os enfermos seriam levados ao hospital de isolamento ou tratados no próprio lazareto.

Carlo R. transportava mais de 1.400 imigrantes, dos quais 109 haviam falecido durante a travessia. Além disso, ainda havia pessoas adoentadas a bordo, enquanto outros vapores provenientes da Itália, em condições similares, eram esperados. A situação tornou-se ainda mais crítica pelo fato de o lazareto não ter estrutura para acomodar tantas pessoas em quarentena ou em tratamento. Assim, ao chegar à enseada do Abraão, e constatada a suspeita de cólera, foi ordenado que o navio fundeasse a cerca de três milhas náuticas (aproximadamente cinco quilômetros) da costa, ficando isolado e impedido de qualquer comunicação com terra firme.

O pânico gerado levou até mesmo o vice-presidente da República, Floriano Peixoto, a intervir diretamente. Em meio à Revolta da Armada, telegramas foram enviados ordenando que o vapor deixasse imediatamente as águas nacionais e proibindo que embarcações provenientes da Itália, com imigrantes a bordo, atracassem em território brasileiro. A Marinha deslocou o cruzador República e o rebocador Lamego para escoltar o Carlo R. até a Ilha Grande, evidenciando o medo e o impacto que o surto de cólera gerava.

Quando o navio chegou ao lazareto, o diretor do local foi ao seu encontro, como de praxe. Ainda à distância, foi tomado pelo odor nauseante proveniente do vapor. Após interrogar o comandante, recebeu a informação de que havia apenas casos graves de "colerina", mas que mais de 100 passageiros já haviam morrido. Diante disso, o diretor ordenou que o navio fosse deslocado para a enseada de Palmas, ainda mais distante do lazareto, sob vigilância do cruzador República.

No dia 25 de agosto, após um atraso causado por mau tempo, chegaram à Ilha Grande o Ministro do Interior, Fernando Lobo, e o Inspetor Geral de Saúde dos Portos, José da Silveira. Decidiu-se que o Carlo R. não seria admitido no lazareto e que tudo de que necessitasse seria enviado a bordo. Foram encaminhadas 100 toneladas de carvão, alimentos, medicamentos, desinfetantes e láudano, um potente sedativo. Os suprimentos foram transportados em um saveiro, que posteriormente foi incinerado para evitar contaminação.

Durante o trajeto entre o Rio de Janeiro e a Ilha Grande, cerca de 100 corpos haviam sido lançados ao mar, e três cadáveres ainda estavam a bordo quando o vapor chegou ao lazareto. Após a entrega dos suprimentos, o navio foi escoltado de volta à Itália, mas o medo persistiu entre a população. Em 31 de agosto, um cadáver em decomposição foi encontrado na praia de Copacabana, provocando pânico entre os habitantes e reforçando os boatos sobre a permanência do Carlo R. nas águas brasileiras. No dia seguinte, outro corpo foi localizado em Itaipu, intensificando o temor nas comunidades costeiras.

Esses eventos ilustram o impacto devastador da chegada de uma pandemia, tanto para a população quanto para os imigrantes confinados no navio, enfrentando a morte e as precárias condições a bordo. Para os pobres imigrantes, a combinação de acomodações insalubres, superlotação, alimentos estragados e negligência das companhias de navegação tornava a jornada não apenas difícil, mas fatal. Em sua maioria, eram pequenos agricultores e suas famílias, atraídos por promessas de trabalho e uma vida melhor, mas que, muitas vezes, encontravam a tragédia no caminho.

As epidemias, especialmente a de cólera, provocavam pavor intenso devido aos seus sintomas aterrorizantes e aos efeitos devastadores. Essa situação desencadeava respostas variadas nos mais diversos setores da sociedade. Estudar tais reações permite compreender os valores culturais e práticas da época, especialmente no que tange às relações com a ciência, religião, conservadorismo e inovação. Durante esses períodos de crise, o comportamento coletivo moldava um contexto dinâmico que revelava estruturas institucionais específicas.

Os sintomas da cólera incluíam diarreia abundante, que rapidamente se tornava aquosa e era popularmente descrita como "água de arroz", além de vômitos, cólicas abdominais e espasmos musculares severos. O quadro clínico causava pânico generalizado. O paciente apresentava um rosto pálido e azulado, pele enrugada e murcha, extremidades escurecidas e frias, com perda de até 20 litros de líquido corporal em um único dia, resultando em desidratação grave e queda acentuada de pressão arterial. A morte podia ocorrer em poucas horas após o início dos sintomas. Nos navios, a tragédia se intensificava, pois os corpos precisavam ser lançados ao mar para evitar a disseminação da doença, privando as famílias dos rituais funerários tradicionais e do luto conforme suas crenças.

Os imigrantes, oriundos sobretudo de vilas rurais italianas, traziam consigo uma forte conexão com suas tradições. Ao chegarem ao Novo Mundo, eram confrontados com práticas inéditas, como inspeções médicas rigorosas e testes psicológicos, característicos de modelos de imigração como o norte-americano, que lhes apresentavam uma nova lógica de vida e pensamento.

No caso brasileiro, grande parte dos imigrantes chegava acompanhada pela família, já que o governo incentivava a imigração familiar para as colônias ou fazendas. Entretanto, eventos trágicos como os ocorridos no navio Carlo Raggio podiam devastar famílias inteiras, colocando fim ao sonho de uma vida melhor e marcando profundamente aqueles que vivenciavam ou testemunhavam tais horrores a bordo.

O historiador Richard Evans destacou que a cólera confrontava diretamente os padrões de moralidade da era vitoriana, chocando uma sociedade que evitava expor funções corporais publicamente. A doença, com seus sintomas degradantes e morte repentina, era considerada um símbolo de desumanização. "A rapidez da morte pelo cólera negava ao enfermo a chance de preparar-se para o fim, envolvendo sua partida em um manto de terror", escreveu.

Os imigrantes italianos que embarcavam rumo a novos horizontes eram frequentemente chamados pelas companhias marítimas de "tonelada humana". A bordo, as condições eram desumanas. Inspeções da época relatam cenas de pessoas agachadas no convés, comendo de pratos apoiados no chão, em meio a sujeira e dejetos espalhados pelo movimento das ondas. A higiene era precária, exacerbando os riscos sanitários e transformando os navios em verdadeiras incubadoras de doenças.

Entre 1876 e 1915, mais de 14 milhões de italianos deixaram suas terras, expulsos pela fome, desemprego e falta de perspectivas. Esse êxodo massivo, comparável apenas à fuga bíblica dos hebreus do Egito, despovoou vilas inteiras, especialmente nas regiões montanhosas onde a agricultura de subsistência sucumbia às adversidades climáticas e ao aumento populacional.

Inicialmente, a migração era predominantemente masculina, com homens habituados a deslocamentos sazonais para países europeus mais ricos. Contudo, a crise econômica agravada após 1870 transformou a emigração em um movimento familiar e definitivo, direcionado a terras distantes. Depois de 1901, mais de meio milhão de italianos emigravam anualmente, sendo os Estados Unidos o destino preferido.

As condições nos navios eram alarmantes. A água era armazenada em barris desde a partida, e qualquer contaminação durante a viagem podia desencadear epidemias devastadoras. O ambiente insalubre, a convivência próxima com animais vivos, e a falta de ventilação e higiene nos porões contribuíam para a propagação de doenças como cólera, febre tifoide e tuberculose.

Relatos documentam episódios trágicos, como o do navio Matteo Bruzzo, onde uma epidemia de cólera matou 22 passageiros, forçando o retorno à Itália. Outros casos, como no navio Carlo Raggio, registraram mortes por fome e sarampo. A precariedade das viagens deixou marcas profundas na memória dos sobreviventes e de seus descendentes.

A grande emigração italiana reflete não apenas o desespero das condições de vida na Itália, mas também a resiliência de um povo que buscava reconstruir suas vidas em terras distantes, enfrentando adversidades inimagináveis durante a travessia oceânica.

Passageiros enfrentando intempéries no convés de um navio lotado, forçados a competir por recursos e atenção das autoridades de bordo, é um retrato marcante da dura realidade daqueles tempos. No dia 7 de setembro de 1893, quando o vapor Remo se aproximava do Porto do Rio de Janeiro, a bordo havia se instalado uma epidemia que causou diversas mortes. Tal situação levou as autoridades brasileiras a ponderarem a possibilidade de barrar a ancoragem e determinar o retorno imediato da embarcação ao porto de origem, na Itália. Muitos dos viajantes haviam vendido suas posses para adquirir os bilhetes, enquanto outros abandonaram tudo com a esperança de se reunir a familiares que já estavam em solo brasileiro. É difícil imaginar o desespero que se abateu sobre essas pessoas ao ouvirem que, após uma jornada exaustiva e cheia de desafios, não poderiam desembarcar no Brasil.

Na manhã de 15 de setembro, o Remo partiu rumo à Itália, carregando uma carga pesada de sofrimento humano. Após 50 dias de navegação, no dia 4 de outubro, os passageiros desembarcaram na Ilha de Asinara, na Sardenha, onde foram colocados em quarentena. Dez dias depois, o navio continuou viagem para Nápoles, desembarcando os passageiros do sul da Itália, antes de seguir para Gênova, onde chegou em 26 de outubro. Essa travessia, de ida e volta, durou 70 dias, custando a vida de 96 passageiros e deixando inúmeros doentes.

Proporcionalmente, essa não foi a pior tragédia marítima da época. Em outra ocasião, o vapor Carlo Raggio, originalmente construído para transporte de carvão e adaptado às pressas para o transporte de passageiros, partiu de Gênova com escala em Nápoles, levando 1.000 pessoas. Uma epidemia de cólera eclodiu durante o trajeto, resultando em 211 mortes, uma fatalidade para cada cinco passageiros. O diagnóstico de doenças como o cólera era feito com base apenas em observações clínicas, sem exames laboratoriais.

No outono de 1892, o Giulio Cesare, recém-construído, preparava-se para sua viagem inaugural ao Brasil, levando 900 emigrantes. No entanto, foi impedido de zarpar devido a uma grave intoxicação alimentar que acometeu cerca de 40 passageiros. A investigação médica concluiu que a causa foi o estanho e soldas das tigelas recém-fabricadas utilizadas na refeição.

As condições sanitárias dos alimentos eram uma preocupação crescente, e um regulamento de 1890 estabelecia padrões mínimos de higiene para alimentos, bebidas e utensílios nos navios. Contudo, no caso de embarcações destinadas a emigrantes, tais medidas eram frequentemente ignoradas, priorizando o lucro sobre a qualidade de vida a bordo.

A negligência das companhias marítimas resultou em diversos episódios trágicos. O vapor Agordar, por exemplo, teve 10 casos de intoxicação alimentar ainda no porto e levou outros 130 passageiros a desistirem da viagem. Essa negligência refletia a falta de compromisso das empresas em melhorar os serviços, buscando apenas manter os custos baixos para garantir passagens competitivas.

Durante as travessias, a superlotação e as condições insalubres eram palco de surtos de doenças como tuberculose e sarampo. Os passageiros, especialmente os de terceira classe, eram amontoados em porões escuros e sem ventilação, muitas vezes compartilhando o espaço com pessoas de diferentes nacionalidades. Relatos descrevem que eram tratados como "ratos em buracos", presos em beliches de madeira precários, enfrentando náuseas, vômitos e o balanço constante do navio.

A morte de passageiros durante a viagem era tratada com pressa e discrição. Corpos eram jogados ao mar rapidamente, frequentemente à noite, para evitar a atenção de outros viajantes, e as áreas contaminadas eram desinfetadas. Contudo, há registros de que, em algumas ocasiões, os corpos descartados no oceano ainda poderiam estar vivos.

Epidemias de febre amarela e sarampo eram comuns em rotas para o Brasil e a Argentina. Em 1892, um navio norte-americano retornando a Gênova após paradas em Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro enfrentou uma grave epidemia de sarampo, que infectou todas as crianças da terceira classe, resultando em cinco mortes.

Apesar de todos os desafios, a determinação dos emigrantes italianos era inabalável. Uma canção entoada a bordo por esses viajantes dizia:
"Seja o que for, pior não pode ser. Vamos arriscar nossa sorte. Já que um dia morreremos, que seja na América tanto quanto na Europa. Viva a América! Morte aos Senhores! Vamos para o Brasil! Agora caberá aos proprietários trabalharem a terra."

Mesmo diante de condições desumanas, a esperança de uma vida melhor no Novo Mundo superava o sofrimento das jornadas. A migração para o Brasil diminuiu significativamente durante a Primeira Guerra Mundial, mas a busca por uma nova vida continuou, ainda que de forma reduzida, no período entre guerras.

Nota do Autor

A história do vapor Carlo R. não é apenas o relato de uma tragédia marítima — é um espelho doloroso de um tempo em que sonhos eram carregados em porões úmidos e superlotados, onde a esperança viajava lado a lado com o medo. Entre agosto e setembro de 1893, centenas de famílias italianas embarcaram na mais arriscada travessia de suas vidas, levando na bagagem não apenas seus poucos pertences, mas a fé em um futuro que nunca chegaria.

O episódio narrado aqui não pretende ser apenas um registro histórico, mas também um testemunho de humanidade. É um convite à reflexão sobre a coragem de homens, mulheres e crianças que, mesmo diante da fome, das doenças e das incertezas, escolheram partir. A tragédia do Carlo R. expõe, com crueza, as fragilidades do sistema de imigração da época — marcado por negligência, pressa e ganância —, mas também revela a força de um povo que não se deixava vencer pelas adversidades.

Escrevo esta narrativa em memória daqueles que não chegaram ao destino. Aos que repousam no fundo do Atlântico, sem túmulo e sem epitáfio, e às famílias que carregaram para sempre a dor do retorno forçado. A história do Carlo R. é, acima de tudo, um lembrete de que a grande emigração não foi feita apenas de chegadas e celebrações, mas também de despedidas sem volta, promessas quebradas e vidas interrompidas.

Que esta lembrança sirva não apenas como registro, mas como homenagem. Porque recordar é também resgatar a dignidade de cada um daqueles que, mesmo sem nome preservado nos livros, fazem parte do alicerce invisível sobre o qual tantas histórias de imigração foram construídas. 

Dr. Luiz C. B. Piazzetta