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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Entre o Vêneto e o Café A Jornada de Giovanni Dal Molin

 


Entre o Vêneto e o Café 

A Vida de Giovanni Dal Molin 

Giovanni Dal Molin nasceu em Quero, então uma pequena vila encravada entre os vales da província de Belluno onde o vento do Piave soprava com uma melancolia que parecia já anunciar as partidas. Filho de um trabalhador rural meeiro e de uma mãe de mãos calejadas pelo linho, crescera sob o peso de uma Itália recém-unificada, onde as promessas do novo Reino pareciam sempre se perder nas montanhas. No inverno de 1879, quando as nevadas se misturavam ao cheiro de fumaça das chaminés e ao eco das preces, Giovanni tomou a decisão que selaria o seu destino: partir. A fome que se alastrava pelas vilas do Vêneto não era apenas a falta de pão, mas principalmente a ausência de esperança. As colheitas haviam sido magras, a terra já não bastava, e os impostos do novo governo, somados às dívidas com os arrendatários, transformavam cada semente num peso morto.

Na pequena paróquia de São Girolamo Emiliani, o sino tocava com o mesmo ritmo dos séculos, indiferente à miséria dos homens. Giovanni olhou uma última vez para as montanhas, cobertas de neve, e percebeu que aquele branco não era pureza, mas esquecimento. Partiu levando consigo um pequeno saco de linho com algumas poucas roupas, pão seco, um rosário e uma carta do irmão mais velho, prometendo guardar o pedaço de terra familiar até o seu retorno — um retorno que, no fundo, ele sabia, jamais aconteceria. Como tantos de sua geração, deixava para trás a língua, o nome gravado nas pedras, e partia em direção a uma promessa abstrata chamada "Mèrica".

O porto de Gênova era uma confusão de vozes, línguas e cheiros. Milhares de corpos comprimidos em torno de velhos navios que mais pareciam carcaças flutuantes. Giovanni embarcou num vapor de segunda mão fretado por uma companhia italiana, que prometia passagem gratuita em troca de trabalho garantido nas fazendas do café do Brasil. As promessas eram abundantes e ilusórias: falavam em terra fértil, em casas brancas e em um salário justo. A realidade, porém, começava a se impor já no porão do navio. As profundezas escuras do navio, onde Giovanni alojado, era uma caverna imunda, úmida e fétida. Sentia-se ainda o cheiro forte de carvão que até pouco tempo o cargueiro transportava. O ar rarefeito também misturava o cheiro de óleo, vômito e outros dejectos humanos. Crianças choravam quase sem forças, mulheres escondiam pequenos terços e retratos dentro dos vestidos, homens tossiam até o sangue. A travessia durou trinta e cinco dias. Cada amanhecer era uma vitória sobre o traiçoeiro oceano.

Em certas madrugadas calmas de céu estrelado, com a devida permissão do comandante do navio, Giovanni subia ao convés e fitava o horizonte. O mar, revolto e cinzento, parecia zombar dos que o desafiavam. Era um exílio líquido, um ventre de ferro que engolia vidas e vomitava sobreviventes. Entre o som do motor e o ranger das tábuas, sob a pressão contínua das ondas, ele pensava no futuro. O Brasil era uma palavra que ainda não possuía forma. Diziam que havia sol o ano inteiro, árvores de café tão densas quanto as vinhas do Vêneto e uma terra vermelha, generosa. Mas os rumores também falavam em doenças, febres repentinas, serpentes peçonhentas e senhores de pele bronzeada que controlavam fazendas imensas com a mesma disciplina com que um capitão comanda um navio.

Quando o vapor atracou no porto de Santos, o ar úmido e quente atingiu-o como uma bofetada. A vegetação era de um verde brutal, o chão pulsava como se estivesse vivo. Giovanni foi conduzido de trem, junto a um grupo de compatriotas ansiosos e exaustos, rumo ao coração do interior paulista. A viagem serpenteava por paisagens completamente desconhecidas: vastos canaviais, pastagens intermináveis e pequenas vilas, pontuadas por igrejas de madeira. Pelas janelas do vagão, um mar de canaviais e cafezais se estendia até o horizonte, como se convidasse a adentrar o desconhecido. Ao final do percurso, seriam alocados em uma fazenda nas imediações de Ribeirão Preto, onde se esperava que transformassem a terra em sustento, trabalho e, talvez, em esperança — um futuro que surgia tão distante do Piave quanto do conforto das aldeias natalinas. A pequena estação, perdida entre campos de cana e nuvens de poeira avermelhada, marcava o ponto final da longa jornada iniciada do outro lado do oceano. O ar quente do interior paulista parecia vibrar sobre os trilhos, e o cheiro doce da cana recém-cortada misturava-se ao suor e à exaustão dos viajantes. Dali em diante, restavam ainda vinte quilômetros até a fazenda — um trecho de terra batida e ladeiras secas, que seria vencido a pé por alguns e em carroças rangentes por outros. O novo patrão enviara aqueles veículos para recolher seus futuros trabalhadores, e os animais avançavam devagar, como se também sentissem o peso da travessia. Cada passo levantava uma névoa de pó que se colava às roupas e ao rosto dos imigrantes, enquanto, ao longe, o sol declinava sobre o horizonte, dourando as lavouras e anunciando o começo de uma vida que ninguém ainda sabia como seria. Na chegada, o capataz brasileiro, montado num cavalo negro, leu os nomes dos recém-chegados. Cada homem recebeu um número, um barracão e uma enxada — como se, ao desembarcar, deixassem de ser pessoas para se tornarem peças de uma engrenagem invisível. O idioma era um muro intransponível, separando-os do mundo que agora os cercava. As ordens vinham em sons estranhos, secos, que nada lembravam o canto do vêneto ou o murmúrio das colinas de onde haviam partido. Entre eles e os feitores, não havia diálogo possível: apenas gestos, apontamentos bruscos e o peso do trabalho. A terra e o suor tornaram-se a única linguagem que todos compreendiam, o idioma universal da sobrevivência.

Nos primeiros meses, Giovanni aprendeu o peso do sol. O corpo se transformou numa ferramenta: músculos que obedeciam, costas que suportavam, mãos que se abriam em feridas. A fazenda era um mundo fechado, regido por um tempo próprio. O sino da antiga senzala — agora rebatizado de “casa dos colonos” — marcava as horas do trabalho e do descanso. O alimento era escasso, o pagamento vinha em vales trocáveis apenas no armazém da própria fazenda, onde tudo custava o dobro. As dívidas cresciam invisíveis, e o sonho da liberdade se diluía na poeira vermelha da terra paulista. Giovanni entendia, lentamente, que a escravidão havia mudado de nome, mas não de essência.

Mesmo assim, havia algo que resistia. Nas noites sem lua, sentava-se à porta do barracão e olhava o firmamento. O céu do Brasil parecia mais vasto, mais próximo. Às vezes, o vento trazia o cheiro doce das flores de café e, por um instante, ele acreditava estar em casa. Os outros imigrantes, vindos de Treviso, Vicenza e Pádova, compartilhavam entre si o mesmo propósito silencioso: trabalhar o bastante para juntar dinheiro e, um dia, comprar um pequeno lote de terra. Falavam disso nas horas de descanso, enquanto o sol caía por trás dos canaviais e o cheiro da terra úmida subia do chão. Sonhavam com um pedaço próprio, onde pudessem plantar uvas, milho ou feijão — um lugar que fosse deles, ainda que modesto, nas novas vilas que começavam a surgir em torno de Ribeirão Preto. Cada um trazia na lembrança a imagem de um campo distante na Itália, e talvez por isso acreditassem que o Brasil lhes devolveria, em outra forma, a dignidade perdida. Giovanni não partilhava dessa ambição. Enquanto os companheiros falavam de economias, terras e futuros possíveis, ele limitava-se a ouvir em silêncio, como quem já não esperasse nada do amanhã. O que desejava era apenas sobreviver — trabalhar o suficiente para não dever nada a ninguém e manter-se de pé entre o calor e a fadiga que consumiam os dias. Dentro do peito, o que restava era um eco longínquo: o som dos sinos de Quero marcando as horas nas manhãs de domingo, e o murmúrio sereno do Piave deslizando entre as pedras, memória de uma paz que parecia pertencer a outra vida. Às vezes, nas madrugadas em que o vento soprava por entre as frestas do barracão, ele acreditava ouvir novamente aquele rumor, como se a Itália o chamasse de volta em segredo — mas o chamado se perdia no ruído dos insetos e no peso das distâncias.

Os anos seguintes correram lentos, indistintos. A fazenda prosperava, os barões do café enriqueciam, e os colonos italianos multiplicavam-se nos sertões. Giovanni envelheceu antes do tempo, seus olhos perderam o brilho, mas não a serenidade. Aprendera a amar a terra que o exauria. Havia um orgulho silencioso em cada fileira de café que deixava plantada, como se cada broto fosse uma semente de sua própria redenção. De vez em quando, chegavam novas levas de imigrantes. Olhava-os desembarcar com o mesmo espanto que um dia fora o seu. Sabia o que os esperava, mas nada dizia. A esperança, mesmo quando ilusória, era o único alimento que não se podia negar a ninguém.

Nunca retornou à Itália. O irmão mais velho morreu sem vê-lo novamente. As cartas, no início frequentes, tornaram-se raras e, por fim, cessaram. Restou-lhe apenas a lembrança de uma neve distante e o rumor das colinas do Vêneto. Quando morreu, numa tarde de dezembro de 1912, ninguém soube exatamente sua idade. Foi enterrado sob uma cruz de madeira tosca, ao lado de outros colonos. No registro da fazenda, anotaram apenas: Giovanni Dal Molin, italiano, trabalhador do café.

Mas sob o chão quente de Ribeirão repousava mais que um nome: repousava o símbolo de uma geração inteira que cruzou o oceano em busca de um sonho que nunca se cumpriu. A terra que o acolheu, vermelha e fértil, guardou o seu silêncio. E quando o vento soprava por entre as folhas do café, parecia trazer, de muito longe, o eco de um sino de Quero, tocando para um homem que jamais voltaria, mas que, de algum modo, havia enfim encontrado um lar.

Nota do Autor

Os nomes e alguns detalhes desta narrativa foram alterados para preservar a privacidade das pessoas envolvidas. No entanto, a história de Giovanni Dal Molin é inspirada em acontecimentos verídicos, baseados em cartas e registros de emigrantes italianos do Vêneto conservados em acervos históricos e museus do Rio Grande do Sul. O drama aqui narrado reflete o destino de milhares de italianos que, entre o fim do século XIX e o início do XX, deixaram suas aldeias nas montanhas de Belluno, Treviso e Vicenza em busca de uma vida digna nas fazendas de café e cana-de-açúcar do interior da província de São Paulo. Cada página desta obra é um tributo à coragem silenciosa de homens e mulheres que cruzaram o oceano movidos pela fome e pela esperança — e que, nas terras distantes do Brasil, ajudaram a erguer uma nova pátria sem jamais esquecer a antiga. É também um convite à memória: que não se percam as vozes que o tempo quase apagou, nem as histórias que o vento levou, mas que formam o alicerce invisível de quem somos hoje.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



quarta-feira, 15 de outubro de 2025

El Destin de Matteo Zanforlin


 

El Destin de Matteo Zanforlin

Da la pìcola vila de Arsego a la piantassion de cafè ´ntela "Fazenda Encruzilhada"


Inte l’inverno del 1889, Matteo Zanforlin el ga lassà drio la pìcola località de Arsego, ´ntel comune de San Giorgio delle Pertiche, provìnsia de Pàdova. Védovo ancora zòvane, el portava con sé la fiola Giuseppina, de solo diese ani, e partia insieme a qualchi conterràneo — famèie del stesso Véneto che, come lu, no riusìa pì a vardar un futuro ´ntei campi àridi e zà esaurì de casa loro. La promessa de ‘na vita nova in Brasil rissonava tra le vilete del interior, con carteli e agenti che publicisava tera fèrtile e laoro a volontà.

El peso de la resolussion de partir el zera imenso. Matteo el gavea passà note in bianco, diviso tra l’amor par le radise e la speransa de un ricominsiar. Inte la piassa de la vila, el ga vardà par l’ùltima volta el campanel de la cesa de Arsego che se risava contro el cielo sénere del inverno. Quel suon dei pìcoli campanéi, tanto fameiar, adesso rissonava come un adio solene. Salì su la carossa che lo portava fin a la stassion del treno, el ga sentì de tirar fora ´ntel solo i ricordi de la zoventù, ma sècoli de vita radicà ´nte sta tera.

El viaio par l’ossean el zera longo e tormentoso. La traversia ´nte la tersa classe el zera smorso e scuro, en un vapor pien de gente, parea no finir mai. El moto contìnuo de le onde se mescolava con el pianto dei bambini, con el ripetitivo suonar de le preghiere e con i gémiti dei malà. L’odor de mofo, de sudor dei corpi no ben lavà, de gómito e altri scrementi umani impregnava l’ària. ´Nte ogni fàssia segnà dal desespero, Matteo el riconosceva el riflesso de la pròpria duda: gavea fato ben a partir? El mar, con la so vastità scura, pareva sfotar la fràgile speransa che i spingeva verso l’altra riva del ossean. Epure, la fede in qualcosa de mèio sosteneva ogni respiro e ogni nota de vèglia.

Dopo setimane interminàbili, l’Amèrica finalmente se presentava davanti a lori, con le coste verdi e ‘na luse diversa da quela che i conossea in Véneto. El sbarco a Santos el zera segnà dal tumulto, da la freta dei impiegà e da la stranesa de la nova léngua che risuonava dapartuto. No ghe zera tempo de vardar el novo mondo; sùbito lori sono stà portà al treno che i dovea menar ´ntel interior de la provìnsia de São Paulo. A ogni chilómetro, le foreste se schiudeva, mostrando un panorama grandioso ma ostile, un mondo de colori forti e de suoni scognossù.

El destìn el zera ‘na grande fasenda de cafè ciamà Encruzilhada, visin a la Stassion Gabiroba — una zona che dopo saria parte del comune de Araras. Se credeva che lì se podesse ciapar i fruti de ‘na vita pì pròspera, con poco sforso e abondansa garantì. Ma la realtà che i ga trovà la zera ben diversa da la promessa.

El laoro duro scominciava anca prima del sorger del sol, segnà dal penetrante suonar de un campanil int la sede de la fasenda. Òmini, done e fiòi i ´ndava a la piantassion de cafè, e soto el calor brusante passava el zorno a netar la tera tra i filari de le piante de cafè, altre volte a la racolta, ciapando i grani rossi che, a sera, pareva se moltiplicava tra le man zà ferì. El rìtmo zera fatigante e el corpo presto sedea a la stranchesa. I piè se gonfiava, le gambe dolea e le cignei no regeva pì el lavoro de ogni zorno. Tanti compagni de Matteo cascava malà, vìtime de la fadiga, de le febri tropicai e de la mancansa de dotor o de remedi.

El magnar zera poco e de bassa qualità, servendo pì par tegner el corpo in pié che par darghe forsa. I emigranti, che i zera stà atrati da la promessa de abondansa, se stupiva al vardar che, in ‘sta tera de foreste lussurante e tera fèrtile, el magnar no gavea la sostansa che i conossèa in Itàlia. La carne zera rara e, quando compariva, la zera dura e mal conservà. El pan scuro, fato de freta in forni improvisà, se sbriciolava tra le man e parea pì segatura che magnar. Quase sempre i piati se resumia a fasòi bagnà e a ‘na farina grossa che no sassiava, ma pesava ´nte el stómaco come ‘na piera.

Matteo el sentia la mancansa del vin rosso che scaldava le note frede in Arsego e de la polenta dorà che se alsava fumante in tola ´ntela vila. Quei poveri sapori portava ricordi de condivisione, de feste del paese, de racolti un tempo lontan bondanti e de la sensassion de apartenensa. ´Nte la Encruzilhada, a ogni pasto insìpido, la nostalgia se transformava in dolore. No zera solo el corpo che declinava; zera anche el spìrito, privà de ciò che dava senso a la vita contadin.

La situassion se agravava par colpa del ambiente. Le famèie zera messe in lunghi baraconi de legno scuro, vècie costrussion che, poco tempo prima, le zera servì come abitassion ai schiavi neri. La loro liberassion la zera ancora da poco tempo, e l’ombra de quel passà impregnava l’ària. Le pareti rùstegue tegnia un silénsio pesà, come se portasse i lamenti de chi zera stà imprigionà. Adesso, ospitava òmini e done lìbari, ma no ghe zera dignità in quele case coletive, ndove ogni famèia ricevea solo un spàssio streto, diviso da tavole fràgili che poco protegea da la umidità o dai sguardi ei visin.

I fatori, abituà tuta la vita a tratar con i schiavi, no savea come comportarse con i laoratori lìbari. Par lori, el cámbio zera solo de nome: no potea pì usar la scùria, ma mantegnea la stessa rigidità implacàbile. El tono de vose zera autoritàrio, i gesti sechi, i oci sempre vìgili. La dissiplina la zera imposta con urli e umiliassion, e ogni segno de strachessa o ribelion zera visto come insubordinassion. No ghe zera comprenssion par la fadiga dei novi arivà, né spasio par diàlogo o negosiassion.

Sta mancansa de capassità a tratar con i òmini no pì proprietà ma coloni salarià creva tension ogni zorno. El colonato, vendù come contrato giusto, in pràtica se rivelava ‘na tràpola: laoro ecessivo, pagamento incerto, dèbiti imposti da le stesse spese in negòssio de la fazenda. Matteo el capiva che, ´ntel fondo, zera ancora prigionero de un sistema che se nutriva de la stranchesa de i coloni. Solo el linguagio el zera cambià; l’opression la zera sempre la stessa.

E quande la note calava su la fazenda, el silénsio dei baracon zera spacà solo dai mormori de preghiere e dal pianto contenù de le done e dei bambin. Matteo, steso su un leto duro e streto, vardava la fiola Giuseppina dormente e se domandava se el futuro che lu el ga sognà par lei no zera sepolto lì, soto el peso de sta nova schiavitù mascherà.

Epure, zera un filo de speransa. La racolta del cafè, anca se dura, dava la possibilitá de ciapar qualche soldo. Se soniava de comprar un pìcolo peso de tera, ndove se podesse piantar par conto pròprio e scampar da la schiavitù mascherà che pesava su i coloni. Matteo el credea che, se resistea par alcuni ani, podesse dar a la fiola un futuro mèio de quel che l’Itàlia ghe gavea negà.

Le notisie tra i emigranti zera preocupantepe. Tanti che i ga sbarcà prima de lu ´nte altre zone già parlava de delusion e misèria. Epure, la vita ´nte la fazenda Encruzilhada continuava, segnà da zornate uguali, de sudor e silénsio, de nostalgia e resistensa. Tra i conterane partì da Arsego, alcuni cascava in disperassion, altri se rampegava a la fede. Matteo, par so conto, se sostenea con el ricordo de la tera natale e con il viso fràgile de Giuseppina, che zera diventà la sola rason par soportar el peso de sto destin.

Inte l’Amèrica che prometea richessa e fortuna, Matteo el trovava solo el peso del laoro duro, l’incertessa ogni zorno e la strachessa che el tempo parea no dissipar. Le promesse de abondansa se disfasea soto el sol crudele e tra le man calose, ma drento de lu restava ‘na obstinassion silensiosa, fata de radisi invisìbili e profonde. Ogni gran de cafè racolto, ogni gossa de sudor versà su tera straniera, zera par lu ‘na semensa de futuro — un investimento silensioso in zorni che forse no vardarà, ma che credea podesse dar a la fiola e a le generassion che vegnia.

I ani i ga passà, e el paesagio de la fazenda Encruzilhada se radicava ´nte la memòria tanto quanto i campi de frumento e de viti de Arsego. Le prime ore ndove se alsava prima del canto del galo, i baracon scuri che ospitava famèie intere, el sguardo severo dei fatori che no savea parlar la léngua de libartà — tuto questo se diventava el scenàrio permanente de la so vita. Ma Matteo no el ga mai lassà che la duresa el rovinasse del tuto. ´Nte el fondo, conservava el ricordo de la vila véneta come un faro lontan, un peso de tera che continuava a guidarlo anche a un ossean de distansa.

Zera in sto scontro tra memòria e realtá, tra sònio e sacrifìssio, che Matteo Zanforlin scrivea la so vita. No pì tra le piere consumà de le strete vie de Arsego, ndove generassion dei soi antenà i zera vissù, ma tra le vaste piantassion de cafè intorno a la Stassion Gabiroba, ndove el verde intenso de le piante nascondea la stòria de sudor e de làgreme. Lì, insieme a miliaia de altri emigranti, el trasformava el pròprio sofrir in eredità.

Sta eredità no la zera fata de richesse o tera conquistà, ma de qualcosa pì duraduro: el coraio de resistir, la perseveransa davanti al impossìbile e la speransa, sempre rinata, che el sacrifìssio de ‘na generassion se trasformarà in libartà e prosperità par le sucessive.

E cussì, al’incrussiada tra do mondi, Matteo Zanforlin el lassava segnà el testimónio de la so vita: che anca sul solo pì áspro se pol butar semense che fiorirà in futuro.

Nota del Autor

I nomi che qua i compare i ze stà curadamente cambià par preservar el anonimato dei personagi. Però, la stòria che el letor ga apena conossù la ze vera. La ze nassù da i parole segnà ´nte le carte dei emigranti e dai documenti ufissiai de le vècie fazenda de cafè, conservà con rigore e rispeto dal Museo de l’Emigrassion del Stado de São Paulo. I ze framenti de vita che ga passà pì de un sècolo e anca adesso risonano come testimonianse de coraio, sacrifìssio e speransa.

Sto raconto qua fa parte de ‘na òpera pì grande, che ga el stesso tìtolo, scrita con l’intenssion de dar vose a la epopea de la grande emigrassion italiana in Brasil. No se trata solo de ricordar un passà lontan, ma de iluminar el camino de miliaia de òmini, done e bambin che i ga cambià la pàtria conossù par la promessa incerta de un mondo novo. I ga rischià la pròpria esistensa sora el dolore de la separassion, la duresa del laoro e l’ostinassion de ofrir un futuro mèio ai propri dessendenti.

Contar ste stòrie vol dir no permeter che el silénsio canssele la memòria. Vol dir riconosser che, ´nte le fasenda de cafè del interior paulista, no se racolieva solo grani, ma se forgiava ‘na identità che gavaria segnalà par sempre el Brasil.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta


quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Settimo Manfrino – Entre as Dolomitas e os Cafezais

 


Settimo Manfrino

Entre as Dolomitas e os Cafezais


Settimo Manfrino nasceu em 1870, em Sappade, uma pequena localidade encravada nas Dolomitas, no comune de Falcade, província de Belluno. Era o sétimo filho de Masueto e Giuseppina, batizado com um nome que carregava tanto a marca da numerosa família quanto o peso da esperança de sobrevivência em uma terra dura. Ali, os campos eram estreitos, pedregosos, de cultivo ingrato. O trigo rareava, o centeio crescia baixo e os invernos cobriam tudo com neve densa, que transformava as montanhas num espetáculo belo e cruel. As casas de pedra lutavam contra o frio que descia noite após noite a temperaturas que congelavam até as fontes.

A vida era trabalho incessante e ganhos mínimos. Nos últimos anos, a instabilidade climática havia trazido ainda mais dificuldades. Colheitas já escassas se tornaram quase inexistentes. Os celeiros, outrora modestos mas suficientes, agora guardavam apenas restos. O pão de cada dia vinha misturado com batata e farinha de castanha, numa luta contra a fome. O pai, envelhecido pelo peso da enxada e das dívidas, sabia que os filhos não teriam futuro ali.

Foi Giuseppe, o primogênito, quem primeiro tomou a decisão: partir para o Brasil, onde, diziam, as terras eram fartas e o trabalho garantido. A notícia correu pelas encostas como um murmúrio de esperança. Settimo, ainda rapaz de dezessete anos, sem laços de matrimônio, aceitou seguir o irmão. Deixaria para trás a paisagem familiar das montanhas, o cemitério dos antepassados, a pequena igreja de Falcade onde fora batizado.

Em 1887, atravessaram a Itália em trem até o porto de Gênova, levando um baú de madeira e duas pequenas malas de couro, pão seco, queijo curado e as lembranças de uma vida inteira. No navio, uma travessia longa e penosa até Santos trouxe febres, enjoos e a saudade da terra natal. Mas ao pisarem no cais paulista, não houve tempo para contemplações. Junto de outras vinte famílias de emigrantes italianos, embarcaram no trem da Mogiana. O percurso pelos campos tropicais, sob um sol abrasador, mostrou um mundo radicalmente oposto às neves das Dolomitas.

Ribeirão Preto, destino final, era uma terra de horizontes planos, marcados por fileiras intermináveis de cafeeiros. A fazenda que os acolheu, imensa e isolada, impunha regras severas. Contratados por quatro anos, substituíam a mão de obra escrava recém-liberta. Logo compreenderam a realidade: a distância até a cidade tornava impossível buscar auxílio em caso de doença, e quando recebiam seus pagamentos, os colonos eram obrigados a deixar grande parte deles no armazém da própria fazenda, que, por ser o único existente, praticava preços elevados. 

Settimo, ainda franzino e sem a experiência do irmão, conheceu logo o peso do trabalho. As jornadas começavam antes do sol nascer e terminavam quando a lua já brilhava sobre os cafezais. O calor lhe queimava a pele, as mãos se cobriam de calos, e os pés, acostumados a trilhas de montanha, sangravam nos sulcos da terra vermelha. A fazenda era um universo fechado: não existiam médicos, remédios eram luxo, e a solidão corroía a todos.

Apesar disso, o jovem guardava uma força silenciosa. Ao lado de Giuseppe, de Chiara e dos sobrinhos — os meninos Lorenzo e Paolo, e a pequena Bianca —, sustentava-se na ideia de futuro. Aprendeu a manejar a enxada, a colher os grãos maduros, a suportar as longas fileiras sob o sol impiedoso.

Os anos no Brasil moldaram Settimo. Aos poucos, perdeu o aspecto de rapaz e se fez homem, com o corpo marcado pela labuta. Guardava, entretanto, um olhar profundo, herança das montanhas que o viram nascer. Cada dia resistido era também um tributo aos que haviam ficado em Sappade.

Quando o contrato de quatro anos terminou, a família não tinha muito mais que dívidas e fadiga. Mas Settimo já não era o mesmo. A miséria de Falcade havia ficado para trás, e diante dele se abria um novo caminho. Permaneceria no Brasil, na esperança de conquistar um pedaço de terra próprio, onde pudesse finalmente plantar não apenas para sobreviver, mas para viver.

A história de Settimo Manfrino confundia-se com a de milhares de italianos que trocaram as montanhas da Europa pelos cafezais do Brasil. Entre a beleza congelada das Dolomitas e a vastidão quente do interior paulista, sua vida se inscreveu como um testemunho da dureza e da perseverança de uma geração que buscou nos horizontes distantes aquilo que sua pátria não pôde oferecer.

Quando o contrato na fazenda expirou, Settimo Manfrino tinha pouco mais de vinte anos. Não possuía quase nada além das roupas gastas, algumas moedas mal guardadas e o corpo endurecido pelo esforço. Mas possuía também algo que não tinha ao deixar as Dolomitas: a certeza de que o Brasil seria sua pátria definitiva. Voltar não fazia parte de seus pensamentos.

Giuseppe, mais cauteloso, permaneceu na fazenda, aceitando novo contrato. Tinha mulher e filhos para sustentar, não podia arriscar. Settimo, livre de responsabilidades familiares, arriscou o passo seguinte. Juntou-se a outros colonos solteiros que haviam decidido tentar a sorte nos arredores das pequenas vilas que cresciam ao redor dos trilhos da Mogiana.

Foi trabalhar como meeiro em uma pequena plantações da região. Plantava milho e feijão trabalhando sem descanso, movido pela lembrança de sua terra natal, onde os campos pedregosos nunca lhe permitiram sonhar com algo além da sobrevivência. Ali, no interior paulista, a terra parecia infinita, vermelha e fértil, esperando apenas a persistência de quem a cultivasse.

Aos poucos, formou uma rede de amizades com outros imigrantes: vênetos, lombardos, piemonteses, cada um carregando seu sotaque e suas histórias de miséria deixadas para trás. Juntos construíam capelas improvisadas, partilhavam as festas religiosas, ajudavam-se nas colheitas. O Brasil os moldava, mas a Itália permanecia em seus gestos, na língua misturada e nas comidas que preparavam.

Em 1893, já com vinte e três anos, Settimo conseguiu sozinho arrendar um pequeno pedaço de terra. Foi o início de sua independência. O contrato era precário, mas para ele simbolizava vitória. O solo respondia ao esforço, e colheitas regulares lhe garantiam não apenas o sustento, mas algum lucro. Guardava cada moeda com disciplina, sonhando em comprar a própria gleba.

O tempo, no entanto, não era generoso. Febres tropicais rondavam os colonos. Muitos tombaram sem jamais ver cumprido o sonho de possuir terras. Settimo resistiu, ainda que debilitado em algumas temporadas. A lembrança da carta que lera em Ribeirão Preto — avisando sobre a falta de médicos e a solidão das fazendas — se confirmava ano após ano. Mas havia também uma energia nova, uma sensação de que aquele sacrifício poderia finalmente romper o ciclo de pobreza herdado.

No início da década de 1890, reencontrou a família do irmão Giuseppe. As crianças haviam crescido, Bianca já se tornava moça. A vida seguia dura para eles, ainda presos a contratos de fazenda, mas também sonhando com um futuro independente. A união entre as duas famílias tornou-se ainda mais forte. Juntos, arrendavam terras maiores, trocavam dias de trabalho, ajudavam-se a resistir às crises.

Foi nesse período que Settimo conheceu a filha de outro imigrante vêneto, vinda de Treviso. O casamento lhe trouxe estabilidade e, pouco depois, filhos que nasceram já em solo brasileiro. A vida mudava de rumo: da condição de colono sem nada, transformava-se em pequeno agricultor.

Em 1898, após mais de dez anos no Brasil, Settimo conseguiu comprar suas primeiras braças de terra, pagando com a economia de colheitas passadas. Era pouco, mas para ele equivalia a uma conquista histórica. Sobre o lote ergueu uma casa simples de madeira, coberta com telhas de barro que comprara na vila próxima. Ao redor, cercou o quintal, plantou frutas, levantou um pequeno galinheiro.

Os anos seguintes consolidaram a transformação. Settimo já não era apenas o rapaz de dezessete anos que chegara perdido e atônito à fazenda de Ribeirão Preto. Tornara-se um homem de respeito, conhecido entre os vizinhos pela coragem e pelo silêncio. Seus filhos corriam pelos cafezais, falando já mais português que o vêneto dos pais, sinal de que uma nova geração se enraizava naquela terra distante das montanhas dolomitas.

A memória da Itália permanecia como uma sombra distante. O frio de Sappade, as neves que cobriam os telhados, os campos estreitos e inférteis já não eram lembrados com dor, mas com uma melancolia suave. A vida agora estava no Brasil, e a terra vermelha, conquistada com suor e esperança, era a pátria real que ele escolhera.

Settimo Manfrino encerrou o século XIX como proprietário de seu próprio pedaço de mundo. Ainda pequeno, ainda modesto, mas conquistado com a dignidade de quem, ao atravessar o oceano, não levou consigo mais que o desejo de sobreviver.

O século XX encontrou Settimo Manfrino já como um homem feito, dono de um pequeno lote que conquistara com suor e disciplina. A casa de madeira, simples, tornara-se ponto de referência para vizinhos e parentes. O quintal era vivo: galinhas ciscavam soltas, pés de laranja e de goiaba cresciam junto ao cercado, e a horta fornecia milho verde, mandioca e feijão. O café, espalhado em linhas retas pelo terreno, começava a produzir com regularidade, transformando-se na base da renda familiar.

Sua esposa, mulher de temperamento firme, cuidava da casa e dos filhos, impondo uma ordem que lembrava a rigidez das vilas italianas. O sotaque vêneto ainda dominava dentro de casa, mas fora dela os filhos se adaptavam ao português, à escola improvisada na capela e ao convívio com outras famílias, algumas italianas, outras de imigrantes espanhóis e até de libertos que haviam recebido lotes pequenos.

Os filhos de Settimo cresceram entre as fileiras de café e os campos de milho. Aprendiam desde cedo a capinar, colher e transportar. Mas também traziam novidades: a leitura, ensinada por professores itinerantes, e a curiosidade pelo mundo além da colônia. Um deles sonhava em ser comerciante, outro falava em estudar na cidade, e a menina, ainda pequena, repetia o desejo de ser professora. Settimo observava essas mudanças com uma mistura de orgulho e estranheza. Na sua juventude, ninguém tivera escolha; o destino era apenas sobreviver ao frio e às pedras da montanha. Agora, seus filhos ousavam sonhar com horizontes mais largos.

A vida no interior paulista seguia dura, mas o tempo começava a recompensar os colonos. As ferrovias avançavam, as vilas cresciam, e o café transformava-se em ouro verde. Settimo, que começara como colono sem nada, agora vendia parte de sua produção a compradores que chegavam de trem, carregando o café em sacas até Santos. Cada safra bem-sucedida lhe permitia ampliar o lote, comprar ferramentas melhores e garantir uma reserva contra os anos ruins.

Por volta de 1910, Settimo já era considerado um pequeno proprietário respeitado. Não era rico, mas estava longe da miséria que marcara sua infância em Sappade. Os vizinhos o procuravam para conselhos, e os mais novos viam nele um exemplo de perseverança. A barba grisalha e o corpo curvado pelo trabalho davam-lhe uma presença austera. Ainda assim, carregava consigo uma serenidade que vinha da consciência de ter vencido a adversidade. 

Com o tempo, a comunidade italiana ao redor se organizou. Construíram igrejas maiores, fundaram sociedades de auxílio mútuo e até pequenas escolas mantidas pelos próprios colonos. As festas religiosas, como a de São José, reuniam famílias inteiras, que levavam vinho caseiro, polenta e queijos produzidos nos quintais. Nessas ocasiões, Settimo sentia novamente a Itália presente, não nas paisagens, mas nas vozes e gestos dos conterrâneos.

Os anos, porém, também cobraram seu preço. Epidemias de gripe e febre amarela rondaram a região. Settimo perdeu amigos, vizinhos e até parentes, lembrando-se sempre do aviso que ouvira décadas antes: as fazendas estavam distantes dos médicos, e muitas vezes a doença levava os mais fortes sem dar chance de resistência. Ele próprio enfrentou febres que o deixaram de cama, mas sobreviveu, sustentado pela robustez construída em anos de labuta.

Ao aproximar-se dos cinquenta anos, via os filhos trilharem caminhos próprios. Um se tornara tropeiro, transportando mercadorias entre vilas; outro abriu uma pequena venda, misturando português e vêneto com clientes brasileiros; a filha mais velha, como sonhara, tornou-se professora numa escola rural. Para Settimo, cada conquista deles era uma prova de que a travessia do oceano não fora em vão.

No fundo da memória, ainda guardava as imagens das Dolomitas cobertas de neve, da aldeia de Sappade onde nascera, dos campos pedregosos que nunca deram sustento. Mas agora essas lembranças não lhe traziam dor. Pelo contrário, davam-lhe a medida da distância percorrida. Do sétimo filho sem herança, condenado a um destino estreito, erguera-se um homem com terra, família e raízes fincadas em outra pátria.

Quando a primeira década do novo século terminou, Settimo Manfrino já podia olhar para trás e reconhecer: sua vida era o retrato de uma geração que abandonara a miséria da Europa para reinventar-se nas planícies tropicais. Não tivera facilidades, não fora poupado da dureza, mas alcançara aquilo que seus pais jamais imaginaram possível: um futuro.

As décadas de 1920 e 1930 trouxeram para Settimo Manfrino o tempo da colheita tardia da vida. Ele já passava dos cinquenta anos, os cabelos grisalhos se confundindo com o pó vermelho da terra, as mãos deformadas pelos calos de décadas de trabalho. Caminhava devagar entre os cafezais, apoiado num bastão, mas sua presença ainda impunha respeito entre os vizinhos. Era um dos colonos mais antigos da região, daqueles que haviam chegado quando Ribeirão Preto ainda não passava de uma promessa e a terra era apenas selva e lavoura bruta.

O café continuava sendo o sustento, mas o mundo ao redor começava a mudar. A ferrovia levava as sacas até Santos, os armazéns das vilas cresciam, e o dinheiro circulava com mais frequência. Alguns imigrantes prosperaram, tornando-se grandes fazendeiros. Settimo permaneceu como pequeno proprietário, fiel à rotina, sem jamais aspirar ao luxo. A ele bastava ter garantido terra para plantar, casa para os filhos e a segurança de que a miséria das Dolomitas não se repetiria em sua linhagem.

Na década de 1920, viu os filhos formarem famílias próprias. A filha professora mudou-se para uma vila maior, onde lecionava para crianças de diferentes origens — filhos de italianos, portugueses, espanhóis e brasileiros pobres. O filho comerciante ampliou sua venda, que já era ponto de encontro de toda a colônia, lugar onde notícias da Itália e do Brasil se misturavam em vozes altas e risadas. O tropeiro, inquieto como sempre, tornou-se carreteiro, transportando mercadorias entre fazendas e cidades. Cada um seguiu seu destino, mas todos retornavam nas festas religiosas e nos domingos de missa, quando a mesa da casa de Settimo voltava a encher-se de vozes e de pão.

O ano de 1929 trouxe um golpe inesperado. A crise econômica mundial derrubou o preço do café. Sacas inteiras foram queimadas ou lançadas fora, e os pequenos produtores viram o valor de sua produção se reduzir a nada. Settimo, já envelhecido, sofreu o impacto, mas resistiu com a mesma tenacidade de sempre. Plantou milho e feijão nos espaços entre os cafezais, garantiu comida antes de pensar em lucro. Os filhos o ajudaram a atravessar os anos difíceis, dividindo recursos e apoiando-se mutuamente. A pobreza ameaçou, mas não venceu.

Com a Revolução de 1930 e a instabilidade política, o interior paulista viveu tempos de tensão. Os colonos ouviam falar de conflitos e de mudanças nas cidades, mas no campo a vida seguia marcada pelo ritmo das colheitas. Settimo já não trabalhava como antes; suas forças haviam diminuído. Passava mais tempo sentado à sombra de um pé de jabuticaba, observando os netos correrem pelo quintal. O sorriso das crianças lhe trazia uma paz que não conhecera na juventude.

Naqueles anos, começou a recordar com mais frequência a aldeia de Sappade. Pedia aos filhos que lhe descrevessem novamente as cartas enviadas por parentes que haviam ficado na Itália. Lia nelas a fome e a guerra que ameaçavam a Europa, e sentia uma estranha mistura de tristeza e alívio. Tristeza por saber que sua terra natal continuava a sofrer; alívio por ter escolhido partir em 1887, garantindo aos seus uma vida diferente.

Ao final da década de 1930, Settimo já não saía mais de casa com frequência. Caminhava pouco, falava menos, mas ainda tinha nos olhos o brilho dos que sabem que venceram a luta essencial da vida. Vivia cercado de filhos e netos, cada um carregando nos gestos uma parte da Itália que ele trouxera consigo.

Quando morreu, por volta de 1938, aos sessenta e oito anos, a comunidade inteira se reuniu. O corpo foi velado na capela erguida pelos imigrantes, e a missa atraiu colonos de todas as redondezas. Muitos o consideravam símbolo de uma geração que atravessara o oceano sem nada e deixara no Brasil raízes profundas. Sua sepultura, simples e de cruz de madeira, foi coberta por coroas de flores trazidas pelos vizinhos e parentes.

Settimo Manfrino partira, mas sua vida já estava impressa no solo vermelho do interior paulista. Os filhos e netos dariam continuidade ao que ele começara, misturando o sangue das Dolomitas ao destino brasileiro. A travessia de 1887, feita por um rapaz franzino de dezessete anos, agora se revelava como o marco fundador de uma nova linhagem. Entre as montanhas pedregosas da Itália e os cafezais do Brasil, Settimo construíra uma ponte eterna.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta


terça-feira, 29 de julho de 2025

La Promessa de ‘na Tera Nova

 


La Promessa de ‘na Tera Nova


Capìtolo Primo — El Destin Scelto

Quando che Gabriele Montanari lu el ze montà su el vapor a Génova, el cielo zera scuro e pesante, come se el mar e el cielo i gavea fato un pato de silénsio. La so mòier, Donata, la ghe tegneva streto el brasso, e i so do fiòi, Luisa e Pietro, i se grapava al so tabaro come se no volesse lassarla ´ndar.

Ma Gabriele el no podea esità. Gavea trentoto ani e do ètari de tera rovinà da dèbiti, da i granai falì e da le brose tardie. L’Itàlia nova unita parlava de libartà, ma portava solo misèria. Quando el sentì parlar de la "tera del cafè", del "Brasil", che pagava con schei veri par i brassi forti, no el ga pensà do volte. El se ga metesto assieme con altri de la so contrà — i Pedersoli, i Barlandi — e lu el ze partì.

Soto ´ntel fondo scuro del vapor Ester, la traversia no la zera solo un viaio tra continenti, ma un lento batèsimo de sal, paura e rassegnassion. Le taole del barco spiatolava come se protestasse ogni volta che l’Atlántico le sbatea contro, e el odor grosso de sudor, de gòmito e de aqua màrcia ghe entrava ´ntel naso come ‘na maledission che no se podea cavar via.

Par zorni sensa fin, el dondolar del barco rivoltava el stómego; i òmeni curvà in silénsio, le done che pregava con i oci smarì, e i putei che pianseva ´ntel scuro, sensa capir parché el mondo zera diventà cusì streto e ùmido. Le bote de àqua, che a l’inìsio pareva la salvessa, presto le spandèa un odor rancido mescolà con la marésia de legno fradìcio.

La morte, discreta come ‘na bavesa de ària, la passava tra i corpi. No vegniva con i gridi, ma con el silénsio de chi che no respirava pì. De matina, do marinai rivava con ‘na tela strassà. I incartava el corpo sensa tante stòrie, come se fusse un peso qualsiasi, e lo butava in mar con l’indiferensa de chi che el ga za fato quela roba par dessene de volte. El son del corpo che cascava in àqua — un tonfo muto, e po’ un silénsio eterno — zera un capìtolo che no se scrivea, ma che restava drento.

Gabriele, disteso sora ‘na tola che serviva da leto, el scrivea tuto con le man tremanti. Gavea poco pì de vente ani, i oci cavà da la febre e la barba che ghe copriva la facia zòvene. Ogni pàgina del so quaderno zera un refùgio e ‘na resistensa. El segnava i nomi, le date, le impression, el odor de le onde, el nùmaro de putei che no rivava a finir la setimana. El scrivea come chi che no vol èsser desmentegà.

El zera convinto che la so stòria — quela traversia, quel inferno che flutoava, quela speransa picinina in meso al abìsso — un zorno la sarìa servida. Magari par qualcuno, in futuro, par saver che i ghe zera stà. Che i gavea vissù. Che i gavea sonià ‘na tera dove la fame no gira scalsa.

Quando i rivò a Santos, in zenaro del 1889, i ze sbarcà come èbri, barcolando. Ma el peso dovea ancora rivar. I ga portà tuti in quel che i ciamea la "Hospedaria dos Imigrantes", un gran capanon pien de leti de legno, con odor de disperassion e oci persi che no savea ‘ndove vardar.

Lì, Gabriele lu el ga imparà a tacer. Zera pì sicuro.

Capìtolo Secondo — La Màchina de la Speransa

La sorte, questa vècia baldraca caprissiosa, la ga soriso ai Montanari. I ga stà mandàa a la fazenda Santa Apolonia, ´ntel interno de la provìnsia de San Paolo, invece che in le tera lontan dove tanti — come i Bonfiglioli — i spariva sensa pì scrivar gnente a casa.

La fazenda zera un mondo isolà, serà in sé stesso come un corpo antico che no vol morir, e lì comandava la volontà de un omo solo: el baron Giacomo Ferraz de Mello. El portava ancora el tìtolo come se valesse qualcosa, anca se tuti savea che la so fortuna la se sgretolava ano dopo ano. Zera un omo de moda elegante e parole teatrali, ma con i oci furbi. E da quei oci el tirava fora el poco potere che ghe restava. No fasea gnanca un passo falso. Ogni gesto, ogni òrdine, ogni contrato, gavea el guadagno come spina dorsal. La carità, par lù, zera un lusso da borghesi — e el lusso, da tempo, no ghe entrava pì ´nte le spese.

El laoro par i coloni zera ‘na màchina grossa, sorda a ogni pietà. Sota el sol che spacava la tera come pele seca, i piantava cafè fin che i diti i se induriva come radisa. Quando el vento no spirava, el calor vegniva su da tera come ‘na muràia invisìbile. E quando spirava, el portava zanzare, che i spetava tra i canavéi — ‘na cortina verde ndove l’ària zera stròsa e la pele zera sempre rossa. El tàio de la cana zera un laor da ciechi, con el sudor che scolava mescolà con el sangue, e la pena zera pì constante che l’ombra.

El ciamava quel sistema “colonato”, come se el nome bastasse par darghe un senso de libartà e contrato giusto. Ma Gabriele, atento, lùcido come ´ntel fondago del vapor, el gà capì sùito la verità: zera solo ‘na cornice nova par ‘na tela vècia. Un sistema travestì, adomesticà da le parole, ma che respirava ancora con la boca de la servitù.

No ghe zera catene, ma ghe zera dèbiti. No ghe zera senzale, ma ghe zera paura. E el tempo, che dovea portar progresso, lì lo rifasea solo con altre bandiere.

El pagamento vegniva in boni che se podea spender solo ´ntel spàssio de la fazenda — ndove tuto custava el dòpio. El magnar? Riso sensa gusto, polenta mole, e zorni sensa pan. E ancòi, Gabriele ringraziava. Zera mèio che morir de fredo a Modena.

Quel che no contava ai putei zera che tanti òmeni scampava de note, con la febre, pien de morse de bèstie che el no gavea mai visto. Altri, i moriva. E i morti no tornava mia in Itàlia — tornava solo i so nomi.

Capìtolo Terzo — Parole che Traversea l’Osseano

El 14 de febraro, sentà al’ombra de un capanon, Gabriele el scrivè a so amigo Carlo, che zera ancora in Itàlia. El ga scrito parole con el peso che le meritava. No le fasea bela. El ga contà la pena de chi che rivava, la crudeltà dei alogi, la fame che scavava i visi.

Ma el ga contà anca ‘na picinina vitòria: lù e i Pedersoli gavea laoro. Guadagni bassi, sì — ma veri. E el prometè de mandarghe schei a la mama, anca se solo pochi milréis, par far capir che el gera ancora vivo.

No el ga contà bale. Ma no el ga contà gnanca tuto.

El tegnìa in silénsio el pianser de Donata quando i ga sepeli un visin italian in un cimitero poareto. El ga tacà el timor che i fiòi i cressesse parlando brasilian e la Italia restasse solo ‘na memòria. Parché un omo el se difende no solo con i mùscoli, ma anca con el silénsio.

Capìtolo Quarto — El Tempo che Pianta le So Piantine

I ani i passava come i treni che traversava le campagne paoliste: veloci par chi i varda da lontan, ma lenti e duri par chi el ze drento, sentando ogni sossol.

In tel 1894, Gabriele e Donata i gavea conquistà in ‘na citadina che nasseva da banda de la fazenda, quel che prima pareva un sònio lontan: sinque alquere de tera pròpria, pagà a rate, segnà con steche piantà con forsa ´ntel suolo rosso. Lì, ndove el bosco odorava ancora de abandono, i ga taià radisa con le man, butà zo àlbari con la manara e la testardessa, e falo nàsser i primi pianti de mango, naransa e verdure.

No zera ‘na proprietà, zera un pato. Ogni solco costava un zorno de mal de schena; ogni pianta, ‘na sfida a la seca, ai inseti o ai pressi del marcà. Ma la zera soa. Par la prima volta, la tera soto i piè no la rispondea a el comando de nissun altro. E in quela conquista muta — sensa ini ne anca bandiere — ghe zera pì dignità che in tute le medàlie del mondo.

Luisa la se ga sposà con un altro fiol de emigranti, un certo Vittorio Bianchi. Pietro volèa studià, sognava de farse mèdico — o giornalista ma, mancava i soldi.

La lètara de Gabriele la restò drento ‘na cassa de legno. Ma la so stòria la continuò. Noel ze mai tornà in Itàlia. No el ga mai bevù quel spumante che i gavea promesso. Ma de sera, con el caldo, el se sentava in veranda a vardar le stele, e el diseva:

“Là, da l’altra banda, ghe ze Modena. Ma qua… qua la ze ndove mi go piantà la mia vita.”


Nota de l’Autor

Sto libro "La Promessa de ‘na Tera Nova" el ze nassesto da la voia de dar vose a chi che quasi mai se conta tra le pàgine de la Stòria. Òmeni e done che i ga traversà un ocean con pì paura che certeze, pì fame che robe, e che, anca cusì, i ga avù el coraio de creder che ´ntel mondo ghe zera un posto ndove i so fiòi i podèa crèsser lìbari — anca se lori, forse, no sarìa mia stà davero lìbari.

Par ogni parola scrita, mi go provà de ricordarme che i nùmari fredi dei registri de l’emigrassion i scondea stòrie calde de carne, sudor e pérdita. Le statìstighe no sente mia la fame. No le tremola ´ntel fondago de un vapor. No le sepolta i fiòi ´ntela foresta calda del Brasil. Ma chi che la ga vivesto ‘sta traversia, la ga sentì tuto — e la ga lassà, anca sensa voler, ‘na trassia invisìbile ´ntel paese che el ga aiutà a costruì

Sto libro no el ze mia ‘na biografia precisa, gnanca ‘n tratato stòrico. Lu el ze un tentativo de scoltar el silénsio de le generassion che le ga rivà prima de noialtri. De vardar, tra le rughe dei visi desmentegà, la coraio testarda de chi che la ga costruì case dove prima ghe zera solo boschi, cesete ndove prima ghe zera paura, e scole ndove prima ghe se sentiva solo el colpo de la manara.

Se in qualche momento ti, letor, te senti el odor del cafè novo adesso colto, te senti el scrichiolar de un careto de bo, o te senti un nodo in gola pensando a quel che i ga lassà indrio… alora ‘sta stòria — che la ze inventà, sì, ma anca memòria — la ga fato el so dover.

Con gratitùdine e rispeto,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A História de Francesco Bernardel


 

A História de Francesco Bernardel

Francesco Bernardel, um agricultor italiano de origem humilde, embarcou rumo ao Brasil em busca de um futuro melhor. Deixando para trás as colinas da província de Treviso, ele viajou com sua esposa, Maria, e seus dois filhos pequenos, Pietro e Rosa. Seu destino era São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde terras férteis e promessas de trabalho pareciam ser a solução para a miséria que enfrentavam na Itália.

Ao chegar à Casa do Imigrante, Francesco deparou-se com uma realidade caótica. O local estava abarrotado de famílias de diversas regiões da Itália, todas ansiando por uma oportunidade. Foi ali que ele testemunhou uma revolta. Descontentes com as condições precárias e a péssima alimentação, os imigrantes se rebelaram, atirando comida pela janela e forçando a intervenção de militares. Embora ninguém tenha se ferido, o episódio marcou profundamente Francesco, deixando claro que o caminho para a tão sonhada prosperidade seria repleto de desafios.

Após dias turbulentos, a família Bernardel foi encaminhada a uma fazenda de café administrada por um italiano de nome Giovanni Toffel. Ali, junto a outras seis famílias, começaram a trabalhar nos campos. As condições eram duras: mato alto, calor intenso e um salário que mal cobria as necessidades básicas. No entanto, Francesco encontrou consolo na solidariedade entre os colonos e na gentileza do administrador, que fazia o possível para prover alimento e moradia dignos.

O dia a dia era exaustivo, mas havia momentos de encanto que davam sentido ao esforço. Francesco maravilhava-se ao contemplar as colinas cobertas de cafezais, com os grãos brilhando como pequenas joias sob o sol. "Se o senhor pudesse ver a maravilha que é uma colina de café!", escreveu ele em uma carta ao professor que havia deixado na Itália.

A casa onde moravam era simples, feita de madeira tosca e coberta por velhas telhas de barro cozido, mas oferecia um conforto inesperado. Todo sábado, um porco era abatido e sua carne distribuída entre as famílias, um luxo que Francesco nunca havia experimentado em sua terra natal. No entanto, as saudades da Itália permaneciam como uma sombra constante, especialmente nos dias de festa religiosa, quando a distância da igreja e a falta de sacerdotes limitavam as celebrações.

Com o passar dos anos, Francesco tornou-se um exemplo de resiliência. Ele adaptou-se às peculiaridades do cultivo local, aprendendo a armazenar milho com palha para prolongar sua durabilidade e a lidar com as intempéries tropicais. Maria, por sua vez, cuidava da horta e das crianças, enquanto ensinava Pietro e Rosa sobre as tradições italianas, na esperança de que não esquecessem suas raízes.

Apesar das dificuldades, a família Bernardel prosperou. Pietro cresceu e tornou-se um hábil carpinteiro, ajudando a construir casas para novos imigrantes. Rosa, com sua voz doce, tornou-se a principal cantora das festas da colônia, unindo italianos e brasileiros em celebrações que simbolizavam a fusão das culturas.

Francesco nunca deixou de escrever para seu antigo professor, relatando suas vitórias e desafios. Ele sabia que muitos imigrantes não tinham tido a mesma sorte, mas sentia-se grato por ter encontrado um lugar onde o trabalho árduo era recompensado. Em uma de suas últimas cartas, escreveu: "Aqui, nesta terra distante, encontrei algo que a Itália não pôde me dar: a oportunidade de recomeçar. Embora as saudades sejam imensas, construímos um lar, e isso é um tesouro que nenhum oceano pode apagar."

Francesco Bernardel tornou-se um símbolo de coragem e perseverança, representando os milhares de italianos que, com suor e sacrifício, ajudaram a moldar o Brasil. Sua história, como tantas outras, é uma prova de que mesmo nos momentos mais difíceis, a esperança pode florescer e transformar vidas.


Nota do Autor

Escrever A História de Francesco Bernardel foi uma jornada de exploração das raízes da coragem humana e da força que nos move em direção ao desconhecido em busca de uma vida melhor. Inspirada pelos relatos de imigrantes italianos que atravessaram o Atlântico no final do século XIX e início do XX, esta narrativa pretende homenagear não apenas Francesco e sua família fictícia, mas também os milhares de homens, mulheres e crianças que enfrentaram adversidades para construir um novo lar no Brasil. A história de Francesco Bernardel reflete a realidade de muitos italianos que deixaram para trás suas aldeias, suas tradições e até mesmo familiares queridos para enfrentarem o desconhecido. É também uma homenagem às esperanças e aos sacrifícios de pessoas que encontraram nas terras brasileiras um novo começo, mesmo quando os desafios pareciam intransponíveis. Minha intenção foi capturar não apenas os fatos históricos, mas também as emoções e os dilemas internos de quem viveu esse processo de deslocamento e adaptação. Desde o caos das Casas do Imigrante até a dureza das fazendas de café, A História de Francesco Bernardel é um retrato de resiliência, solidariedade e reinvenção. 

Que este livro sirva como um lembrete de que as histórias dos imigrantes não pertencem apenas ao passado, mas continuam a moldar o presente e o futuro. E que cada leitor encontre em Francesco Bernardel uma inspiração para acreditar que, mesmo diante das maiores dificuldades, a esperança e o trabalho árduo podem transformar vidas.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta