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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta


quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Settimo Manfrino – Entre as Dolomitas e os Cafezais

 


Settimo Manfrino

Entre as Dolomitas e os Cafezais


Settimo Manfrino nasceu em 1870, em Sappade, uma pequena localidade encravada nas Dolomitas, no comune de Falcade, província de Belluno. Era o sétimo filho de Masueto e Giuseppina, batizado com um nome que carregava tanto a marca da numerosa família quanto o peso da esperança de sobrevivência em uma terra dura. Ali, os campos eram estreitos, pedregosos, de cultivo ingrato. O trigo rareava, o centeio crescia baixo e os invernos cobriam tudo com neve densa, que transformava as montanhas num espetáculo belo e cruel. As casas de pedra lutavam contra o frio que descia noite após noite a temperaturas que congelavam até as fontes.

A vida era trabalho incessante e ganhos mínimos. Nos últimos anos, a instabilidade climática havia trazido ainda mais dificuldades. Colheitas já escassas se tornaram quase inexistentes. Os celeiros, outrora modestos mas suficientes, agora guardavam apenas restos. O pão de cada dia vinha misturado com batata e farinha de castanha, numa luta contra a fome. O pai, envelhecido pelo peso da enxada e das dívidas, sabia que os filhos não teriam futuro ali.

Foi Giuseppe, o primogênito, quem primeiro tomou a decisão: partir para o Brasil, onde, diziam, as terras eram fartas e o trabalho garantido. A notícia correu pelas encostas como um murmúrio de esperança. Settimo, ainda rapaz de dezessete anos, sem laços de matrimônio, aceitou seguir o irmão. Deixaria para trás a paisagem familiar das montanhas, o cemitério dos antepassados, a pequena igreja de Falcade onde fora batizado.

Em 1887, atravessaram a Itália em trem até o porto de Gênova, levando um baú de madeira e duas pequenas malas de couro, pão seco, queijo curado e as lembranças de uma vida inteira. No navio, uma travessia longa e penosa até Santos trouxe febres, enjoos e a saudade da terra natal. Mas ao pisarem no cais paulista, não houve tempo para contemplações. Junto de outras vinte famílias de emigrantes italianos, embarcaram no trem da Mogiana. O percurso pelos campos tropicais, sob um sol abrasador, mostrou um mundo radicalmente oposto às neves das Dolomitas.

Ribeirão Preto, destino final, era uma terra de horizontes planos, marcados por fileiras intermináveis de cafeeiros. A fazenda que os acolheu, imensa e isolada, impunha regras severas. Contratados por quatro anos, substituíam a mão de obra escrava recém-liberta. Logo compreenderam a realidade: a distância até a cidade tornava impossível buscar auxílio em caso de doença, e quando recebiam seus pagamentos, os colonos eram obrigados a deixar grande parte deles no armazém da própria fazenda, que, por ser o único existente, praticava preços elevados. 

Settimo, ainda franzino e sem a experiência do irmão, conheceu logo o peso do trabalho. As jornadas começavam antes do sol nascer e terminavam quando a lua já brilhava sobre os cafezais. O calor lhe queimava a pele, as mãos se cobriam de calos, e os pés, acostumados a trilhas de montanha, sangravam nos sulcos da terra vermelha. A fazenda era um universo fechado: não existiam médicos, remédios eram luxo, e a solidão corroía a todos.

Apesar disso, o jovem guardava uma força silenciosa. Ao lado de Giuseppe, de Chiara e dos sobrinhos — os meninos Lorenzo e Paolo, e a pequena Bianca —, sustentava-se na ideia de futuro. Aprendeu a manejar a enxada, a colher os grãos maduros, a suportar as longas fileiras sob o sol impiedoso.

Os anos no Brasil moldaram Settimo. Aos poucos, perdeu o aspecto de rapaz e se fez homem, com o corpo marcado pela labuta. Guardava, entretanto, um olhar profundo, herança das montanhas que o viram nascer. Cada dia resistido era também um tributo aos que haviam ficado em Sappade.

Quando o contrato de quatro anos terminou, a família não tinha muito mais que dívidas e fadiga. Mas Settimo já não era o mesmo. A miséria de Falcade havia ficado para trás, e diante dele se abria um novo caminho. Permaneceria no Brasil, na esperança de conquistar um pedaço de terra próprio, onde pudesse finalmente plantar não apenas para sobreviver, mas para viver.

A história de Settimo Manfrino confundia-se com a de milhares de italianos que trocaram as montanhas da Europa pelos cafezais do Brasil. Entre a beleza congelada das Dolomitas e a vastidão quente do interior paulista, sua vida se inscreveu como um testemunho da dureza e da perseverança de uma geração que buscou nos horizontes distantes aquilo que sua pátria não pôde oferecer.

Quando o contrato na fazenda expirou, Settimo Manfrino tinha pouco mais de vinte anos. Não possuía quase nada além das roupas gastas, algumas moedas mal guardadas e o corpo endurecido pelo esforço. Mas possuía também algo que não tinha ao deixar as Dolomitas: a certeza de que o Brasil seria sua pátria definitiva. Voltar não fazia parte de seus pensamentos.

Giuseppe, mais cauteloso, permaneceu na fazenda, aceitando novo contrato. Tinha mulher e filhos para sustentar, não podia arriscar. Settimo, livre de responsabilidades familiares, arriscou o passo seguinte. Juntou-se a outros colonos solteiros que haviam decidido tentar a sorte nos arredores das pequenas vilas que cresciam ao redor dos trilhos da Mogiana.

Foi trabalhar como meeiro em uma pequena plantações da região. Plantava milho e feijão trabalhando sem descanso, movido pela lembrança de sua terra natal, onde os campos pedregosos nunca lhe permitiram sonhar com algo além da sobrevivência. Ali, no interior paulista, a terra parecia infinita, vermelha e fértil, esperando apenas a persistência de quem a cultivasse.

Aos poucos, formou uma rede de amizades com outros imigrantes: vênetos, lombardos, piemonteses, cada um carregando seu sotaque e suas histórias de miséria deixadas para trás. Juntos construíam capelas improvisadas, partilhavam as festas religiosas, ajudavam-se nas colheitas. O Brasil os moldava, mas a Itália permanecia em seus gestos, na língua misturada e nas comidas que preparavam.

Em 1893, já com vinte e três anos, Settimo conseguiu sozinho arrendar um pequeno pedaço de terra. Foi o início de sua independência. O contrato era precário, mas para ele simbolizava vitória. O solo respondia ao esforço, e colheitas regulares lhe garantiam não apenas o sustento, mas algum lucro. Guardava cada moeda com disciplina, sonhando em comprar a própria gleba.

O tempo, no entanto, não era generoso. Febres tropicais rondavam os colonos. Muitos tombaram sem jamais ver cumprido o sonho de possuir terras. Settimo resistiu, ainda que debilitado em algumas temporadas. A lembrança da carta que lera em Ribeirão Preto — avisando sobre a falta de médicos e a solidão das fazendas — se confirmava ano após ano. Mas havia também uma energia nova, uma sensação de que aquele sacrifício poderia finalmente romper o ciclo de pobreza herdado.

No início da década de 1890, reencontrou a família do irmão Giuseppe. As crianças haviam crescido, Bianca já se tornava moça. A vida seguia dura para eles, ainda presos a contratos de fazenda, mas também sonhando com um futuro independente. A união entre as duas famílias tornou-se ainda mais forte. Juntos, arrendavam terras maiores, trocavam dias de trabalho, ajudavam-se a resistir às crises.

Foi nesse período que Settimo conheceu a filha de outro imigrante vêneto, vinda de Treviso. O casamento lhe trouxe estabilidade e, pouco depois, filhos que nasceram já em solo brasileiro. A vida mudava de rumo: da condição de colono sem nada, transformava-se em pequeno agricultor.

Em 1898, após mais de dez anos no Brasil, Settimo conseguiu comprar suas primeiras braças de terra, pagando com a economia de colheitas passadas. Era pouco, mas para ele equivalia a uma conquista histórica. Sobre o lote ergueu uma casa simples de madeira, coberta com telhas de barro que comprara na vila próxima. Ao redor, cercou o quintal, plantou frutas, levantou um pequeno galinheiro.

Os anos seguintes consolidaram a transformação. Settimo já não era apenas o rapaz de dezessete anos que chegara perdido e atônito à fazenda de Ribeirão Preto. Tornara-se um homem de respeito, conhecido entre os vizinhos pela coragem e pelo silêncio. Seus filhos corriam pelos cafezais, falando já mais português que o vêneto dos pais, sinal de que uma nova geração se enraizava naquela terra distante das montanhas dolomitas.

A memória da Itália permanecia como uma sombra distante. O frio de Sappade, as neves que cobriam os telhados, os campos estreitos e inférteis já não eram lembrados com dor, mas com uma melancolia suave. A vida agora estava no Brasil, e a terra vermelha, conquistada com suor e esperança, era a pátria real que ele escolhera.

Settimo Manfrino encerrou o século XIX como proprietário de seu próprio pedaço de mundo. Ainda pequeno, ainda modesto, mas conquistado com a dignidade de quem, ao atravessar o oceano, não levou consigo mais que o desejo de sobreviver.

O século XX encontrou Settimo Manfrino já como um homem feito, dono de um pequeno lote que conquistara com suor e disciplina. A casa de madeira, simples, tornara-se ponto de referência para vizinhos e parentes. O quintal era vivo: galinhas ciscavam soltas, pés de laranja e de goiaba cresciam junto ao cercado, e a horta fornecia milho verde, mandioca e feijão. O café, espalhado em linhas retas pelo terreno, começava a produzir com regularidade, transformando-se na base da renda familiar.

Sua esposa, mulher de temperamento firme, cuidava da casa e dos filhos, impondo uma ordem que lembrava a rigidez das vilas italianas. O sotaque vêneto ainda dominava dentro de casa, mas fora dela os filhos se adaptavam ao português, à escola improvisada na capela e ao convívio com outras famílias, algumas italianas, outras de imigrantes espanhóis e até de libertos que haviam recebido lotes pequenos.

Os filhos de Settimo cresceram entre as fileiras de café e os campos de milho. Aprendiam desde cedo a capinar, colher e transportar. Mas também traziam novidades: a leitura, ensinada por professores itinerantes, e a curiosidade pelo mundo além da colônia. Um deles sonhava em ser comerciante, outro falava em estudar na cidade, e a menina, ainda pequena, repetia o desejo de ser professora. Settimo observava essas mudanças com uma mistura de orgulho e estranheza. Na sua juventude, ninguém tivera escolha; o destino era apenas sobreviver ao frio e às pedras da montanha. Agora, seus filhos ousavam sonhar com horizontes mais largos.

A vida no interior paulista seguia dura, mas o tempo começava a recompensar os colonos. As ferrovias avançavam, as vilas cresciam, e o café transformava-se em ouro verde. Settimo, que começara como colono sem nada, agora vendia parte de sua produção a compradores que chegavam de trem, carregando o café em sacas até Santos. Cada safra bem-sucedida lhe permitia ampliar o lote, comprar ferramentas melhores e garantir uma reserva contra os anos ruins.

Por volta de 1910, Settimo já era considerado um pequeno proprietário respeitado. Não era rico, mas estava longe da miséria que marcara sua infância em Sappade. Os vizinhos o procuravam para conselhos, e os mais novos viam nele um exemplo de perseverança. A barba grisalha e o corpo curvado pelo trabalho davam-lhe uma presença austera. Ainda assim, carregava consigo uma serenidade que vinha da consciência de ter vencido a adversidade. 

Com o tempo, a comunidade italiana ao redor se organizou. Construíram igrejas maiores, fundaram sociedades de auxílio mútuo e até pequenas escolas mantidas pelos próprios colonos. As festas religiosas, como a de São José, reuniam famílias inteiras, que levavam vinho caseiro, polenta e queijos produzidos nos quintais. Nessas ocasiões, Settimo sentia novamente a Itália presente, não nas paisagens, mas nas vozes e gestos dos conterrâneos.

Os anos, porém, também cobraram seu preço. Epidemias de gripe e febre amarela rondaram a região. Settimo perdeu amigos, vizinhos e até parentes, lembrando-se sempre do aviso que ouvira décadas antes: as fazendas estavam distantes dos médicos, e muitas vezes a doença levava os mais fortes sem dar chance de resistência. Ele próprio enfrentou febres que o deixaram de cama, mas sobreviveu, sustentado pela robustez construída em anos de labuta.

Ao aproximar-se dos cinquenta anos, via os filhos trilharem caminhos próprios. Um se tornara tropeiro, transportando mercadorias entre vilas; outro abriu uma pequena venda, misturando português e vêneto com clientes brasileiros; a filha mais velha, como sonhara, tornou-se professora numa escola rural. Para Settimo, cada conquista deles era uma prova de que a travessia do oceano não fora em vão.

No fundo da memória, ainda guardava as imagens das Dolomitas cobertas de neve, da aldeia de Sappade onde nascera, dos campos pedregosos que nunca deram sustento. Mas agora essas lembranças não lhe traziam dor. Pelo contrário, davam-lhe a medida da distância percorrida. Do sétimo filho sem herança, condenado a um destino estreito, erguera-se um homem com terra, família e raízes fincadas em outra pátria.

Quando a primeira década do novo século terminou, Settimo Manfrino já podia olhar para trás e reconhecer: sua vida era o retrato de uma geração que abandonara a miséria da Europa para reinventar-se nas planícies tropicais. Não tivera facilidades, não fora poupado da dureza, mas alcançara aquilo que seus pais jamais imaginaram possível: um futuro.

As décadas de 1920 e 1930 trouxeram para Settimo Manfrino o tempo da colheita tardia da vida. Ele já passava dos cinquenta anos, os cabelos grisalhos se confundindo com o pó vermelho da terra, as mãos deformadas pelos calos de décadas de trabalho. Caminhava devagar entre os cafezais, apoiado num bastão, mas sua presença ainda impunha respeito entre os vizinhos. Era um dos colonos mais antigos da região, daqueles que haviam chegado quando Ribeirão Preto ainda não passava de uma promessa e a terra era apenas selva e lavoura bruta.

O café continuava sendo o sustento, mas o mundo ao redor começava a mudar. A ferrovia levava as sacas até Santos, os armazéns das vilas cresciam, e o dinheiro circulava com mais frequência. Alguns imigrantes prosperaram, tornando-se grandes fazendeiros. Settimo permaneceu como pequeno proprietário, fiel à rotina, sem jamais aspirar ao luxo. A ele bastava ter garantido terra para plantar, casa para os filhos e a segurança de que a miséria das Dolomitas não se repetiria em sua linhagem.

Na década de 1920, viu os filhos formarem famílias próprias. A filha professora mudou-se para uma vila maior, onde lecionava para crianças de diferentes origens — filhos de italianos, portugueses, espanhóis e brasileiros pobres. O filho comerciante ampliou sua venda, que já era ponto de encontro de toda a colônia, lugar onde notícias da Itália e do Brasil se misturavam em vozes altas e risadas. O tropeiro, inquieto como sempre, tornou-se carreteiro, transportando mercadorias entre fazendas e cidades. Cada um seguiu seu destino, mas todos retornavam nas festas religiosas e nos domingos de missa, quando a mesa da casa de Settimo voltava a encher-se de vozes e de pão.

O ano de 1929 trouxe um golpe inesperado. A crise econômica mundial derrubou o preço do café. Sacas inteiras foram queimadas ou lançadas fora, e os pequenos produtores viram o valor de sua produção se reduzir a nada. Settimo, já envelhecido, sofreu o impacto, mas resistiu com a mesma tenacidade de sempre. Plantou milho e feijão nos espaços entre os cafezais, garantiu comida antes de pensar em lucro. Os filhos o ajudaram a atravessar os anos difíceis, dividindo recursos e apoiando-se mutuamente. A pobreza ameaçou, mas não venceu.

Com a Revolução de 1930 e a instabilidade política, o interior paulista viveu tempos de tensão. Os colonos ouviam falar de conflitos e de mudanças nas cidades, mas no campo a vida seguia marcada pelo ritmo das colheitas. Settimo já não trabalhava como antes; suas forças haviam diminuído. Passava mais tempo sentado à sombra de um pé de jabuticaba, observando os netos correrem pelo quintal. O sorriso das crianças lhe trazia uma paz que não conhecera na juventude.

Naqueles anos, começou a recordar com mais frequência a aldeia de Sappade. Pedia aos filhos que lhe descrevessem novamente as cartas enviadas por parentes que haviam ficado na Itália. Lia nelas a fome e a guerra que ameaçavam a Europa, e sentia uma estranha mistura de tristeza e alívio. Tristeza por saber que sua terra natal continuava a sofrer; alívio por ter escolhido partir em 1887, garantindo aos seus uma vida diferente.

Ao final da década de 1930, Settimo já não saía mais de casa com frequência. Caminhava pouco, falava menos, mas ainda tinha nos olhos o brilho dos que sabem que venceram a luta essencial da vida. Vivia cercado de filhos e netos, cada um carregando nos gestos uma parte da Itália que ele trouxera consigo.

Quando morreu, por volta de 1938, aos sessenta e oito anos, a comunidade inteira se reuniu. O corpo foi velado na capela erguida pelos imigrantes, e a missa atraiu colonos de todas as redondezas. Muitos o consideravam símbolo de uma geração que atravessara o oceano sem nada e deixara no Brasil raízes profundas. Sua sepultura, simples e de cruz de madeira, foi coberta por coroas de flores trazidas pelos vizinhos e parentes.

Settimo Manfrino partira, mas sua vida já estava impressa no solo vermelho do interior paulista. Os filhos e netos dariam continuidade ao que ele começara, misturando o sangue das Dolomitas ao destino brasileiro. A travessia de 1887, feita por um rapaz franzino de dezessete anos, agora se revelava como o marco fundador de uma nova linhagem. Entre as montanhas pedregosas da Itália e os cafezais do Brasil, Settimo construíra uma ponte eterna.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta


terça-feira, 29 de julho de 2025

La Promessa de ‘na Tera Nova

 


La Promessa de ‘na Tera Nova


Capìtolo Primo — El Destin Scelto

Quando che Gabriele Montanari lu el ze montà su el vapor a Génova, el cielo zera scuro e pesante, come se el mar e el cielo i gavea fato un pato de silénsio. La so mòier, Donata, la ghe tegneva streto el brasso, e i so do fiòi, Luisa e Pietro, i se grapava al so tabaro come se no volesse lassarla ´ndar.

Ma Gabriele el no podea esità. Gavea trentoto ani e do ètari de tera rovinà da dèbiti, da i granai falì e da le brose tardie. L’Itàlia nova unita parlava de libartà, ma portava solo misèria. Quando el sentì parlar de la "tera del cafè", del "Brasil", che pagava con schei veri par i brassi forti, no el ga pensà do volte. El se ga metesto assieme con altri de la so contrà — i Pedersoli, i Barlandi — e lu el ze partì.

Soto ´ntel fondo scuro del vapor Ester, la traversia no la zera solo un viaio tra continenti, ma un lento batèsimo de sal, paura e rassegnassion. Le taole del barco spiatolava come se protestasse ogni volta che l’Atlántico le sbatea contro, e el odor grosso de sudor, de gòmito e de aqua màrcia ghe entrava ´ntel naso come ‘na maledission che no se podea cavar via.

Par zorni sensa fin, el dondolar del barco rivoltava el stómego; i òmeni curvà in silénsio, le done che pregava con i oci smarì, e i putei che pianseva ´ntel scuro, sensa capir parché el mondo zera diventà cusì streto e ùmido. Le bote de àqua, che a l’inìsio pareva la salvessa, presto le spandèa un odor rancido mescolà con la marésia de legno fradìcio.

La morte, discreta come ‘na bavesa de ària, la passava tra i corpi. No vegniva con i gridi, ma con el silénsio de chi che no respirava pì. De matina, do marinai rivava con ‘na tela strassà. I incartava el corpo sensa tante stòrie, come se fusse un peso qualsiasi, e lo butava in mar con l’indiferensa de chi che el ga za fato quela roba par dessene de volte. El son del corpo che cascava in àqua — un tonfo muto, e po’ un silénsio eterno — zera un capìtolo che no se scrivea, ma che restava drento.

Gabriele, disteso sora ‘na tola che serviva da leto, el scrivea tuto con le man tremanti. Gavea poco pì de vente ani, i oci cavà da la febre e la barba che ghe copriva la facia zòvene. Ogni pàgina del so quaderno zera un refùgio e ‘na resistensa. El segnava i nomi, le date, le impression, el odor de le onde, el nùmaro de putei che no rivava a finir la setimana. El scrivea come chi che no vol èsser desmentegà.

El zera convinto che la so stòria — quela traversia, quel inferno che flutoava, quela speransa picinina in meso al abìsso — un zorno la sarìa servida. Magari par qualcuno, in futuro, par saver che i ghe zera stà. Che i gavea vissù. Che i gavea sonià ‘na tera dove la fame no gira scalsa.

Quando i rivò a Santos, in zenaro del 1889, i ze sbarcà come èbri, barcolando. Ma el peso dovea ancora rivar. I ga portà tuti in quel che i ciamea la "Hospedaria dos Imigrantes", un gran capanon pien de leti de legno, con odor de disperassion e oci persi che no savea ‘ndove vardar.

Lì, Gabriele lu el ga imparà a tacer. Zera pì sicuro.

Capìtolo Secondo — La Màchina de la Speransa

La sorte, questa vècia baldraca caprissiosa, la ga soriso ai Montanari. I ga stà mandàa a la fazenda Santa Apolonia, ´ntel interno de la provìnsia de San Paolo, invece che in le tera lontan dove tanti — come i Bonfiglioli — i spariva sensa pì scrivar gnente a casa.

La fazenda zera un mondo isolà, serà in sé stesso come un corpo antico che no vol morir, e lì comandava la volontà de un omo solo: el baron Giacomo Ferraz de Mello. El portava ancora el tìtolo come se valesse qualcosa, anca se tuti savea che la so fortuna la se sgretolava ano dopo ano. Zera un omo de moda elegante e parole teatrali, ma con i oci furbi. E da quei oci el tirava fora el poco potere che ghe restava. No fasea gnanca un passo falso. Ogni gesto, ogni òrdine, ogni contrato, gavea el guadagno come spina dorsal. La carità, par lù, zera un lusso da borghesi — e el lusso, da tempo, no ghe entrava pì ´nte le spese.

El laoro par i coloni zera ‘na màchina grossa, sorda a ogni pietà. Sota el sol che spacava la tera come pele seca, i piantava cafè fin che i diti i se induriva come radisa. Quando el vento no spirava, el calor vegniva su da tera come ‘na muràia invisìbile. E quando spirava, el portava zanzare, che i spetava tra i canavéi — ‘na cortina verde ndove l’ària zera stròsa e la pele zera sempre rossa. El tàio de la cana zera un laor da ciechi, con el sudor che scolava mescolà con el sangue, e la pena zera pì constante che l’ombra.

El ciamava quel sistema “colonato”, come se el nome bastasse par darghe un senso de libartà e contrato giusto. Ma Gabriele, atento, lùcido come ´ntel fondago del vapor, el gà capì sùito la verità: zera solo ‘na cornice nova par ‘na tela vècia. Un sistema travestì, adomesticà da le parole, ma che respirava ancora con la boca de la servitù.

No ghe zera catene, ma ghe zera dèbiti. No ghe zera senzale, ma ghe zera paura. E el tempo, che dovea portar progresso, lì lo rifasea solo con altre bandiere.

El pagamento vegniva in boni che se podea spender solo ´ntel spàssio de la fazenda — ndove tuto custava el dòpio. El magnar? Riso sensa gusto, polenta mole, e zorni sensa pan. E ancòi, Gabriele ringraziava. Zera mèio che morir de fredo a Modena.

Quel che no contava ai putei zera che tanti òmeni scampava de note, con la febre, pien de morse de bèstie che el no gavea mai visto. Altri, i moriva. E i morti no tornava mia in Itàlia — tornava solo i so nomi.

Capìtolo Terzo — Parole che Traversea l’Osseano

El 14 de febraro, sentà al’ombra de un capanon, Gabriele el scrivè a so amigo Carlo, che zera ancora in Itàlia. El ga scrito parole con el peso che le meritava. No le fasea bela. El ga contà la pena de chi che rivava, la crudeltà dei alogi, la fame che scavava i visi.

Ma el ga contà anca ‘na picinina vitòria: lù e i Pedersoli gavea laoro. Guadagni bassi, sì — ma veri. E el prometè de mandarghe schei a la mama, anca se solo pochi milréis, par far capir che el gera ancora vivo.

No el ga contà bale. Ma no el ga contà gnanca tuto.

El tegnìa in silénsio el pianser de Donata quando i ga sepeli un visin italian in un cimitero poareto. El ga tacà el timor che i fiòi i cressesse parlando brasilian e la Italia restasse solo ‘na memòria. Parché un omo el se difende no solo con i mùscoli, ma anca con el silénsio.

Capìtolo Quarto — El Tempo che Pianta le So Piantine

I ani i passava come i treni che traversava le campagne paoliste: veloci par chi i varda da lontan, ma lenti e duri par chi el ze drento, sentando ogni sossol.

In tel 1894, Gabriele e Donata i gavea conquistà in ‘na citadina che nasseva da banda de la fazenda, quel che prima pareva un sònio lontan: sinque alquere de tera pròpria, pagà a rate, segnà con steche piantà con forsa ´ntel suolo rosso. Lì, ndove el bosco odorava ancora de abandono, i ga taià radisa con le man, butà zo àlbari con la manara e la testardessa, e falo nàsser i primi pianti de mango, naransa e verdure.

No zera ‘na proprietà, zera un pato. Ogni solco costava un zorno de mal de schena; ogni pianta, ‘na sfida a la seca, ai inseti o ai pressi del marcà. Ma la zera soa. Par la prima volta, la tera soto i piè no la rispondea a el comando de nissun altro. E in quela conquista muta — sensa ini ne anca bandiere — ghe zera pì dignità che in tute le medàlie del mondo.

Luisa la se ga sposà con un altro fiol de emigranti, un certo Vittorio Bianchi. Pietro volèa studià, sognava de farse mèdico — o giornalista ma, mancava i soldi.

La lètara de Gabriele la restò drento ‘na cassa de legno. Ma la so stòria la continuò. Noel ze mai tornà in Itàlia. No el ga mai bevù quel spumante che i gavea promesso. Ma de sera, con el caldo, el se sentava in veranda a vardar le stele, e el diseva:

“Là, da l’altra banda, ghe ze Modena. Ma qua… qua la ze ndove mi go piantà la mia vita.”


Nota de l’Autor

Sto libro "La Promessa de ‘na Tera Nova" el ze nassesto da la voia de dar vose a chi che quasi mai se conta tra le pàgine de la Stòria. Òmeni e done che i ga traversà un ocean con pì paura che certeze, pì fame che robe, e che, anca cusì, i ga avù el coraio de creder che ´ntel mondo ghe zera un posto ndove i so fiòi i podèa crèsser lìbari — anca se lori, forse, no sarìa mia stà davero lìbari.

Par ogni parola scrita, mi go provà de ricordarme che i nùmari fredi dei registri de l’emigrassion i scondea stòrie calde de carne, sudor e pérdita. Le statìstighe no sente mia la fame. No le tremola ´ntel fondago de un vapor. No le sepolta i fiòi ´ntela foresta calda del Brasil. Ma chi che la ga vivesto ‘sta traversia, la ga sentì tuto — e la ga lassà, anca sensa voler, ‘na trassia invisìbile ´ntel paese che el ga aiutà a costruì

Sto libro no el ze mia ‘na biografia precisa, gnanca ‘n tratato stòrico. Lu el ze un tentativo de scoltar el silénsio de le generassion che le ga rivà prima de noialtri. De vardar, tra le rughe dei visi desmentegà, la coraio testarda de chi che la ga costruì case dove prima ghe zera solo boschi, cesete ndove prima ghe zera paura, e scole ndove prima ghe se sentiva solo el colpo de la manara.

Se in qualche momento ti, letor, te senti el odor del cafè novo adesso colto, te senti el scrichiolar de un careto de bo, o te senti un nodo in gola pensando a quel che i ga lassà indrio… alora ‘sta stòria — che la ze inventà, sì, ma anca memòria — la ga fato el so dover.

Con gratitùdine e rispeto,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A História de Francesco Bernardel


 

A História de Francesco Bernardel

Francesco Bernardel, um agricultor italiano de origem humilde, embarcou rumo ao Brasil em busca de um futuro melhor. Deixando para trás as colinas da província de Treviso, ele viajou com sua esposa, Maria, e seus dois filhos pequenos, Pietro e Rosa. Seu destino era São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde terras férteis e promessas de trabalho pareciam ser a solução para a miséria que enfrentavam na Itália.

Ao chegar à Casa do Imigrante, Francesco deparou-se com uma realidade caótica. O local estava abarrotado de famílias de diversas regiões da Itália, todas ansiando por uma oportunidade. Foi ali que ele testemunhou uma revolta. Descontentes com as condições precárias e a péssima alimentação, os imigrantes se rebelaram, atirando comida pela janela e forçando a intervenção de militares. Embora ninguém tenha se ferido, o episódio marcou profundamente Francesco, deixando claro que o caminho para a tão sonhada prosperidade seria repleto de desafios.

Após dias turbulentos, a família Bernardel foi encaminhada a uma fazenda de café administrada por um italiano de nome Giovanni Toffel. Ali, junto a outras seis famílias, começaram a trabalhar nos campos. As condições eram duras: mato alto, calor intenso e um salário que mal cobria as necessidades básicas. No entanto, Francesco encontrou consolo na solidariedade entre os colonos e na gentileza do administrador, que fazia o possível para prover alimento e moradia dignos.

O dia a dia era exaustivo, mas havia momentos de encanto que davam sentido ao esforço. Francesco maravilhava-se ao contemplar as colinas cobertas de cafezais, com os grãos brilhando como pequenas joias sob o sol. "Se o senhor pudesse ver a maravilha que é uma colina de café!", escreveu ele em uma carta ao professor que havia deixado na Itália.

A casa onde moravam era simples, feita de madeira tosca e coberta por velhas telhas de barro cozido, mas oferecia um conforto inesperado. Todo sábado, um porco era abatido e sua carne distribuída entre as famílias, um luxo que Francesco nunca havia experimentado em sua terra natal. No entanto, as saudades da Itália permaneciam como uma sombra constante, especialmente nos dias de festa religiosa, quando a distância da igreja e a falta de sacerdotes limitavam as celebrações.

Com o passar dos anos, Francesco tornou-se um exemplo de resiliência. Ele adaptou-se às peculiaridades do cultivo local, aprendendo a armazenar milho com palha para prolongar sua durabilidade e a lidar com as intempéries tropicais. Maria, por sua vez, cuidava da horta e das crianças, enquanto ensinava Pietro e Rosa sobre as tradições italianas, na esperança de que não esquecessem suas raízes.

Apesar das dificuldades, a família Bernardel prosperou. Pietro cresceu e tornou-se um hábil carpinteiro, ajudando a construir casas para novos imigrantes. Rosa, com sua voz doce, tornou-se a principal cantora das festas da colônia, unindo italianos e brasileiros em celebrações que simbolizavam a fusão das culturas.

Francesco nunca deixou de escrever para seu antigo professor, relatando suas vitórias e desafios. Ele sabia que muitos imigrantes não tinham tido a mesma sorte, mas sentia-se grato por ter encontrado um lugar onde o trabalho árduo era recompensado. Em uma de suas últimas cartas, escreveu: "Aqui, nesta terra distante, encontrei algo que a Itália não pôde me dar: a oportunidade de recomeçar. Embora as saudades sejam imensas, construímos um lar, e isso é um tesouro que nenhum oceano pode apagar."

Francesco Bernardel tornou-se um símbolo de coragem e perseverança, representando os milhares de italianos que, com suor e sacrifício, ajudaram a moldar o Brasil. Sua história, como tantas outras, é uma prova de que mesmo nos momentos mais difíceis, a esperança pode florescer e transformar vidas.


Nota do Autor

Escrever A História de Francesco Bernardel foi uma jornada de exploração das raízes da coragem humana e da força que nos move em direção ao desconhecido em busca de uma vida melhor. Inspirada pelos relatos de imigrantes italianos que atravessaram o Atlântico no final do século XIX e início do XX, esta narrativa pretende homenagear não apenas Francesco e sua família fictícia, mas também os milhares de homens, mulheres e crianças que enfrentaram adversidades para construir um novo lar no Brasil. A história de Francesco Bernardel reflete a realidade de muitos italianos que deixaram para trás suas aldeias, suas tradições e até mesmo familiares queridos para enfrentarem o desconhecido. É também uma homenagem às esperanças e aos sacrifícios de pessoas que encontraram nas terras brasileiras um novo começo, mesmo quando os desafios pareciam intransponíveis. Minha intenção foi capturar não apenas os fatos históricos, mas também as emoções e os dilemas internos de quem viveu esse processo de deslocamento e adaptação. Desde o caos das Casas do Imigrante até a dureza das fazendas de café, A História de Francesco Bernardel é um retrato de resiliência, solidariedade e reinvenção. 

Que este livro sirva como um lembrete de que as histórias dos imigrantes não pertencem apenas ao passado, mas continuam a moldar o presente e o futuro. E que cada leitor encontre em Francesco Bernardel uma inspiração para acreditar que, mesmo diante das maiores dificuldades, a esperança e o trabalho árduo podem transformar vidas.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O Destino de Vittorio Belomonte


O Destino de Vittorio Belmonte


Na fria alvorada de 2 de julho de 1904, Vittorio Belomonte fechou a pequena mala de couro que sua mãe havia lhe dado e, com um último olhar para a casa onde crescera, saiu sem olhar para trás. O destino o chamava.

Nascido em 1882, em um vilarejo esquecido nas montanhas do Friuli, Vittorio passara a juventude trabalhando nos bosques, cortando lenha para senhores que nunca lembravam seu nome. Seu pai, Giovanni, morrera cedo, deixando a mãe e três irmãos na miséria. A fome tornara-se uma sombra constante, e, à medida que os anos passavam, Vittorio percebeu que seu destino não estava ali, mas além-mar.

A viagem até Longarone foi silenciosa. Seus companheiros, jovens de sua vila, compartilhavam a mesma melancolia. O condutor da carroça bradou impaciente para que subissem, e um nó apertou a garganta de Vittorio. Com um último olhar melancólico, ele contemplou seu vilarejo: as casas de pedra aconchegadas umas às outras, como se buscassem calor, e as montanhas imponentes ao fundo, seus picos eternamente coroados de neve. O vento gelado trouxe o cheiro da terra úmida e da lenha queimada nas lareiras. Vittorio suspirou fundo, gravando aquela imagem na memória.

Em Longarone, pegou seus documentos para deixar o país e seguiu para Veneza. As ruas estreitas e os canais da cidade lhe pareceram um outro mundo. Mas não havia tempo para contemplação. O passaporte foi carimbado, e, com os trocados que tinha, comprou pão, salame e um frasco de vinho, o suficiente para a jornada. Quando o trem para Gênova chegou, ele embarcou sem hesitação. Não havia mais volta.

A Estação de Gênova fervilhava de emigrantes, um turbilhão de rostos ansiosos e mãos calejadas segurando malas gastas pelo tempo. Homens e mulheres, vestidos com suas melhores – e muitas vezes únicas – roupas de viagem, deslocavam-se em meio à multidão, esbarrando-se sem querer, trocando olhares de cumplicidade e medo.

Poucos tinham dinheiro suficiente para um hotel decente, então amontoavam-se em uma pequena estalagem de teto baixo e paredes úmidas, escondida em uma viela sombria perto do porto. O lugar era abafado, impregnado pelo cheiro de suor e peixe salgado, e os murmúrios dos hóspedes misturavam-se ao ranger do assoalho gasto. Todos temiam os perigos daquela cidade portuária, onde golpistas e ladrões rondavam como lobos à espreita de presas fáceis. Qualquer descuido e o pouco que possuíam poderia desaparecer em um instante.

Ainda assim, mesmo em meio à incerteza, havia um sentimento pulsante no ar: a promessa de um novo começo, a esperança de um destino melhor do outro lado do oceano. A tensão e a expectativa eram quase palpáveis, como a eletricidade antes de uma tempestade.

Vittorio dividiu um quarto apertado e mal ventilado com outros três friulanos. Os beliches rangiam a cada movimento, e o cheiro de mofo misturava-se ao odor de corpos cansados e roupas úmidas. O sono veio apenas em fragmentos inquietos, interrompido pelo barulho da cidade que nunca dormia e pelo medo latente do que estava por vir.

Ao amanhecer, espreguiçaram-se sob a luz fraca que se infiltrava pelas frestas da janela e, sem muito a fazer além de esperar a hora do embarque, decidiram explorar a cidade. Caminharam pelas ruelas estreitas de Gênova, onde vendedores gritavam ofertas em dialetos diversos e carroças espirravam lama nos transeuntes. O cheiro de pão recém-assado se misturava ao odor forte do porto, onde o mar e o suor dos estivadores se fundiam em uma atmosfera pesada.

Então, ao dobrarem uma esquina, a visão do vapor Regina Elena os fez parar. Ele estava ancorado no cais, imenso e imponente, como um colosso de ferro e vapor. Suas chaminés erguiam-se como torres de um castelo flutuante, e a madeira dos conveses reluzia sob o sol da manhã. Para Vittorio, o navio era uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo. Dentro dele estava seu futuro, sua esperança e também o medo do desconhecido.

Por um instante, o mundo ao redor pareceu silenciar. O burburinho dos estivadores, o ranger das cordas sendo puxadas, até mesmo o tilintar das moedas nas mãos dos vendedores ambulantes — tudo pareceu distante, abafado, como se o tempo tivesse parado.

Vittorio sentiu o coração bater pesado no peito. O gosto salgado do ar encheu seus pulmões, misturado ao cheiro de carvão queimado que escapava das entranhas do navio. O Regina Elena estava ali, gigantesco, como um portão entre dois mundos — o passado que ele deixava para trás e o futuro incerto que o aguardava.

Engoliu em seco. Não havia mais volta. A Itália, sua terra, sua infância, seus bosques familiares e os rostos que jamais voltaria a ver... tudo ficaria para trás no momento em que ele pisasse naquele convés. A única direção agora era para frente.

No dia 29, Vittorio pagou a passagem e submeteu-se à rigorosa inspeção médica. Os oficiais o examinaram com olhares frios e mecânicos, apalpando-lhe os braços, verificando seus dentes, como se avaliassem a resistência de um animal de carga. Foi vacinado com uma agulha áspera e sem cerimônia, sentindo a ardência do líquido em sua pele. Cortaram-lhe os cabelos sem cuidado, deixando fios grossos caírem sobre seus ombros como vestígios da vida que abandonava. Seus pertences foram revistados por mãos desconhecidas, que reviraram sua mala como se buscassem algo de valor escondido.

A noite anterior ao embarque foi longa e inquieta. O quarto apertado da decadente estalagem estava impregnado pelo cheiro de suor e mofo, o colchão fino não oferecia conforto algum. Ele escutava a respiração pesada de seus companheiros de quarto — roncos intermitentes, murmúrios febris de sonhos turbulentos — misturados ao som distante das ondas quebrando contra as pedras do porto. Cada rajada de vento que entrava pela janela mal fechada trazia o cheiro salgado do mar, lembrando-o de que, dali a poucas horas, sua vida mudaria para sempre. 

Na manhã do dia 30, Vittorio caminhou até o porto com passos firmes, mas o coração acelerado. O cais fervilhava de gente. Homens gritavam ordens em dialetos diversos, carregadores passavam apressados equilibrando malas e fardos pesados nos ombros, e crianças agarravam-se às saias das mães, assustadas com a confusão ao redor. O cheiro do mar misturava-se ao de carvão queimado e peixe fresco, formando uma névoa espessa de sal e fuligem que pairava no ar.

Antes de seguir para o embarque, Vittorio comprou alguns limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e, apoiando-se em um caixote de madeira, escreveu uma última carta para a família. Escolheu as palavras com cuidado, tentando transmitir esperança, embora o peso da despedida lhe apertasse o peito.

A fila para embarque serpenteava pelo cais, arrastando-se lentamente como uma procissão de almas ansiosas. Os funcionários da companhia de navegação verificavam documentos com olhares indiferentes, enquanto os passageiros aguardavam sob o sol escaldante, segurando seus pertences com desconfiança. Quando chegou sua vez, Vittorio foi submetido a mais uma inspeção, os olhos atentos dos agentes percorrendo seu rosto e suas roupas como se buscassem algo suspeito.

Por fim, um funcionário lhe entregou um número rabiscado em um pedaço de papel sujo e indicou a entrada do navio. Descendo por corredores estreitos e abafados, iluminados apenas por lampiões oscilantes, Vittorio finalmente encontrou sua beliche: um espaço exíguo, onde mal cabia deitado. O colchão fino era pouco mais que um pedaço de pano gasto sobre tábuas duras, e a manta áspera cheirava a mofo. Ele se sentou devagar, sentindo o metal gelado da estrutura contra as mãos trêmulas.

Lá fora, os apitos soaram longos e solenes. A terra firme começava a se afastar. Pouco depois do meio-dia, soaram três apitos longos. As cordas foram soltas. O vapor Regina Elena moveu-se lentamente, afastando-se do porto. O barulho das despedidas ecoava no ar. Mães choravam, pais levantavam os chapéus, crianças acenavam sem entender. A bordo, Vittorio e seus companheiros retribuíam o gesto, engolindo as lágrimas. O hino real tocava, seguido pela Marcha Garibaldi. Uma pequena banda saudava aqueles que partiam, soldados de um exército invisível em busca de uma vida melhor.

Os primeiros dias foram um teste de resistência. No porão apertado onde dormia, o ar era denso, carregado do cheiro acre de suor, mofo e vômito. O calor sufocante tornava o ambiente ainda mais insuportável, e o balançar incessante do navio fazia com que muitos passageiros passassem mal. O som dos gemidos de náusea e da tosse seca de crianças doentes preenchia a escuridão.

A comida era pouca e sem sabor: pedaços de pão endurecido, caldo ralo que mais parecia água suja e, ocasionalmente, um punhado de batatas cozidas. As filas para receber as rações eram longas, e os mais fracos frequentemente ficavam sem nada.

Mas Vittorio resistia. Ele se recusava a ceder à fraqueza, mantendo a disciplina que aprendera nos campos de sua terra natal. Durante o dia, sempre que podia, escapava do porão e subia ao convés. Lá, o vento salgado refrescava sua pele, e a visão do oceano infinito lhe dava a ilusão de liberdade. Ficava horas observando as ondas, tentando ignorar o estômago vazio e a saudade crescente.

À noite, quando finalmente conseguia dormir, sua mente o levava de volta a Friuli. Sonhava com os bosques úmidos após a chuva, com o cheiro da terra revirada pelo arado, com a voz de sua mãe chamando-o para a ceia. Mas, ao acordar, tudo o que via eram paredes de ferro corroídas pelo tempo e corpos exaustos amontoados ao seu redor. A viagem mal havia começado, e já parecia uma eternidade.

No décimo quinto dia de viagem, o oceano, antes calmo, se transformou em um monstro furioso. O céu escureceu de repente, como se a noite tivesse caído em pleno dia. O vento uivava entre os mastros, e trovões ribombavam sobre as águas agitadas. Quando as primeiras ondas colossais atingiram o casco do Regina Elena, o navio estremeceu como se fosse feito de papel.

No porão, o terror tomou conta dos passageiros. Cada balanço da embarcação lançava corpos contra as paredes de ferro. Gritos se misturavam ao estrondo das ondas. Algumas mães, apavoradas, agarravam os filhos contra o peito e rezavam baixinho. Outros simplesmente choravam, sem forças para reagir.

Vittorio segurava-se como podia, os dedos crispados na borda da beliche. Um homem ao seu lado foi jogado ao chão e bateu com a cabeça em uma viga. O sangue se espalhou pelo assoalho de madeira, mas ninguém teve tempo de socorrê-lo. Tudo o que importava era sobreviver àquela noite interminável.

Lá fora, o mar tentava engolir o Regina Elena. Ondas monstruosas varriam o convés, levando caixas, barris e qualquer coisa que não estivesse presa. Tripulantes gritavam ordens que ninguém conseguia ouvir, enquanto lutavam para manter o navio no curso.

Então, tão repentinamente quanto começou, a tempestade passou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do mar ainda revolto e dos soluços abafados no porão. O estrago era visível. Malas e roupas encharcadas espalhavam-se pelo chão, alguns passageiros estavam feridos, outros simplesmente paralisados pelo medo.

Mas o Regina Elena seguia firme. E com ele, os sonhos e as esperanças de centenas de almas que, apesar de tudo, ainda acreditavam em um futuro melhor.

No vigésimo quinto dia de viagem, um burburinho se espalhou pelo convés. Terra à vista! Vittorio correu para olhar. No horizonte, uma linha escura tomava forma, crescendo a cada minuto. O porto de Santos emergia da névoa matinal como uma miragem, um amontoado de galpões, mastros de navios e telhados vermelhos, cercado por colinas cobertas de vegetação densa. O cheiro salgado do mar começou a se misturar com algo novo: um aroma quente e pesado, de madeira úmida e café.

Conforme o Regina Elena se aproximava do cais, a agitação tomava conta dos passageiros. Alguns se benziam, outros choravam, abraçados. Homens seguravam seus chapéus contra o vento, mulheres ajeitavam os lenços e roupas amarrotadas. Os tripulantes gritavam ordens em italiano, tentando conter o tumulto, enquanto barcaças carregadas de sacas de café passavam ao lado, guiadas por remadores morenos de olhar curioso.

Quando finalmente desceram a rampa de desembarque, uma onda de calor pegajoso os envolveu. Vittorio sentiu o suor escorrer pelas costas enquanto tentava respirar aquele ar novo, carregado de umidade. O idioma ao redor soava como uma cacofonia incompreensível—ordens gritadas, risadas, discussões entre trabalhadores portuários. Ele mal teve tempo de assimilar o choque antes de ser empurrado junto com os demais imigrantes para um dos galpões imensos ao lado do porto.

Lá dentro, o cheiro de corpos suados e roupas molhadas tornava o ambiente ainda mais sufocante. Filas se formavam diante dos funcionários, que verificavam documentos, assinavam papéis, apontavam direções. Alguns homens, de pele bronzeada e olhar avaliador, caminhavam entre os recém-chegados, observando-os como se escolhessem mercadoria.

— Café! Todos para o interior! — bradou um deles em italiano rudimentar.

Vittorio engoliu em seco, sentindo o peso da incerteza apertar-lhe o peito. Não havia tempo para contemplação, nem espaço para hesitação. A engrenagem da imigração girava sem pausas, empurrando-os inexoravelmente para o próximo destino.

A exaustão da viagem ainda pesava nos corpos dos recém-chegados, mas ninguém se atrevia a reclamar. Homens de rostos severos davam ordens rápidas, chamando nomes, apontando direções. Vagões de trem, de madeira escura e janelas gradeadas, aguardavam na linha férrea próxima ao galpão. O cheiro de ferro e óleo queimado se misturava ao calor abafado da manhã tropical.

Vittorio sentiu um nó no estômago ao avistar as composições que os levariam para o desconhecido. Onde dormiria naquela noite? O que encontraria no fim daquela jornada?

O aviso veio curto e seco:

— Para os trens! Movam-se!

Ele pegou sua pequena trouxa e avançou com os demais, passos hesitantes no solo quente do novo mundo. Já não havia mais navios, nem mar. Apenas terra firme e um destino incerto.

Não havia mais volta.

Com uma mala de couro gasta e um coração pesado de incertezas, Vittorio seguiu em frente, empurrado pelo fluxo implacável dos recém-chegados. Atrás dele, a Itália se tornava apenas uma lembrança distante, um mundo ao qual jamais retornaria da mesma forma.

O chão de terra batida rangia sob suas botas, o calor escaldante grudava em sua pele. À sua volta, imigrantes caminhavam em silêncio, carregando sacos e baús, os rostos marcados pela fadiga e pela expectativa. Cada passo era um salto no desconhecido.

No Brasil, um novo capítulo se abria diante dele—não por escolha, mas por necessidade. O que o aguardava além da estação de trem? Campos intermináveis de café? Trabalho árduo sob o sol impiedoso? Ou talvez, quem sabe, a promessa de uma vida digna, algo que a terra natal lhe negara?

A única certeza era que não havia caminho de volta.

Vittorio mal teve tempo de se recuperar da exaustiva travessia. Assim que desembarcou em Santos, foi rapidamente selecionado e encaminhado para o interior de São Paulo, onde um fazendeiro necessitava de trabalhadores para sua vasta plantação de café. A viagem de trem foi longa e desconfortável, o vagão de madeira sacolejando sobre os trilhos enquanto o calor e o cheiro de suor tornavam o ar quase irrespirável.

Quando finalmente chegou à fazenda, nos arredores da emergente Ribeirão Preto, foi recebido com poucas palavras e um olhar avaliador. Ali, o trabalho não fazia concessões. Antes mesmo do sol despontar no horizonte, já estava nos cafezais, arrancando os grãos vermelhos sob um calor implacável que fazia sua camisa grudar no corpo. Os cestos se enchiam rápido, e logo vinham os sacos pesados, que ele e os outros imigrantes carregavam até os secadores. Os ombros ardiam, as mãos se cobriam de calos, mas não havia descanso.

A barreira da língua o isolava no início. O português soava rude, estranho, como um código indecifrável. Mas, entre ordens gritadas e murmúrios trocados à sombra dos cafezais, Vittorio começou a entender. Aprendia com os outros imigrantes, muitos deles tão perdidos quanto ele. E, pouco a pouco, o desconhecido tornava-se familiar.

Os anos se passaram, marcados por trabalho árduo e sacrifícios silenciosos. Vittorio economizava cada tostão, recusando-se a gastar com qualquer coisa que não fosse essencial. Dormia pouco, comia o suficiente para se manter de pé e sonhava com o dia em que teria sua própria terra. A ideia de ser dono do próprio destino era o que o fazia resistir.

Em 1910, esse dia finalmente chegou. Com o que havia juntado, arrendou uma chácara nas proximidades de Araraquara. Não era grande, nem rica, mas era sua. A terra, escura e fértil, prometia sustento, mas cobrava um preço alto. Trabalhar sozinho significava acordar antes do sol e seguir até a última luz do dia, preparando o solo, plantando, colhendo. A cada estação, enfrentava novos desafios: a fúria das chuvas tropicais que castigavam as lavouras, as pragas traiçoeiras que ameaçavam destruir meses de esforço.

Mas Vittorio aprendeu. Observava os fazendeiros mais experientes, testava métodos, enfrentava as falhas e tentava de novo. Cada safra era uma lição. Cada derrota, um aprendizado. Seus calos engrossavam, suas costas se curvavam sob o peso do trabalho, mas, junto com o cansaço, crescia também a convicção de que, naquela terra, fincaria suas raízes.

O sucesso veio devagar, como a germinação das mudas que plantava. Primeiro, conseguiu comprar uma carroça, o que lhe permitiu levar sua colheita diretamente ao mercado. Depois, contratou ajudantes, homens tão determinados quanto ele, que viam no café uma chance de prosperar. A pequena chácara transformou-se em uma propriedade produtiva, e os sacos de grãos empilhavam-se na varanda antes de seguirem para a venda.

Em 1915, quando finalmente sentiu que havia construído algo sólido, casou-se com Maria, filha de um imigrante calabrês. Ela trazia no olhar a mesma resiliência de quem cruzara o oceano em busca de uma vida melhor. Juntos, trabalharam lado a lado, expandindo as plantações e cuidando da terra como se fosse um membro da família.

Com o tempo, a propriedade deixou de ser apenas um campo de cultivo e tornou-se um lar. Seus três filhos cresceram correndo entre os cafezais, os pés descalços tocando o solo que ele tanto lutou para conquistar. O som das risadas infantis misturava-se ao canto dos pássaros e ao farfalhar das folhas ao vento. Ali, no coração do Brasil, Vittorio não era mais apenas um imigrante. Tornara-se parte da terra que o acolheu.

Nos anos seguintes, o suor de Vittorio se transformou em prosperidade. Sua pequena fazenda expandiu-se além do que ele jamais imaginara. Com paciência e estratégia, adquiriu terras vizinhas, uma a uma, até tornar-se um dos maiores fornecedores de café da região. O aroma dos grãos recém-colhidos impregnava o ar, misturando-se à promessa de um futuro cada vez mais próspero.

Mas a riqueza de Vittorio não se media apenas em sacas de café. Ao lado de outros imigrantes italianos, ajudou a moldar uma comunidade forte e vibrante. Doou terras para a construção de uma escola, pois sabia que o conhecimento era a chave para que seus filhos tivessem um destino melhor. Contribuiu para erguer uma igreja, onde os fiéis se reuniam para rezar, buscar conforto e celebrar a vida. A vila cresceu, impulsionada pelo trabalho árduo de homens e mulheres que, como ele, haviam deixado tudo para trás em busca de uma nova chance.

No entanto, Vittorio jamais esqueceu o dia de sua partida. O último olhar lançado sobre sua terra natal permanecia gravado em sua mente, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Sabia que nunca voltaria, que as ruelas estreitas e as montanhas de Friuli permaneceriam apenas em sua memória.

Ainda assim, ao caminhar entre os cafezais floridos, sentindo o perfume adocicado das flores brancas e ouvindo o riso de seus netos ecoando pelos campos, percebia que havia encontrado mais do que um lugar para trabalhar. Ali, fincara suas raízes. Ali, seu nome viveria além dele.




segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

A Imigração Italiana para o Interior do Estado de São Paulo





A Imigração Italiana para o Interior do 

Estado de São Paulo


A imigração italiana para o interior do estado de São Paulo está diretamente relacionada à expansão das lavouras cafeeiras. A partir da década de 1880, observou-se um expressivo fluxo de italianos para a região, fazendo com que, até 1910, eles representassem o maior contingente de imigrantes, superando os portugueses e espanhóis. Grande parte desses italianos vinha do Vêneto, embora outras regiões, como Calábria, Campânia e Lombardia, também tenham contribuído significativamente para esse movimento migratório.

O estudo de registros de casamento em paróquias católicas de algumas cidades revela a diversidade de localidades de origem dos imigrantes. Entre 1870 e 1930, foram documentadas mais de 500 localidades diferentes, o que evidencia que os italianos traziam consigo uma rica diversidade de costumes, tradições e dialetos regionais. Contudo, ao chegarem ao Brasil, eles ainda não possuíam um forte senso de identidade nacional. Foi no contato com outras comunidades imigrantes, como as alemãs e portuguesas, que começaram a se identificar como um grupo nacional mais amplo, deixando de se ver apenas como calabreses, lombardos ou vênetos.

No Brasil, outro aspecto que marcou a experiência dos italianos foi a percepção de pertencimento ao grupo racial branco. Na Europa, a cor da pele tinha pouca relevância, mas, no contexto brasileiro, essa característica passou a ser valorizada por eles. Esse reconhecimento contribuiu para que os italianos se distanciassem das populações negras, especialmente dos recém-libertos, que ainda enfrentavam condições de vida extremamente precárias.

Essa percepção foi, de certo modo, incorporada ao projeto das elites brasileiras, que buscavam um “embranquecimento” da população por meio do estímulo à imigração europeia. Apesar disso, os italianos enfrentavam condições de trabalho extremamente difíceis nas fazendas de café, que frequentemente eram comparadas à escravidão. O isolamento, a falta de serviços médicos e a dificuldade de acesso à educação eram desafios cotidianos. As condições eram tão severas que, no início do século XX, o governo italiano suspendeu o apoio financeiro à imigração para o Brasil.

Com o tempo, os imigrantes começaram a se organizar em associações e clubes, inicialmente baseados em suas regiões de origem. No entanto, durante a ascensão do fascismo na Itália, essas associações passaram a ser usadas para promover ideais fascistas, com maior influência nas áreas rurais do que nas capitais. A chegada de Getúlio Vargas ao poder trouxe uma onda de nacionalismo que reforçou a assimilação dos italianos à cultura brasileira. Esse movimento culminou durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil declarou guerra contra a Itália, o que enfraqueceu o senso de identidade italiana entre os descendentes.

Somente nas décadas de 1980 e 1990 houve um ressurgimento do interesse pelas origens italianas, com as famílias buscando reconectar-se às suas raízes culturais e históricas. Esse retorno às tradições marcou uma nova fase no processo de construção da identidade ítalo-brasileira, que, ao longo de um século, havia passado por transformações profundas e marcantes no interior paulista.