quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Giovanni Battista Piazzetta


Giovanni B. Piazzetta auto retrato



Giovanni Battista Piazzetta, também chamado Giambattista Piazzetta ou ainda Giobatta Piazzetta foi um dos maiores artistas venezianos do século XVIII. Nasceu na cidade de Veneza em 13.02.1682 quando o seu pai se transferiu para esta cidade ao receber um grande contrato  de trabalho nas Procuradorias da Sereníssima. Faleceu em Veneza em 28.04.1754. 

Pintor, ilustrador e designer iniciou a sua carreira ainda muito jovem como aprendiz no estúdio do seu pai Giacomo Piazzetta,  pintor e importante escultor e entalhador em madeira e mármore nascido em Pederobba, na província de Treviso. 

Tornou-se aluno de Antonio Molinari e depois de Giuseppe Maria Crespi que o influenciou muito com sua pintura de gênero e o seu estilo. Foi o artista de pintura religiosa mais procurado no século XVIII, em Veneza.


Morte de S. José


Com ele ajudou a esculpir vários trabalhos entre eles os da biblioteca da Chiesa dei Santi Giovanni e Paolo, em Veneza  abandonou a profissão de família, iniciando ainda, por conselho de seu pai, a estudar pintura no atelier de Antonio Molinari, um famoso pintor barroco veneziano, cuja influência é encontrada nos trabalhos posteriores de Giovanni Piazzetta. Seguindo os conselhos do pai foi para Bolonha e lá trabalhou, como aprendiz, no atelier do famoso pintor Giuseppe Maria Crespi. Retornou à Veneza no ano de 1711, onde então trabalhou até a sua morte. Sua arte evoluiu desde as tradições barrocas italianas do século XVII para o rococó. 


San Felippo Neri in preghiera


Foi um artista não era muito compreendido durante a sua vida, quando então vivia na pobreza. Após sua morte entretanto, cresceu muito o seu prestigio, especialmente, com as críticas cada vez mais favoráveis que passaram a receber os seus trabalhos. Foi considerado o mestre do claro-escuro veneziano. Suas pinturas e desenhos ficaram famosos pelo estilo rococó, com cores delicadas e curvas acentuadas, retratando temas religiosos e de vários gêneros. 
No trabalho de Giovanni Battista Piazzetta, podemos apreciar um forte desenvolvimento da pintura de gênero de Crespi, e diz-se que foi inspirada pelos fortes contrastes, ou melhor pelo claro-escuro, do mestre Caravaggio (1571-1610). Piazzetta redefiniu o design, em oposição à pintura, como uma forma de arte em si. Vemos nele a influência do Emiliano Guercino (1591-1666), mesmo em suas obras religiosas. 


Rebecca no Poço

Não recebendo muitas comissões durante sua carreira, Piazzetta também fez ilustrações para livros, inspirados na arte de Rembrandt (1606-1669). Nesses trabalhos, Piazzetta criou mundos complexos, onde os sujeitos nunca eram previsíveis e os personagens tinham mais funções do que poderia parecer. Essa estratificação de significados também pode ser vista em suas peças de gênero, como Rebeca al pozzo, L'indovina e Susana e os Velhos, encontradas na Galleria degli Uffizi, em Florença. 


Retrato de um homem

O elemento dramático é a tônica encontrada em suas obras religiosas, como Martirio de São Giacomo e o O Anjo da Guarda com os Santos Antonio de Padua e Gaetano Thiene. 
Seus subtextos indescritíveis levaram à sua reputação de artista mais sombrio que seus contemporâneos venezianos. Ele passou a maior parte de seus últimos anos dedicando-se ao ensino e, embora não fosse muito rico, era um artista bastante respeitado. Ele foi convidado como membro da Academia Clementina de Bolonha, em 1727 e mais tarde, em 1750 foi nomeado diretor da Accademia di Belle Arti di Venezia e o primeiro diretor da sua recém criada  Scuola di Nudo. 


Retrato de Giulia Lama

Entre os pintores que estagiaram no seu atelier contam-se: Domenico Maggiotto, Francesco Dagiu (il Capella), Francis Krause, John Henry Tischbien, o Velho, Egidio Dall'Oglio, e Antonio Marinetti. Entre os jovens pintores que imitaram seguindo o seu estilo estão: Giulia Lama, Federico Bencovich, e Francesco Polazzo (1683-1753). 
Suas obras hoje estão espalhadas pelo mundo, nos principais museus e galerias de arte. Alguns de seus trabalhos, principalmente, desenhos e ilustrações foram negociados em muitas casas de leilão de arte, como na Christie's alcançando valores de milhares de euros. Para se ter uma ideia melhor do trabalho de Piazzetta, basta entrar no Google, com o nome Giovanni Battista Piazzetta, e quando abrir a pesquisa, clicar em imagens. 


Glória de São Domingos


São José e Jesus


L'indovina

Retrato do Marechal von Shulenburg 
comandante geral do exército da Serenissima República de Veneza



A Morte de Dario




S. Benedict












































quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O Demorado e Complicado Rito da Eleição dos Doges


Doge Andrea Gritti 1455 - 1538



Como acontece em todos os governos do mundo, entorno do cargo de doge, se moviam  não só interesses familiares, econômicos e de poder, mas, também abusos e rivalidades mal disfarçadas. 

Nos primeiros séculos da história veneziana, alguns doges tentaram tornar o seu poder absoluto e hereditário. Em 1268 para por fim a esse tipo de ideia foi introduzida a promessa ducal, uma espécie de contrato que o doge firmava com o Maior Conselho, que era o verdadeiro centro do poder do estado veneziano, que limitava os seus poderes e um novo mecanismo eleitoral a ser usado para a escolha do futuro doge. Este complicado sistema de eleição foi mantido até a queda da república em 1797, com a invasão das tropas napoleônicas. 


Eleição do Doge


A demorada eleição se desenvolvia em diversas fases: primeiro o conselheiro mais jovem devia sair do palácio ducal e descer até a Basílica de San Marco, pegar pela mão o primeiro menino que encontrasse e levá-lo para o palácio. Era o denominado balotin, o encarregado de extrair as esferas da votação de uma urna. Todos os eleitores deviam obviamente fazer parte do Maior Conselho e deveriam ter completado a idade de trinta anos. No dia escolhido para a eleição do novo doge, todos os que tinham o direito de votar, se reuniam na Sala do Maior Conselho. Ali, em uma urna, estavam as esferas, em número exato ao total dos membros votantes. Em trinta destas esferas estava escrito "elector". 

O menino, que se denominava de balotin, extraia uma esfera por vez e a consignava sucessivamente a um dos votantes. Os conselheiros que tinham recebido a esfera com a palavra elector se reuniam e sorteavam nove nomes entre eles. 

Estes nove se reuniam e escolhiam outros quarenta conselheiros - os primeiros quatro dos nove tinham o direito de escolher cinco nomes e os cinco deles restantes podiam propor quatro nomes cada um. Todos esses quarenta conselheiros que tinham sido escolhidos faziam uma nova extração entre eles e designavam doze representantes, os quais por sua vez elegiam outros vinte e cinco conselheiros, estes por sua vez deveriam escolher, através de novo sorteio, nove nomes entre eles. 

Estes nove deveriam escolher outros quarenta e cinco conselheiros, os quais por sua vez deviam escolher onze nomes. Estes últimos onze conselheiros deveriam eleger quarenta e um "grandes eleitores" os quais elegeriam o novo doge. 

Era eleito doge aquele que conseguisse o maior número de preferências, com o mínimo de vinte e cinco votos. 


Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

Erechim RS

terça-feira, 28 de setembro de 2021

O Armazém dos Turcos em Veneza

Fondaco dei Turchi a Venezia


Veneza, sempre foi considerada a "porta de entrada para o Oriente" e na sua história mais que centenária, soube gerir relações e intercâmbios com os vários povos do Mediterrâneo e, em geral, relações positivas com diferentes povos, culturas e religiões. 

O governo da Sereníssima conseguiu organizar e administrar a presença de estrangeiros na cidade, entre eles aqueles com os quais viveu inúmeros períodos conflituosos e de guerras, mas, quando em paz podiam viver em harmonia e manter entre si um lucrativo comércio. 

Ao longo do Grande Canal, no sestiere de Santa Croce, fica o grande armazém dos turcos,  então denominado fondaco dei turchi. Hoje abriga um importante Museu de História Natural. 

O palácio data do século XIII, construído por volta de 1225 sob encomenda de Giacomo Palmieri, cônsul do município de Pesaro e identificado como o fundador da família Pesaro. 

Em 1381, a Sereníssima República de Veneza tornou-se proprietária com o objetivo de doá-la a Niccolò II d'Este por seu apoio durante a guerra de Chioggia, travada contra a República de Gênova.  No entanto, a propriedade do edifício pela família Este foi descontínua, visto que o edifício foi concedido e apreendido várias vezes em função das relações políticas vigentes entre as duas repúblicas marítimas. 

O antigo grande armazém que em grego significa hotel e casa-armazém em árabe é um edifício de estilo veneziano bizantino, ocupado pelos turcos desde o início dos anos 1600 até a primeira metade dos anos 1800. 

A partir de 1608, foi proposta a teoria de atribuir um edifício da cidade à sede dos mercadores turcos. A proposta concretizou-se apenas em 1621: nessa ocasião o edifício foi convertido em local de comércio e aí construídos armazéns, casas de banho, serviços e quartos. 

O palácio manteve esta função desde o século XVII até o século XIX. Em 1732 o edifício, que já se encontrava em decadência devido à paralisação do comércio com o Oriente devido à Guerra de Candia, sofreu um desabamento interno. Mais tarde, passou primeiro para o Pesaro e depois para o Manin.

Em seu interior abrigava um bazar, banhos turcos e até uma pequena mesquita. Era um centro de armazenamento e troca de mercadorias entre Veneza e a Turquia. 

Embora Veneza sempre estivesse em guerra com a Turquia, um tribunal especial controlava a troca de mercadorias, armas e dinheiro. 

Por respeito à cultura muçulmana, impediam a entrada de mulheres e jovens cristãos. O armazém estava aberto ou fechado dependendo do momento, se a Sereníssima República estava em paz ou em guerra com a Turquia.

sábado, 25 de setembro de 2021

Alguns Aspectos da Imigração Italiana nos Estados Unidos

Imigrantes Italianos na Little Italy New York início 900





No rescaldo da unificação política italiana, como é sabido, a península apresentava múltiplas diferenças culturais, econômicas e sociais entre as várias regiões. Mesmo nos anos seguintes, a política nacional falhou em promover um crescimento industrial e econômico homogêneo, que atendesse à demanda por trabalho com oferta adequada.

Assim, entre 1880 e 1930, mais de 17 milhões de homens, mulheres e crianças cruzaram as fronteiras nacionais, alguns por alguns meses, outros por alguns anos e uma grande parte deles para nunca mais voltar.

O impulso migratório de toda a Europa, incluindo, é claro, também da Itália para o Novo Mundo, que já havia começado na primeira metade do século XIX, cresceu progressivamente a partir da década de 1870. As causas que determinaram o desenvolvimento deste fenômeno foram muitas e variáveis ​​de acordo com as diferentes áreas do continente, mas ainda é possível identificar alguns elementos comuns ao panorama europeu e italiano.

Durante este período, uma parte significativa da economia europeia baseava-se na agricultura. Assim, os grãos de baixo custo, vindos da América do Sul e do Norte, da Rússia e da Austrália, por meios de transporte mais modernos e rápidos, tiveram influência decisiva em uma queda prolongada e inesperada dos preços do trigo. Este declínio constante e descontrolado produziu uma depressão econômica generalizada entre os agricultores. 

A esta crise agrária foram acrescentados outros fenômenos conjunturais ligados a várias patologias que afetam as lavouras do interior italiano e europeu: a pebrina infectou os bichos-da-seda do norte da Itália; a filoxera infestou as vinhas francesas; o brusone nas colheitas de arroz e a mosca do óleo colocaram de joelhos a olivicultura do Sul. 

Um outro fator de crise não de menor importância consistia no fato de que a vida do campo era minada em suas raízes por novos processos sociais. 


Emigrantes amontoados a bordo de um navio


O recém-nascido Reino da Itália impôs uma carga tributária cada vez maior sobre seus cidadãos para cobrir as despesas de construção das infra-estruturas do novo país, induzindo grandes proprietários de terras a venderem parte da propriedade fundiária para enfrentar o necessidade contínua e crescente de dinheiro.

Fenômeno semelhante também afetou o mundo camponês, onde a transmissão hereditária fragmentou cada vez mais as minúsculas propriedades, enquanto a carga tributária, que aumentava em relação ao passado, tornava as famílias dos pequenos proprietários cada vez menos estáveis ​​e cada vez mais condicionadas pelos perigos da frustração de safras. 

A influência do modelo capitalista também orientou as relações sociais no campo: enquanto novas fortunas familiares e individuais eram criadas, desequilíbrios sem precedentes eram gerados na sociedade camponesa. 

Graças à venda de bens eclesiásticos após a Unificação, à liquidação do demani e à abolição dos costumes cívicos, uma nova classe burguesa gradualmente se estabeleceu no panorama social, e o mundo camponês entretanto foi despojado de direitos da comunidade (possibilidade de fazer lenha na floresta municipal, de trazer os rebanhos para pastagens comuns, etc.) e tornados mais incertos e mais expostos às mudanças no tempo e no destino.

Um aparato mais difundido de estruturas ferroviárias e meios de locomoção mais rápidos tornaram possível mover-se rapidamente para chegar aos portos de embarque. Os novos navios a vapor tornaram possível viajar de uma parte do mundo para outra a preços relativamente mais baixos do que no passado.

Por fim, a constituição do continente americano como terra de grandes oportunidades, no momento da maior crise do campo europeu, levou a uma expansão significativa do mercado de trabalho. Este Novo Mundo tornou-se assim um destino para um número cada vez mais conspícuo de europeus, cada vez mais integrados na ideia de mercado global.

Ao contrário do que se possa pensar, os primeiros contingentes que deixaram a Itália vieram do Norte. Piemonteses, vênetos e lombardos decidiram se mudar para a América Latina: Brasil e Argentina foram os destinos preferidos. De 1876, ano do primeiro levantamento estatístico, até 1913, ano em que se registrou o maior número de migrantes, houve queda de menos de 200.000 emigrantes para uma cifra de 870.000 expatriados por ano.

O Brasil, que havia abolido a escravidão de sua legislação em 1885, manifestava então uma grande necessidade de mão de obra barata para ser empregada nas numerosas e extensas fazendas de café em fase de desenvolvimento econômico no estado brasileiro de São Paulo. 

Por sua vez, a Argentina, dotada de infindáveis ​​planícies escassamente povoadas, rica mais em gado do que em homens, adotou uma política de atrair mão-de-obra da Europa. Neste, imitando a legislação estadunidense, inaugurada nos anos 1860, que favorecia o desenvolvimento da pequena propriedade camponesa e a colonização de novas terras. 


Bairro de imigrantes italianos em NY


Esses imensos territórios, tão ricos em oportunidades, estavam entre os destinos de migrantes italianos e europeus. Passaram assim a representar a possibilidade de os indivíduos mudarem a sua sorte e a da sua família, investindo num bilhete - muitas vezes graças às economias de todo o grupo familiar - em uma viagem que poderia ser lucrativa para todos.

Assim como acontece hoje na Itália para migrantes de outras partes do globo, os italianos também foram vítimas de racismo e estereótipos por muito tempo.

As palavras de vários escritores americanos, certamente não lisonjeiras, visavam estigmatizar nos italianos tendências sexuais bestiais e, de qualquer modo, desviantes, ou hábitos que eram no mínimo repreensíveis. A literatura certamente se concentrou em episódios que agora infelizmente se tornaram famosos, bem como em outros clichês sobre os italianos: sujeira, mendicância, violência, imoralidade. 


Bairro italiano em NY no início do século XX


Entre os epítetos com os quais os italianos eram mais comumente definidos nos Estados Unidos, a palavra "dago" é lembrada. A origem disso é das mais variadas: alguns argumentam que deriva da expressão "day go", usada para definir os contratos de trabalho diário, dos quais os italianos se valiam; outras que derivam da distorção do nome “Diego” difundido no mundo hispânico e erroneamente também atribuído aos italianos ou da “latinização” dag-ger punhal, adaga. 

Este último, em particular, estava ligado à ideia de que os italianos eram violentos, tanto que John Higham pegou esse clichê em seu livro Strangers in the Land: "A faca com que corta o pão, usa-a indiferentemente para cortar a orelha ou o dedo para outro dago. A visão do sangue é tão comum para ele quanto a visão da comida que come ”.

Outros acontecimentos, embora infelizmente pouco conhecidos, foram os linchamentos contra italianos nos Estados Unidos. Entre 1886 e 1916, cerca de trinta e nove italianos foram vítimas de linchamentos. O de 1891 em Nova Orleans, que fez 11 vítimas, foi certamente o pior deles.

Por fim, os italianos foram considerados "negros brancos" porque, após a libertação dos escravos nos Estados Unidos (1865) e no Brasil (1885), substituíram os anteriores trabalhadores afro-americanos, vivendo ao lado deles nos mesmos bairros, e porque se acreditava que os povos do sul da Europa tinham uma ligação direta com os povos “negros” da África.

Desse ponto de vista, uma decisão de 1922 em um julgamento de apelação realizado no Alabama foi emblemática. Ao final do julgamento de primeira instância, o afro-americano Jim Rollins foi considerado culpado do crime de miscigenação (mistura de raças) por ter mantido relações sexuais com uma mulher branca, Edith Labue. Porém, na segunda  instância, conseguiu ser absolvido provando que o mesmo era de origem italiana. A mulher, aliás, era de origem siciliana e segundo o juiz: “não se podia deduzir de forma absoluta que ela era branca, nem que ela era negra ou descendente de negra”.

Os imigrantes italianos também foram vítimas da infame Ku Klux Klan. Um episódio certamente emblemático foi o ocorrido perto de Thorold, uma cidade canadense na fronteira com o estado de Nova York. Aqui, de fato, após o assassinato do guarda noturno Joseph Trueman, o jornal "Hamilton Spectator" publicou uma carta da Klan na primeira página, que chegou à redação. Nele, o prefeito daquela cidade foi ameaçado com as seguintes palavras: “Sr. Prefeito: se o estrangeiro que atirou e matou nosso semelhante, oficial Trueman, não for capturado até o próximo dia 2 de janeiro, os membros do clã da cruz de fogo tomarão a iniciativa contra a comunidade italiana de Thorold: 1.800 homens armados da Divisão Escarlate estão secretamente limpando este distrito e aguardando a ordem para exterminar esses ratos ”.

Embora o crime organizado sempre tenha prosperado na marginalização social dos bairros italianos, como a Cosa Nostra americana, certamente é inadequado associar todos os italianos à máfia violenta.

Muitos, aliás, foram os ítalo-americanos que contribuíram para a construção dos Estados Unidos, tanto com o trabalho humilde dos trabalhadores não qualificados como com o compromisso político e social das "segundas gerações" como no caso de Fiorello La Guardia e Joe Petrosino e muitos outros em diversos setores: desde a economia, com o fundador do Bank of Italy, que mais tarde se tornou o Bank of America, Amedeo Giannini, até grandes artistas, como Rodolfo Valentino e Frank Sinatra, para falar dos mais distantes no tempo.

Entre as "segundas gerações" de ítalo-americanos que deixaram uma marca significativa no cinema americano, é impossível não lembrar: Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Robert De Niro, Al Pacino. Como se sabe, também ocorreram episódios dramáticos, como o que aconteceu injustamente a Bartolomeo Vanzetti e Nicola Sacco, condenados por duplo homicídio e executados injustamente, foram reabilitados apenas em 1977 ou os polêmicos, pelo menos até há pouco, como o caso do inventor do telefone Meucci, que foi privado do reconhecimento da primazia desta invenção por um motivo burocrático. A memória e a legitimidade da invenção deste famoso florentino só foram reconhecidas em 2002 pelo Congresso dos Estados Unidos.

Mesmo com muitas dificuldades, portanto, os italianos que emigraram para o exterior ainda querem se inserir na sociedade americana, tornando-se parte fundamental dela. Os ítalo-americanos foram submetidos a pressões significativas, visando uma real assimilação, do que se denominou modelo de previdência corporativa. Esta concepção consistia em “um conjunto de medidas paternalistas que visavam mudar os comportamentos sociais dos trabalhadores imigrantes. 

A Ford Motor Company foi a mais ativa, enviando sociólogos às casas dos funcionários para verificar sua limpeza, hábitos de consumo e o grau de coesão familiar. O objetivo era identificar os trabalhadores que mereciam participar na distribuição dos lucros da empresa e representar um exemplo de eficiência e vida saudável. Esse método também foi seguido por outras empresas, através da criação de departamentos de sociologia dentro delas, para influenciar a vida de seus trabalhadores imigrantes, de forma que fosse mais aderente ao American way of life. 

A organização científica do trabalho e as demais atividades assistencialistas corporativas das indústrias foram a base do Plano Americano, um vasto programa de empresários que pretendia influenciar fortemente a vida dos trabalhadores, inclusive por meio de práticas como a espionagem e a demissão de seus funcionários, bem como o uso da polícia para reprimir greves. Através de diferentes períodos e políticas de imigração e cultura, os ítalo-americanos foram capazes de construir seu caminho para um território que, mesmo se representado como o país das grandes esperanças, nem sempre soube preservar e respeitar os direitos e aspirações legítimas dos recém-chegados. 

Nos vinte e sete anos que se passaram entre a unificação da Itália e a primeira lei de emigração, o debate político sobre a emigração centrou-se na necessidade de estabelecer se ela produziria efeitos econômicos e sociais positivos ou negativos em nível nacional. A leitura desse fenômeno foi geralmente muito negativa. Em apoio a esta tese podemos citar a intervenção parlamentar do Exmo. Lualdi que já em janeiro de 1868 expressou seu julgamento negativo sobre a dinâmica migratória, sublinhando as possíveis dramáticas consequências sociais e econômicas e referindo-se aos aspectos humanitários e patrióticos. Até 1888, a regulamentação desta matéria foi deixada ao critério do Ministério do Interior que emitiu disposições de acordo com circunstâncias específicas e na forma de circulares às autoridades locais de aplicação da lei. 

Entre eles podemos citar: a circular "Menabrea" de janeiro de 1868 que estabelecia a obrigação para com os prefeitos, prefeitos e oficiais de segurança pública de proibir quem não pudesse chegar às Américas e à Argélia demonstrar que possuem meios de subsistência adequados ou um emprego previamente combinado. A circular de 18 de janeiro de 1873, com a qual o Ministro do Interior Lanza, além de adotar as mesmas disposições da circular "Menabrea", acrescentou a obrigação de os emigrantes apresentarem um compromisso, firmado por pessoa solvente, de pagar a viagem de volta à Itália no caso de repatriação pelos consulados. 

Finalmente, ele exortou as autoridades da p.s. para distrair os cidadãos da expatriação, mostrando-lhes algumas ilustrações dos perigos iminentes que corriam o risco de enfrentar. Com a chegada ao poder da esquerda histórica, essas disposições, já criticadas até mesmo por membros da direita histórica, anteriormente no governo, foram atenuadas. De fato, a circular, encomendada pelo Ministro Nicotera, atestava precisamente isto: a expatriação era tolerada mas era por conta e risco do emigrante.

Estas circulares ministeriais, que incidiram sobre a repressão da emigração ilegal, sobre a repressão da fraude por parte dos agentes de emigração e agências irregulares e, sobretudo, sobre a dissuasão dos migrantes das autoridades, cedo se revelaram ineficazes. Na verdade, o número de migrantes crescia cada vez mais, assim como os golpes e isso tornava imprescindível o recurso a uma lei especial que introduziria sanções penais contra golpes e agências não autorizadas.

Apesar de várias tentativas ao longo dos anos, apenas em 1888 surgiram as condições políticas necessárias para se chegar à aprovação da primeira lei especial de emigração. O próprio Primeiro-Ministro declarou explicitamente a natureza policial e centrou-se na ordem pública da lei. Isto, de facto, pode ler-se no relatório ao parlamento: “Se a lei regula de forma adequada a emigração do ponto de vista da segurança e ordem públicas não tratam, pelo menos diretamente, da sua parte econômica". 

Nesta ocasião, foi criada uma secção especial do Ministério do Interior para tratar dos assuntos de emigração. A constituição teve a função não só de evidenciar como o governo estava bem ciente da fraude em curso contra "aqueles que vão procurar uma nova existência sob outros céus", mas também da necessidade de os ajudar. Finalmente, o governo, com base no fato de que nem todos os países estavam igualmente inclinados a acolher a emigração, teve que desviar os partidários de irem para países onde se esperaria que fossem "ruína certa", pois "ele governo dispõe de meios para saber onde se encontram as melhores condições para a prosperidade dos nossos emigrantes”, encaminhando-os assim para os locais onde poderiam ter encontrado melhor sorte.

Nas palavras de Crispi, surge também um interesse, pelo menos formalmente, pela "questão econômica" da emigração, isto é, por aquela relativa às protecções econômicas e sociais que deveriam ter acompanhado os emigrantes durante a viagem e uma vez chegados ao seu destino, graças a um maior apoio do Estado: estes, no entanto, não foram acompanhados por razões políticas. 

Na verdade, o chefe do governo teve que enfrentar a oposição dos parlamentares nesta questão, que estavam muito preocupados em se opor ao suposto "dirigismo" de Crispi em matéria de emigração, bem como a oposição dos grandes latifundiários do sul e da classe armadora, que jamais teria visto com bons olhos uma interferência do Estado na gestão de seus interesses comerciais. 

Em vez disso, o que deve ser enfatizado é o fato de que o primeiro-ministro considerou absolutamente "inútil examinar se a emigração é boa ou ruim, ou se o dano prevalece sobre o benefício, ou o contrário ocorre" para focar em vez disso em seu objetivo de proteger os emigrantes como cidadãos, sem se preocupar com o cumprimento de seus objetivos.

Portanto, o que a lei Crispi se limitou a fazer foi inspirado em um conceito puramente negativo: evitar a fraude, tentar liberar autorizações (licença de agentes de emigração) a pessoas sem censura e, consequentemente, verificação do seu trabalho.

Isso, no entanto, deixava o campo totalmente livre ao mercado, que era o verdadeiro protagonista: não se previa nenhuma proteção ou qualquer tipo de equilíbrio a favor dos emigrantes contra o poder excessivo de agentes, subagentes e transportadores, nem durante a viagem, nem muito menos houve uma tentativa de auxilia-los em sua chegada ou enquanto procuravam trabalho em um país estrangeiro. A ação estatal também não tratou da política de preços das travessias.

A lei subsequente de 190120 não alterou significativamente o quadro repressivo da lei de 1888, mas integrou-o a dispositivos, os chamados regras econômicas, destinadas a proteger melhor os emigrantes, sob perfis deixados a descoberto pela lei de treze anos antes. Em particular, este constituiu o órgão do Comissariado Geral da Emigração (CGE) para o governo, proteção e ordem pública em matéria de emigração, reorganizou também as comissões de arbitragem, já estabelecidas com a lei Crispi. A "lei econômica" de 1901 sofreu alguns acréscimos nos anos seguintes, que foram incorporados à Lei Consolidada 2205 de 13 de novembro de 1919, que assim constituiu o chamado código de emigração. 

A verdadeira virada ligada à ordem pública veio com a ascensão ao poder de Benito Mussolini. No início, o Duce não modificou significativamente a legislação sobre migração. 

A abolição do Comissariado Geral para a Emigração e todos os órgãos relacionados e a abolição da Comissão de Arbitragem em 1929 remontam a esta atitude explica-se, por um lado, pela implementação de uma política de imigração cada vez mais restritiva por parte de muitos países de acolhimento, que procuram, cada vez mais, impedir o acesso de novos imigrantes ao seu mercado de trabalho; por outro lado, na política nacional totalitária do fascismo, a emigração fora da Itália não poderia deixar de ser classificada como um fenômeno negativo que teria esgotado da nação, chamada aos altos ideais do Império. 

Assim, esses mesmos instrumentos jurídicos, que permitiam o controle e gestão da emigração, serviam para atenuar qualquer êxodo que se contrapusesse à concretização dos objetivos de grandeza propostos. Em particular, Mussolini mudou a orientação sobre o tema da ordem pública: passando de uma legislação anterior, que nesta matéria tentava reprimir golpes e abusos contra os migrantes, para uma que reprimia ou pelo menos reduzia a própria emigração. 

A partir dessa mudança de perspectiva política sobre a questão da emigração e da ordem pública a ela ligada, em 1927 o Estado fascista começou a desmantelar o que haviam sido instituições de proteção aos migrantes, com a extinção do Comissariado Geral da Emigração e órgãos afins e em 1929 com a extinção da Comissão de Arbitragem.

Uma vez que a concepção anterior de emigração fracassou, por meio da eliminação das instituições destinadas a protegê-la em certa medida, o fascismo foi capaz de impor sua própria ideia de emigração. O governo, de fato, direcionou a emigração para uma direção muito específica: a política. O emigrante tornou-se assim, como no caso da recuperação do campo pontino ou da exploração mais massiva das colônias italianas, um instrumento de poder político que dirigia a emigração com base em seus próprios projetos expansionistas.

Se por um lado o fascismo aboliu uma série de instituições, por outro, como mencionado, impôs controles cada vez mais rigorosos à emigração para limitá-la. De fato, para coibir atividades ilegais, tendendo a contornar os controles estabelecidos para a expatriação e a admissão de emigrantes nos países de destino, foram aprovadas leis mais restritivas, como a aprovada em 14 de julho de 1930, n.1278, intitulada: "Adoção de novas leis penais em matéria de emigração”.

O emigrante que, mesmo com passaporte, tenha evitado os cheques prescritos (art. 1º) 23 é punido com multa de 500 a 1000 liras. Estava dentro a pena pelo crime de auxílio à emigração, transformando-a de contravenção em crime. Esta infração foi cometida apenas quando foram praticados atos destinados a facilitar a expatriação de um emigrante em conflito com a regulamentação em vigor (artigo 2.º).

O fato de receber ou dar dinheiro ou outras vantagens, de aceitar a promessa de indenização para facilitar ilicitamente a expatriação de um cidadão que pretendia emigrar, passou a constituir crime (artigo 3º). O crime de auxílio à emigração era, portanto, punível, ainda que faltasse o princípio da execução material. O mesmo artigo punia quem tivesse dado ou prometido dinheiro ou outras utilidades para emigrar ilegalmente. Art. 4 elevou a crime o fato de obter, com fins lucrativos, cidadão que pretendia emigrar “convocação ou proposta de contrato de trabalho para o exterior” ou “interferir na obtenção das autoridades competentes a emissão de passaporte ou outro documento de expatriação para um emigrante ”. 

A emoção de emigrar com ou sem lucro também foi definida como crime (Artigo 6). Porém, mesmo sem o objetivo de estimular a emigração, punia-se o próprio fato de divulgar informações falsas sobre a emigração (artigo 6º). Art. 7 configurou o crime de desvio do emigrante do ponto de partida natural ou do ponto de chegada prefixado. Foram definidas três infrações penais: a de induzir o cidadão com notícias falsas a emigrar para outro país que não aquele para onde pretendia emigrar; o de induzir com notícias falsas a embarcar em um país estrangeiro; o de induzir ou ajudar o emigrante a deslocar-se para outro país que não aquele para onde pretendia emigrar, a pretexto de possibilitar a entrada do emigrante noutro país, para onde não estava legitimamente autorizado a ir.

De fato, estas ações, para além de evadirem os controles impostos pelo Governo, foram frequentemente a causa das mais trágicas vicissitudes para os emigrantes que se deixaram enganar. Algumas formas especiais de intermediação ilegítima na realização de contratos de transporte foram afetadas pelo art. 10 da lei. Foi então estabelecido no art. 11 a pena para cidadão ou estrangeiro que cometeu algum dos crimes previstos no art. 2,3,7. Isso estava em total conformidade com os princípios gerais que inspiraram o Código Rocco a esse respeito, aprovado com R.D. 19 de outubro de 1930, n. 1398 nos artigos 6 e 25 seguintes.

No Código Rocco, o crime de "fraude de emigração" foi definido de uma forma significativamente diferente em comparação com o código Zanardelli. Enquanto isso no art. 416 configurou-se no fato de quem, com fins lucrativos, induziu um cidadão a emigrar, enganando-o, alegando fatos inexistentes ou dando notícias falsas, o novo código do art. 645 aceitou o conceito de excitação para emigrar que independia do evento que não era mais um elemento constitutivo do crime; “E o mesmo faz o outro de boa vontade para com outro país que não o estabelecido, em última análise sem ter em conta o engano do sujeito passivo do crime e o próprio lucro”. 

Em vez de lucro, a simples promessa de indenização bastava para que existisse a relação jurídica entre a entrega ou a promessa de dinheiro e a emoção da emigração. Portanto, o Código Rocco se transformou em uma escritura de perigo o que para o código Zanardelli era perigo de dano. Além disso, o art. 645 do Código Rocco previa uma circunstância agravante para o fato prejudicou duas ou mais pessoas, em aplicação do princípio de exceção estabelecido pelo art. 84 sobre o crime complexo e sem prejuízo do art. 81 do mesmo código.

A ação do governo fascista, por assim dizer, politizou a emigração ao torná-la um instrumento de sua própria propaganda. Mussolini, de fato, direcionou a emigração italiana para áreas de interesse do governo. Foi o que aconteceu, como já foi dito, para a recuperação do Agro Pontino e para a difusão das comunidades coloniais italianas nos territórios do Império (entre elas a famosa "quarta coluna" da Líbia).

O movimento de massa que caracterizou este período permitiu o enriquecimento de diversos operadores econômicos: albergadores, agentes de emigração e companhias marítimas foram, ainda que a diferentes níveis, beneficiários de diferentes maximizações econômicas.

A economia que girava em torno do movimento de migrantes de uma parte a outra do oceano levou ao nascimento, ao aumento e sobretudo ao enriquecimento das companhias marítimas italianas e estrangeiras, que ofereciam seus serviços aos migrantes transoceânicos.

A classe armadora italiana conseguiu entrar no lucrativo mercado do transporte transoceânico de migrantes, conseguindo perseguir o objetivo de conciliar o lucro máximo com o investimento mínimo. Este propósito foi alcançado graças às políticas iniciais de favorecimento à imigração gratuita e subsidiada, promovidas pelos países da América do Sul: de fato, para estimular a colonização ou o trabalho agrícola em seus vastos territórios, pagavam às empresas de transporte, frete em nome dos migrantes. Dependendo do acordo, eles teriam pago o frete com o trabalho ou não. 

A persistente escassez de capital acionário levou as empresas italianas, movidas por uma lógica mercantilista, a buscar liquidez financeira. De fato, no final do século XIX, os armadores genoveses ainda não haviam adotado amplamente a forma de sociedade por ações ou de negociação de títulos em bolsa para aumentar o capital de suas empresas. Por isso frequentemente as receitas do transporte de emigrantes serviram para saldar as dívidas das empresas, até que, graças aos subsídios estatais, foi possível adquirir novos meios para modernizar as suas frotas.

Até a entrada em vigor da lei de 1901, os armadores genoveses, napolitanos e europeus, graças aos subsídios do Estado, conseguiram enriquecer, apesar de disponibilizarem aos passageiros que partiam frotas antigas e obsoletas, aproveitando a falta de um real e a própria proteção de emigrantes a bordo de navios a vapor e de regulamentos de controle de transporte.

Para ser justo, porém, as empresas estrangeiras, cujos vapores constituíam a maioria dos que operavam nos portos italianos, tinham frotas mais modernas. Na verdade, ainda no final do século XIX, principalmente navios com bandeiras estrangeiras, como os pertencentes às empresas inglesas (Prince Line, White Star Line, Anchor Line) e alemãs (Hamburg America Line, Lloyd Bremen) faziam escala nos principais portos italianos . “O regime de monopólio em que operava a única grande empresa italiana, a Navigazione Generale Italia (NGI), criada em 1881 pela fusão dos dois grupos marítimos Florio e Rubattino, não representava um obstáculo sério para interesses de empresas estrangeiras. Mesmo nos anos 1912-1913, quando os fluxos migratórios atingiram os seus picos mais elevados, pouco menos da metade do transporte marítimo dos emigrantes era efetuado por empresas alemãs e inglesas”. 

A NGI gradualmente começou a adquirir participações em outras companhias de navegação, eventualmente monopolizando o setor ao longo dos anos a um quase-monopólio italiano no setor e embolsando quase 90% dos subsídios estatais fornecidos para este setor. Como já havia acontecido com o transporte à vela, e nos primeiros estágios da transição para o vapor, a condição favorável em que operavam os armadores italianos, na ausência das obrigações legislativas na gestão do transporte de emigrantes e “amparados” por subsídios estatais, favoreceram as políticas industriais destinadas a obter o máximo lucro com o mínimo de investimento. 

A continuidade dos emolumentos decorrentes das taxas de frete, garantida pelo fluxo constante de emigrantes, traduziu-se em um ganho de posição que atrasou o progresso tecnológico da frota. “A compra de um número cada vez maior de ações de outras empresas levou este grupo empresarial a subsidiar uma frota nas rotas de emigração que não conseguia competir com a de empresas estrangeiras”.

Só pouco antes de 1914, quando as medidas de proteção previstas na lei de 1901 sobre o transporte marítimo de migrantes (inspetorias de emigração nos portos, inspetores viajantes em navios) começaram a ser aplicadas e foram consideradas um dispositivo brando de controle do estado das embarcações de transporte de emigração, assistimos à progressiva modernização das frotas. 

Foram sobretudo os controles da "qualidade" dos fluxos migratórios efetuados pelos Estados Unidos que aceleraram a retirada das rotas transoceânicas das "carroças marítimas" na primeira década do século XX. Era uma série de normas, que não tinham fins restritivos, mas de seleção psicofísica dos fluxos migratórios: de fato, entre 1907 e 1908, foram decretados diversos atos com os quais se prescrevem controles sanitários mais rígidos nos portos, e portanto, somente navios que garantissem condições higiênicas e seguras de transporte para passageiros de terceira classe poderiam proceder com as práticas de desembarque.

As leis americanas, portanto, criaram muitas complicações para as companhias marítimas italianas que, graças às regras higiênicas de fato insuficientes da lei e do regulamento de 19.01.35, podiam amontoar emigrantes em alojamentos apertados e muitas vezes sem escotilhas. A regulamentação do art. 99, por exemplo, estabeleceu que o espaço atribuído abaixo do convés a cada emigrante era de 2,75 metros cúbicos: uma concessão feita pelos legisladores à empresas que lhes permitam transformar os espaços obtidos nos porões em dormitórios para migrantes.

A lei de 1908, conforme consta dos diários de bordo dos navios de emigração, foi aplicada com rigor. Por esse motivo, muitas empresas, obviamente incluindo a NGI, modificaram suas rotas e seus desembarques, atracando em vez de em Nova York, no porto de New Orleans, Louisiana. Este, de fato, era muito menos controlado e mais seguro quando os navios estavam particularmente abandonados e cheios de emigrantes.

O período submetido à nossa análise, 1880-1930, foi repleto de acontecimentos históricos e jurídicos notáveis. Em particular, o reflexo da relação que ligava os cidadãos à autoridade do estado constituiu naqueles anos um importante campo de teste para muitos governos, incluindo o do recém-criado Reino da Itália.

A liberdade de emigrar, consequência natural da liberdade de circulação, era um dos principais objetos da relação entre o Estado e os cidadãos migrantes. Em função das diferentes configurações políticas do fenômeno migratório, sucessivos governos nestes cinquenta anos inseriram, modificaram ou revogaram as diferentes instituições jurídicas de proteção dos migrantes nas várias legislações.

É possível dividir os cinquenta anos analisados ​​nesta contribuição em três fases, coincidindo com a aprovação das diferentes leis de emigração: de 1888 a 1901, de 1901 a 1919 e de 1919 a 1930.

A lei de 30 de dezembro de 1888 n. 5866, a chamada “Lei Crispi”, se por um lado se definia como “polícia”, por incluir complexas disposições repressivas em matéria de fraude e outros delitos, por outro, teve o mérito de constituir algumas instituições importantes para a proteção dos migrantes, que também foram contempladas por legislação posterior. Esta lei teve, de fato, o mérito de introduzir o regime de licenças não só para os agentes (art. 2º), mas também para os armadores (art. 6º); impor a estipulação de um contrato de transporte escrito com requisitos específicos (artigo 12.º); declarar a nulidade do acordo mediante o qual o emigrante se comprometeu a ceder a sua obra em lugar da carga (artigo 14.º); criar a jurisdição especial para a decisão de litígios entre emigrante e transportador no Reino e no exterior (artigo 17); sancionar as primeiras penalidades por abusos de expatriação. Essa legislação preparou o caminho para projetos de lei subsequentes.

O segundo período coincidiu com a aprovação da lei nº 23, de 31 de janeiro de 1901, que promovia aquelas instâncias doutrinárias que preconizavam uma “leitura econômica” da emigração.

A intervenção do Estado na questão socioeconômica da emigração foi um dos elementos mais significativos deste período.

O governo, ao contrário do “espírito legislativo” anterior, baseado na concepção policial, elaborou, pelo menos no papel, proteções que pudessem equilibrar a relação entre portadores e emigrantes38. Em primeiro lugar, com a abolição dos agentes e subagentes da emigração, ou, mais precisamente, com a sua subordinação aos transportadores, pelos quais eram solidamente responsáveis. 

Além disso, através de uma série de órgãos e comitês, entre os quais o mais famoso foi, sem sombra de dúvida, o Real Comissário Geral da Emigração (CGE), entrou no governo da emigração e, principalmente, no seio do mercado econômico deste: frete, ou seja, o valor pago pelos emigrantes na travessia do Atlântico.

Isso, aliás, foi decidido pela CGE, conforme procedimento do art. 14, por proposta das transportadoras. Se nenhum acordo fosse alcançado, a disputa teria sido resolvida pelo Ministro das Relações Exteriores. Ao longo dos anos, esta atividade, tão fundamental para limitar os rendimentos dos portadores, foi complementada por atividades de informação aos migrantes sobre as condições do mercado de trabalho, reservando-se o poder de proibir a emigração para determinadas regiões, quando isso era exigido por razões de ordem pública, um perigo para a vida, a liberdade e as próprias posses dos emigrantes.

No entanto, também não faltaram associações privadas e instituições de caridade, que se engajaram em uma ação para informar os aspirantes a migrantes sobre as condições de vida e trabalho nos locais de destino, muitas vezes com melhores resultados do que os canais oficiais. 

A emigração deu-se através de redes sociais muito específicas, com base no "boca a boca" era, e ainda é, possível promover a emigração dos concidadãos. O seu próprio círculo social, baseado nos seus familiares e nos seus concidadãos (os paisani) tornou-se fundamental para tudo: obter informação fiável sobre as condições de vida e sobre a “qualidade” da viagem; ter um lugar para se instalar no novo mundo (a pequena Itália no mundo anglo-saxão, a Boca ou o bairro de Palermo em Buenos Aires, a Mooca e o Bixiga em São Paulo); arranjar um emprego e ter relações sociais.

Todo o aparato burocrático não pesava no orçamento do Estado, mas nos próprios emigrantes. Este foi financiado quase inteiramente pelo chamado "imposto da fome", um imposto que cada transportador tinha que pagar por cada emigrante transportado, que obviamente estava incluído na passagem vendida aos expatriados.

O que se pode definir, no que respeita à posição do Estado na relação com o cidadão neste período, é que o Poder Público adquiriu uma nova função: a de tentar assumir uma elevação material e moral dos emigrantes, que correspondia a um interesse geral da comunidade. Assim, neste período, a emigração foi transformada de individual e desorganizada em coletiva e "governada".

A chave para tudo isso foi a elaboração mais substancial, em comparação com a anterior, do direito especial de emigração. A pedra angular de tudo isso foi a definição de emigrante, contida no art. 6 da lei de 1901 e posteriormente aperfeiçoado pela Lei 1.075 de 2 de agosto de 1913. 

O fato de ser legalmente qualificado como emigrante não era de forma alguma secundário: de fato, só aqueles que assim foram definidos podiam beneficiar do direito especial estabelecido pelo legislador. Aos que não se enquadravam nesta categoria, aplicava-se a lei ordinária, nos termos do Código Comercial e do Código Civil.

Esse período foi caracterizado pelo momento de máxima expansão da curva migratória, que registrou em 1913 mais de 870 mil partidas. Nos anos do primeiro pós-guerra, a situação mudou gradualmente.

O terceiro período, de 1919 a 1930, foi por sua vez dividido em duas subfases: a primeira de 1919 a 1927 e a segunda de 1927 a 1930.

No final da Primeira Guerra Mundial, antes mesmo da intervenção do fascismo, a atitude dos governos dos países cuja emigração era um porto mudou significativamente e tornou-se mais restritiva, também devido às tensões sociais após o fim da guerra de 1942. Estes foram certamente o resultado de uma situação política internacional que fomentou a "síndrome do inimigo interno", pouco antes e durante a guerra, bem como o surgimento dos bolcheviques na Rússia em 1917, e o "Biênio Vermelho" na Europa entre 1919 -1920. Isso, no entanto, era apenas o indicador de um horizonte mais complexo e problemático. 

Em primeiro lugar, a demanda de mão-de-obra do mercado de trabalho havia sido atendida de forma adequada. Manifestou-se o receio de que a desmobilização do pós-guerra se voltasse contra os indígenas, a consolidação do bem-estar empresarial, o desejo de delimitar as fronteiras dos próprios Estados e, por último, mas não menos importante, a excessiva distância cultural atribuída aos novos migrantes. a impossibilidade de dar continuidade às políticas de imigração anteriormente adotadas.

A legislação italiana, com base na mudança de perspectiva internacional, teve que se adaptar. O T.U. aprovado em 1919, de fato, embora atuasse como coletor das leis de emigração aprovadas até então, preparou o terreno para a posterior restrição regulatória da emigração. Por um lado, de fato, não era mais possível aos cidadãos italianos expatriarem com o relativa facilidade que havia caracterizado o período anterior, porque não encontrariam mais as condições legislativas e sociais que os estados de destino da emigração ofereciam anteriormente. Por outro lado, o fascismo lidou com a mudança de perspectiva internacional do fenômeno da emigração, modificando sua própria visão política sobre ele.

Quando Benito Mussolini subiu ao poder, a princípio não modificou significativamente a legislação existente e intensificou o regime de proteção aos migrantes. No entanto, esta política terminou com a extinção do Comissariado Geral da Emigração e de todos os órgãos a ele vinculados em 192744. A jurisdição especial, por outro lado, foi extinta em 192945. Estes Institutos, de fato, apesar de terem sido objeto de alguns as mudanças legislativas entre sua instituição em 1901 e as datas de revogação mantiveram uma estrutura baseada em uma concepção de emigração na qual o fascismo não podia mais se encontrar. Portanto, Mussolini decidiu eliminar esse legado da era liberal.

O ano de 1929 acabou com a vigência dos institutos de proteção que haviam sido implantados e aprimorados nos anos da chamada período liberal, prerrogativa de um governo de emigração cada vez mais politizado, conforme já descrito no segundo parágrafo.

O fascismo, portanto, politizou a emigração, tornando-se uma ferramenta útil para sua própria propaganda e objetivos, tentando direcionar os "italianos para o exterior", como os emigrantes eram definidos pela retórica do fascismo, para objetivos estratégicos de política externa e interna própria, com o intuito específico de orientar quem quer emigrar das suas terras ou, no interior, para o Agro Pontino, que se reclamava, e para a África para a difusão das comunidades Colônias italianas nos territórios do Império (entre elas a famosa "quarta coluna" da Líbia).

A emigração representou, portanto, um elemento constitutivo fundamental da história do Reino da Itália e não deixou de sê-lo também na primeira parte da história republicana. De fato, o fluxo migratório retomou significativamente a partir de 1945 para países europeus e não europeus, até o chamado boom econômico, por volta da primeira metade da década de 1960. Naquele período o O fluxo migratório se transformou, passando a ser interno também ao estado italiano, graças às novas oportunidades de emprego no norte da Itália, que fizeram com que muitos italianos se mudassem do sul da Itália para o norte em uma fase de desenvolvimento econômico. 


Extraído da excelente e completa monografia de Gabriele Scotti













quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A Vida a Bordo no Tempo dos Veleiros e dos Navios a Vapor

Navio Espagne




Para nós, observadores do século XXI, o caminho do emigrante assume uma importância particular, aliás já perfeitamente presente para as milhares de pessoas que o protagonizaram ou testemunharam nas últimas décadas e séculos e para os observadores que nos precederam. 

Não é surpreendente, no período conhecido como a "grande emigração transatlântica", entre 1871 e 1914, havia o costume de puxar um fio desde o convés de um navio para o continente, fio que se rompia quando o navio se afastava do cais para levar sua carga de emigrantes para o oceano. Era uma simbologia forte e evidente, mesmo que na verdade não inteiramente representativa, tanto porque os emigrantes eram, não raro, viajantes experimentados e experientes que haviam rompido e religado o fio várias vezes (basta pensar nas Andorinhas e nas Aves Migratórias, que se  movem sazonalmente entre a Europa e as Américas), e porque muitas vezes o embarque acontecia em portos estrangeiros, em terras com as quais a partida não tinha vínculos, e então se alguma coisa o fio representava já havia sido rompido centenas ou milhares de quilômetros antes, talvez em algumas estações de trem barulhentas e movimentadas. 

Antes da viagem, a escolha do porto, o pernoite e o embarque no navio. Muitas vezes o emigrante, logo que deixava as terras onde nasceu, chegava ao porto de embarque de trem, saboreando no “vapor da terra” as condições de sujidade, aglomeração e promiscuidade que caracterizariam as etapas seguintes da longa viagem. 

As ferrovias ao concederem aos emigrantes um desconto de 50% na tarifa normal, embarcavam esses desgraçados em vagões de quarta classe, fazendo-os viajar mais devagar que os trens de carga, e até dando preferência de trânsito para trens com gado. Muitas vezes nessas viagens de trem os emigrantes precisavam mudar de vagão em estações de países cuja língua eles desconheciam, e hoje podemos encontrar nos arquivos históricos da emigração italiana, entre os documentos apreendidos pelas autoridades policiais, mapas manuscritos nos quais descreviam os nomes dos locais onde alguns  deles precisaram trocar de trem para chegar ao porto de embarque. 



Veleiros no Porto de Gênova no século XIX


Para o emigrante que já tinha começado a aventura num território desconhecido, para decifrar as conexões que deveria seguir, era obrigado a contar com conselhos e experiências de pessoas nunca antes vistas, que muitas vezes se revelavam erradas. 

Quando chegavam em alguma estação, as vezes tinham que descer do trem para fazerem a baldeação, que as vezes só acontecia no dia seguinte. Os emigrantes tinham que pernoitar até o momento do novo embarque, e a situação era diferente dependendo da cidade e do país para onde estavam destinados. 

Na Itália, depois de 1901, a estadia à espera do embarque no navio passou por lei para a responsabilidade do intermediário, a fim de eliminar a abusiva prática de trazerem clandestinamente os emigrantes com bastante antecedência da data de partida, mancomunados com uma vasta rede de angariadores de  pequenos hotéis, pousadas, pensões e pequenos negócios nas proximidades do porto, os quais exploravam aqueles infelizes durante a sua permanência na cidade. Não existiam hotéis ou residências específicas destinadas para emigrantes, mas apenas pousadas autorizadas. 

Nos primeiros anos da grande emigração as partidas de italianos para as Américas eram realizadas através dos portos do norte da Europa e a maioria dos emigrantes que ficavam espalhados pelas cidades portuárias dependiam de estalajadeiros quase sempre desonestos. Os portos italianos também careciam das infraestruturas necessárias para suportar operações de embarque.  No porto de Gênova, durante a maior parte do século XIX foi utilizado um cais sem construções ou abrigos para os emigrantes.  Apenas em 1890, um novo cais foi construído destinado apenas ao tráfego de passageiros e  na ocasião também foi erguida a Estação Marítima, equipada com dois edifícios utilizados para controle e serviços de alfândega, exame médico e banheiros, embaixo de uma cobertura capaz de proteger os passageiros do sol e do mau tempo.

A situação era muito diferente nos portos alemães, como Hamburgo, onde já existia até um conjunto de prédios destinados para emigrantes e que se estendia por uma área de 25.000 metros quadrados, cedida gratuitamente pelo estado à companhia de navegação alemã, com lojas, locais de culto e entretenimento. Em Bremen, deram preferência para 50 pousadas, evitando assim a  centralização dos emigrantes, e podiam abrigar 3.775 emigrantes, e se necessário também para mais de 5.000, oferecendo boas acomodações

No Porto de Trieste, a empresa líder no mercado de emigração local, a Austro Americana, ao contrário de seus concorrentes na praça, optou por seguir o modelo do porto de Hamburgo, adquirindo uma casa para o emigrante, que era várias vezes visitada pelas autoridades de saúde e segurança pública, que muitas vezes encontravam irregularidades alarmantes. Em março de 1905, um agente de saúde do Município de Trieste interveio e observou no seu relatório que para os mil e duzentos emigrantes que estavam partindo no navio a vapor Gerty, faltavam colchões. Em outro relatório das autoridades portuárias, observaram que uma parte dos emigrantes não tinham recebido cobertores para a noite. Outro relatório dizia que os emigrantes tinham que fazer a barba nos dormitórios e que devido a grande quantidade de gente amontoada existia muito lixo e lama acumulados em todos os ambientes, sem que ninguém limpasse durante o dia e que devido ao mal cheiro insuportável nos dormitórios, parte das janelas permaneciam abertas. Em outro relatório as autoridades apontaram que as camas acomodavam 5 0u 6 pessoas e que os banheiros eram mal conservados e mantidos sem higiene. 

Em abril de 1906 foi relatado um caso de varíola, e no relatório de um médico do hospital civil local chamado, escreveu entre outras coisas: “... só há vagas para no máximo 700 emigrantes e a companhia de navegação aloja 1.000 ou mais. Os beliches são muito próximos uns dos outros; há até alguns nos corredores. Até os refeitórios deixam muito a desejar, não há lixeiras permanentes, o lixo é simplesmente empilhado no pátio onde lá permanece por vários dias !  Tudo isso, considerando o afluxo extraordinário de emigrantes (100 novos ingressos por dia) constitui um perigo permanente. E a prova que tivemos justamente com este caso de varíola - que pode infectar quem sabe quantos indivíduos, empilhados como estão naquele ambiente. Além disso, não há possibilidade de realizar uma inspeção com a desinfecção necessária. Não há nenhum equipamento de desinfecção à vapor; em certas cidades por onde os emigrantes emigram, tudo está bem mais organizado; menciono Marselha, Gênova, Nápoles, etc".

O problema de saúde foi levantado outras vezes, de modo a obrigar a empresa de navegação a evitar a prática de superlotar a casa do emigrante e a procurar instalações adicionais, utilizando "até mesmo navios próprios que serviam de hotéis temporários no mar: um hotel flutuante, isso não permitia que emigrantes se aglomerassem e se alojassem no centro da cidade, com grande  perigo para nossa saúde pública ”.

Era uma questão da saúde pública de extrema urgência causada pela passagem de milhares de emigrantes pela cidade durante o ano, especialmente para uma cidade como Trieste, que já sofria em matéria de saúde e higiene. A cidade cresceu desproporcionalmente na década entre os censos de 1900 e 1910, dando origem a um aumento demográfico de mais de 50.000 habitantes, mensurável da ordem de 28,5%, enquanto os sistemas de esgoto sanitário e de abastecimento de água permaneceram parados sem melhorias. 

A situação habitacional era desastrosa, apenas parcialmente atenuada pelo programa de construção de moradias públicas confiado ao Instituto Municipal de Pequenas Moradias. Entre as classes populares prevaleciam doenças como a tuberculose, o alcoolismo, e epidemias  como tifo ou varíola, se espalharam em 1913 tendo sido registrados 15 casos fatais. 

O medo de que entre os passageiros da terceira classe houvessem portadores de infecções capazes de atuar como um gatilho e infectar as habitações ou o mesmo a Casa do Emigrante. Os locais de abrigo para emigrantes, geralmente descritos em documentos, é possível ver que estavam localizados o mais próximo possível das estações ferroviárias para evitar ou minimizar as relações e contatos com os moradores locais até a partida do navio.  Infelizmente para os emigrantes que saíram por esses portos sem infraestrutura para eles destinadas, forçados a perambular pelas cidades, muitas vezes nunca vistas antes e inevitavelmente convergirem nos bairros mais pobres, insalubres e perigosos, à mercê de contágios e pessoas maliciosas, para depois  acamparem nas docas a espera  do navio compondo aquela imagem de uma multidão desamparada muitas vezes reproduzidas em pinturas e fotografias.  

Finalmente chegava o momento do embarque, precedido das fases de preparação do navio, que certamente deviam parecer misteriosas para quem os via pela primeira vez: as idas e vindas de trabalhadores não qualificados que faziam a manutenção e os preparativos a bordo, das caixas, dos enormes cestos de carvão. E, por fim, o embarque pela escada. 

Antes do advento dos navios a vapor, os emigrantes viajavam em navios a vela. Essas travessias que muitas vezes se transformaram em uma verdadeira odisséia, e não é por acaso eles eram chamados de Navios do Caixão. Eram barcos que realizavam transportes mistos, pessoas e mercadorias, como depois também os navios a vapor farão durante décadas. 

Na rota da Europa para a América, além de passageiros, também transportavam ferro, tecidos, vidro, tijolos e produtos químicos, e na volta algodão, tabaco, trigo, bois e porcos. Os emigrantes navegaram do porto de Havre, na França, para Nova Orleans, de Bremen a Baltimore, de Liverpool a Nova York, Quebec e Boston, compartilhando a viagem com vacas, ovelhas e porcos, à mercê de ventos, correntes marítimas e icebergs. 

Como a duração da viagem era incerta, era muito difícil para os passageiros calcularem a comida e a quantia de dinheiro que deviam levar, o que os expunha à fome ou ao engano pelas tripulações que conheciam perfeitamente o mecanismo e às vezes abusavam dando intencionalmente informações incorretas no momento da contratação da viagem.

No tempo dos veleiros não precisavam muito para improvisar o barco para alojar os emigrantes, bastava ter um veleiro de médio porte. O investimento das companhias de navegação também podia ser modesto mas, ao contrário, o custo dos bilhetes eram muito altos: em 1851 o frete por emigrante era igual ao custo cobrado por uma tonelada de carga no veleiro.

Muitas vezes, situações críticas surgiam causadas pela improvisação. Ficaram registrados, nos arquivos de algumas companhias de navegação, vestígios de uma  dessas situações, e que diz respeito à cidade de Trieste, e era de tal gravidade que interessava às autoridades judiciárias e policiais da cidade, então capital do litoral austríaco. 

Em 1888, dois banqueiros de Trieste fretaram três navios a vapor do Lloyd Austriaco, o Helios, o Orion e o Medusa, os quais zarparam de Trieste respectivamente em 25 de outubro, 25 de novembro e 27 de dezembro, todos os três tendo como destino o Império do Brasil, com sua carga de emigrantes provenientes do território de Trieste e do Reino da Itália. Lembrar que nessa época Trieste todo o atual Friuli ainda fazia parte do Império Austro Húngaro e a cidade  era parte do litoral daquele império. 

A tentativa dos dois irmãos em se envolverem continuamente no tráfico de emigrantes acabou sendo frustrado por uma série de fatores concomitantes, em primeiro lugar um processo criminal contra eles pela polícia austríaca e a proibição de instalação de agências de emigração em Trieste emitida pelas autoridades do litoral em janeiro de 1889. Mas foi uma tentativa notável, que na primeira viagem teve um epílogo muito interessante, por parte de um contingente de cerca de duzentos emigrantes da zona de Trieste que, tendo sido desembarcados em local diferente do contratado, reagiram com uma série de reivindicações e demandas, necessitando a intervenção do cônsul austríaco para finalmente conseguirem a repatriação para Trieste via Gênova a bordo de um navio inglês, que lhes permitiu voltar para casa em 14 de janeiro de 1889, dois meses e meio após a partida. 

A transição entre os tempo da vela e a do vapor pode ser personificada na vida e na experiência de Andrea Gagliardo, pequeno agricultor genovês que navegou 14 vezes com destino à América entre 1847 a 1888. Notas de algumas das 14 viagens permanece atualmente no Arquivo de Escrita Popular da Ligúria, localizado junto a Universidade de Gênova, o que permite comparações interessantes. 

Duas notas sobre um de seus manuscritos autobiográficos, separados um do outro por pouco mais de uma década, marcam com exemplar clareza mudanças marcantes na história da migração internacional. Escreveu:
“1847. Veleiro Bettuglia de Gênova a Nova York  57 dias.
1861. Etna, navio a vapor, de Liverpool a Nova York em 17 dias. "É uma verdadeira  revolução, que afetou as principais variáveis ​​da jornada do emigrante, ou seja, o porto de embarque, o tipo de navio e a duração da viagem. 

Assim que os navios a vapor suplantaram os veleiros, uma nova fase se abriu que logo se tornou um épico: havia chegado a hora dos desafios tecnológicos e construtivos entre as grandes companhias marítimas, as mesmas que se sentaram para compartilhar as fatias de mercado do tráfico migratório criando os cartéis, que trabalharam com todos os seus recursos e energia para construir o maior, mais rápido e luxuoso navio. Foi o período dos gigantes do s mares, dos desafios para arrebatar a Fita Azul aos concorrentes, dos enormes recursos ao serviço da progresso na marinha. Embora, convém notar, do ponto de vista da viagem do emigrante, os grandes transatlânticos representassem as excelências, os picos, as exceções, enquanto a grande maioria dos circulantes continuava a ser composta por navios antigos, lentos e espartanos.

Foi assim que os emigrantes se viram a partilhar a viagem com os “passageiros de  classe”. Nasceu uma dicotomia perene que se alimentou da oposição: muitos passageiros na terceira classe, poucos na primeira; muito pouco espaço para o necessário, muito para o luxo; atração por lugares destino, consciência vaga ou nula de sua existência e essência; a viajar como fim ou lazer e viajar como obrigação de sobrevivência... 

A hospedagem a bordo dos emigrantes nos navios a vapor poderia ocorrer, como nos tempos de navegação a vela, em navios que também transportavam mercadorias. Neste caso as escalas nos portos eram particularmente trabalhosos porque era necessário organizar os dormitórios em estruturas e módulos que eram desmontados e remontados de tempos em tempos ou, em transatlânticos, junto com passageiros de segunda e terceira classes. 

De acordo com observadores contemporâneos, a melhor solução não era nenhuma das duas, mas uma terceira, ou seja, a construção de navios a vapor dedicados apenas aos emigrantes.
Para termos uma ideia do que ocorria a bordo durante a travessia do oceano, podemos hoje nos valer das inúmeras cartas que os emigrantes enviavam aos seus parentes ainda na Itália. Entre elas, uma carta escrita em 8 de Junho de 1889 e enviada desde o Brasil, da Colônia Angelica, São Paulo, pelo emigrante Francesco Costantin:

Não é incomum que os emigrantes fiquem sem a bagagem que despacharam desde a Europa, e são muito raros aquelas que felizmente são entregues. A um desses emigrantes, que reclamava ter perdido todas as suas bagagens  ele teve como resposta que podia fazer de menos, que tem peças de roupas também aqui. Duas noivas, casadas pouco antes de  virem para cá, haviam despachadas as suas roupas nos baús equando chegaram em São Paulo descobriram que eles estavam sujas de carvão. Os roubos que acontecem impunemente nos portos de Santos e Rio de Janeiro, no que se refere as bagagens dos emigrantes, eles são incríveis e gostaria de ter uma grande quantidade de papel para lhes contar todos os detalhes". 

A respeito das bagagens de mão, os relatórios históricos que nos dão a conhecer a sua consistência encontram-se frequentemente nos arquivos sobre a emigração. Estas são atas elaboradas na forma de um inventário pelo comandante ou oficiais superiores em caso de morte do proprietário. 

As refeições eram servidas de modo diferente dependendo se o navio tinha refeitório ou não. Os navios das companhias italianas não os tinham (uma experiência foi introduzida já em 1906, a bordo do navio Roma que fazia o trecho entre Gênova e Buenos Aires, mas começaram a espalhar-se muito mais tarde e com considerável resistência devido ao espaço que ocupava  tendo que remover os beliches), e as refeições eram servidas com o sistema de rancho, ou através da formação de um grupo de seis pessoas, uma das quais encarregada na arrecadação dos alimentos para os demais, com a tarefa de distribuí-los segundo critérios de equidade. Aqui está um exemplo de como este sistema funciona no relatos de um emigrante: 

Bem, subimos e imediatamente encontramos um grupo de homens que procuravam alguns amigos para formar um grupo de cinco pessoas  para comer. Como não havia mesas e cadeiras, comíamos sentados no chão. Aí falamos: “Sim, somos dois”, “Estamos aqui”, “Se nos aceitares ficaremos felizes”. Aqueles ali abençoaram e  se alegraram também e nos deram o número para comer, que era como uma tigela de sopa ou macarrão, uma tigela de baixo para o prato, um prato fundo de latão para todos (toda lata, hein?), uma colher e um garfo, sem facas. Os homens tinham as facas, depois os usavam, e cortavam. E beber ...o copo claro de latão com uma alça, senão queimava ... Que bom café! Talvez porque eu nunca tivesse tomado, bom ... café, nada de leite ... leite só para as crianças de até dez anos, ainda o davam para mim. E de lanche, a sopa ... a enfermeira passava com ... Eh, você precisava fazer fila na porta da cozinha. A cozinha ficava lá no convés. O homem encarregado do vinho, o homem encarregado da sopa e dos pratos, faziam uma pequena fila, pegou as coisas, depois veio até nós, que cada um tinha encontrado um canto. Se tinham encontrado um recanto nas cordas, ou em qualquer banco, muitos carregavam espreguiçadeiras, não muitos, mas bastantes". 

A respeito da quantidade de alimentos que eram fornecidos aos emigrantes, é preciso voltar a um fenômeno já mencionado, que é o comportamento dos tripulantes que muitas vezes passaram a fornecer porções menores de alimentos do que o previsto, para integrar o déficit com a venda de rações roubadas da carga do navio ou previamente embarcadas  ilegalmente de terra. 

No que diz respeito à qualidade da comida fornecida, ela era altamente questionável. A este respeito, é necessário notar o espanto de alguns observadores ao verem como eram exigentes os emigrantes em termos de gostos alimentares. Robert Louis Stevenson, que em 1879 viajou a bordo do navio Devonia, de Glasgow à Nova York, também escreveu sobre isso, muitas vezes se misturando com os emigrantes durante o dia (mas passando a noite em uma cabine de segunda classe): “Para aqueles que estiveram tão perto de morrer de fome em suas casas, que pularam no navio, pode-se dizer, com o diabo em seus calcanhares; para eles era tudo maravilhoso, e o nosso, o mais esplêndido dos navios. Mas a maioria estava profundamente insatisfeita. Fiquei surpreso ao encontrá-los com gostos tão delicados, pois vinham de um país em condições desastrosas como a Grã-Bretanha, e muitos de Glasgow que, comercialmente falando, era já morta e há muito tempo tinham o desemprego. Também eu vivia quase exclusivamente, como eles, de pão, mingau e sopa, e achava tudo, senão luxuoso, pelo menos decente. Mas esses trabalhadores gritavam enfaticamente o seu protesto. Não era "comida para seres humanos", era "bom para os porcos ”, era“ uma vergonha”. Muitos viviam quase exclusivamente de biscoitos, outros de suas provisões pessoais, e alguns pagaram mais por rações melhores."

O pernoite a bordo ocorria em amplos dormitórios que podiam comportar várias centenas de pessoas, perenemente sujas, úmidas, infestadas de germes, bactérias e parasitas, e por um cheiro que os médicos do navio cunharam o neologismo "fedor de emigrante". O ar dos dormitórios era verdadeiramente irrespirável devido a um conjunto de fatores como temperatura, ácido carbônico e vapor d'água gerado pela respiração, produtos tóxicos voláteis resultantes da secreção dos corpos mal lavados, presença de fezes e urina e vômitos, que ninguém se importava em remover do chão e das roupas. 

O dormitórios dos emigrantes eram divididos por sexo: meninos até uma certa idade poderiam ficar com suas mães no reservado para mulheres, e os garotos maiores no dos homens. Ao pôr do sol acontecia a separação e nos casos dos núcleos familiares, que não eram raros, membros da família desaprovando a divisão, preferindo a promiscuidade com seus - mesmo se do sexo oposto - do que a proximidade com estranhos do mesmo sexo. 

A situação a bordo das meninas e das moças sozinhas era muito delicada, frequentemente assediadas ou mesmo sexualmente abusadas por outros emigrantes, mas sobretudo pelos tripulantes. Não raramente, os comandantes dos navios foram obrigados a intervir contra os seus subordinados, como fez, por exemplo, o comandante do navio a vapor Argentina, que viajava em 1925 de Trieste à Nova York, que no diário de bordo invocava "as medidas cabíveis da Autoridade Portuária da cidade Giuliana contra 5 foguistas e 4 carvoeiros culpados de terem arrombado à noite uma porta de comunicação, para acessar os dormitórios dos emigrantes. 

Manter a ordem no navio não era tarefa fácil para o comandante que tinha sob a sua responsabilidade a supervisão das atividades de centenas, até mesmo milhares de emigrantes e ao mesmo tempo manter o  controle dos membros da tripulação. 

Não era incomum para esses envolverem o comandante, instigando os emigrantes contra ele como aconteceu a bordo do vapor Sofia viajando entre Trieste e o Brasil em 1923, quando tripulantes induziram os emigrantes em um protesto organizado contra a qualidade da comida, um prato de massa definido como “não comestível. 

Particularmente difíceis e ingovernáveis eram os foguistas, que muitas vezes mantinham intencionalmente a pressão das caldeiras baixa para diminuir a velocidade do navio e assim pressionar o comandante, que era obrigado a acatar pedidos e reclamações para não incorrer em atrasos.

Eram muito frequentes casos em que os tripulantes, assim que desembarcavam no porto de chegada, se misturavam na multidão do cais para não serem considerados desertores, conforme constavam do diário de bordo dos navios que abandonaram arbitrariamente, mas sim de emigrantes que escolheram uma forma de viajar menos incômoda e promíscua e mais trabalhosa que seus “colegas”. 

Também não se deve excluir que a montante houve um acordo com o capitão do navio, o que poderia ser induzido a fechar os olhos pela dificuldade de recrutamento de pessoal fatigado e também pelo fato de a última parte do vencimento de cada desertor não era pago, tornando-se uma economia de custos disponível para a empresa e talvez também para o próprio comandante. Em alguns casos, as deserções dos tripulantes eram muito numerosas em cada viagem. Só para dar um exemplo, o caso do navio a vapor Presidente Wilson do qual, durante a viagem de Trieste em 22 de dezembro de 1923, parando nos portos de Nápoles, Argel e Nova York e Boston desertaram um total de 83 homens da tripulação.

Do ponto de vista da saúde, o navio era um lugar patogênico por excelência, como o divulgado pelas estatísticas italianas organizadas pelo Comissariado Geral da Emigração, entre os anos de 1903 a 1925. As doenças que se propagam a bordo mudavam em frequência e intensidade, dependendo se a viagem era de ou para América do Norte ou América do Sul e se era uma viagem de ida ou de volta. 

Para quanto à América do Sul, sarampo, malária e sarna prevaleceram, durante as viagens de retorno tracoma, tuberculose e sarampo. Nas viagens aos Estados Unidos, sarampo, malária, pneumonia, tuberculose, sarampo e insanidade mental nas viagens de retorno. Os tipos de doenças registradas em viagens de ida são diferentes de acordo com os destinos, e conforme o sistema de controle dos diversos países, que tinham malhas mais ou menos ampla de acordo com as diferentes legislações. Malhas de controle sanitário que eram super estreitas nos Estados Unidos. 

As estatísticas da Comissão Geral de Emigração oferecem-nos os dados da mortalidade durante as travessias entre 1903 e 1935. Também neste caso é necessário distinguir a viagem de ida daquela de retorno e o destino de origem, bem como, obviamente, o ano de referência. 

Para viagens de ida para a América do Norte, os picos foram em 1918, 1917 e 1922 (respectivamente com taxas de 1,2, 0,7 e 0,6 por mil); para a América do Sul, os picos foram em 1920, em 1921 e 1922 (com taxas de 0,7, 0,6 e 0,6 por mil). Para viagens de volta, em picos, marcadamente crescentes, ocorreram na América do Norte em 1918, 1917 e 1916 (respectivamente com 3,15, 2,9 e 2,1 por mil) e para a América do Sul em 1919, 1921 e 1903 (com taxas de 1,8, 1,8 e 1,7 por mil). 

Vítimas preferenciais das patologias de bordo estavam as crianças, que sucumbiam mais ao sarampo do que a qualquer outra doença, devido à superlotação, à falta de locais de isolamento, ao ineficaz serviço de saúde e, no caso das crianças, ao fato de que devido ao estresse da travessia as mães perdiam o leite. Para agravar os quadros clínicos já comprometidos, o enjôo, condição que ocorre com muita frequência nas declarações dos emigrantes:

“Se o tempo estiver favorável, está tudo bem, mas é difícil fazer a longa jornada sempre com bom tempo. Ele não encontra palavras adequadas para descrever o inteiro comprometimento de um todo navio, as lágrimas, os rosários e as blasfêmias de quem empreendeu a viagem em tempos de tempestade. As ondas assustadoras  sobem para o céu, e então formam vales profundos, o navio é atacado de popa a proa, é batido pelos lados. Não vou descrever os espasmos, os vômitos e os espasmos dos pobres passageiros ainda não habituados em tais elogios. No dia em que o mar está tempestuoso poucos são os que vão pegar o rancho. 

A descrição de tempestades também está presente com muita frequência nos diários de bordo escritos pelos capitães, que se entregaram a descrições aprofundadas com particular atenção às condições do mar e às repercussões na carga do navio. Havia um motivo específico para tanto interesse pelas condições climáticas: eram anotações feitas para isentar a responsabilidade do transportador no caso de as mercadorias tivessem sido danificadas ao provar que teria feito todo o  possível para evitá-los.

Durante a navegação sempre havia o risco de acidentes e até naufrágios. Aconteceram naufrágios famosos para o mais conhecido de todos a ponto de se tornar proverbial, o do Titanic, e apenas para observar que embora os emigrantes fossem a grande maioria dos passageiros, pouquíssimos se salvaram. Na época dos acontecimentos surgiu uma grande polêmica sobre o assunto, e havia quem dissesse que a causa era a própria aversão em abandonar o navio, porque acreditavam que o navio era seguro, porque não queriam deixar suas malas a bordo, porque eles foram alojados em uma posição que eles só poderiam alcançar os conveses superiores tarde demais. 

Para resgatar os sobreviventes do Titanic se apresentou um navio a vapor de companhia concorrente, o velho e maltratado Carpathia da Cunard Line, que navegava de Fiume (e Trieste) à Nova York e, estando a cerca de 40 milhas do local do desastre com seus 740 emigrantes a bordo e 325 tripulantes, recebeu o SOS do Titanic. O capitão Rostron não hesitou em lançar o navio a mais de 17 nós (velocidade que se dizia ter sido alcançada apenas na prática) e após quatro horas de louca corrida no oceano cheio de icebergs alcançou e salvou os 712 sobreviventes,  um dos quais morreu em conseqüência do frio. 

Mas nas travessias do oceano não haviam apenas doenças, tristezas, tragédias, decepções, opressão e miséria. Às vezes se passava o tempo com serenidade, senão mesmo com diversões, graças a passatempos organizados, como os fogos de artifício, contados pelo escritor italiano De Amicis, ou brincadeiras de uso na travessia do Equador que consistia em batismos de emigrantes que pela primeira vez estavam no outro hemisfério, ou outros tão espontâneos como dançar ao som de pequenas orquestras improvisadas. Muito vivas são as memórias de um emigrante, sobre a forma como, em criança, os peixes e pássaros que acompanhavam o vapor podiam oferecer diversão aos pequenos passageiros com a sua companhia. 

O avistamento da terra era um momento mágico na vida a bordo, o sinal de que algo estava para mudar, que o futuro estava mudando para melhor e, de fato, estava sendo saudado com gritos de alegria:

“Quando, então, após uma longa navegação de 30 dias finalmente em 11 de janeiro de manhã cedo começamos a ver as montanhas do Brasil começamos a  gritar viva e viva a Merica ... ".

Era a América, finalmente, os emigrantes amontoados em frente às grades, as crianças eram colocadas sobre os ombros, todos lavados, homens barbeados, e as crianças eram vestidas pelas mães com suas melhores roupas para que se encontrassem com os pais, as pessoas se perguntavam sobre as perguntas que seriam feitas no patamar e aqueles que já tiveram a experiência migratória deram conselhos. Mas a viagem ainda não tinha terminado, outras provas aguardavam os emigrantes, particularmente severos para aqueles que estavam prestes a desembarcar nos Estados Unidos através do porto de Nova York. Até 1891, os imigrantes recém-chegados em Nova York eram recebidos e examinados em Castle Garden, mas a partir do ano seguinte em Ellis Island, uma estrutura gigantesca, entrou em operação, muito eficiente e implacável para suas funções e dimensões, que passava pela peneira centenas de milhares de imigrantes todos os anos. Em 1907, o ano dos recordes, foram avaliados mais de um milhão de emigrantes, em um único dia daquele ano até 11.747 emigrantes.

A estrutura, que ficava em uma ilhota da baía de Nova York, na foz do rio Hudson, a três quilômetros de Manhattan, foi projetada em 1897 e consistia em vários prédios, onde trabalhavam mais de 500 pessoas. O edifício do Hospital Geral foi agregado em 1901. O prédio principal dominava todos eles, com três andares, divididos respectivamente de baixo para cima em depósito de bagagem, sala de registros, exames médicos, entrevistas e dormitório. Os navios a vapor eram grandes demais para atracar e, portanto, os passageiros da terceira classe eram transferidos para Ellis Island a bordo de barcos, não raramente após esperas que podiam durar até dias, mas em qualquer caso, não antes de um médico do serviço de imigração verificar por meio de uma visita a bordo que não haviam epidemias e que as regras de direito marítimos e de navegação tinham sido  respeitados.

Após uma breve entrevista, os passageiros de primeira e segunda classes podiam desembarcar sem maiores formalidades, enquanto os emigrantes precisavam desembarcar com a bagagem de mão que eram obrigados a identificar com seu próprio nome ou, se analfabetos, com um símbolo de identificação. Por isso, deviam passar pela linha de inspeção que substituiu, a partir de 1905, o exame médico não mais realizado devido ao grande volume de tráfego de passageiros. 

Os imigrantes desfilavam para que os médicos os observassem e avaliassem a existência de anomalias físicas evidentes. Em seguida, vinha o exame de olhos, para verificar  se os recém-chegados apresentavam tracoma, usando uma ferramenta especial, uma espécie de pinça que era usada para levantar as pálpebras o que era muito irritante e dolorido. Os que se encontravam com quadro clínico suspeito eram marcados nas  roupas com um traço de giz, segundo um código que associava uma patologia ou uma parte do corpo a cada letra, destinada a uma consulta adicional que, se ao final houvesse diagnóstico de doença infecciosa ou o imigrante era mentalmente deficiente, teria como resultado a repatriação forçada às custas da companhia de navegação que o rejeitado tivesse usado para a viagem. 

Então, após a conclusão de todos os exames de saúde, chegava a hora da fiscalização jurídica, que se realizava por meio de perguntas destinadas a averiguar que, segundo a lei de imigração de 1907, os candidatos à entrada no país não estavam sem dinheiro (precisavam de pelo menos 25 dólares ou, caso contrário, um nome de amigo ou familiar que garantissem assistência em caso de necessidade) e não destinados para locais onde, segundo as autoridades americanas, não havia necessidade de mão de obra. A permissão era finalmente negada àqueles que, muitas vezes ingenuamente acreditando nesta forma de impressionar os examinadores, declaravam que já tinham um emprego à sua espera ou mesmo já tinham assinaram um contrato. 

Para os que emigravam para a América Latina, os controles de desembarque eram muito menos meticulosos e os emigrantes recebidos em estruturas não muito diferentes das pousadas ou hotéis para emigrantes já experimentadas nos portos de embarque, nas casas de imigração ou nas Hospedarias de Imigrantes. Aqui está uma opinião sobre como era a Hospedaria de Santos, Brasil, no início do século XX:

"[...] um grande estabelecimento constituído por um complexo de grandes salas, separadas por pátios e unidas por passagens cobertas, onde os emigrantes param durante três ou quatro dias antes de entrarem. Aqui são feitos contratos de trabalho com os fazendeiros. Na Hospedaria, os emigrantes têm alojamento e alimentação gratuitos; mas que alojamento e que comida! A cama é quase toda uma esteira no chão, e a comida é pão e sopa. As condições higiênicas deste lugar são ruins nada lisonjeiro. "

Uma vez desembarcado e colocado provisoriamente em um abrigo para a quarentena, o emigrante percorria o último trecho de sua jornada, que terminava da seguinte forma: a pé, de carroça, de barco, de pequenos barcos, dependendo do destino, estado das vias de comunicação do país e da disponibilidade de dinheiro. Em muitos casos, se prolongava por dias e dias uma viagem que parecia interminável, conforme podemos ver nos relatos de um emigrante desde o Brasil:

“... enfim a  meia noite chegamos ao porto do Rio Janeiro com 3 nascimentos e 7 falecimentos... Depois do Rio Janeiro fomos encaminhados para Santa Catarina e daí para o Rio Grande do Sul, até Porto Alegre, e depois, com um pequeno barco, para Rio Pardo  onde desembarcamos. Em todos os navios que passamos foram 42 dias ao total. Aqui em Rio Pardo paramos 6 dias e depois nós colocamos em carretas de boi as bagagens, as mulheres e as crianças pequenas. Nós caminhamos de Rio Pardo até Santa Maria da Boca do Monte passando por pradarias, selvas e bosques. Comemos no campo e dormimos embaixo de tendas, a nossa caminhada durou 15 dias. A alimentação era suficiente todo mundo comia carne, sopa suficiente, pão e café abundante. Finalmente chegamos em um campo que só se via madeira e o céu, então estávamos todos desesperados e não sabíamos o que fazer. Finalmente eu e três outros amigos beluneses começamos a caminhar para Santa Maria que estava a 6 horas de distância, e após vários dias de caminhada, encontramos uma boa colônia..."