terça-feira, 28 de outubro de 2025

Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança

 


Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança


No ano de 1887, Attilio Zampiero deixou a pequena vila de Roverchiara, nas terras baixas de Verona, levando consigo apenas um punhado de roupas gastas, alguns utensílios herdados e a lembrança viva da pobreza que o esmagava desde menino. A vida na Itália já não oferecia nada além de dívidas e fome. O campo onde nascera não bastava para sustentar sequer uma cabra, e o suor da família escorria em vão nas pedras áridas da planície.

O Brasil surgia como promessa nos relatos que corriam de boca em boca. Falava-se de campos infinitos, madeira abundante e liberdade para cultivar o que se quisesse. Cartas mal escritas do tio Antonio, instalado havia alguns anos na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul, traziam sempre um convite insistente: vender o pouco que possuíam e atravessar o mar.

A decisão de partir foi dolorosa. A família vendeu a casa e o pedaço de terra, abandonando também os túmulos de gerações no cemitério da vila. A despedida, marcada por lágrimas silenciosas, carregava o peso de nunca mais rever a Itália. Embarcaram em Gênova no navio a vapor Colombo, abarrotado de emigrantes miseráveis. Foram trinta e dois dias de travessia. O cheiro de corpos confinados, a umidade do porão e a ameaça constante da doença tornavam cada amanhecer uma vitória. A morte rondava como um predador paciente, mas Attilio resistia com a teimosia de quem não tinha escolha.

Quando enfim alcançaram o porto de Rio Grande, descobriram que o sonho tinha um preço maior do que imaginavam. Foram alojados em barracões superlotados, à espera de embarcações fluviais que os levariam lentamente, contra a corrente, pelos rios Guaíba e Caí até Montenegro, onde descansaram apenas por uma noite antes de seguir viagem.

Daí em diante, não havia estradas, apenas trilhas abertas a facão que se perdiam no coração da mata. Attilio e a família seguiram a pé, carregando baús e trouxas improvisadas. Havia dias em que a chuva fazia do caminho um lamaçal, e, quando a noite caía, o mundo se fechava como uma cortina de escuridão sem estrelas. Cada parada era um acampamento improvisado, alimentado com fogueiras pequenas e o pouco de farinha de milho que restava.

Depois de um dia que parecia não ter fim, chegaram à Colônia Dona Isabel, onde o tio Antonio os aguardava. O reencontro trouxe alívio e lágrimas, mas a jornada ainda não estava concluída. Em uma carroça puxada a bois, avançaram mais de um dia até alcançar a recém-aberta Colônia Alfredo Chaves, o lugar destinado pelo governo. O que encontraram foi um terreno íngreme, tomado por pedras e árvores seculares, um mundo hostil que parecia zombar de qualquer tentativa de cultivo.

Attilio ergueu com as próprias mãos um rancho tosco de troncos e folhas de palmeira. Plantou milho e feijão, criou algumas galinhas e um porco. Cada dia era uma batalha contra a floresta, que parecia querer engolir de volta os homens. A saudade da Itália ardia, sobretudo quando lembrava o cheiro do pão fresco e o som dos sinos de Roverchiara. Mas a volta era impossível. O Brasil tornara-se, ao mesmo tempo, destino e prisão.

A vida em Alfredo Chaves exigia coragem dobrada. O Rio das Antas, de águas revoltas, separava a colônia da vizinha Dona Isabel. Para atravessá-lo, usavam canoas frágeis, arriscando-se contra a correnteza traiçoeira. Era ali que Attilio trocava sacos de milho por sal ou ferramentas, sempre com o medo de que a água lhe roubasse a vida, como já fizera com outros colonos.

Os invernos castigavam com geadas que queimavam plantações inteiras. Muitas vezes, Attilio misturava farinha de milho com raízes da mata para saciar a fome dos filhos. Mas a obstinação não lhe faltava. Com vizinhos, começou a cultivar videiras, pequenas mudas trazidas escondidas da Itália, sonhando com o dia em que o vinho das colônias pudesse rivalizar com o das tavernas de Verona.

Com o tempo, Alfredo Chaves começou a se organizar. Famílias ajudavam-se em mutirões para erguer casas de pedra e capelas de madeira. Attilio, respeitado por sua tenacidade, tornava-se presença constante nas derrubadas, nas colheitas e até nas arriscadas travessias do Rio das Antas.

Mesmo assim, a saudade permanecia. Nas noites frias, o vento que soprava da serra lhe trazia lembranças da Itália. Ainda que a miséria continuasse a rondar, cada árvore derrubada e cada videira enraizada representavam conquistas arrancadas à força de um mundo desconhecido.

Foi assim que Attilio Zampiero fincou raízes no Brasil: não como promessa de riqueza imediata, mas como a única chance de sobreviver e deixar aos filhos uma herança maior do que ouro — a certeza de que, mesmo entre rios perigosos e terras ingratas, a esperança podia florescer.

Anos mais tarde, quando Alfredo Chaves recebeu o nome de Veranópolis, Attilio já sabia que aquela era sua pátria definitiva. A Itália ficara para trás como lembrança distante, mas a vida seguia ali, onde cada pedra retirada do chão e cada parreira erguida eram páginas escritas de sua própria estrada da esperança.

Nota do Autor

A história de Attilio Zampiero – A Estrada da Esperança nasce do testemunho vivo de descendentes de imigrantes italianos que se estabeleceram na antiga Colônia Alfredo Chaves, hoje Veranópolis, no final do século XIX. O personagem central, Attilio Zampiero, é fictício apenas no nome; sua trajetória, marcada pela travessia do oceano, a chegada ao Rio Grande do Sul e a luta contra a mata e a solidão, reflete fielmente a experiência relatada por seus herdeiros de memória. Por respeito ao pedido de anonimato das famílias que compartilharam suas lembranças, os nomes verdadeiros foram preservados no silêncio. Ainda assim, tudo o que aqui se narra — a viagem, os sofrimentos, a travessia do Rio das Antas, o início da vida em terras íngremes e pedregosas — pertence à realidade daqueles que ousaram trocar a Itália pela incerteza do Brasil. Attilio, portanto, é mais do que um personagem: é o símbolo de tantos homens e mulheres que construíram suas estradas de esperança no coração da serra gaúcha.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta