quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A Emigração Trevisana

Caxias 

Uma bela noite de julho de 2000. Nós a passamos na companhia de pessoas que falam dialeto vêneto, cantam velhas melodias populares, tomam merlot del Montello - e com traços fisionômicos e a partir do sobrenome pode estar relacionado a nós à distância. As colinas imersas na escuridão possuem o curso suave que caracteriza aqueles do sopé de Treviso. Poderíamos pensar que estamos em casa, não fosse a estranheza de um céu em que brilha o Cruzeiro do Sul e cintilam as nebulosas de Magalhães.
Estamos perto de Caxias do Sul, no sul do Brasil. Nossos convidados são os descendentes distantes do primeiro recrutamento de imigrantes de origem italiana, na verdade veneziano. Aqui, os chamados "camponeses submissos" da antiga província austríaca anexada à Itália em 1866, buscavam escapar da fome, de doenças endêmicas como a malária e a pelagra, dos impostos sobre o sal e a farinha moída impostos pelo novo estado. E se transformaram em colonos, lutando contra índios e bandidos, limpando mato, fundando cidades, fazendas e fábricas. Eles foram chamados pelo governo brasileiro para conquistar terras selvagens e recriar o modelo de povoamento difundido que conheceram em tempos remotos - da Sereníssima, que impôs distribuição grandes malhas das aldeias do território, para que os camponeses estivessem ao serviço das vilas.
O modelo de desenvolvimento que criaram, em simbiose com os descendentes dos Alemães dos Polacos e dos gaúchos, é de tipo agroindustrial - senão homólogo, certamente análogo ao do Vêneto contemporâneo.
Eles falam brasileiro, mas mantêm o uso do tàlian - um veneziano agora arcaico, que seus filhos estão perdendo. E dá um nó na garganta quando você encontra velhas camponesas que evocam a memória de uma civilização rural que morreu aqui há cerca de trinta anos. Sem a nostalgia hipócrita de uma realidade dura, é humanamente doloroso ver o mesmo mundo morrer duas vezes. 
Há quem tente salvar seus vestígios, história e patrimônio linguístico. Entre eles está uma pessoa extraordinária: Frei Rovilio Costa, professor de sociologia da Universidade de Porto Alegre. Com a sua editora Est publica ensaios históricos, dicionários veneziano-portugueses, romances e contos de humor, documentos etnográficos, mas também livros com nomes de imigrantes. Dizemos a ele que a elaboração deste último nos parece um esforço tortuoso. Ele responde que a emigração da Itália não pode ser estudada apenas com estatísticas, porque todo homem desenraizado é antes de tudo uma pessoa que precisa remendar sua própria história individual com a da comunidade de origem.
Ao voltar para casa, nos perguntamos sobre nosso despreparo para tal encontro com as Vênus do Novo Mundo. Consultamos os livros escolares.
Afinal, é também sobre esses instrumentos que se forma a consciência histórica da maioria dos cidadãos. E vamos verificar o que na realidade nossa surpresa já denunciou. Em outras palavras, um espaço marginal é dedicado à emigração. Lembramos que Villa Deliso, tenaz jornalista que dedicou sua vida à epopéia dos migrantes, já havia se queixado disso, enquanto o mundo universitário como um todo não pesquisou muito sobre o assunto - embora não faltem acadêmicos individuais de bom nível que seguiram caminhos investigativos interessantes.
No entanto, a emigração italiana, nos cem anos
de sua história (1870-1970), teve proporções memoráveis, afetando mais de vinte e sete milhões de nossos compatriotas. Olhando mais de perto, no Veneto há poucas pessoas que não incluam algum exílio em seus ramos familiares. Então, como você explica o enigma do grande silêncio que envolve uma página histórica tão decisiva para a Itália? Se em algum
Dessa forma, podemos adivinhar que a história dos humildes tem sido negligenciada pelas elites intelectuais, por que a entrega intergeracional, boca a boca entre idosos e jovens, também falhou? O advento da era da mídia de massa sufocou as vozes do passado ou quem deveria falar não está lá e quem deveria ouvir não queria ouvir? Pode ser uma forma de amnésia coletiva induzida pela rejeição de uma história muito dolorosa, entrelaçada com os sacrifícios ligados à globalização (antes da invenção do termo) do trabalho como uma oportunidade desesperada para as elites humildes se libertarem de uma condenação atávica à minoria social. Um afastamento, portanto, ligado à impossibilidade por parte das classes populares, até um passado recente, de elaborarem uma memória própria, capaz de orgulho, diante dos preconceitos hostis dos grupos dirigentes e de sua intelectualidade. 




Se você acha às palavras ditas no final do século XIX por Antonio Caccianiga de Treviso, que acreditava que devia encontrar-se na ociosidade, na ignorância, na inveja e na ganância que infestava o campo, verdadeiras causas da emigração. Seja como for, a terapia só pode ser encontrada na recuperação de memórias e seus caminhos formação eli - dizemos, como responsáveis ​​respectivamente do Departamento de Cultura da Província e do Instituto Histórico da Resistência
e da Sociedade Contemporânea da Marca Trevigiana. Mas como podemos intervir para envolver uma comunidade tão grande e composta, que é a atual em Treviso? A solução parece um truque: usar a linguagem icônica que todos têm em comum como telespectadores, leitores de jornais ou internautas. A ideia é construir uma exposição histórico fotográfica, a ser feita itinerante para trazer o maior número de pessoas possível. Lá o desafio está em definir uma abordagem científica, porque estamos agora em 2001 e já está em chamas imprensa nacional e local um debate ideológico sobre o fenômeno que a Itália está experimentando com as fileiras invertidas: a imigração fora da UE. Decidimos que não estamos interessados ​​em propor esquemas de interpretação pré embalados e pré digeridos. Em vez disso, queremos que a exposição se ofereça como máquina para compreender as coordenadas do fenômeno, suas causas e suas manifestações no espaço e no tempo. Tudo no espírito de uma obra aberta, que remete para um estudo mais aprofundado e para a formação de uma atitude crítica, útil para compreender o passado e decifrar com responsabilidade o presente.
O Conselho Provincial e a Diretoria da Istresco aprovam o projeto. A análise e leitura superficial do material fotográfico coletado pelo Arquivo de Fotos Históricas de Treviso tornam-se uma oração emocionante e comovente. Aqui estão eles nossos emigrantes: amontoados nos conveses dos navios que eles os levam para o desconhecido, em caravanas e vagões vadear rios e atravessar florestas sul-americanas, trabalhar nos pântanos do interior AgroPontine, em fileiras ordenadas na estação de Treviso ir para Hitler na Alemanha, com rostos negros e carvão nas minas da Bélgica, queimado de sol durante o corte da cana-de-açúcar na Austrália
ou na África do Sul, com machados em mãos nas florestas canadenses, com luvas de mecânico nos EUA e gradualmente, onde quer que o vento da esperança os tenha espalhado.
Preocupações não faltam por parte de alguns colaboradores. Essa operação poderia ser bem-sucedida? A resposta vem do público. Mais de vinte mil visitantes no mês da exposição no Palazzo dei Trecento em Treviso. Então chegam os primeiros pedidos de empréstimo. E é boca a boca e apreciações. As instâncias continuam, na verdade aumentam exponencialmente. Eles vêm de escolas, municípios, instituições e associações culturais. No final, perdemos o controle das re- inaugurações. No início de 2008 deveriam ter atingido cerca de cem. Para dar novas emoções e estímulos para o aprofundamento do trabalho estão os alunos, com as suas questões, os professores que instituem cursos de formação e investigação, as pessoas comuns que trazem material documental pertencente sua biografia de família. Mas eles são os ex-emigrantes, acima de tudo, para confortar uma experiência de confronto intergeracional. Eles chegam às reuniões, tomam a palavra e afirmam com orgulho o papel que desempenharam no relançamento da economia nacional por meio das remessas e do fato de terem trazido para casa novas competências profissionais e empresariais. A lição deles é a de bom senso, também no que diz respeito à atitude a ter para com os novos migrantes: respeito para com
dos que vêm trabalhar, desde que cumpram as autorizações; nenhuma confusão com aqueles que não respeitam as regras e costumes do país anfitrião.
Discutindo com eles percebemos o quão enganosa é a imagem dos emigrantes vênetos que partiram com fardos pobres ou malas de papelão. Na verdade, na época do seu desligamento, possuíam um patrimônio intangível inalienável, composto por disposições éticas formadas ao longo de séculos de árduo trabalho da terra, de transformação de manufatura, da prática de ajuda mútua, organização comunitária onde a religião agia pragmaticamente como uma cola entre grupos familiares (compensando o afastamento da autoridade do Estado, sentido com desconfiança e hostilidade). Prova disso é o fato de que onde quer que a diáspora os tenha trazido, eles geram entidades sociais com uma forte identidade produtiva e simbólica. Percebemos que a exposição e o presente catálogo que é o compêndio isomórfico, eles não são úteis apenas para entender o passado, mas também e acima de tudo por hoje. O conhecimento acumulado em um século de emigração pode oferecer as ferramentas cognitivas para interpretar o fenômeno da imigração, para compreender semelhanças e diferenças. E não se trata apenas de segurança - que também é importante e urgente - mas também de integração que, como demonstra a parábola da migração italiana e vêneta, só parcialmente é resolvido na homologação, embora principalmente configura-se na conquista de um complexo sistema de equilíbrios entre grupos sociais e étnicos que se aglutinam entre si. Além disso, a existência no exterior de comunidades de descendentes de italianos, no nosso caso de vênetos, abre na era da globalização a possibilidade de redesenhar as relações rompidas em outros tempos, mais amargas do que as que hoje nos permitem viver.
Não se trata apenas de aproveitar as oportunidades econômicas associadas à presença em mercados interessantes de enclaves amigos. Em vez, é dada a oportunidade de saldar uma dívida moral de gratidão para com os que partiram e de abrir-se a um outro nível de auto-reconhecimento da identidade através da relação com as comunidades nas quais a nossa se possa refletir. Porque a identidade não é um fato biológico, uma herança mecânica, mas uma escolha relacional consciente e crítica.

Marzio Favero
Conselheiro de Cultura da Província de Treviso 

Amerigo Manesso
Diretor Istresco