Além do Horizonte
Pietro Renaldi um Imigrante Italiano no
Interior de São Paulo
14 de fevereiro de 1889
No Porto de Santos, Pietro Renaldi apertava a amurada do navio com dedos que mais pareciam raízes agarrando-se a uma tábua de salvação. A neblina matinal flutuava como véus espectrais, dissipando-se aos poucos e revelando um litoral recortado e exuberante. Para Pietro, aquilo era ao mesmo tempo promessa e ameaça. Seus olhos, fundos de cansaço, refletiam a jornada de semanas enfrentando o mar revoltoso e o vazio entre continentes. Agordo, com suas montanhas nevadas e campos de trigo dourado, era agora uma lembrança quase palpável, e o Brasil, uma tela em branco a ser pintada com suor, lágrimas e esperança.
Ao lado dele, Lucia, sua esposa, mantinha o pequeno Angelo adormecido nos braços, enquanto Margherita, a filha mais velha, olhava com curiosidade e medo para a linha do horizonte. Pietro sentia o peso de suas promessas para a família, o compromisso de transformar aquele destino incerto em algo digno. "Você nos trouxe até aqui", Lucia disse baixinho, como se tentasse convencê-lo de que sua decisão tinha sido acertada. Pietro apenas assentiu, incapaz de encontrar palavras que pudessem domar o turbilhão dentro de si.
Na Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, o caos tinha um cheiro único: uma mistura de suor humano, comida diferente, ansiedade e medo, um aroma quase palpável que gruda na pele e na memória. O espaço era um microcosmo de desespero e esperança comprimidos, onde idiomas se sobrepunham como ondas quebrando contra rochedos. Pietro manteve a família unida, mas não sem esforço. Seus olhos varriam o ambiente, avaliando cada rosto, cada gesto, procurando ameaças ou sinais de ajuda.
“Chegaremos ao interior em breve”, dizia um agente que organizava os grupos. “Lá, há terras e trabalho para todos.” Pietro queria acreditar. Naquela noite, ele e Lucia dividiram um prato de sopa e umpedaço de pão endurecido, enquanto Angelo e Margherita dormiam sobre um colchão de palha. Pietro rezou em silêncio, não apenas por uma vida melhor, mas pela força de sobreviver ao que ainda estava por vir.
A paisagem do interior paulista era ao mesmo tempo deslumbrante e opressiva. Ondas de cafeeiros se estendiam até onde a vista alcançava, intercaladas por colinas cobertas de matas densas. Pietro e sua família foram levados a um alojamento rudimentar: paredes de madeira mal encaixadas, um teto que prometia mais chuvas do que abrigo, e um chão de terra batida que exalava a umidade do ambiente.
Os dias começavam antes do amanhecer, com um sino que parecia ecoar nas entranhas dos trabalhadores. As promessas de terras e salários justos logo se provaram mentiras. Os patrões tratavam os imigrantes como substituíveis, pouco mais que ferramentas de carne e osso. Na verdade o tratamento era parecido com aquele dado aos escravos da fazenda. Pietro, ao lado de Domenico Bellucci, outro italiano que se tornara seu amigo e confidente, sentia o fardo não apenas do trabalho extenuante, mas do vazio de um futuro que parecia cada vez mais inalcançável.
“Isto não é vida”, murmurou Pietro, enquanto capinava entre os cafeeiros sob um sol inclemente. “É um cárcere sem grades.” Bellucci, com a enxada em mãos, parou por um instante e olhou ao redor. “Mas fugir para onde? Aqui, ao menos, não somos caçados como animais.”
Quando a febre amarela chegou, foi como se a própria morte decidisse morar entre os imigrantes. Pietro adoeceu gravemente. Lucia, com olhos vermelhos de tanto chorar e noites em claro, cuidou dele com uma determinação feroz. “Não vou enterrá-lo aqui”, repetia, como um mantra. Pietro sobreviveu, mas não sem deixar uma parte de si para trás. Recuperado, ele observava os outros imigrantes com um novo respeito: cada um deles carregava um peso invisível, mas juntos eram uma muralha contra o desespero.
Cansado da exploração, Pietro organizou um pequeno grupo de trabalhadores. Eles se reuniam à noite, em segredo, discutindo formas de resistir. Decidiram plantar pequenas hortas para complementar a alimentação. Quando os patrões descobriram, ameaçaram puni-los. Pietro, com um olhar que não admitia recuo, enfrentou-os.
“Se não podem nos pagar o que merecemos”, disse, “então não morreremos de fome sob suas botas.”
A tensão aumentou, mas os patrões, temendo uma rebelião maior, cederam parcialmente. Permitiram que os trabalhadores cultivassem pequenos lotes para subsistência. Foi um passo pequeno, mas significativo. Pietro sabia que a resistência não se fazia em saltos, mas em passos firmes e constantes.
Anos se passaram. Pietro e Lucia, com economias arrancadas do solo com muito sofrimento, compraram um pequeno pedaço de terra. A vila formada por outros imigrantes, não muito distante da fazenda, era um refúgio, um lugar onde os rostos tinham nomes e as mãos, histórias compartilhadas. Pietro tornou-se um líder comunitário, orientando novos imigrantes e ajudando-os a enfrentar as dificuldades iniciais.
Quando o filho Angelo inaugurou a primeira escola da vila, Pietro sentiu um orgulho que nenhuma palavra poderia descrever. Ele, que deixara Agordo com mais dúvidas que certezas, agora via seu legado florescer no Brasil. “Não construímos apenas uma vida”, disse ele em um discurso emocionado. “Construímos um futuro para muitos.”
Em 1938, aos 78 anos, Pietro faleceu e foi sepultado sob a sombra de uma figueira que ele mesmo plantara. Sua partida deixou um vazio, mas também um exemplo de resiliência e esperança. Em sua lápide, na cidade que ele ajudara a erguer, lia-se:
“Ele atravessou oceanos, sobreviveu ao inferno e construiu um paraíso para os que vieram depois.”
Nota do Autor