segunda-feira, 7 de julho de 2025

A Carta de Chamada

 


A Carta de Chamada

Albino Contin sentou-se no banco de madeira ao lado da lareira acesa. Era uma noite fria em 1881, e a pequena casa de pedra, nos arredores de Treviso, oferecia pouco conforto contra o inverno rigoroso. Em suas mãos, um envelope amarelado trazido pelo carteiro da vila. Era uma carta de seu irmão mais velho, Matteo, que havia emigrado para o Brasil três anos antes.

Matteo tinha partido cheio de promessas de prosperidade, incentivado por agentes do governo italiano e por histórias de fazendas exuberantes e terras férteis do outro lado do Atlântico. Albino não tinha notícias concretas dele há meses e, enquanto desfazia o selo, seu coração acelerava.

"Caro fratello Albino," começava a carta. "Espero que estas palavras te encontrem bem. Aqui na Colônia Caxias, a vida não é fácil, mas há oportunidade para quem trabalha duro. As terras são vastas e selvagens, e precisamos desbravar cada pedaço com o suor do nosso rosto. Mas, diferente de nossa terra natal, aqui há esperança."

Matteo descrevia as dificuldades enfrentadas: o isolamento, a saudade, a luta contra a mata fechada e as doenças tropicais. Mas também falava de conquistas: a pequena casa de madeira que ele havia construído com suas próprias mãos, o pedaço de terra que começava a cultivar, e, acima de tudo, o sonho de uma vida melhor.

"Albino, precisamos de você aqui. Traga a nossa força de família, traga as memórias de nossa mãe e o som da nossa língua. Eu já organizei tudo: o navio partirá de Gênova em abril. Estarei esperando por você na colônia. Aqui, você terá a chance de construir algo que nunca poderíamos alcançar em Treviso."

A Decisão Difícil

Albino releu a carta várias vezes. Matteo era o mais velho dos Contin, e sempre havia sido o líder da família após a morte de seu pai. Mas deixar Treviso não era uma decisão fácil. Havia a casa que pertencia à família havia gerações, as vinhas plantadas por seus antepassados, e, mais doloroso que tudo, a promessa feita à mãe de nunca abandonar a terra natal.

No entanto, a Itália do final do século XIX não oferecia muitas opções para um jovem como Albino. As terras estavam concentradas nas mãos de poucos, e a unificação do país havia trazido mais tribulações do que benefícios. Os impostos aumentavam, o emprego era escasso, e a fome rondava as comunidades rurais.

Nos dias seguintes, Albino começou a se preparar. Vendeu o pouco que possuía: um par de bois, algumas ferramentas e a última safra de vinho. Levava consigo apenas o essencial: roupas, sementes de uva que prometera plantar no Brasil e a medalha de prata da Virgem Maria, que sua mãe lhe dera antes de morrer.

A Longa Travessia

A viagem de navio foi longa e exaustiva. No porão, Albino dividiu espaço com dezenas de outros imigrantes, todos ansiosos e temerosos pelo que os aguardava no Brasil. As condições eram insalubres, o ar, pesado, e muitos adoeceram durante a travessia. Albino passava o tempo rezando e pensando nas palavras de Matteo: "Aqui há esperança."

Quando finalmente desembarcou no porto de Rio Grande, foi encaminhado para uma hospedaria improvisada e de lá embarcou em uma longa e desconfortável viagem de carroça até a Colônia Caxias. A paisagem tropical era completamente diferente da que conhecia na Itália: montanhas cobertas de mata virgem, rios caudalosos e uma terra que parecia infinita.

Reencontro e Reconstrução

Matteo o esperava na entrada da colônia, com um sorriso cansado, mas sincero. Abraçaram-se como irmãos que haviam sobrevivido a guerras invisíveis. Matteo mostrou a Albino a pequena casa que havia construído e o terreno que começava a produzir milho e feijão.

"Bem-vindo ao nosso novo lar," disse Matteo. "Aqui começamos do zero, mas começamos como homens livres."

Albino rapidamente se juntou à rotina da colônia. A vida era dura: derrubar árvores, plantar em solo virgem, lidar com a distância e a saudade da Itália. No entanto, ao lado de Matteo e de outros italianos que compartilhavam a mesma língua e cultura, sentiu-se parte de algo maior.

Nos anos seguintes, Albino cultivou uvas com as sementes que trouxera de Treviso e começou a produzir vinho. Aos poucos, a colônia se transformou em uma comunidade próspera, com escolas, igrejas e festas típicas italianas. Matteo se casou com uma jovem da colônia, e Albino seguiu o mesmo caminho, formando uma família que carregaria, por gerações, as histórias de sacrifício e resiliência.

Raízes que Cruzam Oceanos

Albino nunca voltou a Treviso, mas sua memória da Itália permaneceu viva em cada vinhedo plantado, em cada canção cantada durante as festas e na língua que ensinou aos filhos. No coração da Colônia Caxias, construiu uma nova vida, sem nunca esquecer de onde veio.

E, sempre que olhava para o horizonte ao entardecer, Albino se lembrava da carta de chamada de Matteo — o início de uma jornada que transformara o sonho de dois irmãos em uma herança para gerações futuras.


Nota do Autor


"A Carta de Chamada" é uma narrativa ficcional inspirada nos acontecimentos históricos da imigração italiana para o Brasil no final do século XIX. Embora os personagens e eventos desta história sejam frutos da imaginação, o pano de fundo em que se desenvolvem reflete fielmente a realidade enfrentada por milhares de italianos que deixaram sua terra natal em busca de um novo começo nas terras brasileiras.

A prática da "carta de chamada" foi um fenômeno real e crucial para a imigração italiana no Brasil. Ela consistia em uma correspondência enviada por um parente ou amigo já estabelecido em solo brasileiro, oferecendo apoio financeiro e moral para aqueles que ainda permaneciam na Itália, presos às dificuldades econômicas e sociais da época. Essas cartas simbolizavam não apenas uma oportunidade de mudança, mas também a promessa de reencontrar familiares e de alcançar uma vida mais digna, ainda que à custa de sacrifícios imensuráveis.

A história se passa no contexto da Colônia Caxias, localizada no atual estado do Rio Grande do Sul, um dos principais destinos para os imigrantes italianos. Estabelecida oficialmente em 1875, essa região recebeu milhares de famílias italianas, que enfrentaram condições precárias, o isolamento cultural e linguístico, além do desafio de transformar a mata virgem em terras produtivas. Esse cenário desafiador, permeado por dificuldades, também foi palco de grandes demonstrações de resiliência, solidariedade e realização, que contribuíram significativamente para a formação cultural, social e econômica da região.

Com "A Carta de Chamada", busco homenagear as histórias de luta, amor e esperança daqueles que, movidos pela força do sonho, enfrentaram o desconhecido. Este livro é também uma celebração da herança imigrante, da coragem de um povo que, apesar de todas as adversidades, construiu um novo lar sem esquecer suas raízes. Que a jornada de Giuseppe e seus familiares inspire reflexão sobre os sacrifícios e conquistas de tantos que, como eles, ousaram atravessar o oceano em busca de um futuro melhor.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta