quarta-feira, 14 de junho de 2023

Veneza e a Peste Negra do Século XVI: Como a Cidade Sobreviveu à Pandemia mais Mortal da História

 


A Peste Negra em Veneza no século XVI




No século XVI, politicamente a cidade de Veneza já estava perdendo seu papel central, do ponto de vista demográfico ela estava em constante expansão: com seus 175.000 habitantes, era uma das cidades mais populosas do mundo.
Do ponto de vista cultural foi uma das capitais européias, onde pintores, escultores, arquitetos e escritores responderam ao nome de Ticiano, Tintoretto, Veronese, Piazzetta, Bassano, Palladio, Sansovino, Pietro Aretino, Galileo Galilei. A vivacidade cultural foi possibilitada por uma notável liberdade de pensamento, o que fez com que muitos intelectuais estrangeiros perseguidos encontrassem uma segunda casa na Sereníssima. Isso foi antes da terrível doença da peste irromper.
No triênio 1575-1577 a Sereníssima foi abalada pelo flagelo da peste: favorecida pela altíssima concentração de habitantes, a doença alastrou-se durante muito tempo e infligiu perdas gravíssimas, com um ressurgimento dramático nos meses de verão do segundo ano. As vítimas foram quase 50.000, mais de um terço de seus habitantes. 

A doença se espalhou principalmente entre as classes mais pobres, devido a uma promiscuidade mais generalizada e um padrão de vida precário. No início a gravidade do fenômeno foi minimizada, mas com a fúria da peste o governo teve que adotar medidas sanitárias muito restritivas: criou lazaretos, passou a enterrar os mortos com cal, cerrou casas ou até bairros inteiros, disciplinou contatos com os que vinham de fora, conseguindo manter vivas as instituições. 
Talvez a medida mais importante tenha sido em isolar por 40 dias marinheiros e as cargas suspeitas de contaminação. Essa medida era chamada de quarantina, assumindo mais tarde o nome de quarantena. Este termo, hoje tão falado e usado em todo o mundo, para tentar sustar alguma epidemia grave, foi criado nessa época em Veneza.
As autoridades sanitárias da Sereníssima controlava os navios que chegavam em Veneza, examinavam se estavam contaminados, quais as escalas que haviam feito durante a viagem, quais portos visitaram, onde ficaram ancorados e ainda quanto tempo ficariam no porto. Esta foi uma medida muito útil de proteção.
Os navios contaminados eram levados para ancoradouros longe da cidade, obrigados a fundear em portos que possuíam equipamentos de expurgo e para serem desinfetados. 
O isolamento dos doentes era feito nos chamados "lazzaretti", construções afastadas que ficavam, geralmente em uma ilha desabitada, em isolamento total. Lazareto também é um termo veneziano. O primeiro lazzaretto foi construído no ano de 1423 em uma ilha que abrigava a igreja Santa Maria de Nazareth, daí o nome. Mas algumas fontes atribuem a denominação a São Lazaro, que era o protetor dos leprosos.
Durante a peste, duas figuras particulares, relacionadas com a doença, vagavam pelas ruas de Veneza: o médico e o coveiro. O médico estava sempre muito exposto ao risco de contágio e teve que tomar muitas precauções: estava coberto com uma túnica preta, provavelmente de oleado, usava uma máscara com um longo bico adunco, bem perfumada no seu interior com bagas de zimbro, para mitigar o forte odor que exalavam os doentes. Com eles levavam uma espécie de bastão para que pudessem levantar as roupas do doente sem a necessidade de tocá-las e também para puncionar as grandes e fétidas pústulas que esses enfermos apresentavam, localizadas geralmente, no pescoço, axilas e região inguinal.






Os "pizzicamorti", eram os coveiros, também protegidos por uma jaqueta de lona e luvas grossas, que tinham a ingrata tarefa de transportar os cadáveres das vítimas da peste e queimá-los. Ele usava luvas e também uma máscara que cobria o rosto e os cabelos,  que continha antídotos aromáticos. Ele alertava de sua presença tocando os sinos de bronze que usava nos tornozelos. 
O Senado, em 4 de setembro de 1576, decidiu que o Doge deveria fazer o voto de erigir uma igreja dedicada ao Redentor, para que ele pudesse interceder para acabar com a peste. A cada ano, a cidade se comprometeu a homenagear a basílica, no dia em que foi declarada publicamente livre de contágio, em perpétua lembrança do benefício obtido. 
Em 3 de maio de 1577, com a peste ainda não erradicada oficialmente, foi lançada a primeira pedra e o templo votivo, obra de Palladio, foi consagrado em 1592 (12 anos após a morte do famoso arquiteto). A fachada é caracterizada por quatro colunas gigantescas sustentando um grande tímpano triangular e parece estar em três andares sobrepostos. O interior é solene e simples, com planta em cruz latina.


Peste em Veneza, tela de Tintoretto


Em 13 de julho de 1577 a peste foi declarada definitivamente erradicada, pelo que se decidiu celebrar a libertação da peste no terceiro domingo de julho. Ao aspecto religioso da festa juntou-se imediatamente o aspecto de festa popular, momento libertador depois de tanta tristeza. Para cruzar o Canal da Giudecca e permitir a passagem da procissão, uma imponente ponte de barcos foi montada já no primeiro ano, elemento característico da festa. Ao redor da ponte e do templo votivo o grito de gente alegre e alegre, a pé ou em barcos ricamente decorados, também dava à festa um aspecto profano, onde a devoção popular era acompanhada de prazer e diversão. Foi uma noite de vigília, a "noite muito famosa", que só terminou com a chegada do amanhecer.


Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS