segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Além do Piave, o Brasil: A Travessia de Matteo Pianaro

 


Além do Piave, o Brasil

A Travessia de Matteo Pianaro


O sino da pequena igreja da localidade de San Damiano di Piave bateu lento naquela manhã de dezembro de 1884. Matteo Pianaro ergueu os olhos, sem devoção, apenas por instinto. O inverno ainda não chegara com toda a força, mas o frio já corroía as juntas, e a geada dos campos era tão espessa quanto a fome de quem os arava. Com os dedos rachados e os olhos fundos, Matteo sabia que não havia mais como resistir à terra ingrata. A promessa do Brasil lhe parecia remota, quase ilusória — mas era a última que ainda podia acalentar.

O som grave e metálico do sino reverberava como um lamento, dissolvendo-se lentamente no ar gelado da planície vêneta, onde os campos jaziam imóveis, envoltos numa bruma que não se dissipava nem ao meio-dia. Ao redor da igrejinha, as poucas casas de pedra e cal exalavam fumaça cinzenta pelas chaminés, numa tentativa vã de aquecer corpos cansados e espíritos derrotados. Matteo, envolto num casaco puído herdado do pai, sentia o peso dos anos dobrado pela desesperança. Aos trinta e cinco, seus ombros já se curvavam como os dos velhos que viam seus filhos partir — ou seus netos morrerem — antes de tempo.

Cada sulco da terra congelada que se estendia diante dele parecia zombar de seu esforço, das madrugadas passadas com as mãos enfiadas na lama, dos domingos sem descanso. A vinha morria, o milho não vingava, e os filhos choravam à noite com os estômagos vazios. Nem mesmo os santos pareciam mais escutar as preces. A promessa do Brasil era mais que um boato entre camponeses: era o sussurro de um mundo desconhecido onde o trabalho ainda rendia pão, onde os filhos poderiam crescer sem carregar, tão cedo, o peso do fracasso.

Na véspera, Matteo ouvira de um forasteiro na taverna que uma nova leva de partidas estava sendo organizada em Treviso. Diziam que as passagens eram subsidiadas, que havia terras férteis à espera de braços dispostos. Não confiava em palavras soltas no vinho, mas sentira nelas algo que não sentia havia muito tempo: uma fagulha de direção. Ainda não havia falado com sua mulher, nem mesmo ousara escrever ao irmão em São Paulo — mas, no fundo, já sabia que a decisão estava tomada. O sino, naquela manhã, não chamava para a missa: anunciava o fim de um tempo, o fim da espera.

E enquanto os sons do bronze se apagavam entre os galhos nus das amoreiras, Matteo fechou os olhos por um instante e imaginou o cheiro da terra úmida sob o sol do outro lado do oceano. Não era fé, não era certeza. Era o último sopro de esperança que ainda lhe restava. E às vezes, sabia ele, era disso que nasciam os atos mais audaciosos dos homens.

Partiu com a esposa, três filhos pequenos e uma mala onde cabiam os restos do que fora sua vida. Embarcaram em Gênova num cargueiro saturado de corpos e esperanças. O porão escuro era úmido, fétido. O tempo ali passava como febre: indistinto, ardente, alucinante. Quarenta dias de travessia. Quarenta dias entre o enjoo, o medo e as orações. Quarenta dias vendo o mar apagar tudo o que ficava para trás.

Naquela embarcação enferrujada e rangente, o ar rarefeito misturava o cheiro da maresia com o suor ácido do desespero. As crianças choravam de fome ou de susto, às vezes sem motivo aparente — ou talvez por sentirem nos adultos uma inquietação que nem o balanço do navio conseguia disfarçar. Os colchões, quando existiam, eram fardos de palha úmida infestados de vermes. Ratos deslizavam por entre as frestas das tábuas, indiferentes às orações murmuradas em vários dialetos. Homens tossiam em cantos escuros, mulheres amamentavam sob o olhar da miséria, e cada amanhecer trazia consigo o medo de que alguém não despertasse mais.

Matteo, mesmo fraco e abatido, mantinha os olhos fixos na parede de madeira mofada à sua frente como quem tenta enxergar o outro lado do mundo através do casco. Cada noite parecia mais longa do que a anterior, e o som das ondas batendo contra o porão soava, ora como ameaça, ora como um apelo. O espaço, apertado e sufocante, fazia com que os dias se confundissem. A única certeza era o mar — uma presença constante, indiferente, imensa. Ele lavava, apagava, engolia.

Havia momentos em que Matteo se perguntava se havia cometido um erro fatal. Se não teria condenado a família a morrer ali mesmo, cercada de sal, de miséria e de silêncio. Mas então olhava para os filhos — magros, adormecidos em cima da mala que guardava suas origens — e se obrigava a crer que aquilo tudo fazia parte de uma travessia maior. Não apenas entre continentes, mas entre o passado e a promessa, entre a terra que o expulsara e o destino que ainda não ousava imaginar.

E assim seguiam, dia após dia, como sombras suspensas entre o céu e o abismo. Quarenta dias. Quarenta noites. Um tempo suspenso onde tudo o que tinham era a esperança — e um ao outro.

Desembarcaram em um porto escuro e barulhento no litoral brasileiro — a língua estranha, o calor pesado, a confusão de nomes e ordens lançadas aos gritos. Receberam instruções vagas e um destino longínquo: uma colônia chamada Santa Apolônia, situada no interior da Província do Espírito Santo. Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada.

O cais fervilhava como uma colmeia desorganizada, onde o tropel de vozes misturava ordens dos funcionários da alfândega, lamentos de famílias perdidas e o estalido constante das carroças que vinham e iam carregadas de fardos e confusão. O sol pesava sobre as costas dos recém-chegados como uma punição, e o ar úmido e denso fazia o suor brotar antes mesmo de qualquer esforço. Matteo apertava a mão da esposa enquanto mantinha os olhos atentos às crianças, tentando não se perder naquele labirinto de sons e de rostos apressados.

A terra que os acolhia parecia, à primeira vista, tão hostil quanto a que haviam deixado. Não havia placas, não havia intérpretes, não havia qualquer traço do mundo que conheciam. Apenas promessas pronunciadas às pressas, dedos apontando para mapas improvisados e ordens gritadas em português, idioma que mais confundia do que guiava. A única coisa clara era que precisavam seguir rumo ao interior, atravessar serras e vales até alcançar a tal Santa Apolônia.

Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada. Caminhos primitivos riscados por tropeiros, ladeados por árvores tão altas que pareciam tocar o céu. O mato denso engolia os sons, abafava os passos, ocultava perigos invisíveis. Sob os pés, o barro sugava as botas e o ânimo, tornando cada metro conquistado uma batalha. Mosquitos zumbiam incessantes, o silêncio da floresta era entrecortado por gritos de aves estranhas, e o tempo parecia ter parado numa eternidade verde e úmida.

Marcharam assim por dias, carregando crianças, mantimentos e lembranças. A cada curva da trilha, a esperança oscilava entre a exaustão e o impulso de continuar. Matteo sabia que a travessia ainda não havia terminado. O navio fora apenas o começo — agora começava a verdadeira luta para conquistar o chão prometido.

O sol tropical, implacável mesmo sob a sombra da mata, derretia os últimos vestígios do inverno europeu que ainda resistia nos corpos e nos pensamentos. Os pés afundavam no barro espesso, onde até os mais leves passos exigiam esforço dobrado. Às costas, Matteo carregava parte da bagagem; nos braços, a filha mais nova adormecida, a cabeça tombada de cansaço. A cada passo, um rangido nas costas, um latejar nos joelhos, um suspiro contido que não ousava se transformar em lamento.

A trilha era estreita, muitas vezes tomada por raízes retorcidas, pedras traiçoeiras ou pequenos riachos que surgiam como obstáculos imprevisíveis. Havia noites em que dormiam sob abrigos improvisados de folhas e galhos, ouvindo os sons inquietantes da floresta — ruídos que nenhum deles sabia nomear. Rugidos distantes, estalos secos, zumbidos incessantes. E havia manhãs em que acordavam encharcados por chuvas súbitas, espremendo as roupas molhadas antes de seguir adiante, pois parar era morrer um pouco.

Os mantimentos escasseavam. Dividiam pedaços de pão seco com gestos solenes, como se fossem relíquias de um tempo mais generoso. A cada dia, Matteo via a expressão de sua esposa perder cor, os olhos se tornarem mais opacos, mas também mais firmes. Ela não reclamava. Carregava o que podia, segurava as mãos dos filhos, e avançava. Era como se, entre as raízes daquelas árvores estranhas, brotasse também uma fibra nova, feita de resistência e teimosia.

Ao longe, quando um colonizador veterano lhes falara da terra fértil, das sementes, das casas de madeira e do café que brotava como milagre da terra morna, Matteo acreditara apenas pela necessidade de crer. Mas agora, no interior daquela selva viva e sufocante, ele percebia que o sonho não se comprava com promessas — era preciso atravessar o inferno para alcançá-lo.

E ele marchava. Com os pés doendo, o corpo em frangalhos e os olhos voltados para a frente. Porque a esperança, mesmo combalida, era mais poderosa que o medo. E porque o chão prometido, embora ainda invisível, começava a existir em cada passo vencido com suor, silêncio e fé.

Sem dinheiro, como muitas outras famílias, seguiram a pé. Corta-mato. Homens, mulheres e crianças abrindo caminho à foice, dormindo sob folhas, comendo o que se podia cozinhar em panelas encardidas sobre o fogo. As crianças choravam de exaustão. As mulheres carregavam trouxas e filhos no colo. Os homens andavam calados, olhos fixos no horizonte que não chegava nunca.

As trilhas improvisadas sumiam sob a vegetação densa, obrigando os mais fortes a abrir caminho com golpes compassados, a lâmina da foice ressoando como um metrônomo de sobrevivência. Cada clareira conquistada era um alívio momentâneo antes da próxima parede verde. Os pés nus ou mal calçados sangravam sobre pedras e raízes, mas ninguém reclamava. A dor já era parte da marcha — assim como a fome, a sede e o cansaço que transformava até o silêncio em peso.

Dormiam onde a noite os alcançava. Às vezes sob árvores retorcidas, outras em barrancos encharcados, e quando a sorte ajudava, sob alguma saliência de pedra onde o vento não soprava tão forte. O fogo, quando conseguiam acendê-lo, era pequeno e tímido, cercado por olhares vigilantes. Em volta dele, panelas amassadas ferveram raízes desconhecidas, um pouco de farinha, às vezes uma casca de fruta ou um punhado de grãos resgatados da última parada.

As crianças, consumidas pela fadiga, choravam pouco e dormiam como se o sono fosse uma defesa contra o desespero. Algumas adoeceram. Outras perderam peso tão rápido que pareciam desaparecer entre os braços das mães. Mas mesmo assim seguiam. As mulheres, com os cabelos presos em nós desfeitos, os rostos cobertos de fuligem e pó, avançavam firmes, embalando os filhos no colo enquanto equilibravam trouxas amarradas em panos desbotados.

Os homens caminhavam calados, com os olhos fixos no horizonte que não chegava nunca. Eram olhares vazios, duros, talhados pelo instinto de proteger, de resistir — mesmo sem saber até quando. A esperança já não se dizia em palavras, mas nos passos que insistiam em avançar, um após o outro, como se cada metro vencido arrancasse do destino um fragmento de futuro.

E assim continuaram, dia após dia, como uma caravana de náufragos da terra, cruzando uma vastidão verde onde tudo era incerteza — menos a determinação de chegar.

Ao final de cada dia, paravam onde a floresta permitia. As mães acendiam o fogo, ferviam um punhado de milho, estendiam as mantas. Quando chovia, dormiam encolhidos, esperando a lama baixar. A viagem, que deveria durar três dias, estendeu-se por semanas. Cada passo era uma luta. Cada rio cruzado, uma prova. Cada árvore derrubada, uma conquista amarga.

Finalmente, encontraram o tio de Matteo — um velho emigrado anos antes, que os recebeu com lágrimas e pão seco. Estavam perto da colônia. Mas o pior ainda viria.

O terreno que lhes fora reservado era um fiapo de encosta pedregosa, voltado para o vento, difícil de domar. O solo cuspia enxadas, rejeitava sementes. Ainda assim, fincaram ali as estacas da vida nova. Construíram uma casa de barro e pau-a-pique. Plantaram milheto, criaram porcos e galinhas. Acordavam antes da luz, dormiam depois do cansaço. A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência.

O reencontro com o tio, encolhido pela idade e pelas décadas de lida solitária, trouxe um alívio breve, quase simbólico. A casa do velho era pouco mais que um abrigo, mas ali compartilharam o primeiro alimento quente em dias — caldo ralo e palavras entrecortadas pela emoção. O velho apertou Matteo contra o peito com a força de quem agarra o que pensava ter perdido para sempre. E então, no dia seguinte, apontou com a mão trêmula o rumo da terra que fora designada ao sobrinho. Seu olhar, sombrio, dizia mais do que os lábios permitiam.

A tal terra era dura, inclinada, coberta de pedra e mato bravo. Uma vertente ingrata, açoitada pelos ventos que uivavam à tarde e gelavam ao amanhecer. Os primeiros golpes de enxada ricocheteavam como se o solo zombasse da tentativa. Quando não era a pedra, era a raiz. Quando não era a raiz, era a erosão. O milheto crescia ralo, amarelecido, e os porcos escapavam pelas cercas frágeis feitas com o que a mata deixava arrancar. As galinhas eram mais teimosas que produtivas.

Mas não voltaram atrás. Ali fincaram as estacas, batendo-as com mais fé que força, porque força já não sobrava. A casa de barro e pau-a-pique nasceu como todas as coisas que realmente importam: de forma imperfeita, mas essencial. Um cômodo só, coberto de folhas e esperança. A fumaça do fogão de lenha subia torta pela telha solta, e os dias se marcavam pela luz que entrava entre as frestas.

As noites eram longas e ruidosas. O canto das cigarras, os estalos da mata, os gritos distantes de algum bicho noturno criavam um concerto que mantinha os sentidos em alerta. E mesmo assim dormiam — não porque o medo cessasse, mas porque o corpo exigia rendição. Cada manhã trazia uma tarefa nova, um problema novo, um desafio mais absurdo que o anterior.

A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência. Cada árvore tombada era uma conquista. Cada metro roçado, uma vitória. Não havia heroísmo naquilo, apenas sobrevivência. Mas, dia após dia, como soldados de uma guerra silenciosa, Matteo e os seus foram abrindo clareiras, construindo raízes, reinventando o destino com as próprias mãos.

A mulher de Matteo, Benedetta, passou a fiar algodão trazido por outros colonos. Os filhos cresceram com os pés descalços, os joelhos em sangue, os olhos já endurecidos pela luta. Um deles morreu de febre no terceiro ano — e Matteo o enterrou com as próprias mãos, sem padre, sem hino, apenas com uma cruz improvisada de bambu.

As noites, para Benedetta, tornaram-se longas jornadas diante da roca, os dedos calejados puxando o fio com a precisão de quem transformava a dor em trabalho. O algodão era bruto, cheio de sementes, mas suas mãos sabiam domá-lo. Com o tempo, trocava novelos por sal, por farinha, por pequenos favores entre vizinhos. Fiava como quem reza — não por piedade, mas por necessidade. Quando os filhos dormiam, ela ainda estava de pé, os cabelos presos de qualquer jeito, o corpo já exausto, mas os olhos fixos no movimento da roda.

As crianças aprendiam com a terra e com os tropeços. Cresceram selvagens, espertos, com a pele marcada de arranhões e picadas, os pulmões acostumados ao ar pesado do mato e os músculos moldados pelo trabalho precoce. Subiam em árvores, pescavam em riachos, aprendiam a distinguir os sons da floresta antes mesmo de saber escrever o próprio nome. A infância era curta — interrompida não por um rito de passagem, mas pela urgência da sobrevivência.

Foi no terceiro ano que a febre chegou. Veio como um sussurro quente, depois virou incêndio. Matteo observou o filho delirar por dois dias, os olhos vidrados no teto de palha, o corpo pequeno queimando como brasa viva. Não havia médico, nem farmácia, nem santo que acudisse. Os vizinhos apenas observavam à distância, impotentes, pois todos sabiam que a febre, quando tomava uma criança, raramente devolvia.

Quando o menino morreu, ao amanhecer, o silêncio na casa foi mais ensurdecedor que qualquer grito. Benedetta permaneceu sentada por horas, o rosto escondido nas mãos. Matteo saiu em silêncio, cavou a cova com uma enxada cega e enterrada pela ferrugem, num canto de terra onde o sol ainda batia com gentileza. Não houve padre, não houve hino. Apenas uma cruz improvisada de bambu, cortada às pressas, fincada com força no chão duro.

Depois, Matteo voltou para casa, lavou o rosto na bacia de alumínio, sentou-se ao lado da esposa e esperou a noite cair. O luto, como tudo ali, não tinha luxo — mas era profundo. E no dia seguinte, como sempre, o galo cantou, o mato cresceu e a vida recomeçou. Porque não havia escolha.

O tempo passou sem pressa. A colônia cresceu. Vieram mais famílias, abriram mais trilhas, construíram uma escola, um pequeno mercado, uma capela. Matteo envelheceu curvado, mas não amargurado. A vida nunca foi boa, mas deixou de ser impossível. Seu nome jamais foi registrado em livro algum, mas viveu o suficiente para ver o primeiro neto nascer sob um teto de telha, em vez de palha.

A lentidão dos dias esculpiu a colônia com o cinzel da persistência. A cada estação, as picadas viravam trilhas, as trilhas, estradas. As primeiras casas de pau-a-pique deram lugar a moradias de madeira lavrada, e os telhados de sapê, tão frágeis às chuvas, começaram a ser substituídos por telhas vermelhas trazidas por tropeiros vindos do sul. A escola nasceu de uma sala improvisada com bancos rústicos e uma professora que ensinava com a voz firme e a palma da mão, mas ali começou a germinar o futuro.

O pequeno mercado, instalado no anexo de uma casa de imigrantes bávaros, passou a vender sal, querosene, pregos e, com o tempo, até café moído em saco de pano. A capela, de madeira escura, erguia sua cruz simples contra o céu comovido das manhãs de domingo. Os sinos, quando enfim chegaram, foram içados por uma multidão de mãos calejadas — e tocavam não só por fé, mas também por memória.

Matteo assistia a tudo com o olhar de quem soube esperar. O corpo já dobrado, a barba encanecida como a palha madura do milheto, os olhos fundidos à paisagem. Já não lavrava a terra com a mesma força, mas ainda inspecionava cercas, afiava ferramentas, sentava-se ao entardecer no banco à sombra do galpão para observar os netos correrem descalços, como haviam feito seus filhos — mas agora sem fome nos olhos.

O passado não o deixava, mas também já não o feria. Tinha cicatrizes demais para se dar ao luxo de arrependimentos. Havia perdido, sofrido, enterrado, mas também resistido, construído, deixado raízes. Sua história, embora nunca registrada em livro algum, estava gravada nas paredes das casas que ajudou a levantar, nas estradas abertas à foice, nas sementes que fincaram o chão duro com esperança.

E quando segurou o primeiro neto nos braços — um menino rosado, de olhos escuros como os seus — e viu que ele nascia sob um teto de telha, em vez de palha, sentiu pela primeira vez algo próximo da paz. Não era glória, nem recompensa. Era apenas a confirmação de que tinha valido a pena.

E quando morreu, deitado em silêncio no chão de sua casa, foi velado por vizinhos que o chamavam de "fundador", embora ele jamais tenha se visto assim. Matteo Pianaro não descobriu nada, não venceu nada. Apenas chegou — e ficou.

Sua história, como a de tantos, é feita de lama, suor, perda e persistência. Não há glória. Há sobrevivência. E, com ela, um tipo raro de heroísmo: o dos que vieram a pé e, mesmo sem entender a língua dos céus tropicais, aprenderam a cultivar raízes em terra estranha.

Morreu como viveu: sem alarde, sem testemunhas ilustres, sem cerimônia. A respiração foi ficando rasa, o olhar, cada vez mais longe. Ninguém ouviu suas últimas palavras — talvez não tenham existido. Quando o neto o encontrou ao amanhecer, estendido sobre o esteiro de palha junto ao fogão de lenha já apagado, Matteo parecia apenas adormecido, o rosto sereno como raramente fora em vida.

O velório aconteceu ali mesmo, no pequeno cômodo onde vivera seus últimos anos. Os vizinhos vieram aos poucos, em silêncio, trazendo flores do mato, pão fresco, cachaça. Sentaram-se em bancos de madeira, contaram histórias antigas, algumas talvez inventadas, outras exageradas, como é de costume entre os que precisam manter viva a memória dos que partem. Chamavam-no de “fundador” com uma reverência tímida, quase envergonhada — porque sabiam que Matteo jamais se reconheceria nesse título.

Ele não fora pioneiro por vocação, nem líder por talento. Fora apenas um homem comum, empurrado pelo desespero, sustentado pela necessidade, endurecido pela vida. Alguém que, diante do infortúnio, escolheu não voltar — e com isso, sem perceber, abriu caminho para os outros. Não construiu monumentos, mas sua ausência deixava um vazio do tamanho de uma geração.

E assim, sob uma tarde morna, foi enterrado com a mesma simplicidade com que vivera: num pedaço de terra roçada à mão, entre dois pés de guabiroba, com uma cruz de madeira cravada firme no chão. Sem epitáfio. Sem discurso. Mas com o reconhecimento silencioso dos que sabiam que, se hoje havia telhas nos telhados, crianças na escola e pão na mesa, era porque homens como Matteo haviam suportado o peso dos primeiros dias.

A história dele — como a de tantos outros — não cabe nos livros de heróis. Mas se imprime na paisagem, se espalha no sangue dos descendentes e ressoa, ainda que sem palavras, no modo como as comunidades respiram. Um heroísmo sem medalhas, sem bustos, mas com raízes profundas: o dos que, mesmo vencidos pela terra, jamais deixaram de semeá-la.

Nota do Autor

Esta história nasce da voz silenciosa de tantos emigrantes do século XIX que deixaram suas terras, suas famílias e suas memórias em busca de um futuro incerto além do Atlântico. Embora os nomes e lugares aqui apresentados sejam fruto da ficção, eles carregam o peso e a verdade de experiências vividas por milhares de homens e mulheres que enfrentaram o desconhecido com coragem e perseverança.

A narrativa não pretende glorificar, mas revelar a dura realidade de quem atravessou florestas densas, abriu estradas com o facão e plantou raízes em solo estranho, muitas vezes sob condições adversas e promessas não cumpridas. É um tributo às jornadas anônimas que ajudaram a construir o Brasil interior, terra de conflitos, resistência e esperança.

Que esta obra sirva para lembrar que a história é feita não apenas pelos grandes feitos, mas principalmente pelo esforço cotidiano daqueles que, mesmo invisíveis nos grandes registros, imprimiram sua presença na terra e na memória.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta