O Último Adeus de Pietro Zanetti
Albignasego, Vêneto — 1886
Era uma manhã enevoada de março quando Pietro Zanetti deixou a pequena aldeia de Albignasego, no baixo Padovano. O frio ainda morava entre as colinas, e o orvalho da noite pendia das videiras como pequenas lágrimas congeladas. O ar tinha o gosto úmido da terra recém-remexida e o perfume de lenha queimada vindo das chaminés, onde as famílias aqueciam o magro desjejum antes do trabalho nos campos.
Pietro caminhava devagar pela estrada de cascalho, o corpo inclinado sob o peso da sacola de linho que levava às costas — meia dúzia de roupas gastas, um rosário de contas escurecidas e uma fotografia desbotada da mãe, tirada num dia de festa muito antes de a miséria lhes tomar o sorriso. Os sapatos, remendados pelo próprio pai, rangiam sobre o chão molhado, e o som seco dos passos parecia marcar o ritmo de uma despedida sem retorno.
Atrás dele, o sino da igreja soou cinco vezes, espalhando-se pelo vale como um lamento. Àquela hora, todos os que ainda dormiam despertaram, e os que já estavam de pé sabiam: outro filho da terra partia rumo ao desconhecido.
Na soleira da casa, sua mãe, envolta num xale preto, assistia ao afastamento do filho com os olhos marejados e as mãos trêmulas apertando o terço. Ao lado dela, o irmão mais novo observava em silêncio, sem compreender por que a mãe chorava tanto se o irmão “ia ficar rico na América”.
Pietro não teve coragem de olhar para trás. Sabia que bastaria um único olhar para desfazer toda a coragem que levara meses para juntar. O coração, comprimido no peito, batia como se quisesse gritar. A cada passo, sentia o peso das promessas que fizera — a promessa de voltar, de comprar um pedaço de terra, de erguer uma casa com janelas de vidro e telhas novas. Mas no fundo, uma voz silenciosa lhe dizia que talvez aquele adeus fosse definitivo.
A Itália, unificada há pouco, era um país pobre, dividido e cansado. Os camponeses do Vêneto sobreviviam de arrendamentos injustos, e a terra, exaurida por séculos de cultivo, já não alimentava as famílias. O trigo mal cobria as sementes, e o milho crescia mirrado, como se a própria terra estivesse desistindo de lutar.
Nas tavernas, sob o rumor do vinho barato, falava-se cada vez mais da América. Era um nome que parecia conter o milagre — uma palavra sussurrada com devoção, como se fosse o nome de um santo. Lá, diziam, havia terras livres, pão farto, trabalho pago em moeda e não em promessas. Lá, o homem podia ser dono de si.
Pietro ouvira essas histórias nas noites de inverno, ao redor da fogueira, quando os homens voltavam da lavoura e falavam de navios enormes e mares sem fim. No início, ele ria. Achava que era conversa de bêbado. Mas quando o arrendador dobrou o preço do arrendo e a última colheita mal pagou a farinha, a América deixou de ser lenda e virou destino.
Naquele amanhecer, enquanto o nevoeiro se dissolvia sobre os campos e o som distante do sino se apagava no vento, Pietro sentiu que algo dentro dele também se desfazia — uma parte da infância, talvez, ou a ilusão de que tudo voltaria a ser como antes.
Seguiu adiante, com o rosto frio e os olhos fixos no horizonte. À sua frente, a estrada era longa e desconhecida, mas ao menos levava para longe da fome e do desespero. Atrás dele, a aldeia de Albignasego acordava lentamente, sem saber que aquele jovem de passos firmes jamais voltaria a cruzar o portão da velha igreja.
E assim começou a travessia de Pietro Zanetti — não apenas entre dois continentes, mas entre o que ele fora e o que ainda seria.
A Travessia
O porto de Gênova fervilhava de vozes, gritos e choros. Era o som de um país que se despedia de si mesmo. Milhares de homens e mulheres acotovelavam-se entre malas, cestos e caixas, cada um carregando o pouco que restava de sua vida. No meio daquela confusão, Pietro Zanetti sentia-se menor do que nunca. O vapor Principe di Napoli, com sua chaminé negra cuspindo fumaça, parecia uma criatura viva — um monstro de ferro pronto para devorar esperanças e vomitar destinos.
Enquanto esperava na fila para o embarque, Pietro apertava a folha do passaporte amassado que trazia no bolso e o rosário da mãe. Ouviu o apito do navio e sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A multidão avançava como um rebanho empurrado pela necessidade. Não havia retorno. Quando finalmente pisou na rampa de madeira que levava ao convés, teve a nítida sensação de que deixava para trás não apenas a Itália, mas a própria alma.
A viagem duraria quase trinta dias, e logo os sonhos se misturaram ao cheiro acre do porão. A terceira classe era um labirinto abafado e escuro, onde famílias inteiras se amontoavam em beliches de madeira úmida. O ar era pesado de suor, vômito e esperança. As crianças choravam, os velhos tossiam, e o balanço do mar fazia o estômago de muitos se revoltar. A comida — pão duro, caldo ralo e, às vezes, um pedaço de carne salgada — parecia zombar da fome que traziam.
Nas primeiras noites, o mar permaneceu calmo, e o murmúrio das ondas embalava os pensamentos. Mas, quando a tempestade chegou, mostrou sua verdadeira face. O navio gemia sob a força dos ventos, as madeiras estalavam como se prestes a se romper. Muitos rezavam em voz alta, outros gritavam os nomes dos filhos. Pietro, encharcado e com os joelhos fincados no chão, segurava o crucifixo e pedia apenas para acordar vivo quando o sol voltasse a nascer.
Foi nesse calvário que conheceu a família Bertolin, de Treviso — Giovanni, o pai, um homem de olhar sereno e mãos calejadas; Maria, a esposa, de semblante doce e fé inabalável; e as três crianças pequenas, cujas risadas frágeis pareciam desafiar a miséria ao redor. Dividiam o pão e a esperança. Em meio ao cheiro de maresia e carvão, nasceram laços que só a adversidade é capaz de tecer. Pietro e Giovanni passavam as tardes falando da Itália — das vinhas do Piave, dos sinos de Treviso e do rumor do vento entre os campos de trigo. À noite, Maria contava histórias às crianças, e, por instantes, o porão deixava de ser uma prisão e virava uma casa.
Mas o mar, sempre caprichoso, lembrava-os de que a felicidade era breve. Quando a tempestade voltou, os beliches se transformaram em covas de medo. Um dia, um menino da terceira fileira morreu de febre, e o corpo, embrulhado em um lençol, foi lançado ao oceano. O som da água se fechando sobre ele permaneceu por horas no silêncio coletivo.
Quando finalmente avistaram a costa do Brasil, os passageiros caíram de joelhos. Alguns beijaram o convés, outros apenas choraram. O sol tropical refletia no mar como uma bênção, e a cor azul intensa feriu os olhos acostumados ao cinza do Adriático. Ainda faltava o último ritual: o exame médico obrigatório para todos os que desembarcavam.
Um médico, enviado pelo governo imperial brasileiro, passou por fileiras intermináveis de homens, mulheres e crianças, examinando com rapidez mecânica. Pietro foi o último. Sentiu a picada da vacina e um calafrio, mas o braço não reagiu. No dia seguinte, enquanto todos embarcavam em outras embarcações de menor calado rumo ao porto de Santos, seu nome foi chamado em voz alta. Ele devido a febre pós vacina deveria permanecer em observação. Foi separado do grupo, sem sequer poder se despedir dos Bertolin. Da amurada, viu-os acenando de longe — Maria com o lenço branco, Giovanni segurando o filho no colo. Pietro levantou o braço em resposta, sem saber que aquele seria o último gesto entre eles. Nunca mais soube o destino deles.
A Ilha das Flores, na baía do Rio de Janeiro, era um lugar que cheirava a doença e solidão. Barracões de madeira da grande hospedaria, camas de ferro e o choro incessante dos que haviam perdido tudo. Ali, entre gritos e desespero, Pietro entendeu que a travessia não terminava no mar. Era apenas o começo de uma outra jornada — mais silenciosa e cruel — a de quem precisa sobreviver para recomeçar sozinho em uma terra onde ninguém o espera. Quando, dez dias depois, lhe deram a liberdade e uma passagem para São Paulo, ele já não era o mesmo homem que deixara Albignasego. O mar o havia esvaziado. E, dentro desse vazio, nascia algo novo — uma coragem feita de dor e silêncio.
O Destino em Araraquara
O Amor e o Enraizamento
Daquele amor nasceram oito filhos — quatro homens e quatro mulheres. O primogênito, Antonio, veio ao mundo em 1891, sob um sol de rachar e o tilintar dos carros de boi. Nenhum deles conheceria a Itália, mas todos herdariam o sotaque, as canções e o modo de gesticular das mãos.
As Cartas e o Silêncio
Mesmo assim, Pietro guardava no baú todas as cartas antigas, como quem preserva um fio de voz do outro lado do oceano. Às vezes, à noite, chamava o filho mais velho para ler em voz alta as páginas amareladas, e seus olhos marejavam diante de nomes que o tempo havia levado.
O Último Verão
Em 1938, aos setenta e cinco anos, Pietro ainda caminhava entre os cafezais de Monte Alegre. O corpo estava curvado, mas o espírito permanecia firme. No alpendre da casa, ao entardecer, olhava para o horizonte e dizia, em dialeto vêneto:
“La tera càmbia, ma el cuor no se sposta.”(“A terra muda, mas o coração não se move.”)
“Pietro Zanetti – 1863-1938 – Dalla terra del Veneto alla speranza del Brasile.”