sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A Necessidade de Emigrar



Na Europa do final do século XVIII, se iniciaram profundas transformações sociais e econômicas que estabeleceram mudanças importantes dos fluxos migratórios de todo o continente. De emigrações temporárias que tinham como destino alguns poucos países mais ricos e desenvolvidos, migrações essas já conhecidas desde muito tempo, os povos europeus se voltaram para emigrações visando os novos países em fase de desenvolvimento do outro lado do oceano. Essas emigrações tinham como característica principal o fato de serem de caracter definitivo e abrangiam famílias inteiras. que deixavam os países onde tinham nascido para nunca mais retornarem.

Entre as principais causas, que levaram a essa necessidade de emigrar, estavam mudanças demográficas, principalmente o aumento da população rural em alguns países que levaram a uma crise econômica. Também fatores sociais e políticos ocorridas nesse período criaram condições desfavoráveis para os mais pobres. 



Na segunda metade do século XIX a Itália foi atingida por grandes mudanças políticas geradoras de guerras e conflitos especialmente quando da formação e unificação do reino, que levaram ao aumento do desemprego no campo, agravado pelo aumento populacional decorrente da maior expectativa de vida da população, pela melhoria das condições da saúde e higiene em relação aos séculos precedentes. Também as condições meteorológicas desfavoráveis nesse período ocasionaram grandes enchentes e deslizamentos de terra no norte e muita seca no sul, aumentando rapidamente a fuga do campo e o consequente  desabastecimento nas cidades. O aumento repentino de desempregados forjou o aparecimento nas cidades de uma força de trabalho mal remunerada

Estas alterações drásticas do clima, somadas ao aumento populacional, especialmente no campo, atingiram ao mesmo tempo a maioria dos países europeus, agravadas em alguns grandes centros, pelo incipiente desenvolvimento industrial.

A melhoria do transporte marítimo oceânico, dos meios de comunicação internos, aqueles com o surgimento de navios à vapor em substituição aos antigos e mais lentos veleiros e estes com a popularização do trem, também contribuíram para aumentar a emigração das populações européias. Devemos lembrar também a grande importância da criação de novas políticas públicas que vieram favorecer a emigração, tanto nos países europeus como naqueles do outro lado do oceano que necessitavam de mão de obra. 


Emigrantes Italianos no Porto de Genova


O pico dessa grande emigração, principalmente para os italianos, alcançou o seu ápice nos últimos vinte anos do século XIX e início do século XX, diminuindo somente com o desencadeamento da I Grande Guerra Mundial para repreender logo após a essa até a década de 1930. Nesse período mais de 50 milhões de europeus, protagonizaram o maior êxodo  ocorrido em toda a história da humanidade até então, somente comparável a fuga dos judeus do Egito, deixaram definitivamente suas casas para fixarem residência em países distantes e não mais voltarem. 

Estudos posteriores apontaram que o crescimento populacional da Europa no século XVIII multiplicou por mais de dois a população de todo o continente até o início da I Grande Guerra Mundial, passando de 190 milhões para alcançar a cifra de 458 milhões de habitantes.  

Esse rápido aumento populacional se deve a diminuição  da  mortalidade, tão característica nas sociedade europeia e italiana em particular; pelo progresso da medicina e pela diminuição da insegurança alimentar. Por outro lado, esse aumento de expectativa de vida não foi acompanhado por uma redução da taxa de natalidade que ainda continuou alta.  Esse fenômeno se manteve até meados do século XX quando, começaram a surgir os primeiros programas de controle da natalidade. 

As revoluções agrícola e industrial  também exerceram pressão para o aumento dos fluxos migratórios em massa. A Itália do século XIX era um dos países menos desenvolvidos da Europa. Praticava uma agricultura bastante atrasada, baseada em conhecimentos já ultrapassados de muitos séculos atrás. 

A importação de grãos, especialmente dos Estados Unidos, que chegavam na Itália com preços muito mais competitivos do que aqueles produzidos no país,  contribuíram para a diminuição dos lucros e o empobrecimento dos proprietários rurais, aumentando assim o desemprego e o consequente êxodo do campo para as cidades.

O melhoramento das ferramentas agrícolas e a mecanização da lavoura em algumas regiões italianas, apesar de ainda serem praticadas de forma muito incipiente, em comparação com outros países europeus, também já estava colaborando com o aumento do desemprego no campo. Ao mesmo tempo em que as cidades se inchavam, os salários por sua vez diminuíam vertiginosamente e o número de desempregados rurais era cada dia maior. O empobrecimento do campo também atingiu em cheio os pequenos artesãos, que viram o fruto do seu trabalho ficar sem mercado.

Após a unificação do Reino da Itália, em 1866, as condições de vida dos  pequenos camponeses e artesãos se tornou cada vez mais crítica, principalmente, após a introdução de novos impostos para sustentar a unificação do Reino da Itália. O imposto sobre o sal e dos produtos que deviam ser moídos, é o caso da farinha de milho, principal ingrediente da polenta, na maioria das regiões italianas, alimento consumido pelos mais pobres. Este famigerado imposto na maceração de grãos era pago diretamente no moinho, onde todos precisavam levar as suas pequenas produções a fim de obter a farinha de milho. Esses dois impostos gravavam de maneira muito forte os mais  desprotegidos e pobres da população italiana.

A fome já começava a bater à porta das casas  dessa grande massa de trabalhadores e foi nesse amplo  contesto que apareceram os primeiros recrutadores de mão de obra, composta inicialmente, por  desempregados,  desesperados, prontos para embarcarem para os destinos mais longínquos, em busca da tão sonhada "cucagna", a sorte que nada mais era do que a posse de um lote de terra para cultivar e um pedaço de pão para comer.

Nesse período na Itália e também em muitos outros países europeus, a  revogação de leis e decretos que até então dificultavam e reduziam  a emigração para o exterior, também influenciaram diretamente para o aumento do fluxo emigratório. 




As políticas praticadas pelos países americanos, como no caso do Brasil, após 1888, no sentido de facilitar o recebimento de emigrantes,  as quais no início chegavam a oferecer  transporte e crédito a longo prazo para a aquisição de terras em colônias recém criadas, muito facilitaram para o aumento do fluxo emigratório. 


Dr. Luiz Carlos Piazzetta




quarta-feira, 26 de agosto de 2020

As Cruzadas


Os árabes haviam se estabelecido nos territórios que conquistaram formando um estado chamado califado árabe, mas, já nos anos finais da Idade Média, haviam se dividido em vários estados independentes. Nos territórios do oeste da Ásia, os turcos seljúcidas que se estabeleceram no século XI, era um povo originado da Ásia Central que tinha se convertido à religião muçulmana ainda no século X.

Os turcos invadiram a Pérsia e o Iraque, conquistando a importante cidade de Bagdá no ano de 1055. Após sucessivas campanhas militares eles conquistaram grande parte da Ásia Menor, até então pertencente ao Império Bizantino, como o território que hoje é a Turquia e  deram vida ao mais poderoso estado muçulmano presente no oeste asiático. 

Os turcos, avançando em seus conflitos militares, também conquistaram a Palestina, que para os cristãos era então denominada de Terra Santa, onde Jesus nasceu, pregou e morreu. 
A Terra Santa  era um local sagrado de culto para a cristandade , local visitado por milhares de cristãos que chegavam à Palestina em peregrinação. 
À partir do momento em que os turcos impediram essas peregrinações cristãs,  alguns líderes cristãos na Europa começaram a exigir que a Palestina fosse libertada, isto é,  fosse retomada das mãos dos turcos e reconquistada pelos cristãos. 

No ano de 1095, o Papa Urbano II, na cidade francesa de  Clermont, reuniu um conselho que contou com a presença dos clérigos franceses e de numerosos senhores feudais, os quais, já de algum tempo, estavam envolvidos em severas guerras por domínios na França. Com a finalidade de por um fim nessas lutas a Igreja francesa havia desenvolvido dois instrumentos de persuasão, a Pax e a trégua Dei (paz e trégua de Deus), com os quais toda pessoa que cometesse violências em determinadas épocas do ano seria atingida por uma sumária excomunhão.  Essas medidas também atingiriam os envolvidos com violências perpetradas em certos locais lugares, como santuários e mercados ou mesmo contra certas pessoas como clérigos, peregrinos, viúvas, órfãos e pobres em geral. Esses instrumentos de punição e coerção só tiveram um êxito parcial.  
Quando em Clermont Urbano II exortou os senhores feudais a aceitarem e favorecerem o processo de apaziguamento da França e só usarem suas armas para defenderem os cristãos de Bizancio, ameaçados pelos turcos. Essa peregrinações dos aristocratas à Terra Santa já se podiam ser comparadas a pequenas expedições militares devido a insegurança que reinava em todo o trajeto até Constantinopla.

Papa Urbano II na Catedral de Clermont quadro do século XIII

Na exortação feita pelo papa Urbano II não pretendia a conquista de  Jerusalém, ele queria pôr um fim às frequentes desavenças e conflitos que ocorriam entre os senhores feudais europeus. Ao mesmo tempo, também pretendia ele, enviar ajuda militar a Bizancio e tentar recompor a unidade da Igreja Católica, que tinha se dividido em duas quarenta anos antes, no chamado  cisma do Oriente. 
Entre as intenções do papa estava também o fortalecimento de seu poder e prestígio do seu cargo. 

O apelo papal foi bem sucedido e com o grito de "Deus quer isso!", muitos dos presentes, tanto nobres como simples pessoas do povo, concordaram em ir à Terra Santa. Diferentes eram as motivações que os motivavam a aderira essa perigosa empreitada. Muitos deles estavam sim motivados pela verdadeira fé religiosa, muito forte em todo o período da Idade Média. Na sua exortação em Clermont o Papa Urbano II havia prometido que todos aqueles que morressem durante a expedição, tanto aos atingidos por imprevistos da jornada ou aqueles mortos nas batalhas contra os infiéis, teriam a remissão de todos os pecados cometidos na vida. Os senhores feudais e príncipes por outro lado visavam, acima de tudo, criar um reino ou um feudo pessoal, conquistando territórios, poder e riqueza.  
Para o povo, e em particular para os camponeses, a cruzada oferecia a possibilidade de comprar terras, tiradas que seriam dos muçulmanos. Alguns desses que aderiram o pedido do papa participariam das expedições para escapar de condenações e começarem uma nova vida. Outros ainda, estavam participando por terem um espírito aventureiro, o desejo de conhecer novos países e ou por causa das oportunidades de enriquecimento que os saqueios proporcionavam.



Partida dos Cavaleiros Templários em um afresco do final do século XII na Capela Templária de Cressac. Os Templários constituíram a mais poderosa das ordens religioso militares, formadas para a defesa do Santo Sepulcro de Jerusalém

Esta primeira expedição e as outras sete que se seguiram são hoje chamadas de cruzadas, porque foram realizadas em nome da fé cristã, da qual a cruz era o símbolo maior. Também pelo fato dos peregrinos de expedições anteriores como agora os cruzados, costumavam prender nas suas vestes uma cruz de pano que  qualificava a sua missão. 

A partir do século XII, a entrega da cruz ao peregrino que iria à Terra Santa tornou-se um verdadeiro rito litúrgico. O peregrino se apresentava frente a um bispo, que o sinalava na testa e lhe entregava os símbolos da peregrinação, os quais consistiam do símbolo da cruz, o bordão ou bastão e a bolsa que pendurava no bastão. O peregrino deixava a igreja com os pés descalços e começava a sua jornada.


Três imagens de peregrinos medievais de diferentes tipos: na janela de uma igreja, em miniatura e em escultura

O termo cruzada não era até então usado, o qual começou apenas no século XVIII, na França, mas com um significado negativo.  Durante o final da Idade Média, expressões como iter (expedição militar) ou peregrinatio (peregrinação) ou succursus (isto é, ajuda implícita pelos cristãos da Terra Santa ou da Espanha, ameaçados pelos infiéis) ou mesmo passagem, no sentido de passagem pelo mar.


Cruzados em um design de fantasia que segue a imaginação comum desses personagens

A exortação do Papa Urbano II também foi recebida por muitos homens do povo, que decidiram sair espontaneamente para libertar Jerusalém, sem esperar que os nobres formassem um exército capaz de enfrentar os turcos. 
Assim próximo à primeira cruzada dos nobres, houve um outro chamado popular, que foi formado por alemães os quais, sob a guia de um monge errante, Pedro, o Eremita, e outros líderes, se moveram seguindo o curso dos rios Reno e Danúbio. 
Muitos desses cruzados haviam sido convencidos a participar seguindo orientações de vários tipos de pregadores que afirmavam que o fim do mundo estava próximo, que o advento do anticristo estava próximo, e assim animados por essas idéias que eram a da heresia, eles marcaram seu comportamento com uma brutalidade feroz, comprometendo acima de tudo os judeus. Desses cruzados, poucos chegaram a Jerusalém: muitos foram massacrados ainda no começo da viagem pelos exércitos húngaros e outros pelos turcos. Apenas alguns sobreviveram e puderam se juntar às tropas da cruzada dos nobres.


Pedro o Eremita lidera a cruzada popular (ilustração de 1311)

Em 1096, os cruzados deram início a sua empreitada, não se sabe quantos participaram, pois não existem dados estatísticos e também por que muitos que partiam retornavam antes de alcançar a meta, enquanto outros mais vinham se juntar à grande expedição ao longo do caminho. As avaliações dos pesquisadores são muito discordantes quanto ao número de participantes, variam de três a trinta mil cruzados armados, aos quais, no entanto, devemos acrescentar os servos que os acompanhavam e os normais peregrinos que não deixaram de seguir até Jerusalem, alcançando assim, um número credível de até cem mil pessoas.

Para comandar toda essa enorme multidão, existiam numerosos senhores da Europa de então: Raymond de Saint-Gilles, conde de Toulouse e marquês de Provence; Robert Duke da Normandia, filho do rei da Inglaterra Guilherme, o conquistador; Stefano conde de Blois e Chartres; Príncipe Ugo, irmão do rei da França; Roberto, conde de Flandres; Boemondo d'Altavilla, príncipe de Taranto; Goffredo di Bulhões, duque da Baixa Lorena, que veio a se tornar o mais famoso e conhecido de todos os cruzados, graças, sobretudo, a um poema épico de meados do século XIV, que o colocou entre os 9 homens mais corajosos da história, de acordo com os ideais cavalheirescos que se afirmaram no final da Idade Média. 


Goffredo di Buglione em uma miniatura do século XIV

A primeira cruzada transcorreu entre vitórias contra os turcos, pois estes inicialmente subestimaram o perigo que os cruzados representavam, e as violências que foram por eles cometidas contra os cristãos de Constantinopla. Também ela transcorreu entre a ignorância do clima e da geografia dos lugares que seriam atravessados, ignorância essa que levou os cruzados a cruzarem o platô desértico da Anatólia no auge do verão, e, especialmente, por constantes brigas entre os seus líderes. 

Contudo, contando com o fator surpresa, em 1099 os cruzados conseguiram conquistar Jerusalém e também toda a região costeira da Síria e da Palestina, onde ali alguns nobres fundaram estados feudais. Estes muitas vezes também eram chamados de reinos francos, porque no Oriente assim eram conhecidos todos os habitantes da Europa Ocidental.
 
No entanto, esses reinos foram se  enfraquecendo pelos conflitos entre os nobres, cada um deles  querendo fortalecer sua posição em detrimento dos demais, e também pela crescente hostilidade da população muçulmana, que vinha sendo perseguida.
A reconquista muçulmana começou no século XII e, em 1187, o sultão turco Salah-ad-din, conhecido como Saladino, derrotou o exército cristão na batalha de Hattin em terras da Palestina e vencendo a resistência dos cristãos entrou em Jerusalém. A conquista da última fortaleza cristã, Acri, em 1291, marcou o fim do domínio cristão na Terra Santa.

A batalha de Hattin em miniatura do século XIII

A primeira cruzada foi seguida por outras sete, organizadas inicialmente pelos monarcas europeus e depois diretamente pelo papa, que instituiu então dízimos específicos para financiá-los:

- a segunda cruzada aconteceu entre os anos de 1148 e 1151
- a terceira cruzada entre os anos de 1187 e 1192
- a quarta cruzada entre os anos de 1202 e 1204
- a quinta cruzada entre os anos de 1217 e 1221
- a sexta cruzada entre os anos de 1228 e 1229
- a sétima cruzada entre os anos de 1248 e 1254
- a oitava cruzada no ano de 1270. 

A segunda cruzada foi organizada após a conquista árabe da cidade de Edessa, no sul da Turquia, onde o primeiro estado cruzado foi formado; a cidade, no entanto, não foi reconquistada.





A terceira cruzada foi organizada como uma reação à conquista de Jerusalém por Saladino, mas transcorreu sem grandes resultados práticos, muito embora o Imperador Frederico Barbarossa, o rei da França Felipe Augustus e o rei da Inglaterra Ricardo, o Coração de Leão tenham dela participado. 

Cruzada dos Mendigos

A quarta cruzada foi organizada contra  a cidade de Constantinopla, a qual foi arrasada e saqueada: os cruzados dividiram as terras pertencentes a essa importante cidade, que foi  tomada de assalto e saqueada tendo ali sido criado um novo Império. Mas o verdadeiro vencedor desta cruzada foi Veneza, que em pagamento pelo transporte marítimo dos cruzados obteve grande parte das terras do Império e das principais bases marítimas no Mediterrâneo. Os cavalos de bronze que hoje enfeitam a fachada da Basílica de São Marco são réplicas, sendo que os verdadeiros foram aqueles trazidos  de Constantinopla estão protegidos no seu interior. 

A quinta, da qual o imperador Frederico II deveria ter participado, terminou com a derrota dos cruzados.


Manuscrito do século XIV, representando a conquista de Damietta (quinta cruzada)

Frederico II participou da sexta cruzada que foi travada não com armas, mas diplomaticamente, com negociações que deram ao imperador a cidade de Jerusalém, mesmo que apenas por alguns anos. 

A sétima e oitava cruzadas foram conduzidas pelo rei da França Luís IX, o Santo. A oitava cruzada foi marcada por uma grande epidemia de peste, que causou a morte do próprio rei.

Em resumo, pode-se dizer que todas essas duas  cruzadas foram um fracasso. 

Batalha entre cristãos e muçulmanos em miniatura do século XIV

O termo cruzada também é usado para outras expedições militares não direcionadas à conquista da Terra Santa, mas sim de outras terras habitadas por povos não cristãos. Elas ajudaram na expansão das fronteiras da Europa cristã.

No século XI a Península Ibérica ainda estava parcialmente sob domínio árabe, mas os reinos cristãos de Castela e Leão, Aragão, ao norte e depois Portugal, ampliaram seus domínios em uma guerra de conquista das terras ainda em mãos dos muçulmanos. 
Essa reconquista cristã fortaleceu a posição da nobreza ibérica, expandindo os seus domínios com as terras tomadas pelos invasores muçulmanos. 
No ano de 1212, os reis católicos obtiveram uma grande vitória militar em Las Navas de Tolosa, na Serra Morena, logo seguida de outras e já no final do século XIII, o domínio árabe na península estava reduzido somente ao reino de Granada, que só foi definitivamente conquistado em 1492.


A reconquista cristã na Espanha (página ilustrada e acompanhada por Las Cantigas de Santa Maria, um código musical escrito para o rei castelhano Alfonso X, o Sábio)

Outras cruzadas foram organizadas e dirigidas ao longo da costa oriental do Báltico, onde ainda existiam populações pagãs, as quais foram privadas de suas terras e quase sempre exterminadas.
Após as cruzadas contra os eslavos do Báltico no século XII, nas cruzadas da Livônia e Estônia no século XIII e as cruzadas da Prússia, no século XIII, esses territórios passaram para o controle dos senhores feudais germânicos. Como consequência muitos alemães se estabeleceram ao longo da costa, enquanto que algumas das populações originais foram desaparecendo ou tiveram os seus territórios drasticamente reduzidos, como no caso dos eslavos ocidentais. Não por acaso no século XIX, a Alemanha foi chamada de "cemitério eslavo”.


Desenho reconstituindo uma batalha durante as cruzadas do Báltico

Finalmente, algumas outras operações militares foram também denominadas como cruzadas. 

Além da cruzada contra os albigenses, ou as cruzadas dos filhos de pastores, que afetaram a França em 1251 e 1320, houve mais uma particularmente muito louca. Após a vitória ibérica em Las Navas de Tolosa, grupos de peregrinos liderados por crianças (daí o nome da cruzada dos pueri ou dos inocentes), que viajaram através da França, Alemanha e Itália, em direção à Terra Santa, com a intenção de conquistá-la, armados apenas com fé. Como se podia esperar ela terminou em tragédia, com esses jovens peregrinos acabando mortos por doenças, escravizados ou corrompidos no meio do caminho.

A cruzada dos inocentes segundo Gustave Doré











terça-feira, 25 de agosto de 2020

As Últimas Grandes Invasões da Europa



Entre os séculos IX e X, novos povos invadiram a Europa, perturbando o seu equilíbrio e pondo fim ao renascimento carolíngio: são os Vikings, os Húngaros e os Árabes.


Os Vikings

Os vikings, também chamados de normandos, homens do norte, daneses ou ainda de Variaghi, eram navegadores habilidosos que  deixaram suas terras geladas, localizadas no norte da Europa, para atacar e saquear aldeias, cidades, igrejas e mosteiros. 
Eles não formavam um único povo e sim um grupo de comunidades, que habitavam territórios diferentes, separados umas das outras, na atual Escandinávia: Dinamarca, Noruega e Suécia. 
Eles não chamavam a si próprios de  vikings. Nas populações da costa do norte da França e da Holanda, a palavra Viking significava "saquear", entretanto, a etimologia do nome ainda é incerta e existem muitas outras interpretações para o termo. 
Os vikings dominaram o Mar do Norte, o Báltico, o Mar da Noruega e todo o Atlântico Norte.


Navio viking atacado por um enorme monstro marinho, em miniatura do século XII

Várias foram as causas de sua expansão desse povo: o aumento da população, o progresso ocorrido na construção de embarcações,  cada vez mais resistentes, mas, principalmente o fato do apogeu do reino dos Francos, no governo de Carlos Magno, ter mostrado à todos como eram ricas as terras localizadas ao sul deles. 
Se considera que as primeiras incursões dos homens do norte deixaram a Dinamarca, rumo às costas da Holanda, e tenha acontecido por volta do ano de 810 d.C. 
Essas invasões cessaram por um período de aproximadamente 25 anos, para recomeçarem à partir do ano de 834, quando dinamarqueses e noruegueses atacaram o continente e as Ilhas Britânicas. 
Alguns anos mais tarde  essas incursões de saqueio se tornaram ainda mais perigosas, não se limitando a pilhagens das terras do litoral, mas agora avançavam pelo interior, subindo através dos grandes rios: Reno, Sena e Loire. 
Em 845, eles chegaram até a cidade de Paris que foi cercada e parcialmente destruída. Nesta ocasião o rei franco Carlos, o Careca, sabendo que os seus exércitos não poderiam conte-los, resolveu firmar um acordo com os invasores, oferecendo como resgate uma grande quantidade de prata, com a condição que partissem e não mais voltassem.
A mesma estratégia de pagar um resgate também foi adotada quando os Vikings retornaram e o rei Lothair, irmão de Carlos, faz um novo acordo, concedendo terras aos invasores vikings, uma  parte  de um feudo formado  por territórios nas costas da Holanda, com a intenção que ao se estabelecerem nesse local, pudessem afastar outros grupos de saqueadores que porventura chegassem. 


Barco Viking


Em 865, as invasões dos vikings começaram no território da atual Inglaterra, sendo que após dez anos já tinham conquistaram toda a sua metade oriental. As tentativas de conquistado a parte sul da ilha, no entanto, falharam devido à tenaz resistência do rei Alfredo de Wessex, cidade estado localizada precisamente ao sul da atual Inglaterra.
No início do século IX, a Irlanda também foi atacada por esses homens do norte, especialmente pelos noruegueses, que usaram a ilha para também estabelecer centros de comércio, chegando mesmo a conquistar a capital Dublin. A presença dos Vikings na Irlanda durou até 1014, quando então foram finalmente derrotados por reis irlandeses.
As fontes da época descrevem os vikings como guerreiros particularmente ferozes e sedentos de sangue. Certamente que suas ações predatórias não foram nada pacíficas, mas talvez possa existir um pouco de exagero nessa descrição. 
Na verdade, naquela época, despertou muita atenção e medo o fato dos vikings terem atacado algumas  propriedades da Igreja, em particular mosteiros franco britânicos, que até então nunca tinham sido submetidos a  tal violência. Também o fato dos escandinavos serem pagãos, não tinham obviamente escrúpulos religiosos em relação aos padres e monges que foram massacrados.


Uma pedra gravada, proveniente de Gotland, datada do ano 1000, com uma representação do deus Odin recebendo os guerreiros vikings no Walhalla (Estocolmo, Historiska Museet)

Os Vikings não eram somente piratas, mas, também bons comerciantes, fazendo o comércio no Mediterrâneo e o Mar Negro,  ao longo dos grandes rios russos. 
Se estabeleceram na parte noroeste da França, a qual recebeu então a denominação de Normandia e em áreas ainda despovoados, como a Islândia e a Groenlândia, este nome dado  por eles e que significava "terra verde" na sua língua. 
A arqueologia revelou que na época dessas invasões o clima dessas duas ilhas era realmente bem mais ameno do que hoje e que grandes florestas podiam realmente ter crescido ao longo da costa.
Os Vikings fundaram ou conquistaram reinos na Inglaterra, na atual Rússia e também no sul da Itália. 
Segundo novas descobertas eles também chegaram à América, principalmente na Ilha de Baffin e no Labrador, atual Canadá. Também  navegaram mais ao sul da América do Norte, tendo sido encontrados restos dos seus assentamentos em escavações mais recente. Esses locais só foram se tornariam conhecidos pelos europeus muitos anos mais tarde, com  as viagens de Cristóvão Colombo. 


Um navio viking do século IX no Museu do Navio Viking em Oslo, Noruega



Os Húngaros


No século IX, os húngaros, também denominados de magiares, era um povo nômade e semi nômade, de hábeis cavaleiros, que viviam mais à leste, nas fronteiras da Europa com a Ásia, e se deslocaram chegando às planícies banhadas pelo rio Danúbio. Devido a sua presença essa terra, no ano de 896, passou a ser conhecida como Hungria. 
De lá, eles logo começaram a se expandir pela Europa, invadindo vilas e cidades, saqueando ouro, prata e tesouros das ricas abadias e igrejas que encontravam pelo caminho. Entre tantas outras, saquearam cidades e regiões da atual Itália como Vercelli, Reggio Emilia e Modena, mas apesar de várias tentativas não tiveram êxito de invadir e destruir Veneza.


Arqueiro húngaro à cavalo, com armadura em estilo asiático usada no kaftan (ele usa mangas grandes) e capacete de rabo de cavalo

No ano de 955, Corrado, o Vermelho, de Lorena, cunhado do imperador Otto I, pagou para os húngaros se aliarem com ele e outros príncipes alemães, contra o Imperador, mas este derrotou a todos eles. Os húngaros, derrotados militarmente e humilhados no seu orgulho guerreiro, não mais ousavam se aventurar em novas invasões. Eles agora decidiram escolher o caminho da aliança e amizade no confronto com os poderes da Europa Ocidental, e assim foram convertidos ao cristianismo. 
Quando Géza, chefe dos magiares de 970 a 997 e o seu filho Estêvão I, o Santo, foram coroados reis da Hungria, no ano 1000, esta se tornou um país cristão.
A memória dos ataques húngaros ficaram marcados na memória coletiva dos italianos e continuam ainda a existir na toponímia de muitas regiões italianas, onde ainda podemos ler "Via Ungaresca", "Via Ongarine", "estrada húngara" e outras similares.



Miniatura do século XIV, representando Estêvão I da Hungria entronizado



Os Árabes

Provenientes do norte da África e de alguns assentamentos na Europa, os árabes chegaram às costas do Mediterrâneo e passaram também a invadir terras localizadas no interior do continente: ocuparam Creta em 827, a Sicília entre os anos 827 e 902 e várias outras cidades ao longo da costa da península italiana, como Bari, na atual região da Puglia.
Os sarracenos, como então eram chamados, mas também conhecidos por outras denominações como Mouros e  Berberi, atacaram repetidamente as costas italianas, especialmente da região da Campania, com a intenção de saquear e fazer prisioneiros que após seriam vendidos como escravos. 
Em diversas ocasiões, atuaram como mercenários contratados e participaram, decisivamente, em batalhas travadas entre senhores feudais locais. 







quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A Crise Econômica na Europa do Século XIV

Dois homens se defendem de um urso (afresco da segunda metade do século XV na Villa Borromeo de Oreno, na província de Monza)

A epidemia de peste e o colapso demográfico agravaram a crise econômica que já vinha em curso, afetando primeiramente a agricultura, o segmento produtivo que na época empregava entre 80 e 90% da população: a produção agrícola diminuiu, porque muitas terras tinham permanecido incultas devido a morte ou pela fuga dos camponeses, e também por uma redução  do rendimento das sementes dos cereais (trigo, centeio, cevada). Muitas terras agrícolas férteis acabaram se transformando em pastos ou bosques de bétula, faia, chifre, avelã e amora e matagal, nos quais viviam lobos, ursos e javalis. 

A diminuição da população também levou a uma forte redução na demanda por produtos manufaturados artesanais, ao mesmo tempo que o comércio na Europa era prejudicado por medidas de emergência adotadas para impedir ou conter a epidemia, particularmente a quarentena. Portanto, na Europa do século XIV, houve um colapso econômico real da economia, gerando por todos os lados uma crise particularmente séria.
Essa nova crise agravou as tensões que já existiam entre as várias classes sociais. No campo, as condições de vida dos camponeses pioraram muito devido à fome e à epidemia; para diminuir o sofrimento do povo, os camponeses pediram uma redução dos impostos a serem pagos, mas os nobres não queriam perder esses ganhos, numa época em que a crise econômica já havia reduzido a sua renda. 
Assim, revoltas eclodiram por toda a Europa (na França, em 1358, e logo em seguida entre 1363-1384; na Inglaterra, em 1381), nas quais os camponeses atacaram os nobres isolados em suas casas, destruindo e matando. Essas revoltas eclodiram repentinamente, sem preparação ou organização, por outro lado eram geralmente facilmente sufocadas pelos nobres, que exterminaram os camponeses rebeldes. Após a revolta francesa de 1358, os nobres massacraram cerca de 20.000 camponeses. 

A derrota da revolta popular que eclodiu em Paris em 1358 e entrou na história com o termo jacquerie, pois Jacques Bonhomme (Giacomo Buonuomo) era o apelido depreciativo dado aos camponeses pelos nobres (miniatura do século XV)

Também nas cidades, onde muitos trabalhadores assalariados ficaram desempregados e os artesãos tiveram uma diminuição acentuada das suas condições, eles iniciaram revoltas: em Paris em 1356 e em 1382, em Siena em 1355, em Perugia em 1371. 
O povo exigia melhoramentos das suas condições de vida e trabalho, além de uma oportunidade para participar do poder. Assim ocorreram: em Florença, por exemplo, os Ciompi,  quando os artesãos que trabalhavam com o cardado, que é uma das fases do processamento da lã. iniciaram e lideraram  uma revolta que eclodiu em 1378. Muitos trabalhadores assalariados e alguns artesãos de outras artes menores ou secundárias aderiram e  participaram ativamente da revolta. Eram ferreiros, sapateiros, padeiros e outros, que tinham de fato sido excluídos do poder, pelo poder econômico das grandes corporações, tais como, médicos, farmacêuticos, juízes, notários, comerciantes de lã, trabalhadores da seda, peleiros, cambistas. Os Ciompi, como esses revoltosos vieram  ser chamados, enumeraram uma série de solicitações, tais como a eliminação das dívidas dos trabalhadores diaristas, a criação de um sistema tributário mais realista com a situação que viviam. Eles queriam que os impostos fossem cobrados baseados em bens e não nas pessoas. Também exigiram a distribuição de alimentos aos mais necessitados e o direito de cada um poder se estabelecer por conta própria e defender os interesses. Esses pedidos foram parcialmente atendidos, mas já em 1382 o povo gordo de Florença aboliu a guilda ou corporação dos Ciompi.


Lanifício, pintura de Mirabello Cavalori do século XVI no Palazzo Vecchio em Florença

Devido à crise, o número de pobres aumentou dramaticamente: camponeses que haviam fugido do campo devido à fome, de assalariados desempregados, crianças, idosos ou mulheres cujos parentes haviam morrido, se juntaram àqueles que já viviam de esmolas, dos cegos ou os paralíticos, que não podiam fazer nenhum trabalho.
Muitas outras cidades organizaram distribuições gratuitas de alimentos durante os períodos de fome para acalmar o povo. Com isso foi possível evitar os tumultos e revoltas que poderiam facilmente ocorrer, com grande parte da população sem o necessário para viver. 
Por outro lado essas distribuições também tiveram um efeito contrário. Muitos agricultores, saíram  do campo, se refugiando nas cidades, na esperança de receber assistência. Assim, o fenômeno da errância cresceu consideravelmente, tanto que, em meados do século XIV, houve, em toda a Europa, um grande florescimento de leis repressivas contra esse fenômeno. Era fácil para muitos andarilhos se tornarem bandidos.

A distribuição de pão aos afrescos pobres por Domenico di Bartolo em 1441 no antigo hospital de Santa Maria della Scala em Siena

Nessa época também surgiram as confrarias, associações de assistência aos pobres ou doentes, como as de San Martino e Orsanmichele em Florença. Elas distribuíam comida e dinheiro para os pobres. Muitos nobres e ricos burgueses financiaram essas irmandades, alguns deles deixavam uma parte da sua herança em benefício de uma confraria.  Por ocasião da grande praga de 1348, a irmandade de Orsanmichele teve o privilégio de ver todos os testamentos a ela destinados serem reconhecidos como válidos em seu favor, contra as pretensões de outros também aspirantes à herança.


A companhia religiosa de Sant'Eligio, ativa no auxílio aos pobres, em uma pintura italiana do século XV

Após o fim da epidemia da grande praga, a agricultura voltou a se desenvolver, mas, nas terras marginais que antes também eram cultivadas, agora estavam abandonadas, reflexo da diminuição drástica da população e da demanda por produtos alimentares. Assim, por exemplo, ninguém interveio para impedir que o Mar do Norte invadisse cerca de 2.000 km² de terras da Alemanha à Holanda, quando as tempestades romperam as barragens que tinham sido construídas nos séculos anteriores.

                                                                  
                              Uma inundação na costa do Mar do Norte (ilustração de 1634)

Como não era mais necessário cultivar todas as terras com grãos para a alimentação  e também, por compreenderem que a produção de cereais não era mais assim tão lucrativa, muitas das terras férteis foram destinadas a outros cultivos não alimentares. Em algumas dessas terras foram autorizadas a semeadura ​de culturas não alimentares, como a do linho, que era usado ​​em atividades artesanais, como roupas de cama. Dessas plantações de linho se obtinha uma fibra têxtil usada para confecção de tecidos. Também de vegetais dos quais se extraiam corantes usados ​​para tingir os tecidos. Algumas regiões se especializaram na criação de ovinos, especialmente na Inglaterra e na Espanha, onde o número de ovinos triplicou entre os séculos 14 e 15. A criação de ovelhas fornecia a lã necessária para o artesanato têxtil, então muito difundido na Inglaterra. Outras culturas que surgiram foram o da produção de algodão e moleskin (um tecido especialmente resistente à base de algodão), como ocorreu na Alemanha e na Suíça, que foram abastecidas com matérias-primas importadas do norte da África e do Oriente Médio dos comerciantes venezianos.

A Loja de um Alfaiate em um afresco do século XV


Devido à praga e à fome, havia escassez de mão-de-obra com muitas pessoas incapazes de trabalhar, tanto no campo como nas cidades. Por esse motivo, os grandes proprietários de terras, especialmente, os grandes senhores feudais, ou mesmo os burgueses ricos, particularmente na Itália, não conseguiam encontrar trabalhadores para suas terras e foram forçados a contratá-los como assalariados, dando-lhes um salário bem mais alto do que o que era normalmente concedido antes da crise. De fato, agora os agricultores ou assalariados, se não estivessem satisfeitos com suas novas condições de trabalho, poderiam facilmente encontrar terra e trabalhar em outros lugares, dado a escassez de mão de obra.
A disponibilidade de terras de fato favoreceu a migração: por exemplo, a partir do século XV, agricultores croatas (em Molise) e albaneses (em todo o sul da Itália) se estabeleceram na Itália, fugindo do avanço dos turcos na península balcânica.
Os nobres muitas vezes tentavam forçar os camponeses a trabalhar com os mesmos salários do período anterior, mas geralmente não eram bem-sucedidos e, entre os séculos XIV e XV, na maior parte da Europa ocidental, o sistema feudal se enfraqueceu e finalmente foi abolido.

Uma miniatura francesa do século XV com a cena do pagamento de aluguéis; as classes mais humildes tiveram muitas dificuldades em pagar pela moradia na cidade no século XIV


Somente no século XV, quando novamente aconteceu um aumento demográfico, que a princípio era lento, depois, especialmente no século XVI, mais veloz, aldeias foram reconstruídas, novas foram fundadas e as terras marginais começaram novamente a ser cultivadas.
Durante o século XV, também houve uma recuperação econômica, ocorrida em toda a Europa. Na Itália, muitas vezes esses progresso foi favorecido por intervenções estatais, Em Gênova, por exemplo, a Casa di San Giorgio, um banco estadual, foi criado em 1408, e muitas cidades tomaram medidas que visavam apoiar o desenvolvimento de atividades artesanais e comerciais. As grandes cidades, como Milão e Florença, se especializaram na produção de luxo, incluindo principalmente o processamento de seda e, em Veneza, a produção de vidro, mosaicos, tapeçarias e objetos de ouro.
A recuperação na Itália, no entanto, foi muito menos vigorosa  do que a ocorrida em outras regiões da Europa. Em muitas cidades, o grande poder das corporações e pequenos grupos de comerciantes e banqueiros impediu uma renovação na produção e no comércio. Embora as grandes cidades italianas do século XVI ainda estivessem entre os principais centros econômicos europeus, a Itália não tinha mais a posição de liderança que havia tido até o início do século XIV e sua economia já mostrava muitos sinais de fraqueza.  No final do século XVI para a Itália, começou um longo período de declínio. A Inglaterra e Flandres experimentaram um forte desenvolvimento econômico e se tornaram os novos centros da economia européia.

Um tapete moderno, em uma tapeçaria flamenga do século XV, quando a idade de ouro começou para a Bélgica







domingo, 16 de agosto de 2020

Amas-de-Leite por Necessidade


Na Itália se denomina de "baliatico" uma forma de emigração temporária, quase sempre circunscrita dentro do território italiano, embora tenham havido casos em que as ama-de-leite emigravam para o exterior, também por tempo determinado, retornando para as suas casas assim que terminado o contrato de trabalho que tinham acordado. 
Foi sem dúvida uma forma muito particular de migração, pois interessava, obviamente, somente às mulheres, onde os períodos de trabalho eram regulados pelos ritmos biológicos e não pela sazonalidade. 
Os conflitos íntimos vividos por uma mãe que, que por extrema necessidade, se via obrigada a ser uma ama-de-leite, eram enormes e também muito difíceis de administrar. Temos também dificuldades para entender como uma mãe pode deixar o seu filho, com poucos meses de nascimento, nas mãos de outras pessoas para ir amamentar um outro desconhecido. 
A situação econômica em que viviam a maioria das famílias italianas de baixa renda, particularmente, os camponeses e pequenos proprietários rurais, naquela época do século XIX, era desesperadora. O desemprego masculino era crescente, as doenças causadas por carências de vitaminas, reflexo da má alimentação, faziam com que a fome já estivesse batendo nas suas portas, alcançando os demais filhos. Ser uma ama-de-leite ou uma babá, era a única solução que sobrava para essas mulheres para a salvação familiar.



A migração de mulheres para trabalharem como amas-de-leite ou babás, interessou uma parte expressiva da população feminina da província de Belluno e se dirigiu para outras cidades da própria Itália, especialmente para os centros urbanos mais populosos das regiões do Veneto, Piemonte e Lombardia. Centenas de puérperas, movidas pela necessidade extrema foram atraídas pelos altos salários e tratamento privilegiado, deixando seus filhos de poucos meses para irem amamentar os recém-nascidos das classes ricas das cidades.
O trabalho de ama-de-leite era para aquelas jovens mães, especialmente as camponesas, as quais movidas pela extrema pobreza, eram obrigadas a vender seu leite aos filhos dos senhores da época. Muitas outras mulheres partiram para trabalhar como babás, não amamentavam, também partiam para as cidades para, como empregadas, cuidarem dos filhos das famílias ricas da época.


Uma ama-de-leite podia ganhar até três vezes mais do que uma trabalhadora de outras profissões e as condições de vida que a aguardavam eram excelentes, principalmente, se compararmos com outras trabalhadoras migrantes da época, como lavadeiras ou garçonetes por exemplo. Nas mansões dos ricos senhores, uma babá, por motivos óbvios, era sempre muito bem alimentada e deveria ter muito cuidado com a sua aparência e higiene pessoal. As suas roupas deviam estar sempre muito limpas, passadas e engomadas, e estas eram confeccionadas de forma quase padronizada para, quando estivessem na rua, junto com as famílias dos patrões, não pudessem ser confundidas com eles aos olhos de passantes, de possíveis visitas ou convidados das casas em que trabalhavam.



Elas recebiam um enxoval que geralmente consistia de  seis a doze unidades, roupas íntimas, roupas para uso em casa e para quando tivessem que sair, roupões, aventais e enfeites bordados. Era tradicional fornecer-lhes grandes broches, colares e brincos, que deviam ser usados permanentemente por elas. Usavam também toucas ou chapéus característicos, com os quais podiam ser reconhecidas. Usavam jóias, confeccionadas principalmente de coral, a pedra da sorte, amuleto usado para conservar o leite bom e abundante. As amas-de-leite eram servidas pelas demais empregadas da casa, muitas vezes até faziam as refeições à mesa com os patrões, o quais podiam assim verificar mais de perto se a sua alimentação estava sendo adequada. Os cuidados com a sua saúde também eram sempre avaliadas pelas patroas e caso  percebessem alguma pequena alteração ou saudades do seu filho natural, costumavam mima-las com presentes. Muitas vezes os patrões tinham o cuidado de transferi-las para locais mais frescos da casa, durante o verão, tudo para que não perdessem o precioso leite. Não raras vezes as relações de confiança e amizade com as famílias, e particularmente, com as crianças sob os seus cuidados, tornavam-se tão fortes que, muitas dessas mulheres, mais tarde, decidiam retornar para trabalhar como amas secas, governantas, enfermeiras ou atendentes de idosos. 


O lado sombrio desse trabalho era o alto preço que as mulheres pagavam ao retornarem para as suas casas. Os longos períodos de ausência do seu lar afetavam bastante as relações com os seus próprios filhos, muitas vezes de forma duradoura. Os filhos naturais que ficaram em casa, longe da mãe, muitas vezes sentiam uma sensação de desconfiança e a viam como uma estranha. Por outro lado, os filhos de leite, aqueles pequenos estranhos que ela havia amamentado, se apegavam profundamente à ela, que os alimentou e criou. 

No início a vida dessas mulheres não era realmente nada fácil, chegavam à uma grande cidade, muito maior do que a vila que então viviam, alojadas em casa de pessoas desconhecidas com comportamentos e hábitos de vida muito diferentes dos seus. Ao chegarem na nova residência, depois de longas e cansativas viagens, antes de amamentar o bebê à ela confiado, passavam por exames e consultas médicas. Viviam em constante controle dos patrões, que as vigiavam e as proibiam de contatos com outras pessoas além dos da família. 



Com o passar do tempo essas relações, geralmente, iam mudando, assim que elas granjeavam a confiança dos patrões e obtinham mais liberdade, permitindo conhecer outros membros da família e seus amigos visitantes. Esse estreito contato com as famílias, com pessoas de maior nível social e cultural contribuiu para que essas amas-de-leite e babás, geralmente sem instrução, quase sempre provenientes da zona rural, a oportunidade de um desenvolvimento cultural.

Mas, ao retornarem para as suas próprias casas, elas traziam com elas uma bagagem de cultura mais sofisticada,  resultado da oportunidade que tiveram ao absorverem os hábitos, comportamento e ideias das famílias burguesas com que viveram, os quais contrastavam com aqueles da sociedade rural. 


 Elas agora passavam a ser olhadas com alguma desconfiança pelos vizinhos, ainda mergulhados na sociedade campesina, pois, retornavam com outros hábitos, tinham os cabelos penteados, a pele bem cuidada, muito branca, sem as características manchas deixadas por horas de trabalho expostas  ao sol, usavam adornos, jóias e grampos nos cabelos cuidados, contrastando com o das demais mulheres da localidade. 

Os filhos naturais confiados a outras mulheres,  alimentados artificialmente geralmente com mamadeira de leite de cabra, as repeliam, não reconhecendo nelas as próprias mães. Em muitos casos ao retornarem não encontravam mais os filhos legítimos, tinham morrido após a partida e a família não as avisava para evitar perderem o leite. 

Também eram mal compreendidas pela sociedade campesina, incentivadas pelos proprietários de terras local, que viam nessa atitude de sair de casa para cuidar os filhos dos outros em detrimento dos próprios, como uma forma de ganância por dinheiro, vaidade ou mesmo desejo de aventura.  Com esses comentários pejorativos, o que na verdade esses proprietários de terras queriam dizer é que estavam com medo das ideias mais progressistas que elas traziam para as suas vilas, com uma possível desintegração dos modelos éticos tradicionais, motivando no fundo a perda da autoridade e poder que eles tinham com os camponeses. 

Na verdade a emigração temporária feminina deu uma forte contribuição para melhorar o padrão de vida das famílias campesinas, impulsionando a pequena propriedade. A experiência de emigração temporária também proporcionou uma mudança na maneira de pensar dessas mulheres, aumentando a sua autoestima e a satisfação própria com a contribuição que deram no desenvolvimento da economia do território nos tempos de crise. 


Dr. Luiz Carlos Piazzetta