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quarta-feira, 17 de abril de 2024

Além do Horizonte: A Viagem de Retorno


 

Em uma das muitas jornadas do navio a vapor Carlo R, da renomada companhia de navegação Carlo Raggio, uma família italiana embarcou rumo ao desconhecido horizonte do Brasil. Pietro e Maddalena, com seus três filhos Giacomo, Aurora e Giovanni Battista, estavam repletos de esperança e expectativas enquanto deixavam para trás sua terra natal, Nápoles, no dia 27 de julho de 1893.
O Carlo R., com seus 101 metros de comprimento e 13 metros de largura, era uma relíquia adaptada às pressas para o transporte de passageiros em meio ao auge da emigração italiana. A bordo, cerca de 1.400 almas se amontoavam em condições precárias, uma situação agravada pela epidemia de cólera que assolava Nápoles naquele ano.
No quarto dia de viagem, o temor se concretizou quando um caso da doença surgiu a bordo. Ao invés de retornar ao porto de origem para tratamento adequado, o comandante optou por continuar a travessia, ocultando a gravidade da situação das autoridades locais. O resultado foi uma rápida propagação da epidemia entre os passageiros, transformando o navio em um verdadeiro inferno flutuante.
Quando o Carlo R. finalmente alcançou o porto do Rio de Janeiro, juntou-se a outros navios italianos igualmente atormentados pela tragédia. O Remo e o Vicenzo Florio compartilhavam do mesmo destino sombrio, com mortes a bordo e uma carga humana enferma.
Diante da ameaça de uma epidemia em território brasileiro, as autoridades decidiram não permitir o desembarque dos passageiros. Os navios foram escoltados para uma distante região próxima à Ilha Grande, onde passaram por desinfecção e reabastecimento.
Enquanto aguardavam uma decisão final, a angústia se instalava entre os passageiros, incluindo a família de Pietro e Maddalena. A incerteza do futuro pairava sobre eles como uma sombra constante.
Após semanas de espera, a ordem finalmente chegou: retornar à Itália. O procedimento padrão internacional para casos semelhantes exigia que os navios regressassem com sua carga humana. Para Pietro e Maddalena, era um retorno amargo, marcado pela dor das perdas sofridas durante a travessia e pela incerteza do que encontrariam ao voltar para casa.
Anos depois, em um tribunal italiano, o comandante do Carlo R. e a companhia responsável foram julgados e condenados pelas mortes ocorridas naquela fatídica viagem. No entanto, para Pietro e Maddalena, as cicatrizes daquela tragédia nunca desapareceriam completamente, permanecendo como testemunhas silenciosas de uma jornada marcada pela dor e pela perda.


terça-feira, 12 de março de 2024

O Legado de Agostino: da Calábria a Porto Alegre




Agostino nasceu na pequena vila de San Luca, um enclave tranquilo entre as montanhas da província de Catanzaro, na região da Calábria, em 1857. Seu nome, uma homenagem ao seu avô paterno, refletia o orgulho de sua linhagem e o destino que o aguardava.

Desde jovem, Agostino demonstrava um talento excepcional para a arte da construção. Seus dedos ágeis moldavam o barro e a pedra com uma destreza impressionante, aprendendo os segredos do ofício com os anciãos da vila. Seu avô, um renomado pedreiro, deixara um legado de habilidade e excelência que Agostino estava determinado a honrar.
A vida em San Luca seguia seu curso tranquilo, embora fosse evidente uma diminuição sensível no número de construções em toda a região. Até que um dia, uma carta chegou à modesta casa de Agostino, trazendo consigo uma lufada de novas possibilidades e oportunidades. Era uma mensagem do outro lado do oceano, escrita pela mão do tio Carmelo, irmão mais novo de seu pai, que há muitos anos havia deixado a Itália em busca de fortuna no Brasil.
Carmelo, agora estabelecido em Porto Alegre, convidava Agostino e sua família a se juntarem a ele no novo mundo. O motivo era claro: a firma de construção que Carmelo havia fundado estava passando por dificuldades. Seu filho, que havia assumido os negócios, sofrera um acidente fatal, deixando Carmelo sem um sucessor adequado.
O tio via em Agostino não apenas um parente, mas um talento excepcional que poderia revitalizar o negócio familiar. Sua reputação como muratore, ou pedreiro, era conhecida até além das fronteiras da Calábria, e Carmelo não hesitou em fazer o convite, esperançoso de que seu sobrinho pudesse dar continuidade ao legado da família.
Com o coração cheio de esperança e determinação, Agostino e Giovanna decidiram aceitar o convite do tio Carmelo. Em dezembro de 1905, embarcaram em uma jornada rumo ao desconhecido, deixando para trás as colinas da Calábria para trilhar um novo caminho no Brasil.
Ao chegarem em Porto Alegre, foram recebidos de braços abertos pelo tio Carmelo, que os acolheu em sua casa e os ajudou a se estabelecer na cidade. Logo, Agostino encontrou trabalho na firma de construção da família, onde sua habilidade e paixão pela arquitetura brilhavam em cada projeto que realizava.
Os anos se passaram rapidamente, e a família de Agostino floresceu na terra distante. Seus filhos cresceram sob a influência da cultura brasileira, mas nunca esqueceram suas raízes italianas. Alguns seguiram os passos do pai na construção civil, enquanto outros encontraram seus próprios caminhos, mas todos compartilhavam o mesmo espírito de determinação e coragem.
Quando Agostino faleceu, deixou para trás um legado de realizações extraordinárias. Sua vida foi marcada pelo trabalho árduo, pela paixão pela construção e pelo amor incondicional pela família. Seu nome é lembrado com reverência em Porto Alegre, onde as construções que ele deixou para trás são testemunho de sua habilidade e visão. Agostino pode ter nascido na pequena vila de San Luca, mas seu espírito ousado e sua determinação o transformaram em um verdadeiro cidadão do mundo, deixando sua marca indelével na história da cidade que escolheu chamar de lar.




segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A Emigração Europeia para os EUA no Século XIX: Motivos, Mudanças e Impactos

 



A grande migração em massa da Europa para os Estados Unidos no século XIX teve como origem a grande crise agrária dos anos 1870 que afetou mais de 5 milhões de pessoas e foi em grande parte individual e masculina. O objetivo era buscar trabalho nos prósperos setores industriais americanos, muito mais desenvolvidos do que os europeus. As condições de origem dos migrantes europeus não eram tão críticas a ponto de obrigá-los a partir, tanto que a maioria se adaptou às condições de vida oferecidas em seu continente ou, no máximo, recorreu à migração interna.
O início da possibilidade de emigração para as Américas foi impulsionado pelo progresso naval na segunda metade do século XIX, com navios de casco metálico e cada vez maiores, o que reduziu tanto o custo, antes impraticável para um emigrante pobre, quanto a periculosidade da viagem. A data simbólica do início da emigração italiana para as Américas pode ser considerada 4 de outubro de 1852, quando foi fundada em Gênova a Companhia Transatlântica para a navegação a vapor com as Américas, cujo principal acionista era Vittorio Emanuele II da Sardenha. Esta companhia encomendou aos estaleiros navais de Blackwall os grandes navios a vapor gêmeos Genova, lançado em 12 de abril de 1856, e Torino, lançado em 21 de maio seguinte.
Neste período, ocorreram várias mudanças na migração transatlântica, com caráter social, laboral e comportamental. Houve uma transição da migração de famílias inteiras para a de indivíduos isolados, da migração para o estabelecimento rural para o trabalho nos setores industriais e, por fim, da emigração definitiva para uma emigração temporária, com uma espécie de "trabalho pendular" transatlântico. Essas tendências foram reforçadas pelas novas contratações de trabalho do tipo urbano-industrial nos EUA. Além disso, na Europa, havia a ideia difundida de uma maior liberdade e oportunidade de realização pessoal, bem como melhores chances de casamento no Novo Mundo. O século XIX ainda via vivo o sonho de muitos de conquistar riquezas nas terras americanas, para depois reinvesti-las ao retornar à pátria. No entanto, a migração de retorno foi escassa porque enfrentava altos custos e condições difíceis de viagem transatlântica, além de ser viável apenas se a migração fosse individual e não envolvesse o grupo familiar como um todo.
A emigração europeia para os Estados Unidos foi desigual, pois tinha diferentes objetivos e muitas vezes consistia em uma emigração individual com o propósito final de retorno à Europa depois de juntar algumas economias.



sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sobre o Oceano


 


Quando cheguei, ao entardecer, o embarque dos emigrantes já havia começado há uma hora, e o Galileo, ligado ao cais por uma pequena ponte móvel, continuava a receber miséria: uma procissão interminável de pessoas que saíam em grupos do prédio em frente, onde um delegado da polícia examinava os passaportes. A maioria, tendo passado uma ou duas noites ao ar livre, encolhida como cães pelas ruas de Gênova, estava cansada e sonolenta. Operários, camponeses, mulheres com bebês no colo, garotos com a placa de leite do jardim de infância ainda presa ao peito, passavam, carregando quase todos uma cadeira dobrável debaixo do braço, sacos e bolsas de todas as formas nas mãos ou na cabeça, carregados de colchões e cobertores, e o bilhete com o número do beliche apertado entre os lábios.

As pobres mulheres que tinham uma criança em cada mão seguravam seus volumosos fardos com os dentes; as velhas camponesas de tamancos, levantando as saias para não tropeçar nos trilhos da ponte, mostravam as pernas nuas e magras; muitos estavam descalços, e carregavam os sapatos pendurados no pescoço. De vez em quando, passavam entre essa miséria senhores vestidos com elegantes sobretudos, padres, senhoras com grandes chapéus emplumados, segurando na mão um cachorrinho, um porta-chapéus ou um feixe de romances franceses ilustrados, da antiga edição Lévy. Em seguida, subitamente, a procissão humana era interrompida, e avançava sob uma tempestade de golpes e palavrões um bando de bois e carneiros, que, ao chegarem a bordo, desviavam para cá e para lá, assustando-se, misturando os mugidos e balidos com os relinchos dos cavalos na proa, com os gritos dos marinheiros e estivadores, com o estrondo ensurdecedor da grua a vapor, que levantava no ar pilhas de malas e caixas. Depois disso, a procissão dos emigrantes recomeçava: rostos e roupas de todas as partes da Itália, trabalhadores robustos com olhos tristes, velhos desgastados e sujos, mulheres grávidas, moças alegres, jovens brilhantes, camponeses de mangas arregaçadas, e rapazes atrás de rapazes, que, mal pisavam no convés, no meio daquela confusão de passageiros, garçons, oficiais, funcionários da Companhia e guardas alfandegários, ficavam atônitos ou se moviam como em uma praça lotada. Duas horas depois de começar o embarque, o grande navio a vapor, sempre imóvel como um enorme cetáceo mordendo a costa, sugava ainda mais sangue italiano.

À medida que subiam, os emigrantes passavam por uma mesa onde estava sentado o oficial Comissário; ele os agrupava em conjuntos de meia dúzia, chamados "ranci", registrando os nomes em uma folha impressa, que entregava ao passageiro mais velho para que fosse com ele buscar a comida na cozinha, na hora das refeições. As famílias com menos de seis pessoas se inscreviam com um conhecido ou com o primeiro que aparecesse; e durante esse trabalho de inscrição, um forte medo de serem enganados na contagem das cotas e dos beliches para os rapazes e crianças, uma desconfiança invencível que qualquer homem com uma caneta na mão e um registro à sua frente inspira ao camponês, transparecia em todos. Surgiam disputas, ouviam-se lamentos e protestos. Depois, as famílias se separavam: os homens de um lado, as mulheres e crianças do outro, eram conduzidos aos seus dormitórios. E era piedoso ver aquelas mulheres descerem penosamente as escadas íngremes e avançarem tateando para esses dormitórios amplos e baixos, entre as inúmeras camas dispostas em andares como os camarotes de um teatro. 


Continua


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Raízes que Florescem: A Saga de Resiliência de Giovanni na Terra Prometida



Giovanni Marco Rossi, um emigrante italiano oriundo de Montecielo, perto de Bréscia, Itália, passou a maior parte da sua vida na Califórnia. Nascido em 24 de agosto de 1896, Giovanni começou a trabalhar como agricultor desde a adolescência. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele prestou serviço militar como técnico, engajado em uma companhia de engenharia, construindo túneis e pontes. Em 1920, juntamente com seu amigo Marco Ferrari, natural do mesmo povoado, decidiu emigrar para os Estados Unidos em busca de melhores oportunidades. Após sua chegada a Nova York em 3 de agosto de 1920, Giovanni se estabeleceu em Lindale, Califórnia, vivendo com seu tio Luigi Cademartori. Graças ao árduo trabalho e à economia, em 1925 Giovanni e Marco conseguiram adquirir 20 acres de terra em Lindale. Inicialmente, enfrentaram desafios como a falta de água, mas engenhosos perfuraram um poço, trouxeram eletricidade e construíram uma modesta casa de madeira. Giovanni e Marco plantaram árvores frutíferas, cultivaram campos, usaram cavalos para o trabalho agrícola e levaram sua produção ao mercado de Stockton. Após um tempo, Marco decide retornar à Itália, deixando toda a propriedade para Giovanni que a adquiriu por um preço justo. Firmemente determinado a se integrar à sociedade americana, Giovanni aprendeu inglês na Escola Secundária de Stockton e obteve a cidadania americana. Ele conheceu Catarina Lombardi, nascida nos Estados Unidos e originária do Vale de Bréscia, na Itália, com quem se casou em 1921. O casal enfrentou os desafios da vida rural na Califórnia, com Catarina dedicando-se ao trabalho agrícola e doméstico. Com o tempo, a família cresceu com o nascimento das filhas Teresa em 1931, Dena em 1935 e Delsie em 1941. Apesar de uma doença e outros desafios, Giovanni continuou a trabalhar a terra com dedicação. Em 1955, Giovanni comprou mais 20 acres de terra e, mesmo doente, continuou a cultivá-los com sucesso. Já em idade avançada, ele alugou a terra, mas continuou a ajudar nas atividades agrícolas. Em 1964, fez uma breve visita a Montecielo com Catarina para rever parentes e amigos. Giovanni Marco Rossi faleceu em 20 de julho de 1978, aos 82 anos, cercado pela família e respeitado pela comunidade. A história de Giovanni reflete a integração social e o sucesso alcançado através do trabalho árduo e respeito pelas tradições italianas em um contexto americano.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Odisséia no Oceano: A Jornada Épica dos Emigrantes Italianos



A palavra emigrar tem um significado preciso, ou seja, abandonar a sua casa, sua vila, mudar-se temporária ou permanentemente para outro lugar após uma viagem mais ou menos longa, principalmente por questões de trabalho, como tem acontecido nos últimos anos com muitos jovens (e não apenas) italianos. No entanto, durante o final do século XIX e ao longo do século XX, muitos navios levaram milhões de italianos em viagens transoceânicas, para as duas Américas, Austrália ou África do Sul. Para fornecer números, entre 1870 e 1970, quase 30 milhões de italianos deixaram o país.

Para poder deixar o país a maioria precisou vender tudo o que possuíam para comprar um bilhete só de ida para um desses destinos. Após fazer o seu passaporte e o da família, nas prefeituras locais, a pessoa realizava todas as outras formalidades junto as agencias de viagens para a compra do bilhete, sem correr o risco de não ser admitida no país para o qual pretendia se mudar. Somente assim ela finalmente podia embarcar para iniciar a longa jornada. As companhias marítimas de navegação forneciam detalhes sobre muitos aspectos relacionados à navegação oceânica e às regras a serem seguidas.
Para aqueles que se dirigiam à América do Norte, as condições climáticas de viagem, especialmente para aqueles que partiam nos meses de inverno, não eram propriamente ideais, pois o frio cortante, o mar agitado e a umidade podiam tornar a viagem transoceânica um verdadeiro inferno, especialmente para pessoas menos acostumadas à vida no mar, como aquelas que vinham das regiões internas da península italiana e talvez nunca tivessem visto o mar, como contaram alguns emigrantes mais velhos que foram para as Américas.

O dia da partida era marcado pela tristeza para muitos, felicidade para poucos, talvez houvesse pessoas que tinham perdido a família e agora eram órfãos. Nos navios que partiam de Gênova, não havia apenas genoveses; havia muitos outros de outras regiões do norte e centro da Itália. Na maioria das linhas de navegação, estava previsto uma parada no porto de Nápoles, onde pegavam passageiros de praticamente toda a Itália meridional. Os navios de passageiros então seguiam em direção ao Estreito de Gibraltar, se fossem para as Américas, ou pelo Canal de Suez, se fossem para Austrália.

Ao subir a bordo, o passageiro precisava arrumar a bagagem, mesmo que modesta em alguns casos. Para isso, existia a sala de bagagens. O problema principal era que os dormitórios a bordo eram, na realidade, espaços apertados. Eles precisavam acomodar o maior número possível de pessoas. Nos dormitórios, eram permitidos apenas um embrulho, um saco ou uma pequena caixa com poucos itens de vestuário e alimentos. Todo o resto: roupas, camisas, pertences pessoais, grandes caixas e baús, tinham que ser fechados na sala de bagagens. Muitas vezes, esta permanecia fechada até a chegada, após semanas no mar. Basicamente, ficavam com as mesmas roupas durante toda a viagem, muitas vezes encharcadas pela chuva, salgadas ou sujas de comida, vômito, urina e fezes. Um verdadeiro tormento! Nos dormitórios tinham que seguir regras específicas, bem descritas no Decreto Real nº 375, de 10 de julho de 1901. Em essência, o que dizia essa norma? Ela listava, por exemplo, as medidas dos beliches, que não deveriam ser inferiores a 180 cm de comprimento por 56 de largura. Além disso, o Decreto Real proibia a presença de beliches perto das salas das caldeiras e da sala de máquinas. Por fim, os dormitórios eram separados entre homens e mulheres para evitar a promiscuidade. A partir dos sete anos, homens e mulheres, bem como crianças, eram separados. Isso se devia em parte a algumas leis dos Estados Unidos, que regulamentavam os fluxos migratórios em Ellis Island; não eram permitidos navios que tivessem, por exemplo, mais de três fileiras de beliches para cada dormitório, apenas dois eram permitidos. Os navios que seguiam para a América do Sul, por muitos anos, deixavam três fileiras de beliches.

Um médico de bordo da época, chamado Teodorico Rosati, escreveu: "A impressão de repugnância que se tem ao descer em um porão onde os emigrantes dormiam é tal que, experimentada uma vez, não se esquece mais!" Rosati continua: "O emigrante se deita vestido e calçado na cama, faz dela um depósito de embrulhos e malas, as crianças deixam ali urina e fezes; a maioria vomita; todos, de uma maneira ou de outra, transformam-no, após alguns dias, em uma cama de cachorro. Ao final da viagem, quando não é trocado, o que acontece muitas vezes, está lá como foi deixado, sujo e cheio de insetos, pronto para receber o novo viajante". A realidade era essa: dormitórios onde centenas de homens e mulheres sujos viviam e dormiam, sem nenhuma possibilidade de se lavar. Se adicionarmos umidade, ambientes pouco arejados, enjoo e pouca iluminação, podemos certamente imaginar as condições difíceis em que essas pessoas eram obrigadas a viajar, tanto homens quanto mulheres, e as crianças. Não é à toa que a maioria dos imigrantes de terceira classe preferia passar a maior parte do dia no convés, para evitar o mau cheiro. No entanto, para aqueles que se mudavam para a América do Norte nos meses deinverno, atravessar o Atlântico não permitia passar muito tempo no convés, sendo atingidos pelo vento gelado e frequentes tempestades.

Mas a vida diária a bordo não envolvia apenas descanso e passeios; era necessário também usar os banheiros para realizar as necessidades naturais e garantir uma higiene mínima. No início do século XX, poucos navios tinham eletricidade a bordo e quase nenhum tinha um sistema de esgoto por pressão. Em 1888, De Amicis escrevia: "Os lugares que deveriam proporcionar limpeza e higiene são na realidade horríveis, e para mil e quinhentos passageiros de terceira classe não há um banheiro." Na segunda classe, as coisas melhoravam bastante, mas era preciso considerar que nos navios da época destinados à emigração, os lugares destinados à segunda classe eram quarenta e para a primeira apenas vinte, em comparação com os mil e quatrocentos passageiros totais, a maioria dos emigrantes estava na terceira classe.

Mesmo em um ambiente restrito das classes mais privilegiadas, as cabines ofereciam algum conforto: um pequeno armário, uma pia, uma porta que podia ser fechada, um quarto relativamente limpo e, acima de tudo, um penico. Em resumo, era possível viajar no verdadeiro sentido da palavra. Os passageiros da primeira e segunda classe tinham acesso aos espaços internos do navio, bem como salas de jantar separadas das outras; podiam comer à mesa com guardanapos e talheres, com uma comida melhor e consideravelmente mais abundante. Aqui está o que o Dr. Rosati escreveu sobre as refeições de terceira classe.

"Agachados no convés, perto das escadas, com o prato entre as pernas e o pedaço de pão entre os pés, comiam a sua refeição como os mendigos às portas dos conventos. É uma humilhação do ponto de vista moral e um perigo do ponto de vista higiênico, porque cada um pode imaginar o que é um convés de um navio sacudido pelo mar, onde todas as imundícies voluntárias e involuntárias dessas populações viajantes são derramadas."

Médicos de bordo como Rosatti, antes de 1895, não eram obrigatórios para viagens com destino ao Oceano Índico ou às Américas, além de Gibraltar e Suez, em suma. Portanto, a presença do médico de bordo tornou-se obrigatória a partir dessa data. Provavelmente, nem mesmo era suficiente, considerando que os navios transatlânticos podiam transportar de 900 a 2400 pessoas. De Amicis escreveu: "E que os higienistas digam o que quiserem, fixando o número necessário de metros cúbicos de ar, a carne humana está amontoada demais, e o fato de que costumava ser pior não justifica."

As condições higiênicas precárias e a multidão favoreciam as doenças, então a presença de um médico de bordo era realmente necessária. Doenças como gastroenterites e bronquites se espalhavam rapidamente e não demoravam a fazer vítimas entre os passageiros mais fracos, como crianças e idosos. O sarampo ceifava muitas vítimas infantis; não eram raros os casos de epidemias de sarampo nos navios, com a obrigação de quarentena para todo o navio. O médico de bordo não tinha os meios necessários para combater essas epidemias, e o Dr. Rosati menciona que muitas vezes o capitão escolhia alguns homens da tripulação, os fazia vestir o jaleco branco com a cruz, improvisando enfermeiros. Em 1884, um navio italiano, com uma epidemia de cólera, foi repelido a tiros no porto de Montevidéu. Em 1905, o Città Di Torino relatou quase cinquenta mortes por tifo, bronquite e sarampo durante a travessia.

Os navios estavam sujeitos à inspeção preliminar, de acordo com o regulamento de saúde marítima, o artigo 59 do Decreto Real de 29 de setembro de 1895. A comissão encarregada deveria verificar a qualidade dos alimentos e bebidas, a quantidade de medicamentos a bordo, as boas condições de saúde da tripulação, a limpeza geral das instalações da tripulação, o número correto de passageiros embarcados e a ventilação adequada em todas as instalações do navio.

Uma figura de bordo muito importante era o comissário. A bordo dos navios, o Comissário Real tinha um papel quase comparável ao do comandante. O comissário também compilava a lista de passaportes, particularmente importante para desembarcar em Ellis Island, nos Estados Unidos. O comissário também cuidava da manutenção da disciplina, acalmando brigas, roubos, violências sexuais nos dormitórios femininos, prendendo portadores de armas de fogo ou aqueles que não possuíam bilhetes - esses não seriam aceitos nos EUA e teriam que pagar pelo retorno à Itália - e, por último, retirava as bebidas alcoólicas que por ventura tenham levado para bordo. Apesar disso, os imigrantes masculinos causavam muitos problemas com o jogo e o porte de armas brancas, como facas e punhais. A bordo do navio mistos a vela e vapor Giava, um episódio do diário de Angelo Tosi de 1887-88 impressiona quem os lê, o referido autor cita vários esfaqueamentos entre elementos de gangues rivais da Calábria. Outro grande problema eram os clandestinos, especialmente aqueles sem passaporte por motivos criminais e ajudados por amigos, na partida, a se esconderem a bordo. O comissário organizava uma equipe especial, comandada por um suboficial, que vasculhava todos os cantos do navio, colocando os criminosos na cela.
Essas viagens marcaram uma epopeia, tanto para os passageiros quanto para as equipes a bordo, considerando que antes de 1890, os navios a vapor não tinham escalas pré-estabelecidas, como veio ocorrer posteriormente. Em essência, de acordo com as necessidades do navio ou até mesmo as condições meteorológicas, a embarcação podia parar em um ou outro porto. Portanto, era essencialmente uma navegação bastante aventureira. As doenças, como vimos, estavam sempre à espreita, também para a equipe da tripulação, sem mencionar os acidentes a bordo. Não era uma vida fácil, e as viagens eram muito difíceis.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Saga Italiana nos Pampas: Emigração, Trabalho e Sucesso na Argentina




Nas onduladas e pitorescas colinas da província de Bergamo, no norte da Itália, Luca cresceu imerso em uma vida simples e laboriosa. Sua família, composta pelos pais Antonio e Giovanna, e pelos irmãos e irmãs Giovanni, Marco, Martina, Antonio, Zeno e Sofia, enfrentava as agruras da vida agrícola em uma pequena vila. A pequena propriedade que arrendavam mal produzia o suficiente para sustentar a família, e a maior parte do que colhiam ia para o dono da terra.
Luca, o primogênito, sentia o peso das responsabilidades sobre seus ombros. A vida na vila era marcada pela simplicidade e pela dureza do trabalho no campo. Consciente da necessidade de proporcionar um futuro melhor para seus irmãos e aliviar as lutas financeiras de seus pais, Luca tomou a decisão difícil, mas inevitável, de emigrar em busca de oportunidades além das fronteiras da Itália.
No ano de 1878, movido por um misto de determinação e necessidade, Luca desembarcou nas promissoras terras da Argentina. Os amplos horizontes de Buenos Aires, onde permaneceu por apenas três dias, se desdobravam diante dele, trazendo consigo a promessa de um recomeço. Logo encontrou trabalho em uma grande fazenda nos pampas argentinos, onde se viu envolvido na colheita de trigo ao lado de seu novo amigo, Giovanni.
Os dias se desenrolavam sob o sol escaldante dos pampas, entre os campos dourados de trigo. Luca encontrou satisfação no trabalho árduo e na conexão com a terra. À noite, exausto após uma jornada extenuante de trabalho nos campos dourados de trigo, Luca partilhava refeições com seus colegas. Em um cansaço profundo, os laços entre eles eram forjados na fadiga compartilhada, mais do que nas delícias culinárias. Esses momentos, marcados pelo silêncio que sucede um dia de árduo labor, tornaram-se a essência da conexão entre aqueles que, à luz das estrelas, buscavam forças para enfrentar o nascer precoce do próximo amanhecer.
Mesmo distante, Luca não esqueceu suas raízes e a responsabilidade para com sua família na Itália. Regularmente, enviava alguma ajuda financeira para seus pais e irmãos. Com o passar do tempo e já estabilizado financeiramente, Luca tomou uma decisão que mudaria o destino de sua família: mandou as passagens para os irmãos Giovanni, Marco e Antonio poderem se unir a ele na Argentina.
Na Itália, ficaram Martina, que havia se casado com um rapaz da própria vila onde moravam, e Zeno, com 18 anos, e Sofia, ainda menor, que ficaram responsáveis por cuidar dos velhos pais.
Após dois anos na fazenda de trigo, Luca e Giovanni decidiram dar um novo rumo às suas vidas. Deixaram o emprego e mudaram-se para a Província de Córdoba, onde adquiriram dois grandes lotes de terras do governo argentino a preços subsidiados. Essa mudança representou um novo capítulo na vida de Luca e Giovanni, de trabalhadores assalariados a proprietários de terras, vislumbrando um futuro mais estável e independente.
A história de Luca e Giovanni se expandiu para além das plantações. Fundaram uma cooperativa local, unindo esforços com outros agricultores da região para fortalecer a comunidade. Seus esforços culminaram na construção de uma escola para as crianças da região, proporcionando educação e oportunidades que eles mesmos não tiveram.
Com o passar dos anos, a família de Luca e Giovanni cresceu, multiplicando-se em gerações. Os netos, inspirados pelos feitos de seus avós, seguiram diversos caminhos. Alguns continuaram na agricultura, modernizando as práticas herdadas, enquanto outros buscaram carreiras nas cidades, levando consigo os valores fundamentais transmitidos por Luca e Giovanni.
À medida que a Província de Córdoba se transformava e crescia, a história de Luca e Giovanni se tornou parte integrante do legado da região. Suas conquistas ecoaram nas pradarias argentinas, simbolizando a tenacidade e a visão que moldaram não apenas suas vidas, mas também o destino das futuras gerações. A história desses dois amigos imigrantes, que transformaram a adversidade em triunfo, permaneceu viva nas tradições e na memória de uma comunidade que eles ajudaram a construir.
A chegada dos irmãos Giovanni, Marco e Antonio à Argentina trouxe uma alegria renovada para Luca. Reunidos novamente, a família começou a construir um novo capítulo de suas vidas juntos. Giovanni, seguindo os passos de Luca, encontrou uma parceira chamada Rosalia, e juntos, estabeleceram-se em uma fazenda próxima. A terra generosa dos pampas argentinos parecia sorrir para eles, recompensando os anos de trabalho árduo.
Marco, o irmão mais jovem, apaixonou-se por uma jovem argentina chamada Elena. Eles decidiram explorar novos horizontes, optando por um pedaço de terra próximo à cidade, onde fundaram um pequeno comércio que prosperou com o tempo. Antonio, o mais jovem, encontrou em Luisa uma companheira para a vida. Juntos, decidiram investir na produção de laticínios, aproveitando a vastidão de terras para criar um negócio próspero.
A vida na Província de Córdoba era desafiadora, mas a união da família tornou cada obstáculo mais fácil de superar. As festividades italianas misturavam-se com as tradições argentinas, criando um lar onde o amor, o trabalho duro e a celebração se entrelaçavam.
Enquanto Luca e Giovanni colhiam os frutos de sua visão pioneira na cooperativa local, seus irmãos construíam legados próprios. O eco das risadas das crianças, dos negócios bem-sucedidos.



Dr. Luiz Carlos B.Piazzetta

Erechim RS




quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Mar Tempestuoso, Terra Prometida: A Épica Jornada dos Imigrantes Italianos ao Brasil





Era o final do século XIX, em 1878, quando os Caprari, uma família natural da Sicília, imigrantes italianos como milhões de outros de todas as partes do país, decidiu deixar sua pequena vila no sul da Itália e partir em busca de uma nova vida no Brasil. Eram camponeses e a situação econômica no campo estava cada vez pior com grande desemprego e a fome já rondando os lares. Eles estavam ansiosos para recomeçar a vida em uma nova terra, onde acreditavam que poderiam ter melhor sorte, uma vida digna e oportunidades para seus filhos. Iam em busca daquelas mesmas oportunidades que, por diversas razões, a Itália de então, não podia lhes oferecer: um trabalho digno do qual pudessem conseguir o pão de cada dia, uma vida melhor para eles e um futuro promissor para os filhos.
A viagem começou com um sentimento misto de empolgação misturado com tristeza pela despedida dos amigos e parentes. A família não tinha comprado as passagens de navio, pois não tinham condições financeiras, aproveitaram a oferta do governo brasileiro de viagem grátis até as terras onde começaria a nova vida. 
O navio partiria do porto de Nápoles em direção ao Rio de Janeiro e de lá com com outro navio menor até o porto de Santos. O navio era grande e parecia imponente, dando a impressão de que eles estavam embarcando em uma grande aventura.
A bordo, a família se acomodou como pôde em suas precárias camas beliche de três andares, dispostas em várias filas nos dois grandes salões no porão do navio. Com muita preocupação a família teve que se separar: homens e meninos maiores de oito anos em um dos salões e mulheres e meninas em outro. Em ambos alojamentos comunitários não havia banheiros suficientes para todos os passageiros e nos grandes salões, nas filas de beliches, sem qualquer privacidade, estavam colocados baldes de madeira com tampas para servirem de latrina. O ar ali dentro desses enormes alojamentos era quente, úmido e fétido devido a falta de ventilação adequada. 
Assim que puderam eles começaram a explorar o navio e se familiarizar com o que seria sua casa pelas próximas semanas.
A viagem seguia tranquila até que, aproximadamente o meio do trajeto, logo após ultrapassarem a linha imaginária do Equador, uma grande tempestade começou a se formar no horizonte. O vento aumentou, e as ondas ficaram cada vez mais altas e violentas. A tripulação começou a correr de um lado para o outro e a se preocupar, e os passageiros foram instruídos a se manterem nos alojamentos.
A família Caprari se apavorou, e o medo tomou conta de todos. Eles seguravam-se firmemente aos móveis e objetos, que estavam fixados no assoalho, para não serem jogados de um lado para o outro pela agitação do mar. O vento uivava e o navio balançava e sacudia, e o som das ondas batendo no casco era ensurdecedor.
A tempestade durou algumas horas, e a ninguém a bordo conseguia comer ou dormir devido o enjôo que o balanço tinha provocado. Eles ficavam juntos em seus alojamentos, rezando para que o navio não afundasse. Em momentos de calmaria, saíam rapidamente para tomar ar fresco no convés, mas logo eram obrigados a voltar para dentro com o vento e as ondas que se intensificavam novamente.
Finalmente, a tempestade passou, e o sol brilhou novamente. A tripulação informou que o navio havia sofrido alguns danos, mas nada que impedisse a continuação da viagem. A família Caprari se sentiu aliviada, mas também exausta e traumatizada com a experiência.
O restante da viagem transcorreu sem incidentes, mas eles nunca esqueceram os momentos de angústia vividos durante aquela tempestade. 
Ao chegar ao porto do Rio de Janeiro, foram recebidos por funcionários do porto e encaminhados para a o setor de imigração que os ajudou com os trâmites alfandegários e os encaminhou para um alojamento provisório na hospedaria. Lá, eles tiveram que dividir um grande quarto com outras famílias de imigrantes, mas estavam felizes por finalmente terem chegado ao seu destino. 
Chegando ao Rio de Janeiro, tiveram que se adaptar a um novo país, uma nova língua e uma nova cultura, mas sabiam que estavam prontos para enfrentar qualquer adversidade, já que haviam enfrentado a fúria do mar e sobrevivido.
Para eles tudo era muito diferente daquela pequena vila perdida no interior da Sicilia. Ficaram impressionados com as pessoas de cor escura, pois ainda não conheciam pessoas negras, que eram comuns na ilha onde desembarcaram.
Depois de 3 dias na Hospedaria de Imigrantes, chegou a hora de embarcarem novamente para a cidade de Santos onde seriam recebidos pelos funcionários da fazenda de café que os tinha contratado.
Todos eles tinham sido contratados para trabalhar no cultivo de café de uma grande fazenda do interior de São Paulo. O trabalho era pesado, mas eles estavam dispostos a dar o seu melhor para ganhar a vida. Com o tempo, até conseguiram economizar algum dinheiro e comprar um pequeno lote de terra, na periferia de uma pequena cidade vizinha da fazenda que tinham vivido nos últimos cinco anos e passaram a trabalhar em pequenas fábricas da região.
Passados mais alguns anos, com os filhos agora crescidos, os Caprari se estabeleceram na cidade, abrindo um pequeno negócio próprio junto com o filho mais velho. 
Eles nunca esqueceram da tempestade que enfrentaram durante a viagem ao Brasil, mas agradeciam por terem sobrevivido e por terem construído uma nova vida em um país que lhes deu tantas oportunidades.
A experiência de imigração da família Caprari foi compartilhada por muitas outras famílias que deixaram a Europa em busca de uma vida melhor nas Américas. A tempestade que enfrentaram em alto-mar é um exemplo das dificuldades e dos desafios que tiveram que superar para se estabelecer em uma nova terra.
Mas, como eles, muitos outros pobres imigrantes conseguiram construir uma nova vida e deixar um legado que é valorizado até hoje. 


Texto


Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS




segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Tragédia no Mar: O Naufrágio do Navio Sirio com Emigrantes a Bordo

 

Naufrágio do Navio Sirio


O navio partiu de Gênova em 2 de agosto de 1906 com destino a Buenos Aires com escala em Barcelona, ​​Cádiz, Gran Canaria, Cabo Verde, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu. Depois de embarcar outros passageiros, o navio deixou a capital catalã com destino a Cádiz ainda na Espanha.

Em 4 de agosto, o navio passou em frente ao Cabo Palos, na costa mediterrânea espanhola.  Neste ponto, o promontório se estende sob a água para, em seguida, emergir novamente para formar as pequenas Ilhas Hormigas (Formigas). 

A profundidade da água na linha ideal que une o cabo a essas ilhotas pode ser muito rasa, atingindo em algumas áreas, chamadas de baixios, apenas três ou quatro metros. As rotas marítimas da época então se desviaram das ilhas para evitar o perigo de colidir com elas. Também acima de Capo Palos, um grande farol já tinha sido construído em 1864, que alertava para o perigo desta costa.

No dia 4 de agosto de 1906, por volta das quatro da tarde, o navio, navegando com força total, encalhou perto do Cabo Palos, por manter um curso muito próximo da costa. A proa foi vista subindo violentamente da água devido à alta velocidade. Este é o depoimento do comandante do navio francês Maria Louise, que presenciou o acontecimento e participou dos trabalhos de resgate:

"Vi passar o vapor italiano Sirio a todo vapor. Falei da sua passagem ao colega de bordo quando observei que havia parado de repente ... Vi a proa subir, afundar a popa. Não havia mais dúvidas: o Sirius havia sofrido uma colisão. Imediatamente mandei Marie Louise ser direcionada para Sirius. Ouvimos então uma explosão violenta: as caldeiras estouraram. Pouco depois vimos cadáveres nas ondas, ao mesmo tempo gritos desesperados de socorro chegavam aos nossos ouvidos". 

Os botes salva-vidas foram colocados fora de serviço pelo impacto violento, enquanto muitos passageiros foram atirados ao mar e se afogaram. Segundo o depoimento de um passageiro, o engenheiro Maggi, a água entrou nas cabines da primeira classe, invadiu então o corredor direito e por fim o espaço ao redor da escotilha de ré e o corredor à direita da casa de máquinas. 

Nesta área do navio haviam inúmeras mulheres e crianças que ficaram presas sem poder sair e sem poder ser resgatadas. A tripulação lançou uma jangada ao mar, que ficava na popa, e saiu do navio junto com o terceiro imediato, que se chamava Baglio. Apenas os oficiais permaneceram a bordo, mas logo perderam o controle da situação. O jornal L'Esare, de Bagni di Lucca, assim relatou:

"As lanchas foram atiradas ao mar, mas logo se encheram de tantas pessoas mas, devido ao peso excessivo, as fizeram afundar e assim todos os infelizes que ali caíram em vez da salvação encontraram a morte. A costa ficava a 3 quilômetros de distância do vapor e das rochas que ultrapassavam a água cerca de um quilômetro e meio. Vinte e cinco ou trinta homens salvaram-se nadando até as rochas onde permaneceram todo o dia e a noite seguinte, sem nada para comer".


Página da edição dominical La Domenica del Corriere, do jornal 
Corriere della Sera 


O jornal Corriere della Sera relatou que:

“A primeira sensação de espanto degenerou em um piscar de olhos em um pânico louco, produzindo uma confusão indescritível. Os passageiros, correndo loucamente e gritando desesperadamente, tornaram o trabalho de resgate impossível. "

Como o acidente ocorreu em plena luz do dia e a poucos quilômetros da costa, as equipes de resgate partiram imediatamente. Alguns barcos de pesca como o Joven Miguel e o Vicenza Llicano partiram de Cabo Palos e fizeram o possível para resgatar os náufragos. 

O comandante do Joven Miguel, Vicente Buigues, trouxe o seu navio para o costado do Sírio e assim embarcou trezentos náufragos. O Joven Miguel, porém, não tinha carga a bordo e a presença de tantas pessoas no convés colocava em risco sua estabilidade e, assim, poderia tombar. Apesar dos apelos, os passageiros do Sirio não queriam descer do convés e foi necessário ameaçá-los com uma arma para fazê-los obedecer. 

O alívio também foi proporcionado por dois navios a vapor que, naqueles mesmos minutos, contornavam o Cabo Palos: o francês Marie Louise e o austro-húngaro Buda.


Navio a Vapor (piroscafo) Sirio


Jornais britânicos, como o Daily Telegraph, insistiram em cenas de violência e brigas de faca para conseguir os poucos coletes salva-vidas disponíveis. Uma crônica da época conta que a maioria dos tripulantes conseguiu escapar simplesmente porque permaneceram no navio que, estando encalhado, permaneceu flutuando por mais dez dias.

As vítimas foram estimadas inicialmente em 293 pessoas para depois chegar a um total final de mais de 500 passageiros e tripulantes.  Devido à presença a bordo de inúmeros imigrantes ilegais, nunca foi possível estabelecer quantas pessoas realmente embarcaram no Sirius e quantas se afogaram. Entre as vítimas do naufrágio estava o bispo de São Paulo no Brasil, José de Camargo Barros. 

Os sobreviventes do Sírio foram hospedados na cidade vizinha de Cartagena. Os que decidiram seguir rumo à América do Sul embarcaram na Itália e Ravenna, enquanto os que desejavam voltar à Itália embarcaram no Orione.

As investigações sobre o acidente foram imediatamente abertas e eles verificaram que o capitão Giuseppe Piccone dirigiu as operações de resgate com bom senso e julgamento e foi o último a ser salvo. As primeiras notícias veiculadas pelos jornais da época indicam, ao invés, um comportamento inadequado do capitão e da tripulação que levaram ao naufrágio.


Navio Sirio pouco tempo antes do naufrágio


A imprensa espanhola também denunciou que o Sirio costumava fazer escalas não oficiais ao longo da costa ibérica para embarcar passageiros clandestinos. Na verdade, estes eram conduzidos para baixo da lateral do navio por barcos improvisados ​​e depois transbordados. Isso explicaria por que o Sirius estava navegando tão perto da costa.

Em Capo Palos, um museu foi dedicado ao naufrágio do Sirius. Ele também exibe os folhetos que possibilitaram a entrada de imigrantes ilegais no navio nas escalas extras.

Os restos mortais do Sirius repousam em grande profundidade nos arredores do Cabo. A popa está a cerca de 40 metros de profundidade, enquanto a proa a cerca de 70 metros. Após ser declarada Reserva Marinha de Capo de Palo e das Ilhas Formigas, em 1995, a atividade de mergulho na área é limitada, e para uma visita, é necessária a autorização do "Conselho do Meio Ambiente do Governo Regional de Murcia".



Dr. Luiz Carlos Piazzetta

Erechim RS


sábado, 4 de novembro de 2023

Travessia Rumo ao Sonho: Jornadas de Italianos na América do Início do Século XX




Giovanni Moretti, nasceu em 1868, município italiano de Gênova. No final do século XIX, Giovanni Moretti concluiu seus estudos e, seguindo os passos de seu pai comerciante de vinhos e alimentos, decidiu forjar seu destino além das fronteiras familiares. Aos 30 anos, juntando uma regular quantia do patrimônio familiar, Giovanni sentiu o chamado para desbravar a incerteza do outro lado do oceano, também devido às condições adversas da economia italiana, que afetaram significativamente os negócios familiares.
Em 6 de setembro de 1898, ele embarcou em Gênova a bordo do navio La France, com destino a uma nova vida. Com uma quantia substancial além dos 50 dólares necessários para a entrada nos Estados Unidos, Giovanni evitou habilmente a entrevista do Immigration Service. Enquanto seus companheiros de viagem enfrentavam a travessia até Ellis Island, Giovanni desembarcou diretamente em Nova York, trilhando seu caminho em direção à Pensilvânia.
Na Pensilvania, Giovanni encontrou um amigo da família, Marco Russo, um siciliano que havia estabelecido raízes na América desde 1890, gerenciando um próspero negócio de importação e exportação. Com suas economias e uma generosa contribuição de seu pai, Giovanni percebeu a oportunidade de adquirir uma parte do negócio de Marco. Essa decisão não só marcou sua entrada no mundo dos negócios americanos, mas também selou uma parceria que transformaria o destino de ambos em terra estrangeira.
Movido pelo desejo de abraçar plenamente sua nova pátria, Giovanni deu um passo adiante em sua integração. Decidiu se naturalizar americano, simbolizando essa transição vital com a adoção de um novo nome: John More. Essa mudança não foi apenas uma formalidade; era uma declaração de compromisso com sua nova identidade, uma fusão de suas raízes italianas com os horizontes promissores da América. A metamorfose de Giovanni Moretti para John More marcou o início de uma jornada extraordinária em busca do sonho americano. A nova identidade não apenas abre as portas da cidadania para ele, mas o consagra como uma figura respeitada na comunidade ítalo-americana da Filadélfia. John More contribui ativamente para o crescimento da cidade, construindo uma ponte entre suas raízes italianas e o desenvolvimento da América no século XX. Sua história torna-se um exemplo de sucesso, uma narrativa de um italiano que, com coragem e determinação, construiu um futuro do outro lado do oceano, transformando desafios em trampolins para o sucesso em uma nova terra.



quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Da Sicília ao Brasil: Uma Saga de Coragem em Campinas



Era o ano de 1868, em uma pequena vila no interior da Sicília, onde o sol dançava sobre as colinas de Agrigento, banhando tudo em uma luz dourada e perfumada pelo aroma do Mediterrâneo. Foi nesse cenário que Aniello viu pela primeira vez a luz do dia, em uma casa modesta na zona rural.
A família, composta por pequenos agricultores, enfrentava desafios para obter o sustento a partir de uma parcela de terra com menos de um hectare, que eles arrendavam. O ambiente que antes era idílico e próspero agora estava imerso em dificuldades devido a vários anos de conflitos pelo poder. A unificação da Itália resultou em um aumento significativo de impostos e taxas, levando a economia local à ruína. Aniello, o filho mais velho, sentia a responsabilidade de alimentar não apenas a si mesmo, mas também seus pais, esposa Maria Giovanna, três irmãs e quatro irmãos mais jovens.
Os ventos da mudança sopraram na forma de oportunidades além do horizonte. O Brasil, um vasto país sul-americano, oferecia uma promessa de esperança. O governo brasileiro buscava mãos trabalhadoras e, generosamente, concedia passagens gratuitas para aqueles dispostos a emigrar. Aniello, encantado com a perspectiva, assinou um contrato de quatro anos com uma empresa que representava uma imensa fazenda de café em São Paulo.
Em dezembro de 1888, ele e Maria Giovanna, abençoados pelos pais e emocionados com as despedidas dos irmãos, embarcaram no navio Príncipe de Astúrias, partindo de Nápoles rumo ao Brasil. A viagem, no entanto, não foi uma jornada fácil. O navio estava superlotado, com a falta de água potável e alimentos causando tumulto entre os passageiros. Nos porões úmidos e escuros, a falta de higiene tornava o ar insuportável.
Ao cruzarem o equador, enfrentaram tempestades que deixaram todos a bordo aterrorizados. Contudo, a esperança os guiou, e finalmente, em dezembro de 1888, Aniello e Maria Giovanna pisaram em solo brasileiro, prontos para enfrentar os desafios que a nova vida lhes reservava.
Chegando ao Brasil pelo porto de Santos, Aniello e Maria Giovanna foram recebidos pelos empregados das fazendas que os aguardavam. Após serem examinados, seguiram para o interior do estado de São Paulo, onde a maioria dos 1260 passageiros permaneceu; quase 500 deles foram para diferentes destinos, como o Rio Grande do Sul. Subiram a Serra do Mar até a capital, São Paulo, onde ficaram dois dias hospedados na Hospedaria dos Imigrantes, antes de embarcar em um trem rumo às fazendas que os contrataram.
A fazenda de Aniello e Maria Giovanna era uma propriedade vasta, administrada por um capataz; uma terra que já havia testemunhado os dias da escravidão, com mais de 300 escravos. Era coberta por milhares de pés de café, uma visão que se tornaria familiar ao casal nos anos seguintes. No segundo ano na fazenda Arari, receberam a bênção do nascimento de Pasquale, o mesmo nome do pai de Anielle, homenageando assim a tradição familiar.
Após os quatro anos iniciais, Aniello e Maria Giovanna decidiram permanecer por mais algum tempo na fazenda. Dois anos depois, com o nascimento de Salvatore, vislumbraram uma nova oportunidade que chegou através da informação de um amigo. Deixaram a fazenda e mudaram-se para Campinas, uma cidade já significativa, onde Aniello começou a trabalhar em um pastifício local. Inicialmente, alugaram uma casa na periferia, mas à medida que o tempo passava, adquiriram um lote de terra e construíram sua própria casa.
Em Campinas, a família Aniello floresceu, recebendo a chegada de mais cinco filhos: Maria Augusta, Nicola, Alessandro, Luigia e Caterina. O passado na Sicília e a jornada através do Atlântico deram origem a uma nova história, cheia de desafios superados e sucessos conquistados. Assim, na terra prometida do Brasil, a família cultivou não apenas café, mas também raízes profundas que se estenderam por gerações. O legado de Aniello e Maria Giovanna se entrelaçou com o tecido de Campinas, uma tapeçaria rica em histórias de coragem, esperança e resiliência.


sábado, 14 de outubro de 2023

Carta da Desesperança: Uma Jornada Angustiante Rumo ao Desconhecido


 



Querida esposa e filhos,


Espero que estas palavras cheguem a vocês com a esperança de que estejam bem, enquanto minha pena registra as angústias e sofrimentos desta travessia. Estamos apinhados no navio como pássaros em uma gaiola, e o lamento dos que sofrem enche o ar. Um jovem de apenas 4 anos nos deixou, uma bela criança bem nutrida, e outros 9 estão gravemente doentes.
A desesperança reina a bordo, com clamores e lágrimas. Cerca de 103 chefes de família, incluindo eu, decidimos não embarcar em um navio à vela, mas exigir um navio a vapor, conforme acordado no contrato, ou o reembolso do dinheiro pago. Em Marselha, surgiram traidores entre nós, e quase 100 pessoas os cercaram, desejando vingar a traição.
Neste momento, estou indeciso se devo seguir para a América ou voltar para casa, pois não posso aceitar uma travessia tão longa em um navio à vela. A dureza do pão é como ferro, e sua imutabilidade apenas acrescenta às nossas aflições. Enquanto isso, nossa partida é incerta.
Amaldiçoo o dia em que decidi empreender esta viagem e confiar nesses mercadores de carne humana. A emigração continua, e aqueles que a perseguem são impelidos por um amor pelo desconhecido, em busca de traições, escravidão e dor, até mesmo enfrentando a morte.
Com o coração aflito, compartilho as dolorosas notícias e sofrimentos. Que estes dias passem rapidamente, nos reunindo em breve em uma terra melhor.

Com carinho,
Attilio



sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Jornada de Rinaldo e Giuseppe: Da Itália para a Colônia Conde D'Eu no Brasil



No gélido inverno de 1889, Rinaldo Battista R., e seu cunhado Giuseppe G. enfrentavam uma reviravolta inesperada nos seus destinos. A possibilidade de uma nova vida no Brasil, surgida através da Società di Navigazione Generale Italiana, uma empresa de navegação encarregada e comissionada pelo governo brasileiro para recrutar mão de obra italiana por todo o país,  pagando os respectivos bilhetes de transporte, foi interrompida por uma decisão do parlamento italiano, suspendendo temporariamente a emigração subsidiada para o Brasil, jogando seus sonhos num abismo de incertezas.

Em Cantonata, a pequena localidade onde agora estavam morando, localizada no coração da província de Cremona, devido as más condições do tempo, naquele ano os campos de linho produziram apenas um terço do esperado. A neblina pairava sobre os trigais, reduzindo a colheita pela metade. A uva, símbolo de prosperidade, murchava nas vinhas, enquanto as tempestades dispersas causavam estragos generalizados. A desesperança se entrelaçava com seus dias e então tentaram uma mudança de  residência, deixando para trás Costa Santa Caterina, onde nasceram e sempre viveram, em busca de melhores condições em Cantonata. Ainda assim, as sombras da incerteza pairavam, alimentadas pela incansável espera do possível levantamento do veto governamental à emigração subsidiada.

Para essa empreitada tiveram ajuda de Pierino, um amigo comum, que não poupou esforços para ajudá-los conseguir as passagens gratuitas para o Brasil. Seus corações permaneciam aquecidos pela esperança, mesmo diante da crueza do inverno e das agruras da vida rural na Itália daquele ano.

Finalmente, em 1891, as nuvens da proibição se dissiparam. Embarcaram finalmente para o Brasil, a bordo de um grande navio a vapor, chegando depois de 40 dias na Colônia Conde D'Eu, localizada no coração do Rio Grande do Sul. A terra prometida acolheu-os generosamente, e a semente de seus sonhos, outrora plantada na Itália congelada, agora florescia em terras brasileiras.

Os primeiros anos no novo país foram desafiadores, na verdade muito duros, mas com perseverança e trabalho árduo, os dois  cunhados construíram um novo lar. Em poucos anos encontraram o amor, Giuseppe com Maria e Rinaldo com Carmela, ambas filhas de famílias imigrantes da região do Vêneto, que haviam se estabelecido 15 anos antes naquela colônia. As duas famílias cresceram, as colheitas abundaram, e logo puderam adquirir mais lotes de terra, tornando bem mais extensas as suas propriedades, consolidando de vez as suas presenças na colônia.

À medida que as décadas avançavam, puderam acompanhar os filhos seguindo seus passos, expandindo os vinhedos, modernizando as técnicas agrícolas e construindo uma base sólida para as gerações futuras. A Colônia Conde D'Eu, hoje a bela cidade gaúcha de Garibaldi, tornou-se o seu lar, não apenas geograficamente, mas no tecido de suas vidas e memórias.

A jornada dos dois cunhados cremoneses, que começou na Itália gelada, culminou numa história de sucesso, determinação e prosperidade nas vastas terras do Rio Grande do Sul. O Brasil passou a ser  a  segunda pátria deles, acolhendo-os generosamente, os quais, por nossa vez, plantaram raízes profundas e duradouras neste solo fértil.



sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Caminhos Além do Sile: Uma Saga de Amor e Prosperidade


 

Maria Augusta, Giuseppina e Antonella eram 3 irmãs com idades de 24, 20 e 17 anos respectivamente, filhas do casal Domenico Zatellon e Anna Mezzomo, moradores no interior de um pequeno município da província de Treviso, na região do Vêneto. Além das três moças Domenico e Anna tinham mais cinco filhos homens, todos vivos e mais duas meninas já falecidas ainda no primeiro ano de vida. Moravam e trabalhavam na agricultura e criação de bichos da seda, em uma grande terra particular margeada pelo rio Sile, de propriedade de uma família nobre veneziana, que já tinha conhecido mais importância e esplendor na época da Sereníssima República de Veneza. Já de alguns séculos era propriedade rural de nobres patrícios venezianos, local de férias de verão da família e de onde obtinham a sua renda. Outrora eram grandes armadores que substituíram a atividade marítima pela produção rural. A propriedade tinha vários empregados, todos morando no próprio local com as famílias, cultivando e produzindo um pouco de tudo, sendo a criação do bicho da seda umas das suas atividades principais.

Na tranquila província de Treviso, aninhada nas margens serenas do rio Sile, erguia-se a imponente Villa del Conte. Um legado de beleza e história, a propriedade era o lar de uma família laboriosa e notável: os Zatellon, que ali trabalhavam a três gerações.

Domenico e Anna, os pilares da família, dedicavam suas vidas à agricultura e, acima de tudo, à laboriosa criação do bicho da seda na Villa del Conte. Domenico, um homem de meia idade, forte e  experiente, era o encarregado geral responsável por tudo na propriedade. Sua palavra era a lei, e ele se reportava somente aos distantes patrões da nobre família veneziana.

Além das três filhas - Maria Augusta, de 24 anos, Giuseppina, com seus 20 anos, e Antonella, a caçula de 17 - Domenico e Anna tinham mais cinco filhos homens, cujas vidas se entrelaçavam com a terra e o rio, assim como as irmãs. Juntos, formavam uma família que trabalhava incansavelmente para a produção e manutenção da Villa.

A produção de seda, atividade fabril cuja técnica foi trazida secretamente do oriente pelos navegadores venezianos, era uma arte que exigia dedicação meticulosa. As amoreiras, cujas folhas alimentavam os bichos da seda, eram cultivadas com carinho. A cada safra, casulos preciosos eram colhidos e cuidadosamente preparados para a venda à indústria da seda, que despontava no Vêneto desde a época da sereníssima. Era uma tarefa que demandava habilidade e paciência, mas os Zatellon haviam dominado essa arte ao longo das gerações.

Enquanto a família Zatellon prosperava na Villa del Conte, as três irmãs e seus irmãos encontraram destinos que os levaram a terras distantes. Os irmãos Luigi e Giovanni, em particular, fizeram uma jornada audaciosa para a colônia Dona Isabel, no Brasil. Os dois jovens eram ambiciosos e tinham grandes sonhos,  queriam progredir na vida e serem proprietários da terra em que trabalhavam. Não concordavam com a vida que a família tinha levado até agora. Uma vida marcada pela submissão à um patrão, onde o que sobrava era somente trabalhar e calar sempre. Sonhavam romper este antigo costume, passando de empregados à patrões.

A vida no Brasil não era fácil no começo, mas com determinação e trabalho árduo, os dois ambiciosos irmãos logo prosperaram. Eles investiram nas terras férteis da colônia, cultivando safras abundantes e expandindo seus negócios. Anos se passaram, e suas vidas na nova terra se transformaram.

Luigi casou-se com Isabella, uma mulher forte e inteligente que compartilhava seu desejo de sucesso. Juntos, eles tiveram filhos que cresceram em meio aos campos e às fazendas que Luigi adquirira ao longo dos anos. Ele não apenas se tornou um grande proprietário de terras, mas também investiu em indústrias, contribuindo para o desenvolvimento econômico da região.

Giovanni, por sua vez, encontrou o amor nos braços de Elena, uma mulher de grande determinação. Eles construíram um legado juntos, à medida que Giovanni expandia seus negócios para além das fronteiras da agricultura. Ele estabeleceu indústrias prósperas e se tornou um dos empresários mais respeitados da colônia. Seu casamento trouxe à vida vários filhos que compartilharam a visão de seu pai.

Enquanto isso, na Villa del Conte, as famílias das três irmãs continuaram a prosperar, celebrando a vida, o amor e os laços familiares. A história dos Zatellon, marcada pela dedicação à terra, à criação do bicho da seda e à busca de novas oportunidades, era um conto duradouro, escrito com o suor e o amor de gerações de Zatellons nas terras abençoadas pelo rio Sile. E mesmo com a partida de Luigi e Giovanni em busca de novas terras no Brasil, o espírito e os valores da Villa del Conte permaneceram firmes, passados de geração em geração, enquanto os dois irmãos realizavam seus sonhos em terras distantes, tornando-se grandes proprietários de terras e líderes industriais. Suas histórias de sucesso ecoavam através do tempo, inspirando futuras gerações a trilharem seus próprios caminhos em busca de realizações e prosperidade.




sábado, 16 de setembro de 2023

A Jornada dos Três Irmãos Crivelli: Da Itália ao Brasil


 



No início da grande emigração italiana, nas montanhas do interior de Cesiomaggiore, na província de Belluno, três irmãos nascidos em uma família numerosa, muito humilde, sonhavam com uma vida melhor. Giovanni, o mais velho, tinha 23 anos, Pietro tinha 21 e Settimo apenas 19. Eles viviam em uma região montanhosa onde a economia de subsistência era a norma, e a pobreza era uma companhia constante. As safras frequentemente eram perdidas para secas implacáveis ou aluviões que devastavam tudo em seu caminho. Após a queda de Veneza tudo somente piorou para os habitantes da região, os impostos e as taxas criadas pelos diversos governos que se seguiram, tornavam a vida de todos ainda mais difícil, especialmente no campo  A esperança de uma vida melhor e a real oportunidade de adquirir terras próprias no Brasil atraíram os três irmãos para a aventura da emigração.
Em 1878, eles embarcaram em uma jornada que mudaria suas vidas para sempre. A travessia do oceano era uma experiência desconhecida e assustadora. A bordo do navio, enfrentaram tempestades ferozes que fizeram o mar parecer um monstro enfurecido. Muitos passageiros adoeceram durante a viagem, e a incerteza sobre o que os esperava do outro lado do Atlântico pairava no ar.
Finalmente, após semanas de travessia, o navio finalmente atracou no porto do Rio de Janeiro, mas, para eles ainda não era o fim da viagem. Dois dias depois embarcaram em outro navio, de menor calado, que os levou até o Porto de Rio Grande na província do Rio Grande do Sul, Brasil. Nesse local ficaram hospedados por algumas semanas, em grandes barracões comunitários, esperando pelas lanchas a vapor que atravessando a Lagoa dos Patos os levaria rio acima até um porto perto da colônia Dona Isabel. Os irmãos desembarcaram da lancha com esperanças renovadas, ansiosos para começar uma nova vida. Do porto ainda precisavam caminhar por algumas horas até finalmente chegarem na seda da colônia. Com as economias que trouxeram da Itália, cada um deles comprou um pedaço de terra do governo brasileiro na recém-inaugurada colônia Dona Isabel. Ao todo, eles adquiriram uma área imensa de 150 hectares.
A terra que agora chamavam de lar era um paraíso selvagem e exuberante. Grandes árvores e pinheiros se erguiam majestosamente, criando uma paisagem deslumbrante. Um rio serpenteava pela propriedade, fornecendo água fresca e oportunidades de pesca. Os irmãos começaram a construir suas casas rústicas e a preparar o solo para o cultivo.
A adaptação ao novo país e às suas peculiaridades não foi fácil. A língua não era um grande desafio, pois estavam em local onde todos eram imigrantes italianos. A língua ofial do país, o português eles foram aprendendo aos poucos com o passar do tempo. Aos poucos, estabeleceram relações com outros imigrantes italianos na região e com os brasileiros locais, criando uma comunidade unida. O talian era a língua recém criada que estava se firmando naquela e em outras colônias italianos do Rio Grande do Sul.
Giovanni, o mais velho, se destacou como agricultor. Ele plantou campos vastos de trigo, milho e feijão, aproveitando o solo fértil da região. Pietro, habilidoso artesão, começou a trabalhar como carpinteiro e construiu casas não apenas para sua família, mas também para outros colonos, mais tarde abrindo uma grande carpintaria na sede da colônia que empregava vários outros imigrantes. Settimo, o mais jovem, dedicou-se à pecuária e a criação de suínos que logo se tornou uma parte importante da economia local.
À medida que os anos passavam, a colônia Dona Isabel florescia. A terra generosa e o trabalho árduo dos três irmãos transformaram sua propriedade em uma das mais prósperas da região. Eles não apenas conseguiram sobreviver, mas também prosperar. Os três se casaram com moças de famílias italianas da própria colônia e tiveram numerosos filhos.
Com o tempo, as lembranças da Itália ficaram mais distantes, substituídas pelas conquistas e desafios do Brasil. Ainda assim, em suas conversas à noite, junto à lareira acesa, eles compartilhavam histórias de sua terra natal, mantendo viva a memória da jornada que os trouxera para o outro lado do mundo.
À medida que envelheciam, Giovanni, Pietro e Settimo continuaram a ser pilares de sua comunidade. Eles viram seus filhos e netos crescerem na terra que escolheram chamar de lar, mantendo viva a tradição e a cultura italiana.
A história dos três irmãos italianos que deixaram as montanhas de Cesiomaggiore para buscar uma vida melhor no Brasil é uma história de coragem, determinação e perseverança. Eles enfrentaram desafios inimagináveis, mas através de seu trabalho árduo e espírito inabalável, transformaram um pedaço de terra selvagem em um lar próspero e acolhedor. Suas vidas são um testemunho da capacidade humana de superar adversidades e forjar um futuro melhor, mesmo diante das incertezas de uma jornada rumo ao desconhecido.