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domingo, 8 de setembro de 2024

Sob o Céu do Veneto: A Jornada de uma Família de Agricultores

 


O sol se punha sobre as montanhas dos Dolomitas, tingindo o céu de um laranja vibrante. Em um pequeno município na província de Belluno, na fronteira norte do Vêneto, a família Benedettini reunia-se ao redor de uma mesa de madeira antiga, marcada pelo tempo e pelo uso. Giovanni Benedettini, o patriarca, era um homem de mãos calejadas e olhos que guardavam séculos de história. Ele observava seus filhos, Rosa e Pietro, e sua esposa Augusta Aurora, sentada silenciosa com o rosário entre os dedos. “Era diferente no tempo da Serenissima”, murmurou Giovanni, quebrando o silêncio. “Nós almoçávamos e jantávamos. Tínhamos pão e vinho, e o trabalho na terra nos sustentava. Mas agora, sob os Savoia, mal conseguimos uma refeição. A fome bate à nossa porta, e a terra, que antes nos dava vida, agora parece nos condenar.” Maria assentiu, seus olhos refletindo a mesma preocupação. Ela sabia que a mudança estava se aproximando, uma mudança que seria definitiva. A memória da Serenissima Republica de Veneza ainda era viva na comunidade, uma época de relativa prosperidade e dignidade, antes da invasão de Napoleão e a subsequente dominação austríaca. Sob Francisco José, o imperador “Cesco Bepi” como os venetos o chamavam, a vida se tornou mais difícil, mas ainda suportável. Com a unificação da Itália e a anexação do Vêneto ao Reino da Itália sob a Casa de Savoia, a situação deteriorou-se rapidamente. As promessas de liberdade e prosperidade eram mentiras vazias; o que restou foi a miséria. A crise econômica se agravava, e a família Benedettini, como muitos outros pequenos agricultores e artesãos, se via à beira do colapso. A terra que Giovanni cuidava com tanto zelo pertencia a um grande senhor que vivia distante, em Veneza. O gastaldo, encarregado da administração, era implacável e não tolerava qualquer falta. As dívidas se acumulavam, e a fome se tornava uma companheira constante.

Em uma manhã fria de outubro, durante a missa dominical, o padre Don Luigi, um homem respeitado por toda a aldeia, subiu ao púlpito e, com uma voz que ecoava pelas paredes da igreja, não mediu as palavras e mesmo contra os interesses dos ricos proprietários de terras, incentivou a emigração. “Meus filhos, a nossa terra é abençoada, mas os tempos são difíceis. Deus nos deu coragem, e devemos usá-la. Há terras além-mar, terras que prometem uma vida melhor. A fome não deve ser o nosso destino. Emigrem, encontrem nova vida. Essa é a vontade de Deus.” As palavras do padre reverberaram no coração de Giovanni. Ele sabia que permanecer significava a morte lenta da sua família, mas partir era uma aposta no desconhecido. Muitos proprietários de terras, contrários a emigração, pois, ficariam sem mão de obra ou, pela falta, teriam que pagar muito mais por ela, faziam circular entre o povo, boatos e desinformações que criavam temor e medo naqueles que estavam querendo emigrar. Contudo, naquela noite, ao olhar para os rostos de seus filhos, ele tomou uma decisão. Eles deixariam o Vêneto.

A decisão de emigrar não foi fácil, mas o destino estava traçado. Em uma manhã nebulosa, a família Benedettini juntou seus poucos pertences e se preparou para a longa jornada até o porto de Gênova. Ali, embarcariam em um navio rumo ao Brasil, um país do qual sabiam pouco, mas que prometia novas oportunidades. Antes de partir, Giovanni foi até a igreja. Ele se ajoelhou diante da imagem de São Marco, padroeiro de Veneza, e rezou em silêncio. Sentia o peso de séculos de história sobre seus ombros, mas também sabia que não havia outra escolha. O dia da partida foi marcado por lágrimas e abraços apertados. A pequena aldeia se reuniu para se despedir dos Benedettini. Amigos e vizinhos ofereciam orações e promessas de cartas. A tristeza era palpável, mas havia também uma centelha de esperança nos olhos daqueles que partiam. “Não esqueçam quem vocês são, onde nasceram. Levem o Vêneto no coração,” disse o velho Paolo, o amigo mais antigo de Giovanni, enquanto apertava a mão do patriarca.

A travessia do Atlântico foi longa e cheia de desafios. No porão do navio, os Benedettini compartilhavam um espaço apertado com dezenas de outras famílias, provenientes de várias regiões da Itália, todas em busca de uma nova vida. O mar era implacável, e muitos dias se passavam sem que a luz do sol penetrasse as profundezas do navio. Rosa, a filha mais velha, adoecera durante a viagem. Maria fazia o possível para cuidar dela, mas a falta de médicos e as condições insalubres tornavam a recuperação difícil. Em momentos de desespero, Giovanni questionava sua decisão de partir, mas Maria o lembrava das palavras de Don Luigi: “Essa é a vontade de Deus.”

Finalmente, após semanas no mar, avistaram a costa brasileira. O porto de Santos se estendia diante deles, uma visão que misturava alívio e incerteza. Era o início de uma nova vida, mas também o fim de tudo o que conheciam. O Brasil os recebeu com um calor sufocante e uma vegetação exuberante. A adaptação foi difícil. A língua, os costumes, a própria terra eram estranhos. Contudo, os Benedettini eram resilientes. Giovanni encontrou trabalho em uma fazenda de café, enquanto Maria cuidava dos filhos e da pequena horta que conseguiam manter. O trabalho era árduo, mas pela primeira vez em anos, havia esperança. Com o tempo, outras famílias italianas se uniram a eles, criando uma comunidade onde as tradições do Vêneto eram preservadas. Em meio às dificuldades, havia também a alegria das colheitas, das festas religiosas, e do nascimento de novos filhos, que traziam consigo a promessa de um futuro melhor.

Rosa recuperou a saúde e, anos depois, se casou com um jovem agricultor também vindo do Vêneto. Pietro, o filho mais novo, cresceu forte e cheio de sonhos. A nova geração dos Benedettini não conhecia a fome que havia marcado a vida de seus pais. Anos se passaram, e Giovanni envelheceu. Sentado na varanda de sua modesta casa, ele observava os campos ao redor, que se estendiam até onde a vista alcançava. O Brasil, tão distante de sua terra natal, agora era seu lar. Giovanni nunca esqueceu o Vêneto. Contava histórias para os netos sobre as montanhas, os campos e as tradições da sua terra. Mas ele também sabia que o futuro estava ali, na terra que ele e sua família haviam adotado. “Somos como as árvores”, dizia ele. “Nossas raízes estão no Vêneto, mas aqui, nesta terra, crescemos e damos frutos.”

E assim, a história dos Benedettini se entrelaçou com a história do Brasil, um legado de coragem, resiliência e esperança, que continuaria a viver nas gerações futuras. Os Benedettini nunca mais voltaram ao Vêneto. Mas, nas suas orações e nos seus corações, a Serenissima Republica de Veneza continuava viva, como um símbolo de tempos melhores, de uma dignidade que o mundo moderno tentara roubar, mas que eles mantiveram intacta através da fé, do trabalho e da unidade familiar. O Brasil lhes deu uma nova vida, mas o espírito do Vêneto, forjado em séculos de história, nunca os deixou. Sob o céu estrelado da nova terra, Giovanni Benedettini encontrou paz, sabendo que, apesar de todas as adversidades, ele e sua família haviam construído um novo futuro sem jamais esquecer o passado.

domingo, 1 de setembro de 2024

A Emigração Veneta como Ato de Rebeldia

 


A Emigração Veneta como Ato de Rebeldia


A emigração veneta, especialmente a partir de meados do século XIX, pode ser compreendida como uma forma de protesto silencioso, mas potente, contra as injustiças sociais, econômicas e políticas que afligiram essa região da Itália ao longo dos séculos. Para entender esse fenômeno, é fundamental contextualizar o povo veneto dentro da complexa história que se desenrolou após a queda da Sereníssima República de Veneza, uma entidade que, por quase mil anos, havia garantido certa estabilidade e prosperidade ao seu povo.

Com a invasão de Napoleão em 1796 e a subsequente anexação do Vêneto ao Império Austríaco, a vida dos venetos começou a mudar drasticamente. A antiga serenidade da República Veneziana foi substituída pela rigidez e austeridade do domínio austríaco, que, embora garantisse uma relativa segurança, não conseguia mais prover a mesma qualidade de vida. A frase popular "Com a Sereníssima almoçávamos e jantávamos; com Cesco Bepi almoçávamos; com os Savoia, nem almoçávamos, nem jantávamos" expressa com clareza a percepção de um povo que viu sua situação deteriorar-se rapidamente.

Com a unificação da Itália sob a Casa de Savoia, o cenário para os venetos tornou-se ainda mais desolador. A degradação econômica que já se fazia sentir sob o domínio austríaco foi exacerbada pela pressão dos novos impostos e pela instabilidade política do recém-criado Reino da Itália. Os pequenos agricultores, que por gerações haviam vivido como meeiros ou proprietários de pequenas parcelas de terra, viram-se cada vez mais espremidos entre os altos impostos e a necessidade de vender suas terras para sobreviver.

A emigração, nesse contexto, surgiu como uma resposta natural, quase inevitável, para muitos venetos. Incentivada pelas autoridades e muitas vezes também pelos sermões dos padres nas igrejas, que viam na emigração uma forma de evitar um conflito armado iminente, essa fuga em massa não foi apenas uma busca por melhores condições de vida. Foi, sobretudo, um ato de resistência passiva contra os "senhores de terras" que haviam explorado esses trabalhadores por tanto tempo. A expressão "Tasi sempre, Obedire sempre", que havia caracterizado a relação dos venetos com seus patrões e com a Igreja, começou a perder força à medida que esses camponeses decidiram, em grande número, buscar uma nova vida em terras distantes, especialmente nas Américas.

Esse êxodo massivo foi um golpe para a velha ordem social. De repente, aqueles que haviam exercido poder e controle sobre os trabalhadores rurais, se viram sem mão de obra para trabalhar suas terras. Em uma virada irônica do destino, muitos dos antigos proprietários de terras, antes poderosos, foram forçados a sujar as mãos no trabalho duro que antes delegavam, pois não tinham mais quem o fizesse por eles.

Assim, a emigração veneta pode ser vista como uma forma de protesto contra a opressão e a exploração, uma maneira de dizer "basta" a uma situação insustentável. Foi um movimento impulsionado pelo desejo de uma vida melhor, mas também por um sentimento profundo de revolta e de não conformidade com uma realidade que havia se tornado intolerável. Para os venetos, emigrar não foi apenas uma escolha econômica; foi um ato de dignidade e resistência, uma forma de reivindicar o direito de viver com dignidade, mesmo que isso significasse deixar para trás a terra dos antepassados e buscar novos horizontes em lugares desconhecidos.


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A Jornada de Antonio Mansuetto

 



Em 1946, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, a pequena cidade de Marano di Castelnovo, na Emilia Romagna, estava lentamente se recuperando dos estragos do conflito. Antonio Mansuetto, um jovem aventureiro de 34 anos, havia decidido que seu destino estava além das fronteiras da Itália. Com um espírito indomável e um desejo ardente de explorar novas terras, Antonio deixou a segurança de sua casa e da família para buscar fortuna em terras distantes.

Com uma formação sólida como mecânico-eletricista e uma experiência valiosa servindo no exército italiano, Antonio tinha a habilidade e a determinação necessárias para prosperar. O Brasil, então em plena fase de crescimento industrial, oferecia oportunidades que pareciam feitas sob medida para suas habilidades. Com um pouco de dinheiro economizado e uma esperança ilimitada, ele embarcou em um navio rumo ao desconhecido.

São Paulo, a vibrante metrópole sul-americana, recebeu Antonio com a energia frenética de uma cidade em transformação. Rapidamente encontrou trabalho na indústria do aço, na siderúrgica nacional, um setor em franca expansão. A sua expertise foi bem recebida, e, com o tempo, ele se estabeleceu na cidade. Seus primeiros anos foram marcados por uma série de mudanças de residência, mas o destino parecia sempre o levar ao bairro do Bixiga, onde a comunidade italiana era forte e acolhedora.

O Bixiga, conhecido por suas casas de comércio italianas e a imersão cultural, tornou-se o novo lar de Antonio. Foi ali que encontrou Maria, uma mulher encantadora que compartilhava suas raízes italianas e seus sonhos de uma vida melhor. Casaram-se e formaram uma família, tendo quatro filhos e, eventualmente, dez netos. A vida de Antonio foi marcada por trabalho árduo, dedicação à família e uma profunda gratidão por suas novas oportunidades.

A aposentadoria, aos 65 anos, trouxe a Antonio a chance de refletir sobre sua jornada. Ele se aposentou com orgulho, mas nunca deixou de ser ativo na comunidade. Seus filhos e netos eram sua maior alegria, e ele se dedicou a passar adiante os valores e a cultura italiana que sempre amou.

Antonio Mansuetto faleceu aos 91 anos, deixando um legado de trabalho duro e determinação. Sua história é um testemunho do espírito aventureiro e da capacidade de transformar desafios em oportunidades, sempre com uma visão voltada para um futuro melhor.

sábado, 17 de agosto de 2024

O Adeus no Oceano: A Jornada de Uma Família em Busca de Esperança

 



Giovanni e Maria haviam suportado mais do que a vida deveria exigir de qualquer um. Ele, aos 32 anos, tinha o vigor físico de um trabalhador incansável, mas a alma marcada pelas agruras que o tempo impôs. As mãos calejadas de Giovanni, acostumadas ao peso da enxada, contavam uma história de luta e sacrifício, enquanto seus olhos, profundos e sombrios, refletiam a constante batalha contra a desesperança.

Maria, com 28 anos, era o esteio da família. Seus olhos castanhos, que um dia brilhavam de juventude, agora eram testemunhas silenciosas de noites mal dormidas e dias intermináveis de trabalho nos campos de arroz. Ela mantinha uma postura digna, mesmo diante da pobreza e das incertezas que a vida em Lendinara, na província de Rovigo, trazia. Cada sorriso que oferecia a Giovanni ou aos filhos, Pietro e Lucia, era um ato de coragem, uma promessa de que, apesar de tudo, a esperança ainda resistia.

O pequeno município de Lendinara, com suas colinas verdejantes e paisagens bucólicas, era um lugar onde a beleza natural contrastava dolorosamente com a miséria que assolava seus habitantes. A terra não era fértil, e as colheitas mal cobriam os altos impostos e as necessidades básicas. O futuro parecia cada vez mais sombrio, e a fome se tornava uma presença constante nas mesas das famílias. Giovanni e Maria sabiam que, se continuassem ali, a miséria seria o legado deixado para seus filhos.

Em meio a esse cenário desolador, surgiu uma oportunidade: o Brasil. Era uma terra distante, envolta em mistério e promessas. Promessas de terra fértil e trabalho nas imensas plantações de café, onde poderiam recomeçar, longe das sombras que pairavam sobre a Itália. No entanto, a decisão de partir não foi tomada levianamente. Eles estavam deixando para trás o lugar onde nasceram, onde suas raízes estavam profundamente fincadas, onde tinham enterrado seus sonhos e onde tinham dado os primeiros passos como família.

O medo do desconhecido assombrava as noites de Giovanni e Maria. O Brasil era uma incógnita, uma terra de perigos e incertezas. Mas, ao olhar para Pietro, de seis anos, e Lucia, de quatro, seus corações se encheram de determinação. Eles não podiam permitir que seus filhos crescessem na mesma pobreza que os consumia. A esperança de um futuro melhor superou o medo do desconhecido, e a decisão de partir foi tomada com o coração apertado e a alma repleta de coragem.

A travessia, no entanto, não era um simples detalhe no caminho para uma nova vida. O navio, que deveria ser um símbolo de esperança, logo se transformou em um pesadelo flutuante. O espaço exíguo, as condições insalubres e a mistura de centenas de pessoas, cada uma com sua própria história de fuga e esperança, criaram um ambiente sufocante. O mar, que deveria ser um caminho para a liberdade, parecia mais uma barreira intransponível.

Foi então que a difteria irrompeu a bordo, espalhando-se com uma velocidade aterrorizante. O que antes eram risos de crianças e murmúrios de expectativa, agora se transformou em choros abafados e gritos de dor. As crianças, frágeis e indefesas, eram as mais atingidas pela doença, e o desespero tomou conta de cada canto do navio.

Giovanni e Maria fizeram de tudo para proteger Pietro e Lucia, mas o medo era palpável. Cada tosse de Lucia, cada febre que assolava Pietro, parecia um presságio de que a tragédia estava à espreita. Infelizmente, o destino foi implacável. Lucia, a pequena de apenas quatro anos, não resistiu à difteria. Sua morte trouxe um peso insuportável ao coração de seus pais, que assistiram impotentes enquanto a vida da filha se esvaía.

No meio do vasto oceano, sem terra à vista, não havia escolha a não ser dar à pequena Lucia o último adeus no mar. Seu corpo, frágil e sem vida, foi envolto em um lençol branco e, com uma pedra amarrada aos seus pés, foi lançado às águas profundas. O som das orações de Maria, entrecortadas pelo choro, e o silêncio pesado de Giovanni ecoaram pelo navio enquanto o pequeno corpo de Lucia desaparecia nas ondas. O mar, outrora um símbolo de esperança, agora se tornava o guardião do que lhes era mais precioso.

A dor da perda foi um golpe brutal para Giovanni e Maria, que agora precisavam encontrar forças onde parecia não haver mais nada. A travessia se arrastou por semanas, mas finalmente, o navio avistou as costas do Brasil. O que antes era uma terra de promessas, agora parecia ser a última esperança de salvação. Giovanni e Maria desembarcaram com Pietro nos braços, mais exaustos e enfraquecidos do que poderiam imaginar. Eles haviam sobrevivido, mas sabiam que as cicatrizes daquela jornada ficariam para sempre.

Em São Paulo, foram recebidos por um novo mundo, onde a língua, a cultura e as paisagens eram estranhas e desafiadoras. A fazenda para a qual Giovanni havia sido contratado parecia um paraíso comparado ao inferno que haviam deixado para trás, mas a adaptação seria uma nova luta. Mesmo assim, havia algo em seus corações que continuava a pulsar—um desejo inabalável de reconstruir suas vidas, de dar a Pietro a oportunidade que Lucia não teve.

A vida no Brasil não seria fácil, mas Giovanni e Maria aprenderam que a verdadeira força não reside apenas na capacidade de sobreviver, mas na coragem de recomeçar. Eles haviam cruzado oceanos, enfrentado a morte e superado o desespero. Agora, estavam prontos para transformar esse novo começo em uma vida digna, onde a esperança poderia finalmente florescer, e onde a memória de Lucia viveria para sempre em seus corações.



quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Dias de Espera, Noites de Angústia

 



No final do século XIX, a promessa de uma vida melhor nas Américas atraía milhares de italianos, que deixavam suas terras na esperança de um futuro mais próspero. Entre esses, estava o casal Pietro e Maria, agricultores da pequena aldeia de Casale Monferrato, no Piemonte. Como muitos outros, decidiram vender tudo o que tinham para pagar a passagem no vapor que os levaria ao Brasil, onde sonhavam em recomeçar suas vidas.
Em sua aldeia, foram abordados por um agente de viagens que trabalhava para uma companhia de navegação. Ele pintou um quadro idílico do novo mundo, prometendo terras férteis, trabalho abundante e um futuro próspero para eles e seu filho pequeno, Giovanni. Convencidos pelas palavras do agente, Pietro e Maria compraram as passagens, mesmo sabendo que isso significava abrir mão de quase todas as suas economias.
O agente, no entanto, tinha intenções que iam além de vender passagens. Ele marcou a data para que o casal chegasse a Gênova muito antes do necessário, garantindo que eles passassem semanas na cidade antes da partida do navio. Ao chegar ao porto, Pietro e Maria encontraram-se em um cenário caótico: ruas lotadas de famílias como a deles, que aguardavam o embarque para uma nova vida. Com a pouca experiência que tinham do mundo fora de sua aldeia, não estavam preparados para o que os esperava.
Nas proximidades do porto, comerciantes desonestos, em conluio com agentes de viagem, aproveitavam-se da vulnerabilidade dos emigrantes. Os hotéis, pensões e restaurantes locais estavam prontos para explorar até o último centavo daqueles que buscavam abrigo e comida enquanto esperavam pelo embarque. As ruas adjacentes ao cais eram um amontoado de lugares baratos e mal conservados, onde as famílias, já fragilizadas pela longa viagem até o porto, se viam forçadas a gastar suas últimas economias.
Pietro e Maria encontraram refúgio em uma pequena pensão, uma escolha quase que inevitável, dada a situação. Os dias se transformaram em semanas, e a espera tornou-se um tormento. Cada noite passada naquele lugar significava menos dinheiro para recomeçar suas vidas no Brasil. O quarto que alugavam era úmido e frio, as camas duras e desconfortáveis. A comida, vendida a preços exorbitantes, era escassa e de má qualidade. A saúde de Giovanni começou a se deteriorar, agravando ainda mais a angústia do casal.
Nas ruas ao redor do porto, o cenário era ainda mais desolador. Famílias que não tinham dinheiro para pagar por um abrigo se amontoavam nas calçadas, expostas ao frio e à chuva. Crianças famintas vagavam pelas ruas, enquanto seus pais, desesperados, tentavam encontrar alguma forma de garantir a sobrevivência até o dia do embarque. A espera prolongada não era apenas física, mas também emocional; cada dia parecia arrastar-se interminavelmente, e o sonho de uma nova vida começava a desvanecer-se.
Maria, com Giovanni nos braços, passava os dias em preces silenciosas, tentando manter viva a esperança. Pietro, por sua vez, sentia o peso da responsabilidade, sabendo que cada dia que passava os afastava mais do sonho que os levara a deixar sua terra natal. O dinheiro que haviam economizado com tanto esforço agora desaparecia rapidamente, e o medo de não ter nada ao chegar ao Brasil começava a assombrá-los.
Finalmente, o dia do embarque chegou. O porto estava cheio de famílias exaustas, debilitadas pela longa espera. Quando o imponente vapor atracou, houve um misto de alívio e tristeza entre os que estavam prestes a partir. Pietro, segurando Giovanni com uma mão e Maria com a outra, olhou para o navio com o coração apertado. Eles estavam deixando para trás uma terra que os havia visto nascer, mas também uma experiência de sofrimento que marcaria suas vidas para sempre.
Para muitos, o embarque representava a esperança de uma nova vida, mas para outros, como aqueles que não conseguiram pagar pela passagem ou que ficaram sem dinheiro para embarcar, o porto de Gênova se tornaria um símbolo de sonhos destruídos. As ruas ao redor do cais continuaram a testemunhar o sofrimento daqueles que, como Pietro e Maria, foram forçados a enfrentar uma espera cruel, onde a esperança se misturava com a desilusão e a miséria.
Assim, enquanto o vapor partia em direção ao horizonte, levando consigo os sonhos e as últimas economias de tantos emigrantes, o porto de Gênova ficava para trás, um lugar onde muitos deixaram não apenas sua terra natal, mas também uma parte de suas almas, consumidas pela longa e dolorosa espera.


quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O Fluxo Migratório Italiano: Uma Jornada Transoceânica


"Deixo minha casa, deixo o país e vou para a América para capinar. Parto em busca da fortuna e há um mês não vejo mais terra: só céu e mar.  Deixo minha casa, a bela Itália, para ir tão longe, em terra estrangeira. E sob um outro céu e uma outra estrela levo os filhos e a mulher para lá começar com melancolia pensando no campo onde nasci, naquela velha e santa mãe e em todas as coisas queridas do passado...”  Assim escreveu um emigrante italiano durante a viagem, ainda no navio.

De acordo com o pesquisador e escritor Delisio Villa, autor do conhecido livro Storia dimenticata: "O ano de 1860 é considerado o ano zero da emigração italiana". 
Nesse ano, começa a longa jornada dos italianos em busca de novos espaços, na Europa e na América. Uma fotografia precisa da situação da Itália nos últimos anos do século XIX, região por região, das condições de vida da maior parte dos italianos, podemos conhecer no chamado Relatório Jacini, uma abrangente pesquisa nacional realizada pelo parlamento italiano, da situação agrária do país publicada entre 1881 e 1890. Este documento oficial diz que: 
"Nos vales dos Alpes e dos Apeninos, e também nas planícies, especialmente no sul da Itália, e até mesmo em algumas províncias entre as mais bem cultivadas do norte da Itália, surgem barracos onde em um único cômodo enfumaçado e sem ar e luz vivem juntos homens, cabras, porcos e galinhas. E esses barracos podem ser contados talvez em centenas de milhares¨.
Uma análise das causas subjacentes à vasta migração transoceânica ocorrida entre 1880 e 1914 revela uma gama diversificada de fatores. Simplificando, o movimento migratório foi impulsionado por uma combinação de mudanças demográficas, como a redução da taxa de mortalidade e a estabilização da taxa de natalidade após 1870, e fatores econômicos, destacando-se a crise agrícola dos anos 1880, que resultou em escassez de alimentos e uma crise econômica substancial.
No entanto, a principal motivação para a migração maciça foi a incapacidade dos camponeses em adquirir capital líquido, o que levou grandes contingentes a empreender a perigosa travessia oceânica em busca de oportunidades. Esses eventos, combinados com a imposição de tributos sobre a farinha, cujo não pagamento poderia levar ao confisco das propriedades, resultaram em um êxodo em massa das áreas rurais.
Para contextualizar, entre os anos de 1875 e 1881, aproximadamente 61.831 pequenas propriedades no campo foram confiscadas, e entre 1884 e 1901 outras 215.759 pequenas propriedades rurais enfrentaram o mesmo destino desafortunado.
Este retrato sombrio por si só evidencia que os fatores que impulsionaram a migração superavam em peso os fatores de atração. O movimento migratório não encontrou barreiras significativas por parte das elites da época, as quais, pelo contrário, acolheram com alívio uma emigração que servia como uma válvula de escape para manter a estabilidade social. 
Naturalmente, houve oposição à emigração, sobretudo por parte dos proprietários de terras, preocupados com a diminuição visível da mão de obra devido ao êxodo, o que poderia levar a aumentos salariais e a condições de trabalho mais favoráveis aos camponeses. No entanto, a favor da emigração, houve um movimento crescente liderado pelos armadores genoveses, proprietários das grandes companhias italianas de navegação da época, agindo em comum acordo com países que procuravam desesperadamente mão de obra em toda a Europa.
Este breve relato do relatório Jacini ilustra a dureza e a dificuldade da vida na Itália naquele período e a mentalidade que os italianos deviam ter diante dessa situação. A difícil situação interna e a percepção de que a Itália oferecia poucas perspectivas levaram milhões de italianos a deixar sua terra natal em busca de novos horizontes. A situação interna estava muito difícil, com falta de trabalho de norte a sul do país, com a fome rondando os lares mesmo na área rural. Assim começou um processo que ao longo de um século levaria milhões de italianos a se estabelecerem em diversas partes do mundo.
Quanto às regiões de origem dos emigrantes e aos destinos para os quais os italianos se dirigiram, os padrões de migração variaram ao longo do tempo e geograficamente. As regiões do Norte foram as primeiras a sentir os efeitos das intempéries, da importação de cereais de outros países, dos diversos impostos que gravavam impiedosamente os mais desprotegidos, da industrialização que dava os primeiros passos, enquanto áreas como o Nordeste e o Sul testemunharam fluxos migratórios mais substanciais. O atraso da emigração do sul em relação ao norte pode ser atribuído a vários fatores, incluindo a gradual participação na migração e a falta de recursos financeiros para enfrentar as viagens.
Em relação aos destinos, entre 1876 e 1885, a Europa Central, principalmente França, Áustria, Alemanha foram as principais metas escolhidas, representando cerca de 64% dos emigrantes. Posteriormente, com o persistir das condições adversas na Itália, os destinos transoceânicos, como Brasil, Argentina e Estados Unidos, ganharam mais peso. Após a Primeira Guerra Mundial, a emigração no continente europeu voltou a predominar, devido em parte às restrições impostas por alguns países receptores, como os Estados Unidos.
No Brasil, especialmente, houve uma grande afluência de italianos a partir do final do século XIX até meados do século XX. Estes imigrantes buscavam aqui melhores condições de vida do que as encontradas em suas terras de origem. Muitos desembarcaram nos portos de Santos, Rio de Janeiro e Paranaguá, cada um trazendo consigo uma história singular, mas todos unidos pelo desejo comum de encontrar um lugar onde pudessem viver dignamente e oferecer um futuro melhor para suas famílias.
A imigração italiana no Brasil em si teve início em 1874 tendo como destino o estado do Espírito Santo que recebeu a primeira leva de italianos e ao longo de um século trouxe cerca de um milhão e meio de italianos para os portos brasileiros.



sábado, 6 de julho de 2024

Raízes de Esperança: A Saga da Família de Mario e Angelina Speranzetti


 


A história da família de Mario Speranzetti e Angelina Valentinelli começou nos aprazíveis campos do interior da província de Padova, na Itália, no ano de 1879. Ambos nasceram em famílias numerosas e também pobres, cujos sonhos estavam profundamente enraizados na terra que cultivavam. Seus pais eram trabalhadores rurais, sem terra própria, e dedicavam suas vidas a trabalhar para os verdadeiros donos da propriedade, com os quais deviam dividir o resultado das colheitas. O sonho de ambas as famílias era um dia se tornarem donas das terras que cultivavam, de serem os próprios patrões, de saírem da pobreza e da submissão, de poderem deixar de calar sempre e só saberem trabalhar.

No entanto, a situação na Itália, e em particular na região do Vêneto, onde as duas famílias viviam desde séculos, estava cada vez mais sombria. A situação começou a piorar para eles, principalmente, para aqueles mais pobres, a partir da conquista da Sereníssima República de Veneza por Napoleão e outra vez mais tarde, com o ressurgimento que deu lugar à criação do reino da Itália. Foram dois longos e atribulados episódios, com muitas guerras, períodos dramáticos e decisivos para o país, especialmente para o povo das regiões norte e sul da Itália, que viviam da agricultura. Esses dois episódios levaram a um empobrecimento contínuo e acelerado de todo o Vêneto. Nos últimos, antes de emigrarem, os grãos eram importados a preços muito mais baratos que os produzidos na Itália, que tinha uma das agriculturas mais atrasadas da Europa. Os camponeses italianos cultivavam a terra da mesma maneira que faziam seus avós, m século atrás, usando os mesmos ultrapassados instrumentos agrícolas e métodos de manejo do solo. No últimos decênios do século XIX, várias catástrofes naturais se abateram sobre a península, com secas, enchentes,  avalanches, desmoronamentos que colaboraram para a diminuição das já insuficientes colheitas. Isso fez com que muitos patrões, aqueles que davam emprego à tantos, desistissem e fossem forçados a vender suas terras gravadas com novas taxas governamentais opressivas. Isso resultou em desemprego em massa no campo, causando desespero e até mesmo fome. Mario e Angelina também trabalhavam para um rico produtor rural que, devido todas essas circunstâncias, se viu obrigado a se desfazer de suas terras e, com toda a família, emigrar para a Argentina.

Foi assim que a família de Mario e Angelina  depois de avaliarem as possibilidades, tomou a difícil decisão de deixar sua terra natal e também partir em emigração, em busca de um futuro melhor. Em 1892, com quatro meninos e uma menina chamada Chiara, com apenas 2 anos de idade, eles embarcaram no navio Giulio Cesare, iniciando uma perigosa e demorada viagem em direção ao Brasil.

A tão temida travessia marítima foi uma jornada repleta de desafios, com o mar agitado e condições desconfortáveis a bordo. No entanto, a esperança os manteve firmes durante aquelas semanas angustiantes.

Finalmente, a família de Mario e Angelina chegou ao Brasil, desembarcando em um país completamente novo e desconhecido, que desde os primeiros momentos os impressionou bastante. O movimentado porto era o do Rio de Janeiro, onde atracavam a maioria dos navios que traziam imigrantes para o Brasil. Com suas economias limitadas, alguns dias depois eles tiveram que fazer outra viagem, desta vez em um navio de menor calado, em direção ao Rio Grande do Sul, para, depois de várias peripécias, finalmente chegarem na Colônia Caxias.

A vida na Colônia Caxias era inicialmente árdua, com desafios como o clima tropical e a adaptação à agricultura local. Mas Mario e Angelina eram pessoas trabalhadoras e determinadas. Com o tempo, aprenderam a cultivar a terra e cuidar do gado e dos suínos, transformando seu pedaço de chão em um lar próspero.

Enquanto Mario e Angelina se esforçavam para construir uma nova vida, seus filhos cresciam. Tommaso, o mais velho, ajudava os pais no difícil trabalho rural, era o braço direito da família. Mattia, Davide e Lorenzo também aprenderam o valor do trabalho árduo. Chiara, apelidada Chiaretta, a menina que chegou tão jovem ao Brasil, cresceu em um ambiente de amor e apoio, tornando-se uma jovem forte, cheia de vida e esperança.

À medida que os anos passavam, a família de Mario e Angelina se tornou uma parte essencial da comunidade da Colônia Caxias, inseridos em vários segmentos da sociedade local. Eles compartilhavam com os amigos e vizinhos suas experiências e histórias vividas na Itália, criando laços fortes.

Com o tempo, a família conseguiu comprar mais terras, realizando o antigo sonho de serem agora os próprios patrões, trabalhando em suas terras, não precisando mais dividir as colheitas  com ninguém  A história de Mario e Angelina se transformou em uma inspiração para outros colonos, mostrando que com trabalho duro e determinação, era possível transformar a adversidade em sucesso.

E assim, a família continuou a escrever sua história na Colônia Caxias, mantendo viva a tradição italiana e os valores que os guiaram desde o momento em que deixaram a Itália em busca de uma vida melhor no Brasil. A jornada da emigração se tornou uma história de resiliência, sucesso e uma lição de vida para as gerações futuras.

Os filhos cresceram em um ambiente de trabalho árduo e valores familiares fortes. Tommaso, o mais velho, tornou-se rapaz alto e muito robusto, que ajudava o pai no trabalho pesado da agricultura e, ao longo dos anos, casou e expandiu ainda mais as terras da família, tornando-se um próspero colono, principalmente com o incremento do cultivo da uva e a produção industrial do vinho.
Mattia mostrou talento para a carpintaria e marcenaria desde jovem, e seu dom para trabalhar com madeira o levou a criar belos móveis e construir casas para a comunidade da Colônia Caxias. Era muito requisitado e acabou investindo em uma pequena fábrica de móveis que com o tempo seus filhos e netos a transformaram em um grande complexo industrial, fabricando móveis para cozinhas.
Davide, por sua vez, demonstrou aptidão para a educação e com o tempo se tornou professor na escola rural local. Ele era apaixonado por compartilhar conhecimento com as crianças da região. Se casou com uma belo moça filha de descendentes de imigrantes italianos, a qual tinha o tino comercial que faltava a Davide, tornando-se uma respeitada comerciante.
Lorenzo, o caçula dos cinco primeiros filhos que vieram da Itália, era conhecido por seu espírito aventureiro. Ele se tornou um explorador e desbravador das vastas terras da região e não só, mapeando áreas desconhecidas fora da  colônia, no estado do Rio Grande do Sul, chegando até mesmo a descobrir novos recursos naturais. Com o tempo se casou e teve vários filhos.
Chiara, a filha mais nova dos cinco primeiros filhos, também nascida na Itália, cresceu como a alegria da família. Com seu jeito carinhoso, ela mais tarde se tornou enfermeira, cuidando dos doentes na comunidade, quando da inauguração do primeiro hospital.
Quanto aos quatro filhos do casal que nasceram no Brasil, Aurora cresceu como uma líder nata, casou, teve 8 filhos e se tornou uma professora respeitada na Colônia Caxias, seguindo os passos do irmão Davide. Seu marido era  um rico criador de suínos e proprietário de uma fábrica de banha.
Giada, a filha mais franzina, era conhecida, desde criança, por sua voz angelical e desde cedo era uma talentosa cantora, enriquecendo os encontros festivos e religiosos da comunidade com sua música.
Giuseppe, com seu forte espírito empreendedor, abriu um pequeno comércio que rapidamente, com o crescimento da colônia que passou a ser município de Bento Gonçalves, se transformou em um próspero negócio de compra e venda de alimentos essenciais para a comunidade. Com o tempo, visionário que era, aproveitou o rápido  crescimento da cidade e investiu em um hotel para viajantes que em grande número chegavam e que mais tarde, seus filhos e netos transformaram em um grande complexo hoteleiro para turistas, muito conceituado.
Anna, a caçula da família, cresceu apaixonada pelas artes, não se casou e alguns anos antes de sua morte se tornou em uma artista renomada, cujas pinturas celebravam a beleza da natureza da Colônia Caxias. Suas obras estão expostas em alguns museus.

A família de Mario e Angelina continuou a crescer e prosperar, contribuindo de maneiras únicas para a comunidade. Eles eram um exemplo de união, trabalho duro e determinação, e suas histórias de sucesso se tornaram parte integral da rica tapeçaria da vida na Colônia Caxias e além. Juntos, eles deixaram um legado duradouro de amor, dedicação e superação e seus inúmeros descendentes ainda hoje são figuras proeminentes em Bento Gonçalves.




terça-feira, 2 de julho de 2024

Lágrimas no Atlântico: A Jornada de uma Mãe Corajosa





Em 1880, no final do século XIX, em um mundo onde as esperanças e os sonhos de muitos italianos estavam ancorados na promessa de uma vida melhor no Brasil, Concetta, uma jovem mãe, seu marido Gennaro Pizzioni e a pequena Letizia, filha do casal com apenas cinco meses de idade, embarcaram no navio Príncipe de Astúrias, partindo do Porto de Nápoles com mais de 1.200 outros emigrantes italianos.
Concetta Bucce nasceu em 1861, oriunda da pequena vila rural de Cozzo di Naro, localizada no coração do município de Caltanissetta, situado no centro da Sicília. Proveniente de uma família de agricultores desafortunados, que, sem terra própria, laboravam como arrendatários para um proprietário de terras. A árdua tarefa de dividir as escassas colheitas com o senhorio deixava a família em constante privação, enfrentando períodos de grande carência nos últimos anos.
Os Bucce eram uma família numerosa, algo comum na região, e o casamento de Concetta com Gennaro trouxe algum alívio para seus exaustos pais, representando uma boca a menos para alimentar. Concetta ocupava a segunda posição entre seus oito irmãos.
Gennaro Pizzioni, nascido em 1859 em Santa Barbara, um vilarejo próximo ao de Concetta, originava-se de uma família de pequenos agricultores. Ao longo de várias gerações, cultivavam uma modesta, porém produtiva, área de terra, predominantemente coberta por oliveiras e limoeiros. Além disso, plantavam tomates e pimentões, ingredientes essenciais na culinária rica e aromática da ilha, que posteriormente comercializavam no município.
Embora Gennaro trabalhasse incansavelmente com seus pais e irmãos, a vida na pequena propriedade familiar não proporcionava o suficiente para todos. O casamento com Concetta, longe de aliviar a situação, exacerbou as dificuldades ao trazer mais uma pessoa para a casa dos Pizzioni. O nascimento de Letizia foi o ponto culminante que impulsionou a decisão de emigrar em busca de um futuro mais promissor.
Era uma viagem incerta e desafiadora, com o Atlântico como pano de fundo e um futuro desconhecido à frente. O oceano era tanto a promessa de uma nova vida quanto o receptáculo de tristezas indescritíveis. Durante a travessia, uma epidemia de difteria varreu o navio, espalhando medo e desespero. A doença ceifou vidas inocentes e mergulhou todos a bordo em luto e incerteza.
No entanto, a história daquela mãe é uma das mais comoventes. Segurando sua filha de um ano e meio nos braços, ela foi forçada a enfrentar a tragédia mais dolorosa de sua vida. Sua pequena criança, o raio de luz em meio às incertezas, sucumbiu à difteria. O desespero se transformou em agonia quando ela viu sua filha ser envolvida em um lençol, com uma pedra amarrada ao pescoço, e lançada no mar escuro, à meia-noite.
Seus gritos ecoaram pela escuridão da noite, sua voz se misturando com o rugido das ondas. Ela implorava para se juntar à sua filha no abraço gelado do oceano, recusando-se a deixá-la sozinha. Mas os braços cruéis da emigração a seguraram, impedindo-a de acompanhar sua amada filha na jornada final.
Essa história é um lembrete angustiante das duras realidades enfrentadas pelos emigrantes italianos que deixaram suas casas em busca de uma vida melhor no Brasil. Ela recorda à todos o alto preço que tiveram que pagar para encontrar a felicidade. É um testemunho da força, do sofrimento e da resiliência daqueles que ousaram desbravar o oceano em busca de um novo começo, carregando o peso da "angústia territorial" que os atormentou, não apenas geograficamente, mas emocionalmente e culturalmente. É uma história que nos faz lembrar das vidas marcadas por essa jornada inesquecível, uma jornada que incluiu a tragédia de uma epidemia que tirou a vida de tantos, incluindo a pequena e inocente filha dessa mãe corajosa.


quarta-feira, 17 de abril de 2024

Além do Horizonte: A Viagem de Retorno


 

Em uma das muitas jornadas do navio a vapor Carlo R, da renomada companhia de navegação Carlo Raggio, uma família italiana embarcou rumo ao desconhecido horizonte do Brasil. Pietro e Maddalena, com seus três filhos Giacomo, Aurora e Giovanni Battista, estavam repletos de esperança e expectativas enquanto deixavam para trás sua terra natal, Nápoles, no dia 27 de julho de 1893.
O Carlo R., com seus 101 metros de comprimento e 13 metros de largura, era uma relíquia adaptada às pressas para o transporte de passageiros em meio ao auge da emigração italiana. A bordo, cerca de 1.400 almas se amontoavam em condições precárias, uma situação agravada pela epidemia de cólera que assolava Nápoles naquele ano.
No quarto dia de viagem, o temor se concretizou quando um caso da doença surgiu a bordo. Ao invés de retornar ao porto de origem para tratamento adequado, o comandante optou por continuar a travessia, ocultando a gravidade da situação das autoridades locais. O resultado foi uma rápida propagação da epidemia entre os passageiros, transformando o navio em um verdadeiro inferno flutuante.
Quando o Carlo R. finalmente alcançou o porto do Rio de Janeiro, juntou-se a outros navios italianos igualmente atormentados pela tragédia. O Remo e o Vicenzo Florio compartilhavam do mesmo destino sombrio, com mortes a bordo e uma carga humana enferma.
Diante da ameaça de uma epidemia em território brasileiro, as autoridades decidiram não permitir o desembarque dos passageiros. Os navios foram escoltados para uma distante região próxima à Ilha Grande, onde passaram por desinfecção e reabastecimento.
Enquanto aguardavam uma decisão final, a angústia se instalava entre os passageiros, incluindo a família de Pietro e Maddalena. A incerteza do futuro pairava sobre eles como uma sombra constante.
Após semanas de espera, a ordem finalmente chegou: retornar à Itália. O procedimento padrão internacional para casos semelhantes exigia que os navios regressassem com sua carga humana. Para Pietro e Maddalena, era um retorno amargo, marcado pela dor das perdas sofridas durante a travessia e pela incerteza do que encontrariam ao voltar para casa.
Anos depois, em um tribunal italiano, o comandante do Carlo R. e a companhia responsável foram julgados e condenados pelas mortes ocorridas naquela fatídica viagem. No entanto, para Pietro e Maddalena, as cicatrizes daquela tragédia nunca desapareceriam completamente, permanecendo como testemunhas silenciosas de uma jornada marcada pela dor e pela perda.


terça-feira, 12 de março de 2024

O Legado de Agostino: da Calábria a Porto Alegre




Agostino nasceu na pequena vila de San Luca, um enclave tranquilo entre as montanhas da província de Catanzaro, na região da Calábria, em 1857. Seu nome, uma homenagem ao seu avô paterno, refletia o orgulho de sua linhagem e o destino que o aguardava.

Desde jovem, Agostino demonstrava um talento excepcional para a arte da construção. Seus dedos ágeis moldavam o barro e a pedra com uma destreza impressionante, aprendendo os segredos do ofício com os anciãos da vila. Seu avô, um renomado pedreiro, deixara um legado de habilidade e excelência que Agostino estava determinado a honrar.
A vida em San Luca seguia seu curso tranquilo, embora fosse evidente uma diminuição sensível no número de construções em toda a região. Até que um dia, uma carta chegou à modesta casa de Agostino, trazendo consigo uma lufada de novas possibilidades e oportunidades. Era uma mensagem do outro lado do oceano, escrita pela mão do tio Carmelo, irmão mais novo de seu pai, que há muitos anos havia deixado a Itália em busca de fortuna no Brasil.
Carmelo, agora estabelecido em Porto Alegre, convidava Agostino e sua família a se juntarem a ele no novo mundo. O motivo era claro: a firma de construção que Carmelo havia fundado estava passando por dificuldades. Seu filho, que havia assumido os negócios, sofrera um acidente fatal, deixando Carmelo sem um sucessor adequado.
O tio via em Agostino não apenas um parente, mas um talento excepcional que poderia revitalizar o negócio familiar. Sua reputação como muratore, ou pedreiro, era conhecida até além das fronteiras da Calábria, e Carmelo não hesitou em fazer o convite, esperançoso de que seu sobrinho pudesse dar continuidade ao legado da família.
Com o coração cheio de esperança e determinação, Agostino e Giovanna decidiram aceitar o convite do tio Carmelo. Em dezembro de 1905, embarcaram em uma jornada rumo ao desconhecido, deixando para trás as colinas da Calábria para trilhar um novo caminho no Brasil.
Ao chegarem em Porto Alegre, foram recebidos de braços abertos pelo tio Carmelo, que os acolheu em sua casa e os ajudou a se estabelecer na cidade. Logo, Agostino encontrou trabalho na firma de construção da família, onde sua habilidade e paixão pela arquitetura brilhavam em cada projeto que realizava.
Os anos se passaram rapidamente, e a família de Agostino floresceu na terra distante. Seus filhos cresceram sob a influência da cultura brasileira, mas nunca esqueceram suas raízes italianas. Alguns seguiram os passos do pai na construção civil, enquanto outros encontraram seus próprios caminhos, mas todos compartilhavam o mesmo espírito de determinação e coragem.
Quando Agostino faleceu, deixou para trás um legado de realizações extraordinárias. Sua vida foi marcada pelo trabalho árduo, pela paixão pela construção e pelo amor incondicional pela família. Seu nome é lembrado com reverência em Porto Alegre, onde as construções que ele deixou para trás são testemunho de sua habilidade e visão. Agostino pode ter nascido na pequena vila de San Luca, mas seu espírito ousado e sua determinação o transformaram em um verdadeiro cidadão do mundo, deixando sua marca indelével na história da cidade que escolheu chamar de lar.




segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A Emigração Europeia para os EUA no Século XIX: Motivos, Mudanças e Impactos

 



A grande migração em massa da Europa para os Estados Unidos no século XIX teve como origem a grande crise agrária dos anos 1870 que afetou mais de 5 milhões de pessoas e foi em grande parte individual e masculina. O objetivo era buscar trabalho nos prósperos setores industriais americanos, muito mais desenvolvidos do que os europeus. As condições de origem dos migrantes europeus não eram tão críticas a ponto de obrigá-los a partir, tanto que a maioria se adaptou às condições de vida oferecidas em seu continente ou, no máximo, recorreu à migração interna.
O início da possibilidade de emigração para as Américas foi impulsionado pelo progresso naval na segunda metade do século XIX, com navios de casco metálico e cada vez maiores, o que reduziu tanto o custo, antes impraticável para um emigrante pobre, quanto a periculosidade da viagem. A data simbólica do início da emigração italiana para as Américas pode ser considerada 4 de outubro de 1852, quando foi fundada em Gênova a Companhia Transatlântica para a navegação a vapor com as Américas, cujo principal acionista era Vittorio Emanuele II da Sardenha. Esta companhia encomendou aos estaleiros navais de Blackwall os grandes navios a vapor gêmeos Genova, lançado em 12 de abril de 1856, e Torino, lançado em 21 de maio seguinte.
Neste período, ocorreram várias mudanças na migração transatlântica, com caráter social, laboral e comportamental. Houve uma transição da migração de famílias inteiras para a de indivíduos isolados, da migração para o estabelecimento rural para o trabalho nos setores industriais e, por fim, da emigração definitiva para uma emigração temporária, com uma espécie de "trabalho pendular" transatlântico. Essas tendências foram reforçadas pelas novas contratações de trabalho do tipo urbano-industrial nos EUA. Além disso, na Europa, havia a ideia difundida de uma maior liberdade e oportunidade de realização pessoal, bem como melhores chances de casamento no Novo Mundo. O século XIX ainda via vivo o sonho de muitos de conquistar riquezas nas terras americanas, para depois reinvesti-las ao retornar à pátria. No entanto, a migração de retorno foi escassa porque enfrentava altos custos e condições difíceis de viagem transatlântica, além de ser viável apenas se a migração fosse individual e não envolvesse o grupo familiar como um todo.
A emigração europeia para os Estados Unidos foi desigual, pois tinha diferentes objetivos e muitas vezes consistia em uma emigração individual com o propósito final de retorno à Europa depois de juntar algumas economias.



sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sobre o Oceano


 


Quando cheguei, ao entardecer, o embarque dos emigrantes já havia começado há uma hora, e o Galileo, ligado ao cais por uma pequena ponte móvel, continuava a receber miséria: uma procissão interminável de pessoas que saíam em grupos do prédio em frente, onde um delegado da polícia examinava os passaportes. A maioria, tendo passado uma ou duas noites ao ar livre, encolhida como cães pelas ruas de Gênova, estava cansada e sonolenta. Operários, camponeses, mulheres com bebês no colo, garotos com a placa de leite do jardim de infância ainda presa ao peito, passavam, carregando quase todos uma cadeira dobrável debaixo do braço, sacos e bolsas de todas as formas nas mãos ou na cabeça, carregados de colchões e cobertores, e o bilhete com o número do beliche apertado entre os lábios.

As pobres mulheres que tinham uma criança em cada mão seguravam seus volumosos fardos com os dentes; as velhas camponesas de tamancos, levantando as saias para não tropeçar nos trilhos da ponte, mostravam as pernas nuas e magras; muitos estavam descalços, e carregavam os sapatos pendurados no pescoço. De vez em quando, passavam entre essa miséria senhores vestidos com elegantes sobretudos, padres, senhoras com grandes chapéus emplumados, segurando na mão um cachorrinho, um porta-chapéus ou um feixe de romances franceses ilustrados, da antiga edição Lévy. Em seguida, subitamente, a procissão humana era interrompida, e avançava sob uma tempestade de golpes e palavrões um bando de bois e carneiros, que, ao chegarem a bordo, desviavam para cá e para lá, assustando-se, misturando os mugidos e balidos com os relinchos dos cavalos na proa, com os gritos dos marinheiros e estivadores, com o estrondo ensurdecedor da grua a vapor, que levantava no ar pilhas de malas e caixas. Depois disso, a procissão dos emigrantes recomeçava: rostos e roupas de todas as partes da Itália, trabalhadores robustos com olhos tristes, velhos desgastados e sujos, mulheres grávidas, moças alegres, jovens brilhantes, camponeses de mangas arregaçadas, e rapazes atrás de rapazes, que, mal pisavam no convés, no meio daquela confusão de passageiros, garçons, oficiais, funcionários da Companhia e guardas alfandegários, ficavam atônitos ou se moviam como em uma praça lotada. Duas horas depois de começar o embarque, o grande navio a vapor, sempre imóvel como um enorme cetáceo mordendo a costa, sugava ainda mais sangue italiano.

À medida que subiam, os emigrantes passavam por uma mesa onde estava sentado o oficial Comissário; ele os agrupava em conjuntos de meia dúzia, chamados "ranci", registrando os nomes em uma folha impressa, que entregava ao passageiro mais velho para que fosse com ele buscar a comida na cozinha, na hora das refeições. As famílias com menos de seis pessoas se inscreviam com um conhecido ou com o primeiro que aparecesse; e durante esse trabalho de inscrição, um forte medo de serem enganados na contagem das cotas e dos beliches para os rapazes e crianças, uma desconfiança invencível que qualquer homem com uma caneta na mão e um registro à sua frente inspira ao camponês, transparecia em todos. Surgiam disputas, ouviam-se lamentos e protestos. Depois, as famílias se separavam: os homens de um lado, as mulheres e crianças do outro, eram conduzidos aos seus dormitórios. E era piedoso ver aquelas mulheres descerem penosamente as escadas íngremes e avançarem tateando para esses dormitórios amplos e baixos, entre as inúmeras camas dispostas em andares como os camarotes de um teatro. 


Continua


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Raízes que Florescem: A Saga de Resiliência de Giovanni na Terra Prometida



Giovanni Marco Rossi, um emigrante italiano oriundo de Montecielo, perto de Bréscia, Itália, passou a maior parte da sua vida na Califórnia. Nascido em 24 de agosto de 1896, Giovanni começou a trabalhar como agricultor desde a adolescência. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele prestou serviço militar como técnico, engajado em uma companhia de engenharia, construindo túneis e pontes. Em 1920, juntamente com seu amigo Marco Ferrari, natural do mesmo povoado, decidiu emigrar para os Estados Unidos em busca de melhores oportunidades. Após sua chegada a Nova York em 3 de agosto de 1920, Giovanni se estabeleceu em Lindale, Califórnia, vivendo com seu tio Luigi Cademartori. Graças ao árduo trabalho e à economia, em 1925 Giovanni e Marco conseguiram adquirir 20 acres de terra em Lindale. Inicialmente, enfrentaram desafios como a falta de água, mas engenhosos perfuraram um poço, trouxeram eletricidade e construíram uma modesta casa de madeira. Giovanni e Marco plantaram árvores frutíferas, cultivaram campos, usaram cavalos para o trabalho agrícola e levaram sua produção ao mercado de Stockton. Após um tempo, Marco decide retornar à Itália, deixando toda a propriedade para Giovanni que a adquiriu por um preço justo. Firmemente determinado a se integrar à sociedade americana, Giovanni aprendeu inglês na Escola Secundária de Stockton e obteve a cidadania americana. Ele conheceu Catarina Lombardi, nascida nos Estados Unidos e originária do Vale de Bréscia, na Itália, com quem se casou em 1921. O casal enfrentou os desafios da vida rural na Califórnia, com Catarina dedicando-se ao trabalho agrícola e doméstico. Com o tempo, a família cresceu com o nascimento das filhas Teresa em 1931, Dena em 1935 e Delsie em 1941. Apesar de uma doença e outros desafios, Giovanni continuou a trabalhar a terra com dedicação. Em 1955, Giovanni comprou mais 20 acres de terra e, mesmo doente, continuou a cultivá-los com sucesso. Já em idade avançada, ele alugou a terra, mas continuou a ajudar nas atividades agrícolas. Em 1964, fez uma breve visita a Montecielo com Catarina para rever parentes e amigos. Giovanni Marco Rossi faleceu em 20 de julho de 1978, aos 82 anos, cercado pela família e respeitado pela comunidade. A história de Giovanni reflete a integração social e o sucesso alcançado através do trabalho árduo e respeito pelas tradições italianas em um contexto americano.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Odisséia no Oceano: A Jornada Épica dos Emigrantes Italianos



A palavra emigrar tem um significado preciso, ou seja, abandonar a sua casa, sua vila, mudar-se temporária ou permanentemente para outro lugar após uma viagem mais ou menos longa, principalmente por questões de trabalho, como tem acontecido nos últimos anos com muitos jovens (e não apenas) italianos. No entanto, durante o final do século XIX e ao longo do século XX, muitos navios levaram milhões de italianos em viagens transoceânicas, para as duas Américas, Austrália ou África do Sul. Para fornecer números, entre 1870 e 1970, quase 30 milhões de italianos deixaram o país.

Para poder deixar o país a maioria precisou vender tudo o que possuíam para comprar um bilhete só de ida para um desses destinos. Após fazer o seu passaporte e o da família, nas prefeituras locais, a pessoa realizava todas as outras formalidades junto as agencias de viagens para a compra do bilhete, sem correr o risco de não ser admitida no país para o qual pretendia se mudar. Somente assim ela finalmente podia embarcar para iniciar a longa jornada. As companhias marítimas de navegação forneciam detalhes sobre muitos aspectos relacionados à navegação oceânica e às regras a serem seguidas.
Para aqueles que se dirigiam à América do Norte, as condições climáticas de viagem, especialmente para aqueles que partiam nos meses de inverno, não eram propriamente ideais, pois o frio cortante, o mar agitado e a umidade podiam tornar a viagem transoceânica um verdadeiro inferno, especialmente para pessoas menos acostumadas à vida no mar, como aquelas que vinham das regiões internas da península italiana e talvez nunca tivessem visto o mar, como contaram alguns emigrantes mais velhos que foram para as Américas.

O dia da partida era marcado pela tristeza para muitos, felicidade para poucos, talvez houvesse pessoas que tinham perdido a família e agora eram órfãos. Nos navios que partiam de Gênova, não havia apenas genoveses; havia muitos outros de outras regiões do norte e centro da Itália. Na maioria das linhas de navegação, estava previsto uma parada no porto de Nápoles, onde pegavam passageiros de praticamente toda a Itália meridional. Os navios de passageiros então seguiam em direção ao Estreito de Gibraltar, se fossem para as Américas, ou pelo Canal de Suez, se fossem para Austrália.

Ao subir a bordo, o passageiro precisava arrumar a bagagem, mesmo que modesta em alguns casos. Para isso, existia a sala de bagagens. O problema principal era que os dormitórios a bordo eram, na realidade, espaços apertados. Eles precisavam acomodar o maior número possível de pessoas. Nos dormitórios, eram permitidos apenas um embrulho, um saco ou uma pequena caixa com poucos itens de vestuário e alimentos. Todo o resto: roupas, camisas, pertences pessoais, grandes caixas e baús, tinham que ser fechados na sala de bagagens. Muitas vezes, esta permanecia fechada até a chegada, após semanas no mar. Basicamente, ficavam com as mesmas roupas durante toda a viagem, muitas vezes encharcadas pela chuva, salgadas ou sujas de comida, vômito, urina e fezes. Um verdadeiro tormento! Nos dormitórios tinham que seguir regras específicas, bem descritas no Decreto Real nº 375, de 10 de julho de 1901. Em essência, o que dizia essa norma? Ela listava, por exemplo, as medidas dos beliches, que não deveriam ser inferiores a 180 cm de comprimento por 56 de largura. Além disso, o Decreto Real proibia a presença de beliches perto das salas das caldeiras e da sala de máquinas. Por fim, os dormitórios eram separados entre homens e mulheres para evitar a promiscuidade. A partir dos sete anos, homens e mulheres, bem como crianças, eram separados. Isso se devia em parte a algumas leis dos Estados Unidos, que regulamentavam os fluxos migratórios em Ellis Island; não eram permitidos navios que tivessem, por exemplo, mais de três fileiras de beliches para cada dormitório, apenas dois eram permitidos. Os navios que seguiam para a América do Sul, por muitos anos, deixavam três fileiras de beliches.

Um médico de bordo da época, chamado Teodorico Rosati, escreveu: "A impressão de repugnância que se tem ao descer em um porão onde os emigrantes dormiam é tal que, experimentada uma vez, não se esquece mais!" Rosati continua: "O emigrante se deita vestido e calçado na cama, faz dela um depósito de embrulhos e malas, as crianças deixam ali urina e fezes; a maioria vomita; todos, de uma maneira ou de outra, transformam-no, após alguns dias, em uma cama de cachorro. Ao final da viagem, quando não é trocado, o que acontece muitas vezes, está lá como foi deixado, sujo e cheio de insetos, pronto para receber o novo viajante". A realidade era essa: dormitórios onde centenas de homens e mulheres sujos viviam e dormiam, sem nenhuma possibilidade de se lavar. Se adicionarmos umidade, ambientes pouco arejados, enjoo e pouca iluminação, podemos certamente imaginar as condições difíceis em que essas pessoas eram obrigadas a viajar, tanto homens quanto mulheres, e as crianças. Não é à toa que a maioria dos imigrantes de terceira classe preferia passar a maior parte do dia no convés, para evitar o mau cheiro. No entanto, para aqueles que se mudavam para a América do Norte nos meses deinverno, atravessar o Atlântico não permitia passar muito tempo no convés, sendo atingidos pelo vento gelado e frequentes tempestades.

Mas a vida diária a bordo não envolvia apenas descanso e passeios; era necessário também usar os banheiros para realizar as necessidades naturais e garantir uma higiene mínima. No início do século XX, poucos navios tinham eletricidade a bordo e quase nenhum tinha um sistema de esgoto por pressão. Em 1888, De Amicis escrevia: "Os lugares que deveriam proporcionar limpeza e higiene são na realidade horríveis, e para mil e quinhentos passageiros de terceira classe não há um banheiro." Na segunda classe, as coisas melhoravam bastante, mas era preciso considerar que nos navios da época destinados à emigração, os lugares destinados à segunda classe eram quarenta e para a primeira apenas vinte, em comparação com os mil e quatrocentos passageiros totais, a maioria dos emigrantes estava na terceira classe.

Mesmo em um ambiente restrito das classes mais privilegiadas, as cabines ofereciam algum conforto: um pequeno armário, uma pia, uma porta que podia ser fechada, um quarto relativamente limpo e, acima de tudo, um penico. Em resumo, era possível viajar no verdadeiro sentido da palavra. Os passageiros da primeira e segunda classe tinham acesso aos espaços internos do navio, bem como salas de jantar separadas das outras; podiam comer à mesa com guardanapos e talheres, com uma comida melhor e consideravelmente mais abundante. Aqui está o que o Dr. Rosati escreveu sobre as refeições de terceira classe.

"Agachados no convés, perto das escadas, com o prato entre as pernas e o pedaço de pão entre os pés, comiam a sua refeição como os mendigos às portas dos conventos. É uma humilhação do ponto de vista moral e um perigo do ponto de vista higiênico, porque cada um pode imaginar o que é um convés de um navio sacudido pelo mar, onde todas as imundícies voluntárias e involuntárias dessas populações viajantes são derramadas."

Médicos de bordo como Rosatti, antes de 1895, não eram obrigatórios para viagens com destino ao Oceano Índico ou às Américas, além de Gibraltar e Suez, em suma. Portanto, a presença do médico de bordo tornou-se obrigatória a partir dessa data. Provavelmente, nem mesmo era suficiente, considerando que os navios transatlânticos podiam transportar de 900 a 2400 pessoas. De Amicis escreveu: "E que os higienistas digam o que quiserem, fixando o número necessário de metros cúbicos de ar, a carne humana está amontoada demais, e o fato de que costumava ser pior não justifica."

As condições higiênicas precárias e a multidão favoreciam as doenças, então a presença de um médico de bordo era realmente necessária. Doenças como gastroenterites e bronquites se espalhavam rapidamente e não demoravam a fazer vítimas entre os passageiros mais fracos, como crianças e idosos. O sarampo ceifava muitas vítimas infantis; não eram raros os casos de epidemias de sarampo nos navios, com a obrigação de quarentena para todo o navio. O médico de bordo não tinha os meios necessários para combater essas epidemias, e o Dr. Rosati menciona que muitas vezes o capitão escolhia alguns homens da tripulação, os fazia vestir o jaleco branco com a cruz, improvisando enfermeiros. Em 1884, um navio italiano, com uma epidemia de cólera, foi repelido a tiros no porto de Montevidéu. Em 1905, o Città Di Torino relatou quase cinquenta mortes por tifo, bronquite e sarampo durante a travessia.

Os navios estavam sujeitos à inspeção preliminar, de acordo com o regulamento de saúde marítima, o artigo 59 do Decreto Real de 29 de setembro de 1895. A comissão encarregada deveria verificar a qualidade dos alimentos e bebidas, a quantidade de medicamentos a bordo, as boas condições de saúde da tripulação, a limpeza geral das instalações da tripulação, o número correto de passageiros embarcados e a ventilação adequada em todas as instalações do navio.

Uma figura de bordo muito importante era o comissário. A bordo dos navios, o Comissário Real tinha um papel quase comparável ao do comandante. O comissário também compilava a lista de passaportes, particularmente importante para desembarcar em Ellis Island, nos Estados Unidos. O comissário também cuidava da manutenção da disciplina, acalmando brigas, roubos, violências sexuais nos dormitórios femininos, prendendo portadores de armas de fogo ou aqueles que não possuíam bilhetes - esses não seriam aceitos nos EUA e teriam que pagar pelo retorno à Itália - e, por último, retirava as bebidas alcoólicas que por ventura tenham levado para bordo. Apesar disso, os imigrantes masculinos causavam muitos problemas com o jogo e o porte de armas brancas, como facas e punhais. A bordo do navio mistos a vela e vapor Giava, um episódio do diário de Angelo Tosi de 1887-88 impressiona quem os lê, o referido autor cita vários esfaqueamentos entre elementos de gangues rivais da Calábria. Outro grande problema eram os clandestinos, especialmente aqueles sem passaporte por motivos criminais e ajudados por amigos, na partida, a se esconderem a bordo. O comissário organizava uma equipe especial, comandada por um suboficial, que vasculhava todos os cantos do navio, colocando os criminosos na cela.
Essas viagens marcaram uma epopeia, tanto para os passageiros quanto para as equipes a bordo, considerando que antes de 1890, os navios a vapor não tinham escalas pré-estabelecidas, como veio ocorrer posteriormente. Em essência, de acordo com as necessidades do navio ou até mesmo as condições meteorológicas, a embarcação podia parar em um ou outro porto. Portanto, era essencialmente uma navegação bastante aventureira. As doenças, como vimos, estavam sempre à espreita, também para a equipe da tripulação, sem mencionar os acidentes a bordo. Não era uma vida fácil, e as viagens eram muito difíceis.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Saga Italiana nos Pampas: Emigração, Trabalho e Sucesso na Argentina




Nas onduladas e pitorescas colinas da província de Bergamo, no norte da Itália, Luca cresceu imerso em uma vida simples e laboriosa. Sua família, composta pelos pais Antonio e Giovanna, e pelos irmãos e irmãs Giovanni, Marco, Martina, Antonio, Zeno e Sofia, enfrentava as agruras da vida agrícola em uma pequena vila. A pequena propriedade que arrendavam mal produzia o suficiente para sustentar a família, e a maior parte do que colhiam ia para o dono da terra.
Luca, o primogênito, sentia o peso das responsabilidades sobre seus ombros. A vida na vila era marcada pela simplicidade e pela dureza do trabalho no campo. Consciente da necessidade de proporcionar um futuro melhor para seus irmãos e aliviar as lutas financeiras de seus pais, Luca tomou a decisão difícil, mas inevitável, de emigrar em busca de oportunidades além das fronteiras da Itália.
No ano de 1878, movido por um misto de determinação e necessidade, Luca desembarcou nas promissoras terras da Argentina. Os amplos horizontes de Buenos Aires, onde permaneceu por apenas três dias, se desdobravam diante dele, trazendo consigo a promessa de um recomeço. Logo encontrou trabalho em uma grande fazenda nos pampas argentinos, onde se viu envolvido na colheita de trigo ao lado de seu novo amigo, Giovanni.
Os dias se desenrolavam sob o sol escaldante dos pampas, entre os campos dourados de trigo. Luca encontrou satisfação no trabalho árduo e na conexão com a terra. À noite, exausto após uma jornada extenuante de trabalho nos campos dourados de trigo, Luca partilhava refeições com seus colegas. Em um cansaço profundo, os laços entre eles eram forjados na fadiga compartilhada, mais do que nas delícias culinárias. Esses momentos, marcados pelo silêncio que sucede um dia de árduo labor, tornaram-se a essência da conexão entre aqueles que, à luz das estrelas, buscavam forças para enfrentar o nascer precoce do próximo amanhecer.
Mesmo distante, Luca não esqueceu suas raízes e a responsabilidade para com sua família na Itália. Regularmente, enviava alguma ajuda financeira para seus pais e irmãos. Com o passar do tempo e já estabilizado financeiramente, Luca tomou uma decisão que mudaria o destino de sua família: mandou as passagens para os irmãos Giovanni, Marco e Antonio poderem se unir a ele na Argentina.
Na Itália, ficaram Martina, que havia se casado com um rapaz da própria vila onde moravam, e Zeno, com 18 anos, e Sofia, ainda menor, que ficaram responsáveis por cuidar dos velhos pais.
Após dois anos na fazenda de trigo, Luca e Giovanni decidiram dar um novo rumo às suas vidas. Deixaram o emprego e mudaram-se para a Província de Córdoba, onde adquiriram dois grandes lotes de terras do governo argentino a preços subsidiados. Essa mudança representou um novo capítulo na vida de Luca e Giovanni, de trabalhadores assalariados a proprietários de terras, vislumbrando um futuro mais estável e independente.
A história de Luca e Giovanni se expandiu para além das plantações. Fundaram uma cooperativa local, unindo esforços com outros agricultores da região para fortalecer a comunidade. Seus esforços culminaram na construção de uma escola para as crianças da região, proporcionando educação e oportunidades que eles mesmos não tiveram.
Com o passar dos anos, a família de Luca e Giovanni cresceu, multiplicando-se em gerações. Os netos, inspirados pelos feitos de seus avós, seguiram diversos caminhos. Alguns continuaram na agricultura, modernizando as práticas herdadas, enquanto outros buscaram carreiras nas cidades, levando consigo os valores fundamentais transmitidos por Luca e Giovanni.
À medida que a Província de Córdoba se transformava e crescia, a história de Luca e Giovanni se tornou parte integrante do legado da região. Suas conquistas ecoaram nas pradarias argentinas, simbolizando a tenacidade e a visão que moldaram não apenas suas vidas, mas também o destino das futuras gerações. A história desses dois amigos imigrantes, que transformaram a adversidade em triunfo, permaneceu viva nas tradições e na memória de uma comunidade que eles ajudaram a construir.
A chegada dos irmãos Giovanni, Marco e Antonio à Argentina trouxe uma alegria renovada para Luca. Reunidos novamente, a família começou a construir um novo capítulo de suas vidas juntos. Giovanni, seguindo os passos de Luca, encontrou uma parceira chamada Rosalia, e juntos, estabeleceram-se em uma fazenda próxima. A terra generosa dos pampas argentinos parecia sorrir para eles, recompensando os anos de trabalho árduo.
Marco, o irmão mais jovem, apaixonou-se por uma jovem argentina chamada Elena. Eles decidiram explorar novos horizontes, optando por um pedaço de terra próximo à cidade, onde fundaram um pequeno comércio que prosperou com o tempo. Antonio, o mais jovem, encontrou em Luisa uma companheira para a vida. Juntos, decidiram investir na produção de laticínios, aproveitando a vastidão de terras para criar um negócio próspero.
A vida na Província de Córdoba era desafiadora, mas a união da família tornou cada obstáculo mais fácil de superar. As festividades italianas misturavam-se com as tradições argentinas, criando um lar onde o amor, o trabalho duro e a celebração se entrelaçavam.
Enquanto Luca e Giovanni colhiam os frutos de sua visão pioneira na cooperativa local, seus irmãos construíam legados próprios. O eco das risadas das crianças, dos negócios bem-sucedidos.



Dr. Luiz Carlos B.Piazzetta

Erechim RS