sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Do Vêneto à Serra Gaúcha: a jornada de Carlo Bernardini e o início da Colônia Caxias – 1890

 


Do Vêneto à Serra Gaúcha: a jornada de Carlo Bernardini e o início da Colônia Caxias – 1890


A Travessia de Carlo Bernardini

Quando o navio cruzou o Atlântico e o horizonte começou a se apagar sob o peso das nuvens, Carlo Bernardini entendeu que a vida antiga havia terminado. Maser, o vilarejo de colinas e neblinas na província de Treviso, ficava para trás como um quadro guardado na memória. No outono de 1887, abandonara a terra natal com o coração dividido entre a necessidade e a esperança. A Itália, unificada há pouco, era uma promessa quebrada; o solo empobrecido, o trabalho escasso, o pão medido em fatias. A América, ao contrário, era um rumor distante — o país onde se dizia que o trigo brotava sem pedir licença e o governo entregava terra a quem tivesse coragem de lavrá-la.

Três anos depois, no alto da serra do Rio Grande do Sul, Carlo aprendera a suportar o peso dos dias. Trabalhava para o governo, abrindo picadas e demarcando os terrenos que seriam destinados aos imigrantes. O engenheiro responsável — um brasileiro de fala pausada e modos firmes — reconhecera em Carlo um homem de confiança, e por isso intercedeu unto ao governo que lhe concedeu um lote à beira da estrada principal da Colônia Caxias. Era um pedaço de terra rude e fértil, onde o mato se erguia até o peito e o ar cheirava a resina.

Carlo construiu ali uma casa simples, de madeira escura, e cada tábua pregada era um gesto de renascimento. Trabalhava desde o romper do dia, recebendo cinco florins por jornada — o suficiente para manter o corpo de pé e o espírito em paz. Com o pouco que ganhava, comprou duas vacas e um cavalo, sinal de que o tempo começava a recompensá-lo. O governo prometera novos pagamentos, e ele esperava pelo próximo como quem espera a colheita depois da seca.

A solidão era a única coisa que o dinheiro não comprava. Nas tardes em que a chuva descia grossa sobre o vale, Carlo sentava-se diante da janela e olhava o caminho lamacento por onde, de tempos em tempos, passavam tropeiros, colonos e carroças cobertas. A ausência dos pais lhe pesava como pedra no peito. Sonhava em vê-los chegar, velhos e curvados, trazendo consigo o cheiro da terra vêneta e o calor das vozes familiares.

O Brasil, aos seus olhos, era um mundo novo e indecifrável. As florestas pareciam intermináveis, e os sons da mata — pássaros, insetos, o estalo dos galhos — lembravam-lhe que estava longe de tudo o que conhecia. Ainda assim, havia uma força secreta naquela solidão. O trabalho constante, o suor e o cansaço faziam-no sentir parte da paisagem. A cada árvore derrubada, a cada cerca erguida, Carlo via nascer não apenas uma colônia, mas uma civilização.

Os colonos que chegavam de outras partes da Itália traziam histórias parecidas: fome, dívidas, despedidas. Todos falavam com o mesmo sotaque cansado e o mesmo brilho de obstinação nos olhos. Juntos, transformavam o mato em lavoura, as picadas em estradas, os barracos em vilas. O nome “Caxias” começava a ganhar sentido — símbolo de uma nova vida construída sobre o esforço de quem não tinha nada além das próprias mãos.

Com o passar dos meses, a colônia se organizou. A estrada principal virou o eixo da vida comunitária: ao longo dela, surgiram a venda, a ferraria, a igreja de madeira e, mais tarde, a escola. Carlo era visto como um dos pioneiros — um homem que aprendera a lidar com as ferramentas do governo e com a dureza da terra. O engenheiro Brito, seu superior, elogiava-lhe a disciplina e a fé.

Apesar do progresso, a saudade nunca o abandonou. Nas noites de verão, quando o vento trazia o cheiro úmido da floresta, Carlo recordava o som dos sinos de Maser e a voz da mãe chamando da porta. Sonhava que, um dia, poderia juntar dinheiro suficiente para trazê-los. Imaginava o pai caminhando pela estrada de Caxias, espantado com a vastidão da América, e a mãe chorando de emoção diante da casa que o filho erguera com as próprias mãos.

O tempo, no entanto, seguia implacável. As cartas que mandava à Itália demoravam meses, e muitas não recebiam resposta. Ainda assim, ele escrevia, movido por um dever silencioso: o de manter viva a ponte entre o velho e o novo mundo. Em cada linha, descrevia os vales, o trabalho, a esperança de que um dia todos se reuniriam sob o mesmo teto.

Quando o outono de 1890 chegou, Carlo percebeu que o Brasil já o transformara. Não era mais o camponês de Maser, mas um homem endurecido pela distância e pelo destino. Os calos nas mãos eram suas medalhas; o campo que arava, seu testamento. Olhava a colônia e via crianças correndo, mulheres amassando pão, homens carregando madeira — a prova de que o sacrifício não fora em vão.

Naquela terra distante, Carlo encontrou mais do que trabalho: encontrou sentido. A solidão dera lugar à certeza de pertencer a algo maior. A Colônia Caxias, ainda jovem e coberta de mato, tornava-se um pedaço de Itália fincado no coração do sul.

Sob o céu avermelhado do entardecer, Carlo Bernardini ergueu os olhos e pensou que talvez o futuro começasse ali — no ponto exato em que o cansaço e a esperança se encontravam.

Nota do Autor

Esta narrativa é uma obra de ficção histórica, construída a partir de fatos, datas e emoções reais contidas em antigas cartas de emigrantes italianos do Vêneto, hoje preservadas em acervos museológicos do Rio Grande do Sul.

Embora os nomes e alguns detalhes tenham sido alterados, o enredo segue de perto as experiências relatadas por esses pioneiros que deixaram Maser e outras pequenas vilas de Treviso em direção às matas e vales da Colônia Caxias, no final do século XIX.

Trata-se, portanto, de uma recriação literária — uma tentativa de dar voz a homens e mulheres anônimos que transformaram o exílio em pátria e a saudade em herança. Suas palavras, escritas há mais de um século, continuam a atravessar o tempo, lembrando-nos que a história da imigração italiana no Brasil não é feita apenas de datas, mas de silêncios, distâncias e esperanças.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

Dal Vèneto a la Serra Gaúcha: La Zornada de Carlo Bernardini e el Scomìnsio de la Colònia Caxias – 1890 CORRIGINDO

 


Dal Vèneto a la "Serra Gaúcha": la zornada de Carlo Bernardini e el scomìnsio de la Colónia Caxias – 1890

Quando el bastimento el ga traversà l’Atlántico e l’orisonte el se scoverse soto le nèbie pesà, Carlo Bernardini capì che la vita vècia la zera finì. Maser, el paeseto de coline e de nèbia in provìnsia de Treviso, restava drio de luse, come un quadro consomà dal tempo. In autono de 1887, lu avea lassà la so tera con el cuor spacà tra la misèria e la speransa.
L’Itàlia, che da poco la zera fata unita, no zera gnanca pì un sònio: tera poca, fame tanta, e el pan contà. Ma l’Amèrica, al contràrio, la se disea che la iera ’na tera de promesse, ndove el grano el nasséa sensa dificoltà e el Governo regalava tera a chi che gavéa el corio de lavorarla.

Tre ani dopo, su l’alture frede dei  monti del Rio Grande do Sul, Carlo l’avea imparà a portar su la pena del zorno. El laorava par el Governo, taiando la foresta e segnando i loti par i coloni novi. El capi ingegnere, un brasilian de modo fermo e parola lenta, l’aveva vardà che Carlo el zera un omo de fidùssia, e ghe gavea solicità per l´aministrassion de la Colònia de Caxias darghe un peso de tera lungo la strada granda.
Lì, tra i pini e el fumo de le prime foghere, Carlo l’alzò la so césa de tavole scure, e ogni martelà iera come un fià de vita nova. El lavorava da la matina fin che calava el scuro, guadagnando cinque fiorin al zorno — quanto bastava par viver e no morir de fame. Co’ quei pochi schei, el comprò do vacche e un caval, segno che la sorte, forse, la ghe faseva el primo sorriso.

El Brasile, par lù, iera un mistero che profumava de resina e de speransa. El mato se alzava fino al peto, el silensio de la selva el iera vivo come un respìro. Ogni albero butà zo, ogni pala infìssa ne la tera, iera un atto de fede.
Carlo sentiva che ’sto mondo novo, benché duro, ghe stava cambiando l’ànima.

La solitùdine la iera ’na compagna fedele. Ne le sere de piova, sentà davanti a la finestra, el vardava la strada de fango dove passava qualche caròssa o i altri emigranti che venìa dai altri paesi del Vèneto.
El pensiero del pare e de la mare el ghe serava el peto. El sognava de vedarli rivar, stanchi e curvi, portando co’ lori el odor de la tera e la vòs del campanile.

El Brasil ghe pareva un paese sensa fine. Ma sotto quel ciel tanto lontan, el sentiva ’na forsa nova che ghe teneva in piè. El lavor continuo, el sudore, la fadiga, iera diventai la so preghiera.
Con i altri coloni, che rivava da Treviso, Belluno e Vicenza, el metéa insieme speranse e mani. De mato fazéa campo, de pietra fazéa casa. Caxias, pian pian, diventava ’na parola con sentido, ’na patria che naséa nel silensio.

El tempo passava, e la colònia la se sistemava. Lungo la strada granda se fazéa la venda, la ghe se alzava la gleisa, la scola, la ferraria.
Carlo, che el lavorava par el Governo, l’era vardà come un pionèr, un che sapeva tegnér su el cor anche ne le giornàe più nere.
L’ingegnere Brito, el so caposuperiore, el diseva che in quel vèneto ghe iera più corajo che in dezena de brasiliani.

Ma la nostalgia no lo molava mai. Ne le noti de estate, co el vento portava l’odor umido del mato, Carlo rivedeva la nèbia de Maser, i sò campi, el fogo ne la casa. El sognava che, un dì, i genitori i rivasse anca lori, e che la mare la piangesse de contentessa vardando la casa nova che el fiol gaveva fato co le man.

Le letare le partiva ogni tanto, ma poche le rivava in tera. El sapeva che le parole, qualche volta, le se perdeva tra i monti e i mari. Ma el scriveva lo stesso, perché scrìvar iera come respirar. El ghe contava de la vita de Caxias, de la tera che rendeva, de la speransa de rivédarse tuto un giorno.

In autun del 1890, Carlo capì che el Brasile lo gaveva fato novo.
No iera più el contadin povero de Maser, ma un omo temprà da la fadiga e da la lontanansa.
I calli ne le man iera la so gloria, la tera lavoràa el so orgoglio.
E vardando i fioi de altri coloni che coréa tra le case nove, el sentiva che el sacrificio so no iera sta invano.

Soto quel ciel rosso de sera, Carlo Bernardini alzò el sguardo e capì che forse el futuro el naséa lì — proprio nel ponto dove la fadiga e la speransa se tocava.

Nota del Autor

’Sta stòria la ze ’na fission stòrica, ma nassesta sora le parole vere de emigranti veneti che, tra el fin del sècolo XIX, i scrivea da le colonie del Rio Grande do Sul.
Le so lètare, incoi custodì in musei e archivi, le conta la fadiga, la lontanansa e la fede de chi che i ga lassà Maser e le contrade de Treviso par trovar vita nova tra i monti e i vali de Caxias.

I nomi i ze stà cambià, ma l’ànima de la stòria la resta vera. L’intento de ’sto raconto el ze de far parlar ’na altra volta ancora quei òmeni e quei done che, con le man rote e el cuor pien de speransa, i ga fato del silénsio ’na pàtria e de la misèria ’na eredità.
Le so vose, scrite sora carta descolorà dal tempo, le resona ancora tra ’sti monti — come ’na preghiera che no se desmentega mai.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta