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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Além do Mar

 


Além do Mar

O ano era 1885. Vittorio Mancoretti, um homem de constituição robusta e com olhos escuros e profundos que refletiam tanto a dureza da vida quanto a obstinação de quem nunca desiste, nascera e crescera na pequena e quase esquecida aldeia de San Daniele, ainda agarrada às montanhas do Friuli. Essa aldeia era um lugar onde o vento trazia histórias de gerações marcadas pelo trabalho árduo e pela resignação diante de uma terra ingrata. Vittorio era o filho mais velho de uma família de pobres camponeses, onde a única herança era o saber como arrancar de uma terra árida o pouco que bastava para viver.

Desde menino, ele compreendera que o nascer do sol trazia consigo o peso do trabalho, e que as noites eram feitas de esperanças silenciosas, muitas vezes esquecidas pelas promessas de uma Itália unificada há pouco. Aos trinta e cinco anos, seus ombros já estavam curvados pelos mesmos gestos repetidos: arar, plantar, colher – uma dança infinita que retornava apenas cansaço.

A seca, uma companheira cruel das colheitas, e a pobreza, sempre à espreita, haviam transformado a vida dos Mancoretti em um ciclo amargo de escassez. A pequena faixa de terra herdada, exausta por anos de exploração, não era mais capaz de sustentar sua esposa Bianca, uma mulher forte com olhos azuis desbotados pelo tempo, e seus dois filhos pequenos, Matteo, de sete anos, e Rosa, que tinha apenas quatro anos. Matteo já havia começado a ajudar o pai nos campos, mas seu espírito ainda estava cheio da inocência dos jogos. Rosa, por outro lado, frágil e frequentemente doente, necessitava de cuidados que muitas vezes eram mais do que podiam oferecer.

Vittorio sentia o peso de suas responsabilidades como uma corrente que o mantinha preso a um destino que parecia nunca mudar. Cada dia passado naquela terra lhe roubava um pedaço de força, mas nunca sua determinação. Dentro dele, ardia uma chama viva – uma inquietação que o levava a olhar além das montanhas de Valdorsi, sonhando com uma vida onde o trabalho não fosse apenas sobrevivência, mas uma promessa de algo mais.

As notícias de uma nova terra, rica e generosa no sul do Brasil, chegavam devagar pelos vizinhos que haviam lido cartas de parentes emigrados. Falavam de florestas vastas, rios caudalosos e promessas de terras próprias, longe dos patrões que lhes tiravam tudo. Vittorio, inicialmente cético, não podia mais ignorar a miséria crescente ao redor de sua casa.

Bianca, prática e decidida, disse ao marido:

“Se ficarmos aqui, morreremos. Se partirmos, ao menos teremos uma esperança.”

Com o coração pesado, Vittorio decidiu vender tudo o que possuíam — o velho arado, uma vaca magra e até mesmo a aliança de casamento de sua esposa.

O Vapor Umberto I

A jornada até o porto de Gênova foi uma verdadeira odisseia, cheia de dificuldades e sacrifícios. A família percorreu estradas empoeiradas e acidentadas, viajando por dias em uma carroça carregada de pertences, depois em vagões apertados de trem e, finalmente, a pé, atravessando povoados e colinas com os poucos bens que possuíam bem embrulhados.

No cais, o ambiente era uma mistura de névoa e expectativa, cheio de vozes em dialetos diferentes, carregadas de esperança e desespero. Foram agrupados com dezenas de outros emigrantes, todos com destino ao Brasil, formando uma massa de rostos ansiosos e olhares perdidos.

Umberto I, ancorado, imponente diante deles, parecia uma cidade flutuante, com suas enormes chaminés e os conveses lotados de pessoas. Para quem nunca tinha visto o mar, a visão do colosso de ferro era tão fascinante quanto assustadora. Mas o cheiro de óleo e sal, misturado ao burburinho dos passageiros já embarcados, criava uma sensação sufocante antes mesmo de entrarem no vapor.

No porão do navio, escuro, úmido e abafado, as condições eram ainda mais opressivas. Famílias inteiras estavam amontoadas em redes penduradas no teto, enquanto outras improvisavam camas com trapos e malas. A travessia do Atlântico era um verdadeiro tormento: a fome corroía os estômagos, doenças se espalhavam como fogo, e a saudade dos entes queridos deixados para trás parecia pesar mais a cada dia, com cada onda que o navio enfrentava.

Matteo, o menino de sete anos, era um raio de sol no meio da escuridão do porão. Com sua energia infinita, organizava jogos e brincadeiras, arrancando sorrisos das outras crianças e aliviando, ainda que por um momento, o peso da viagem. Rosa, sua irmã menor, porém, era frágil e, dia após dia, parecia definhar, arrancando lágrimas silenciosas de seus pais.

Certa noite, especialmente longa, enquanto o vapor deslizava sob um céu sem estrelas, Vittorio, o patriarca, estava no convés, segurando a mão de Bianca, sua esposa. Olhava para o mar escuro como se buscasse respostas na vastidão desconhecida. O peso de sua decisão apertava seu peito. E se tivesse cometido um erro irreparável? E se sua busca por uma vida melhor condenasse sua família à miséria ou, pior, à morte?

Mas Bianca, com sua força inabalável e seu olhar sereno, apertou sua mão e sussurrou:
“Mantenha a fé, meu amor. A terra que encontrarmos será a promessa de um novo começo. Basta resistirmos.”

Essas palavras ecoaram no coração de Vittorio, uma centelha de esperança no meio de uma escuridão que parecia infinita.

Os Primeiros Anos na Colônia

Quando desembarcaram no porto de Rio Grande, os Mancoretti sentiram uma mistura de alívio e incerteza. A longa travessia do Atlântico havia terminado, mas a verdadeira jornada estava apenas começando. Foram enviados para a Colônia Conde d’Eu, situada entre as verdes encostas da Serra Gaúcha.

Ao chegarem ao destino, encontraram uma terra vastíssima, mas de uma beleza selvagem: cheia de florestas densas e habitada apenas pelo silêncio das árvores e pelo canto distante dos pássaros.

Os primeiros dias foram marcados por novos desafios a cada instante. A família construiu um abrigo improvisado com troncos e folhas, um barraco rudimentar que mal os protegia das chuvas incessantes e do frio das noites. Mas, para os Mancoretti, aquele refúgio simples representava o primeiro passo para um lar. Vittorio, com o machado nas mãos, passava as manhãs derrubando árvores gigantescas e lutando contra os espinhos, enquanto Bianca, com maestria e paciência, limpava pedaços de terra para plantar repolhos e legumes.

As dificuldades pareciam insuperáveis. A comida era escassa, os braços não bastavam para todo o trabalho, e a solidão pesava como um fardo invisível. Rosa, ainda fraca após a viagem, contraiu uma febre alta que rapidamente drenou suas forças. Sem médicos ou remédios, Bianca cuidou da menina com compressas de ervas e orações todas as noites. Milagrosamente, Rosa se recuperou, mas aqueles dias de medo deixaram marcas profundas em todos os corações da família.

Foi a solidariedade dos outros colonos que trouxe algum alívio e esperança. Os recém-chegados logo entenderam que sobreviver era possível apenas com o esforço coletivo. Juntos, homens e mulheres trabalhavam para abrir trilhas na floresta, erguer casas simples e compartilhar a pouca comida que tinham. Vittorio, com sua determinação calma e talento natural para liderar, tornou-se uma referência para a comunidade. Sua voz firme e serena era como uma âncora em meio às tempestades da vida.

O Florescer da Esperança

Após cinco anos de luta contínua contra a terra, o tempo e suas próprias incertezas, a vida dos Mancoretti começou a mudar de forma. As terras, antes uma extensão selvagem de floresta densa, agora exibiam fileiras ordenadas de trigo dourado, pés de feijão verde e vinhedos carregados de uvas suculentas. O cheiro da terra fértil, conquistada com suor e perseverança, permanecia como um lembrete do que o esforço humano podia alcançar.

Vittorio, incansável, dedicou cada minuto de seus dias a construir uma casa digna para sua família. A nova casa de madeira, erguida com tábuas robustas cortadas por suas próprias mãos, era um símbolo de vitória. Na sala principal, pendurou com reverência o crucifixo que haviam trazido da Itália, um lembrete de fé e esperança que os sustentou nos anos mais difíceis. A casa, embora simples, tinha um calor humano que nenhuma mansão poderia replicar.

Matteo, agora um jovem forte e curioso, tornara-se o braço direito do pai nos campos. Mas, enquanto suas mãos calejadas trabalhavam a terra, sua mente sonhava mais alto. Ele desejava mais do que uma vida de trabalho agrícola; sonhava em criar uma escola para as crianças da colônia, oferecendo-lhes um futuro onde pudessem escrever, ler e sonhar como ele fazia. Rosa, por sua vez, havia se transformado de uma menina frágil em uma jovem cheia de vida. Sua saúde agora florescia, e sua voz, melodiosa e cheia de emoção, conquistava os corações dos colonos durante as missas na capela improvisada, um pequeno barraco decorado com flores e devoção.

Na primavera de 1890, a primeira colheita de vinho da família Mancoretti foi realizada, marcando um momento de grande satisfação. O aroma doce do mosto invadiu a casa, e os barris, armazenados no recém-construído celeiro, simbolizavam mais do que trabalho árduo: eram a promessa de um futuro próspero.

Naquela noite, sob um céu estrelado, os Mancoretti e seus vizinhos permitiram-se sonhar. Eles não estavam apenas sobrevivendo; estavam criando raízes profundas, tão sólidas quanto os vinhedos que começavam a dar frutos.

Naquele tempo, ele pensava, troquei a comodidade pelo risco, o hábito pelo desafio. E a liberdade, esta terra generosa, nos retribuiu com raízes que jamais imaginei que pudessem se aprofundar tanto.” Às vezes, ele sussurrava ao vento, como se conversasse com Bianca: “Conseguimos. Não apenas por nós, mas por todos aqueles que vieram depois.”

Com o som distante das risadas dos seus netos, que se divertiam entre as fileiras de videiras, Vittorio fechava os olhos por um momento, sentindo-se em paz. Ele sabia que havia cumprido seu dever e que o legado dos Mancoretti não era apenas a terra que ele havia cultivado, mas também os sonhos que havia plantado e as vidas que havia tocado. No coração da Serra Gaúcha, sob um céu que parecia mais luminoso do que nunca, a história de Vittorio tornava-se parte desta terra que ele tanto amava.

Nota do Autor

A história da família Mancoretti é uma ficção inspirada em muitos relatos de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX. Assim como Vittorio e Bianca, centenas de milhares de famílias deixaram suas terras natais, especialmente das regiões do Vêneto, Lombardia e Trentino-Alto Ádige, em busca de uma vida melhor. Fugiam da miséria, das crises econômicas e da falta de perspectivas que assolavam a Itália após a unificação, encontrando no Brasil um novo lar, embora cheio de desafios.

As colônias italianas no Rio Grande do Sul, como Caxias, Dona Isabel (atual Bento Gonçalves) e Conde d’Eu (hoje Garibaldi), foram fundadas em meio à mata virgem da Serra Gaúcha. Os primeiros anos desses imigrantes foram marcados por um profundo isolamento, condições de trabalho adversas e a falta de infraestrutura básica, como estradas, médicos e escolas. Muitos enfrentaram doenças, perdas pessoais e uma saudade profunda, mas, ao mesmo tempo, construíram comunidades vivas e resilientes, que moldaram a identidade cultural e econômica dessa região.

O personagem de Vittorio representa o espírito de liderança e perseverança que emergiu entre os colonos, enquanto Bianca simboliza a força e a fé que sustentavam tantas famílias. Matteo e Rosa refletem as gerações seguintes, que sonhavam e trabalhavam para ampliar os horizontes conquistados por seus pais.

A inclusão do vinho como parte do legado da família Mancoretti é uma homenagem à introdução da viticultura pelos italianos no Brasil, um feito que transformou a Serra Gaúcha em um dos principais centros vinícolas do país. Ainda hoje, as festas da colheita e as celebrações comunitárias são ricas em tradições trazidas da Itália, repletas de música, dança e gratidão pela terra que os acolheu.

Esta história é uma ode à resiliência humana, ao poder dos sonhos e à força de um legado que transcende fronteiras. Que os Mancoretti sejam um espelho para todos aqueles que, em momentos difíceis, tiveram a coragem de recomeçar e criar raízes em terras distantes, transformando o desconhecido em lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta