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domingo, 19 de maio de 2024

Precursores da Grande Emigração




A Saga dos Vendedores Ambulantes Itinerantes na Itália

Partiam a pé, carregando nas costas uma grande caixa de madeira sustentada por duas alças de couro. Dentro dela, guardavam uma variedade de itens coloridos: imagens religiosas, baralhos de cartas, a imagens conhecidas também como cromo. Suas jornadas os levavam por caminhos longínquos, distanciando-se de casa por meses, até anos. Eles vendiam estampas coloridas de paisagens ou santos, produzidas pela renomada impressora Remondini de Bassano del Grappa, que alcançavam os cantos mais remotos do país: uma editora de destaque naquela época, dominando o setor mundialmente. O habitantes da zona em torno a Bassano del Grappa, encontrava nesse trabalho uma forma de amenizar a extrema pobreza em que viviam. Partiam de Asiago, da Valstagna, de Fastro, de Crespano, de Possagno e tantas outras. Deixavam as suas pobres casas e ganhavam a Europa.

A profissão de vendedor ambulante era bastante comum na região do Bassanese, entre os séculos 17 e 18. Destacava-se quem comercializava as estampas de Remondini de casa em casa, pelas vilas e cidades na Península e no vasto Império Austríaco, onde eram conhecidos como cromer (Krommer), na França, Suíça, Inglaterra, Dinamarca, Alemanha, Polônia, até mesmo em São Petersburgo e além. Esses "viajantes comerciais" foram pioneiros que deram lugar para as futuras ondas de emigrantes que se seguiram, passando a seguir, pelas "rondine", uma forma de migração sazonal, que aproveitava a diminuição do trabalho nos campos, deslocamento dentro da própria Europa, que antecedeu a emigração definitiva. Eles anteciparam, em cerca de cem anos, o gigantesco êxodo que levaria milhões de italianos ao Novo Mundo nos séculos seguintes.

Algumas décadas se passaram e os vendedores das populares estampas transformaram-se em vendedores de cerâmica, vidro e cristal, conhecidos como "maiolini". Carregando consigo as caixas nas costas, amarradas por cintos de couro, eles percorriam a pé, vendendo seus produtos de porta em porta, passando por vilas e cidades, oferecendo taças, garrafas, jarros e cristais. Eram numerosos também os "maiolini" na primeira metade do século 18, principalmente nas regiões montanhosas e nos vales. Experimentaram um período de sorte que logo se dissipou. O trabalho árduo e arriscado os mantinha longe de casa, levando uma vida errante. Alguns nunca mais retornaram; outros, saqueados por bandidos, foram forçados a desistir. Mas muitos, ao final, estabeleceram-se onde chegaram, montando suas próprias lojas. Ainda hoje há alguns (na Lombardia, no Veneto, na Emília, no Tirol...) que revivem os tempos da emigração a pé, com a caixa nas costas.

Em poucos anos, começaram a surgir os primeiros sinais de transformação profunda no velho continente. A Europa estava em expansão: construíam-se estradas, galerias, pontes, e uma impressionante rede ferroviária. Para realizar essas grandes obras públicas, centenas de milhares de trabalhadores migravam de um país para outro. Foi nesse contexto de movimentos a pé, de migração temporária que a emigração italiana deu seus primeiros passos e se consolidou.






terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Nascimento a Bordo

 

Navio Principe de Asturias


Após uma longa e angustiante viagem de trem, durante a qual poucos passageiros conseguiram dormir, em um trajeto repleto de paradas nas inúmeras estações ao longo de todo o percurso, ocasião em que outras famílias de emigrantes, assim como eles, foram se juntando nos vários vagões da composição. Finalmente, chegaram à estação da cidade de Gênova, a última etapa em terras italianas, antes de se aventurarem, não sem grandes preocupações, nas águas do desconhecido oceano. Ainda estava muito escuro, numa madrugada fria de final de inverno. Enquanto se esforçava para vislumbrar a cidade que ainda se escondia na forte neblina matinal, que encobria quase totalmente a cidade e parte do porto, Cesco, como era carinhosamente chamado pelos pais e seus doze irmãos e irmãs que havia deixado na antiga casa paterna, percebeu com o coração apertado que a decisão tomada alguns meses antes, juntamente com sua jovem esposa Maria, não tinha mais volta. Estava realmente apreensivo, com muito medo da longa travessia, principalmente com o que o destino reservara para eles, mas, ao mesmo tempo, feliz com a decisão tomada e com as perspectivas de uma nova vida no tão sonhado Brasil, o distante "el Dorado" da América.
Maria, apesar de seu avançado estado de gravidez, também não conseguira dormir quase nada durante a viagem, pois Betina, a primogênita de pouco mais de um ano, deitava-se entre suas pernas. Sua família desaprovava a mudança para o exterior naquela situação, justamente por causa da gravidez, pois ela poderia passar mal e ter o bebê no navio.
Maria era a terceira filha de um casal de camponeses, naturais de um pequeno município localizado quase na divisa das províncias de Treviso com Belluno, que em outros tempos já havia conhecido uma importância maior. Maria e todos os seus irmãos nasceram em uma pequena vila do município de Quero. Além das duas irmãs mais velhas, já casadas, Maria tinha outros quatro irmãos homens, todos mais jovens. Na antiga casa, além dos pais e irmãos, moravam também os avós, já com idade avançada, mas ainda gozando de boa saúde e úteis nos trabalhos do campo.
Ao casar, Maria passou a morar na casa dos pais de Cesco no município de Alano di Piave, distante cerca de 15 km da sua casa paterna. Francesco e sua esposa Maria tinham a mesma idade, 22 anos, e já estavam casados há dois anos. Ele era o primogênito de um casal de pequenos trabalhadores rurais sem terra, que tiveram oito filhos, sendo cinco homens e três mulheres. O pai de Cesco era um empregado rural diarista, trabalhava na propriedade de uma família com passado nobre, que morava na cidade de Treviso. Ambas as famílias eram muito pobres, mas, apesar das dificuldades, sempre conseguiram alimentar bem todos os filhos.
As oportunidades de trabalho no meio rural existiam há séculos. A economia italiana, especialmente no caso deles, no Veneto, sempre foi baseada na agricultura, a qual, infelizmente, não conseguiu se modernizar na velocidade necessária para suprir a população sempre crescente do novo país. O novo reino também demorou muito tempo para se industrializar e acompanhar o progresso de outras nações europeias. Essa situação de atraso crônico da Itália, agravada após a unificação e a criação do reino da Itália, foi o impulso que levou milhões de italianos a buscarem fora do país o sustento diário. O desemprego nas zonas rurais aumentou consideravelmente, e a fome começou a aparecer em muitas regiões do país, especialmente nas zonas montanhosas, as primeiras a cogitarem deixar definitivamente a Itália.
A partir de 1875, não suportando mais a situação, ocorreu uma grande debandada de italianos para o exterior, a qual só arrefeceu com o início da I Grande Guerra, retomando logo após o término do conflito, porém, não mais com o mesmo ímpeto anterior. Em 1890, quando Francesco e Maria embarcaram, milhões de outros italianos, do norte ao sul da península, já tinham deixado definitivamente o país em busca de melhores oportunidades em países distantes do outro lado do oceano, especialmente nos Estados Unidos, Brasil e Argentina. Foi nesse ano que o casal Francesco e Maria, com a pequena Betina, finalmente realizou o sonho de tentar a sorte em um novo país, o Brasil, que tanto tinham ouvido falar através das cartas do tio Masueto, que tinha partido com a família nas primeiras levas de emigrantes.
Deslumbrados com a grande cidade de Gênova, o jovem casal dirigiu-se a uma pequena e barata estalagem, localizada em uma rua vizinha do cais. O embarque estava programado para daqui a dois dias, e na situação em que se encontrava Maria, não poderiam ficar ao relento todo esse tempo. Ainda fazia frio, e as madrugadas eram bastante geladas, especialmente pelo vento que vinha do mar. Apesar do pouco dinheiro que traziam, não havia outra opção para eles.
No dia do embarque, logo cedo, dirigiram-se ao cais onde o navio já estava ancorado. Um grande número de pessoas se amontoava no guichê de embarque, homens carregando grandes sacos e baús com seus pertences, e as mulheres levando os seus filhos. Do convés, ouviam-se ordens gritadas e os marujos correndo pelo tombadilho, ultimando os últimos preparativos para o embarque. No cais, um frenesi desordenado de carroças e carregadores de bagagens ao lado do grande navio a vapor. Subitamente, um longo apito agudo, seguido por dois outros mais graves, anunciava o início da admissão dos passageiros no barco.
Pela longa escada inclinada, encostada ao lado da embarcação, os passageiros subiam ordenadamente em fila, com os bilhetes de viagem e o passaporte nas mãos, as famílias agrupadas entre si, com as crianças pequenas agarradas nas saias das mães. O primeiro contratempo inesperado surgiu ao entrarem no interior do barco, que para eles parecia um verdadeiro monstro que os tinha engolido. Um dos membros da tripulação, com pouca paciência, separava os homens e os meninos maiores de oito anos das mulheres, meninas e crianças pequenas. As acomodações eram separadas por sexo.
Os grandes salões dormitórios, com o teto baixo e sem janelas, localizados nos porões do grande navio, consistiam de várias longas filas de beliches, de duas camas, fixados entre si e no piso. Nas extremidades de cada uma dessas filas, tinham colocado um grande balde de madeira com tampa, que deveria servir como sanitário para os passageiros fazerem as suas necessidades. Não havia muito conforto e nem privacidade. As instalações sanitárias e até mesmo a água eram insuficientes para o grande número de passageiros embarcados. O ambiente nesses dormitórios era quente, úmido e dele exalava um odor insuportável, depois de alguns dias de viagem.
O Matteo Bruzzo zarpou de Gênova em direção ao Porto de Nápoles, levando mais de seiscentos passageiros, a maioria imigrantes venetos e lombardos com destino ao Brasil e Argentina. Em Nápoles, subiram a bordo mais outros quinhentos passageiros, todos emigrantes provenientes de várias províncias do sul da Itália. A lotação, como quase sempre acontecia, já havia ultrapassado o número legal de passageiros permitido pela lei; entretanto, as autoridades portuárias faziam vista grossa e o ilícito se repetia a cada viagem.
Com exceção de algum enjoo e vômitos no início da viagem, Maria estava bem e suportando o duro trabalho de cuidar da Betina, que, amedrontada, exigia mais atenção do que o costume. As refeições servidas a bordo eram até relativamente boas, e tanto Maria como Cesco não tiveram problemas em se adaptar. Tudo ocorria tranquilamente, com a grande embarcação sulcando águas calmas, até quando chegaram próximo à linha do Equador, onde a temperatura era muito mais quente, e o mar começou a ficar mais agitado devido aos fortes ventos.
No final de uma tarde muito quente e abafada, o céu ficou carregado por ameaçadoras nuvens escuras e, de repente, iniciou-se uma grande tempestade, com ventos bastante fortes que faziam a água do mar saltar acima do convés, molhando cadeiras e outros equipamentos ali amarrados. Os passageiros foram proibidos de ficar ali e receberam ordens expressas para se dirigirem aos seus dormitórios. O navio balançava furiosamente, e as grandes ondas produziam um barulho ensurdecedor batendo como martelos no costado do barco. Objetos soltos nos dormitórios eram arremessados, e os passageiros precisavam se segurar para não caírem. A tripulação corria de um lado para o outro verificando todos os cantos do navio para ver se havia alguma infiltração da água do mar. O pânico começou a tomar conta dos passageiros, que tiveram a sensação de que iriam morrer afogados.
Maria, que estava sozinha em um dos dormitórios femininos, junto à filha Betina, ficou muito agitada e com medo, começou a se sentir mal, com enjoo e fortes cólicas na barriga. Ficou na sua cama, agarrada com a filha na esperança de que as dores aliviassem. Entretanto, elas não cessavam; pelo contrário, estavam cada vez mais frequentes. Maria, desesperada, pediu para chamar o marido que, avisado, prontamente correu para encontrá-la. O que os familiares de Maria temiam estava acontecendo; era evidente que as dores do parto haviam começado. O médico de bordo foi chamado, e depois de examiná-la, encaminhou-a diretamente para a enfermaria, tudo isso no meio da gritaria e correria causada pela tempestade, a qual não dava um minuto de trégua, balançando freneticamente o grande navio. Não demorou muito tempo e um forte choro anunciou o nascimento de Tranquilo, o segundo filho do casal Maria e Francisco. Como já estavam em águas brasileiras, o bebê seria registrado com essa nacionalidade.
Maria tinha leite em abundância, e o pequeno recém-nascido tinha um grande apetite. Com exceção do primeiro choro, o bebê era calmo e sossegado, o que corroborou a prévia escolha do nome que os pais fizeram, em homenagem ao pai de Francisco, que tinha este nome, cumprindo-se assim uma antiga tradição vêneta.
Depois de mais três dias, chegaram ao Porto do Rio de Janeiro, desembarcando na Ilha das Flores e sendo levados para a Hospedaria dos Imigrantes, onde foram abrigados por mais alguns dias. Até chegar ao porto, o navio costeiro Rio Negro, que os levaria até o Rio Grande do Sul, a jornada da família de Cesco ainda estava longe de terminar. Centenas de passageiros que viajavam no Matteo Bruzzo não desembarcaram no Rio de Janeiro, seguindo com o mesmo navio para a Argentina, que era seu destino final.
Com a chegada do vapor Rio Negro, Cesco e a família, acompanhados por várias dezenas de outros passageiros, embarcaram novamente, para mais oito dias de viagem até o Porto de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Desembarcaram e foram alojados em grandes barracões de madeira, sem conforto ou privacidade. Deveriam ficar esperando pela chegada dos barcos fluviais, que os levariam rio Caí acima até a colônia Caxias.
Há vários anos, um tio de Cesco havia emigrado com toda a sua família logo no início da fundação da colônia Caxias, alguns anos antes. Pela correspondência que recebiam do tio, ficaram sabendo das grandes oportunidades que ali existiam para aqueles que queriam trabalhar. O tio Mansueto e um sócio tinham uma grande fábrica de carroças naquela colônia, e não foram poucas as vezes que convidava os parentes na Itália para se juntarem a ele. Como Cesco, apesar de jovem, era um bom carpinteiro, esta foi uma das razões do casal ter escolhido a colônia Caxias para viverem. Esperava trabalhar na empresa do tio e, se possível, mais tarde, quando tivesse juntado algum dinheiro, abrir a própria carpintaria.
Depois de quase dez dias de espera naqueles incômodos barracões, finalmente chegou o dia de embarcarem novamente em direção à nova vida. Embarcaram no vapor Garibaldi, um pequeno vapor fluvial, e, seguindo pelo rio Guaíba, atravessaram a Lagoa dos Patos até a cidade de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul. Nesse ponto, desembocavam vários importantes rios que vinham do interior do estado. Tomaram a direção do Rio Caí e começaram a lenta subida de quase dez horas, seguindo contra a forte correnteza, até o Porto Guimarães, na cidade de São Sebastião do Caí, onde então desembarcaram.
Desse porto até a Colônia Caxias, ainda deveriam percorrer um longo trecho pela irregular e acidentada estrada Rio Branco, a pé ou em carroças, levando no colo os dois filhos e os poucos pertences que tinham trazido. Fizeram uma parada para descanso e abastecimento e, no dia seguinte, partiram em direção à grande colônia, seu destino final. Foram recebidos pela família do tio Mansueto, com inúmeros primos que Cesco ainda não conhecia.
Francisco trabalhou duramente por alguns anos na fábrica de carroças do tio, demonstrando grande talento como carpinteiro, sendo elogiado por todos os clientes. Alguns anos mais tarde, já respeitável chefe de família com uma prole de oito filhos, abriu a sua própria oficina, aventurando-se em grandes obras como construções de igrejas e moinhos movidos por água, suas duas especialidades com as quais se tornou famoso e solicitado em toda a região de colonização italiana da Serra Gaúcha.
Tranquilo, o filho mais velho, nascido durante a viagem de navio para o Brasil, desde muito pequeno tinha um especial interesse no trabalho do pai, sempre o acompanhando alegremente como ajudante na oficina e durante suas frequentes viagens. Cresceu ajudando o pai e, logo, do qual aprendeu o ofício e, apesar da pouca idade, se tornou conhecido como um excelente mestre de obras, construtor de grandes obras como igrejas, pavilhões e moinhos coloniais movidos a água e, posteriormente, a eletricidade.



Texto
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Tragédia no Mar: O Naufrágio do Navio Sirio com Emigrantes a Bordo

 

Naufrágio do Navio Sirio


O navio partiu de Gênova em 2 de agosto de 1906 com destino a Buenos Aires com escala em Barcelona, ​​Cádiz, Gran Canaria, Cabo Verde, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu. Depois de embarcar outros passageiros, o navio deixou a capital catalã com destino a Cádiz ainda na Espanha.

Em 4 de agosto, o navio passou em frente ao Cabo Palos, na costa mediterrânea espanhola.  Neste ponto, o promontório se estende sob a água para, em seguida, emergir novamente para formar as pequenas Ilhas Hormigas (Formigas). 

A profundidade da água na linha ideal que une o cabo a essas ilhotas pode ser muito rasa, atingindo em algumas áreas, chamadas de baixios, apenas três ou quatro metros. As rotas marítimas da época então se desviaram das ilhas para evitar o perigo de colidir com elas. Também acima de Capo Palos, um grande farol já tinha sido construído em 1864, que alertava para o perigo desta costa.

No dia 4 de agosto de 1906, por volta das quatro da tarde, o navio, navegando com força total, encalhou perto do Cabo Palos, por manter um curso muito próximo da costa. A proa foi vista subindo violentamente da água devido à alta velocidade. Este é o depoimento do comandante do navio francês Maria Louise, que presenciou o acontecimento e participou dos trabalhos de resgate:

"Vi passar o vapor italiano Sirio a todo vapor. Falei da sua passagem ao colega de bordo quando observei que havia parado de repente ... Vi a proa subir, afundar a popa. Não havia mais dúvidas: o Sirius havia sofrido uma colisão. Imediatamente mandei Marie Louise ser direcionada para Sirius. Ouvimos então uma explosão violenta: as caldeiras estouraram. Pouco depois vimos cadáveres nas ondas, ao mesmo tempo gritos desesperados de socorro chegavam aos nossos ouvidos". 

Os botes salva-vidas foram colocados fora de serviço pelo impacto violento, enquanto muitos passageiros foram atirados ao mar e se afogaram. Segundo o depoimento de um passageiro, o engenheiro Maggi, a água entrou nas cabines da primeira classe, invadiu então o corredor direito e por fim o espaço ao redor da escotilha de ré e o corredor à direita da casa de máquinas. 

Nesta área do navio haviam inúmeras mulheres e crianças que ficaram presas sem poder sair e sem poder ser resgatadas. A tripulação lançou uma jangada ao mar, que ficava na popa, e saiu do navio junto com o terceiro imediato, que se chamava Baglio. Apenas os oficiais permaneceram a bordo, mas logo perderam o controle da situação. O jornal L'Esare, de Bagni di Lucca, assim relatou:

"As lanchas foram atiradas ao mar, mas logo se encheram de tantas pessoas mas, devido ao peso excessivo, as fizeram afundar e assim todos os infelizes que ali caíram em vez da salvação encontraram a morte. A costa ficava a 3 quilômetros de distância do vapor e das rochas que ultrapassavam a água cerca de um quilômetro e meio. Vinte e cinco ou trinta homens salvaram-se nadando até as rochas onde permaneceram todo o dia e a noite seguinte, sem nada para comer".


Página da edição dominical La Domenica del Corriere, do jornal 
Corriere della Sera 


O jornal Corriere della Sera relatou que:

“A primeira sensação de espanto degenerou em um piscar de olhos em um pânico louco, produzindo uma confusão indescritível. Os passageiros, correndo loucamente e gritando desesperadamente, tornaram o trabalho de resgate impossível. "

Como o acidente ocorreu em plena luz do dia e a poucos quilômetros da costa, as equipes de resgate partiram imediatamente. Alguns barcos de pesca como o Joven Miguel e o Vicenza Llicano partiram de Cabo Palos e fizeram o possível para resgatar os náufragos. 

O comandante do Joven Miguel, Vicente Buigues, trouxe o seu navio para o costado do Sírio e assim embarcou trezentos náufragos. O Joven Miguel, porém, não tinha carga a bordo e a presença de tantas pessoas no convés colocava em risco sua estabilidade e, assim, poderia tombar. Apesar dos apelos, os passageiros do Sirio não queriam descer do convés e foi necessário ameaçá-los com uma arma para fazê-los obedecer. 

O alívio também foi proporcionado por dois navios a vapor que, naqueles mesmos minutos, contornavam o Cabo Palos: o francês Marie Louise e o austro-húngaro Buda.


Navio a Vapor (piroscafo) Sirio


Jornais britânicos, como o Daily Telegraph, insistiram em cenas de violência e brigas de faca para conseguir os poucos coletes salva-vidas disponíveis. Uma crônica da época conta que a maioria dos tripulantes conseguiu escapar simplesmente porque permaneceram no navio que, estando encalhado, permaneceu flutuando por mais dez dias.

As vítimas foram estimadas inicialmente em 293 pessoas para depois chegar a um total final de mais de 500 passageiros e tripulantes.  Devido à presença a bordo de inúmeros imigrantes ilegais, nunca foi possível estabelecer quantas pessoas realmente embarcaram no Sirius e quantas se afogaram. Entre as vítimas do naufrágio estava o bispo de São Paulo no Brasil, José de Camargo Barros. 

Os sobreviventes do Sírio foram hospedados na cidade vizinha de Cartagena. Os que decidiram seguir rumo à América do Sul embarcaram na Itália e Ravenna, enquanto os que desejavam voltar à Itália embarcaram no Orione.

As investigações sobre o acidente foram imediatamente abertas e eles verificaram que o capitão Giuseppe Piccone dirigiu as operações de resgate com bom senso e julgamento e foi o último a ser salvo. As primeiras notícias veiculadas pelos jornais da época indicam, ao invés, um comportamento inadequado do capitão e da tripulação que levaram ao naufrágio.


Navio Sirio pouco tempo antes do naufrágio


A imprensa espanhola também denunciou que o Sirio costumava fazer escalas não oficiais ao longo da costa ibérica para embarcar passageiros clandestinos. Na verdade, estes eram conduzidos para baixo da lateral do navio por barcos improvisados ​​e depois transbordados. Isso explicaria por que o Sirius estava navegando tão perto da costa.

Em Capo Palos, um museu foi dedicado ao naufrágio do Sirius. Ele também exibe os folhetos que possibilitaram a entrada de imigrantes ilegais no navio nas escalas extras.

Os restos mortais do Sirius repousam em grande profundidade nos arredores do Cabo. A popa está a cerca de 40 metros de profundidade, enquanto a proa a cerca de 70 metros. Após ser declarada Reserva Marinha de Capo de Palo e das Ilhas Formigas, em 1995, a atividade de mergulho na área é limitada, e para uma visita, é necessária a autorização do "Conselho do Meio Ambiente do Governo Regional de Murcia".



Dr. Luiz Carlos Piazzetta

Erechim RS


quinta-feira, 29 de junho de 2023

Náufragos de Almas: As Trágicas Odisséias dos Emigrantes no Mar

 



Náufragos de Almas: 
As Trágicas Odisséias dos Emigrantes no Mar



Nas águas revoltas do oceano, um lamento ecoa, 
Embarcações de sonhos, epidemias, morte e dor. 
A travessia incerta, destino sombrio a bordo, 
Levando emigrantes à sepultura nas profundezas do mar.

Em busca de novos horizontes, deixaram a terra natal, 
Mas a morte espreitava, silenciosa, implacável. 
Doenças cruéis, agouros sombrios no ar, 
Cobravam vidas preciosas, ceifando o sonho de recomeçar.

A bordo, corpos enfraquecidos, suspiros calados, 
Em meio às lágrimas, angústia e desespero. 
Enfrentavam a escuridão, a incerteza dos destinos traçados, 
Envolvidos em lençóis, ao mar profundo eram entregues, derradeiro adeus.

Pedras amarradas aos pés, símbolo triste de despedida, 
Submersos nas águas gélidas, abraçados pelo mar salgado. 
Seus nomes se perderam, suas histórias esquecidas, 
Mas o mar testemunha silencioso, guardião do passado.

Nas profundezas, suas almas vagam em eterno descanso, 
Em meio às ondas, encontraram a paz que lhes faltou na vida. 
Memórias daqueles que não chegaram ao novo lar, 
Nas águas vastas do oceano, eternamente entrelaçadas.

Lembramos dos que partiram, das vidas interrompidas, 
Das epidemias avassaladoras, das doenças cruéis. 
Honramos a coragem e a esperança, mesmo diante das despedidas, 
Erguemos nossos olhares ao céu, lembrando que o sonho é fiel.

Que suas histórias sejam contadas, lembradas com carinho, 
Esses emigrantes corajosos, que enfrentaram a travessia dura. 
A bordo da esperança, lutaram contra o destino mesquinho, 
Seu legado vive em nós, mesmo na sepultura obscura.

E assim, perpetuamos a memória daqueles que se perderam, 
Honrando a bravura e a resiliência que carregaram consigo. 
Nas ondas do tempo, suas vozes ecoam, jamais desvanecem, 
As epidemias, as doenças e as mortes não apagam seu abrigo.

de Gigi Scarsea
erechim rs



quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cartas de Chamada






No ano de 1911, foi promulgada uma lei brasileira que em certo sentido legalizava o uso da Carta de Chamada. Por exemplo, introduzia a obrigação da chamada para os maiores de 60 anos e os não aptos para o trabalho que quisessem emigrar. No seu parágrafo único dizia: os maiores de 60 anos de idade e os inaptos para o trabalho só serão admitidos com imigrantes quando acompanhados de suas famílias, ou quando vierem para a companhia destas, contanto que haja da mesma família pelo menos um individuo válido, para outro inválido ou para um até dois maiores 60 anos. O único modo para demonstrar que o migrante vinha para estar com a família e esta estava disposta e apta para sua manutenção era se munir de uma Carta de Chamada. O governo federal forneceria gratuitamente aos agricultores ou aos chamados pelas mesmas, desde que aptos para o trabalho, passagem de terceira classe, transporte e acomodações até o destino escolhido, isenção do pagamento das taxas de bagagem e ótimo motivo para se apresentar com uma Carta de Chamada.  




Ainda no Capítulo III, art. 18° da referida lei, dizia que: dava-se preferência para o embarque com as companhias de navegação, autorizadas pelo governo federal, para transporte dos imigrantes, para os assim denominados imigrantes espontâneos e para aqueles chamados por parentes já estabelecidos no Brasil. 

As Cartas de Chamada eram aquelas escritas por parentes que já haviam anteriormente imigrado e mandavam notícias para seus familiares que ainda estavam na Itália. Esses parentes ou amigos que já moravam no Brasil, imigrados há algum tempo se responsabilizavam pela vinda do resto da família, que deveria carregar consigo as cartas de chamada durante a viagem, como um documento para ser aceito no novo país. Essas cartas de chamada do Brasil permitiam que tanto cidadãos brasileiros quanto os imigrantes, com residência permanente no país, “chamassem” seus parentes, fornecendo-lhes um atestado de apoio.  




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS








 

 


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Narrativas da Longa Viagem pelo Oceano




Os acontecimentos entre o velho e o novo mundo naquele período da grande emigração italiana não passou despercebida para Edmondo De Amicis (um escritor e militar italiano, nascido em 21 de outubro de 1846, em Oneglia, Imperia.) como se pode ler neste belo fragmento da sua obra Sull'Oceano:

“E mais do que qualquer outra coisa, fui atraído pelas malas postais, amontoadas em um canto, amarradas e lacradas. Pois ali havia fragmentos do diálogo de dois mundos: quem sabe quantas cartas de mulheres que pela terceira ou quarta vez pediam dolorosamente notícias do filho ou do marido, que há anos não se viam; e súplicas para retornar ou chamá-los para se juntar a eles; questões de emergência; anúncios de doenças e mortes; e retratos de meninos que seus pais não teriam mais reconhecido, e chamadas desoladas de namoradas e mentiras atrevidas de esposas infiéis e últimos conselhos de velhos: tudo isso misturado com cartas eriçadas com figuras de banqueiros, com cartas de amor de dançarinas e coristas, para perspectivas de lojistas de vermute, com maços de jornais aguardados pela colônia italiana, ávidos por notícias da pátria; talvez até o último poema de Carducci e o novo romance de Verga: uma confusão de folhas de todas as cores, escritas em cabanas, em edifícios, em oficinas, em sótãos, rindo, chorando, tremendo. E todos esses sacos seriam espalhados em poucos dias desde a foz do Prata até as fronteiras do Brasil e da Bolívia e até as costas do Pacífico e no interior do Paraguai e subindo as encostas dos Andes, para despertar alegria, remorso, dor, medo. Que, então, por sua vez, embalados em outros sacos, teriam feito o mesmo caminho no sentido contrário, amontoados em outro camarim daqueles, onde teriam visto passarem outras procissões de pobres, voltando ao velho mundo, talvez menos pobre, mas não mais felizes do que quando eles o abandonaram na esperança de um destino melhor. " 

Em 11 de março de 1884, Edmondo De Amicis embarcou no Porto de Gênova, no navio a vapor América do Norte, com destino à Argentina. As suas obras Sull'Oceano (de 1889) e In America (de 1897) estão associadas à sua viagem à América do Sul, uma viagem que lhe dará ideias e material para criar outro livro Dos Apeninos aos Andes.

Relata: "O calor escaldante não era o pior, era um fedor de ar frácido e borrado, que da escotilha aberta dos dormitórios masculinos subia em sopros até o tombadilho, uma mancha digna de pena considerar que vinha de criaturas humanas, e assustador pensar no que aconteceria se uma doença contagiosa surgisse a bordo. No entanto, eles nos disseram, não havia mais passageiros do que a lei permite que embarquem em relação ao espaço. Eh! O que importa se você não respirar! A lei está errada. Permite que quase um terço do espaço seja ocupado nos vapores italianos do que nos ingleses e americanos; e não está lá para ver se tudo bem encontrado pela polícia na partida, é então mantido durante a viagem; evitar, por exemplo, que mais passageiros embarquem em outros portos do que lugares sobrando, e que viajantes saudáveis ​​sejam jogados no espaço reservado para enfermeiras e que dormitórios sejam improvisados ​​no estilo de bella diana. Quanto ainda há por fazer dentro destes belos vapores que no dia da partida se avistam resplandecendo como palácios de príncipes! Em sua maioria, os marinheiros e foguistas estão lá como cachorros, a enfermaria é um armário, os lugares que deveriam ser mais limpos são horríveis e para mil e quinhentos viajantes da terceira classe não há banheiro. E digam o que dizem os higienistas que fixaram o número necessário de metros cúbicos de ar: a carne humana é muito apinhada, e que já foi pior, não desculpe: hoje ainda é algo que faz compaixão e move ao desprezo . " Esta passagem é tirada de Sull'Oceano, que, inicialmente, De Amicis intitulou Nossos agricultores na América. Pelas notas de De Amicis, na margem do manuscrito, sabemos que a "América do Norte" embarcou para Buenos Aires 1.600 passageiros na terceira classe, 20 na segunda e 50 na primeira, além dos 200 tripulantes. Similares eram as condições de viagem dos camponeses do sul do Piemonte, Lombardia, Veneto e Itália Central indo para a América. Para milhares e milhares deles, aquela travessia permanecerá na memória como a memória do inferno. 

Continua De Amicis: “À medida que a coluna do termômetro aumentava, as ocupações e os aborrecimentos do Comissário aumentavam; o mais importante deles era o dormitório feminino, onde ela tinha que ir com frequência, dia e noite, para restaurar a ordem ou para zelar pela limpeza. Mesmo levando em conta o que fazer, aquele espetáculo obrigatório teria bastado para fazer qualquer cavalheiro perder o amor pelo escritório. Imagine dois andares abaixo do convés, como dois grandes mezaninos, iluminados por uma luz de adega, e em cada um deles três fileiras de beliches colocados um em cima do outro, ao redor das paredes e no meio, e ali cerca de quatrocentos entre a amamentação e mulheres e crianças mimadas, e trinta e dois graus de calor. Aqui, no beliche de baixo, uma mulher grávida dormia com uma criança de dois anos, acima dela uma mulher de setenta anos, acima dela uma menina na primeira flor; ali, um camponês da Calábria estendeu-se ao lado de uma senhora que havia caído na pobreza; mais à frente, uma aventureira da cidade maquilando-se no escuro, ao lado de uma camponesa temente a Deus, que dormia com o rosário nas mãos. "




Esta ilustração de Arnaldo Ferraguti aparece nas primeiras páginas da luxuosa edição de 1890 de Sull'Oceano, onde De Amicis descreve o embarque: “Então as famílias se separaram: os homens de um lado, do outro as mulheres e os meninos foram levados aos seus dormitórios. E foi uma pena ver aquelas mulheres descerem com dificuldade as escadas íngremes e tatearem por aqueles dormitórios amplos e baixos, entre aqueles inúmeros beliches dispostos no chão como caixas de vermes, e aquele, ofegante, pedindo contas de um perdidos para um marinheiro que não os compreendia, os outros se jogam onde estavam, exaustos e espantados, e muitos vão e vêm ao acaso, olhando com preocupação para todos aqueles companheiros de viagem desconhecidos, inquietos como estão, confusos também daquela aglomeração e daquela desordem ”. Mais uma vez, o escritor lança luz sobre uma declaração lacônica de Mosè Bertoni ("mulheres alojadas nos piores lugares") e retoma o argumento mais tarde, no capítulo intitulado O dormitório feminino: "Imagine dois andares abaixo do convés, como dois mezaninos muito grandes, iluminados por uma luz de adega, e em cada um deles três fileiras de beliches colocados um em cima do outro, ao redor das paredes e no meio, e ali cerca de quatrocentas mulheres e crianças bebês amamentados e mimados e trinta e dois graus de calor. [...] Indo lá à noite, cabelos grisalhos, tranças loiras, panos enfaixados, canelas horríveis e senis e lindas pernas de menina, e um trapo de xales, vestidos e saias pendurados nos beliches de todas as cores naturais e adquiridas imagináveis ​​e possíveis, como bandeiras do exército infinito da miséria: e no embarque os montes confusos de botas, tamancos, chinelos, cadarços, sapatinhos, meias, para assustar pensar que havia pilhas de problemas e contendas preparadas para amanhã, na hora do nascer ”.