Mostrando postagens com marcador Viagem Marítima. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Viagem Marítima. Mostrar todas as postagens

domingo, 31 de março de 2024

A Viagem Desafiadora de Edmundo: Vida a Bordo durante a Emigração Italiana no Século XIX

Emigrantes italianos a bordo



O escritor e militar italiano nascido em Oneglia, no reino da Sardenha, Edmondo De Amicis, em viagem para a América, a bordo do navio a vapor Galileo, descreve com estas palavras o que viu na área dos convés ocupada pelos emigrantes: 

"Um amplo espaço lotado de passageiros, que ao longo dos dois lados tem estábulos para bois e cavalos, gaiolas para pombos e galinhas, compartimentos para carneiros e coelhos, ao fundo a lavanderia a vapor e o matadouro, de um lado os tanques de água doce e os reservatórios marinhos, no meio a casinha da taverna e a entrada para os dormitórios femininos, fechada por uma estranha sobreposição de tetos de vidro, que servem como assentos para as mulheres". A narrativa do escritor pode parecer exagerada, aos olhos dos observadores de hoje; no entanto, é confirmada por artigos e ensaios da época, que foram analisados em um estudo histórico pela escritora italiana Augusta Molinari, no seu livro "Le navi di Lazzaro", onde relata sobre os aspectos sanitários da viagem marítima, de onde extraímos as observações que se seguem: 

"Até a aprovação da lei de emigração de 1901, não existia uma regulamentação dos aspectos sanitários da emigração e, ainda em 1900, a situação do transporte marítimo de emigrantes era resumida por um médico da seguinte forma:

 "A higiene e a limpeza estão constantemente em conflito com a especulação. Faltam espaço, falta ar." As camas dos emigrantes eram dispostas em dois ou três corredores e recebiam ar principalmente através das escotilhas. A altura mínima dos corredores ia de um metro e sessenta centímetros para o primeiro, começando de cima, a um metro e noventa para o segundo. Nos dormitórios assim organizados, era comum o surgimento de doenças, especialmente do sistema respiratório. Para destacar a falta das mais básicas normas de higiene, pode-se fazer referência ao problema da conservação e distribuição da água potável, que era armazenada em caixas de ferro revestidas de cimento. Devido ao balanço do navio, o cimento tendia a desintegrar-se, turvando a água, que, ao entrar em contato com o ferro oxidado, adquiria uma cor vermelha e era consumida assim pelos emigrantes, já que não havia destiladores a bordo. Quanto à comida, independentemente da impossibilidade para os emigrantes, analfabetos ou de qualquer forma incapazes de ter um conhecimento completo das regulamentações alimentares, ela era preparada seguindo uma série de alternâncias constantes entre dias "ricos" e "magros", dias de "café" e dias de "arroz". Do ponto de vista dietético, a ração diária de alimentos era suficientemente rica em elementos proteicos e, de qualquer forma, superior em quantidade e qualidade ao tipo de alimentação habitual do emigrante. Eram mais as críticas voltadas para as modalidades de distribuição: as refeições para cinco ou seis pessoas eram confiadas aos líderes de grupo e poderiam facilmente se tornar motivo de discriminação no momento da divisão. Além disso, a comida era consumida nas camas ou no convés, pois não havia refeitórios previstos.




terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Nascimento a Bordo

 

Navio Principe de Asturias


Após uma longa e angustiante viagem de trem, durante a qual poucos passageiros conseguiram dormir, em um trajeto repleto de paradas nas inúmeras estações ao longo de todo o percurso, ocasião em que outras famílias de emigrantes, assim como eles, foram se juntando nos vários vagões da composição. Finalmente, chegaram à estação da cidade de Gênova, a última etapa em terras italianas, antes de se aventurarem, não sem grandes preocupações, nas águas do desconhecido oceano. Ainda estava muito escuro, numa madrugada fria de final de inverno. Enquanto se esforçava para vislumbrar a cidade que ainda se escondia na forte neblina matinal, que encobria quase totalmente a cidade e parte do porto, Cesco, como era carinhosamente chamado pelos pais e seus doze irmãos e irmãs que havia deixado na antiga casa paterna, percebeu com o coração apertado que a decisão tomada alguns meses antes, juntamente com sua jovem esposa Maria, não tinha mais volta. Estava realmente apreensivo, com muito medo da longa travessia, principalmente com o que o destino reservara para eles, mas, ao mesmo tempo, feliz com a decisão tomada e com as perspectivas de uma nova vida no tão sonhado Brasil, o distante "el Dorado" da América.
Maria, apesar de seu avançado estado de gravidez, também não conseguira dormir quase nada durante a viagem, pois Betina, a primogênita de pouco mais de um ano, deitava-se entre suas pernas. Sua família desaprovava a mudança para o exterior naquela situação, justamente por causa da gravidez, pois ela poderia passar mal e ter o bebê no navio.
Maria era a terceira filha de um casal de camponeses, naturais de um pequeno município localizado quase na divisa das províncias de Treviso com Belluno, que em outros tempos já havia conhecido uma importância maior. Maria e todos os seus irmãos nasceram em uma pequena vila do município de Quero. Além das duas irmãs mais velhas, já casadas, Maria tinha outros quatro irmãos homens, todos mais jovens. Na antiga casa, além dos pais e irmãos, moravam também os avós, já com idade avançada, mas ainda gozando de boa saúde e úteis nos trabalhos do campo.
Ao casar, Maria passou a morar na casa dos pais de Cesco no município de Alano di Piave, distante cerca de 15 km da sua casa paterna. Francesco e sua esposa Maria tinham a mesma idade, 22 anos, e já estavam casados há dois anos. Ele era o primogênito de um casal de pequenos trabalhadores rurais sem terra, que tiveram oito filhos, sendo cinco homens e três mulheres. O pai de Cesco era um empregado rural diarista, trabalhava na propriedade de uma família com passado nobre, que morava na cidade de Treviso. Ambas as famílias eram muito pobres, mas, apesar das dificuldades, sempre conseguiram alimentar bem todos os filhos.
As oportunidades de trabalho no meio rural existiam há séculos. A economia italiana, especialmente no caso deles, no Veneto, sempre foi baseada na agricultura, a qual, infelizmente, não conseguiu se modernizar na velocidade necessária para suprir a população sempre crescente do novo país. O novo reino também demorou muito tempo para se industrializar e acompanhar o progresso de outras nações europeias. Essa situação de atraso crônico da Itália, agravada após a unificação e a criação do reino da Itália, foi o impulso que levou milhões de italianos a buscarem fora do país o sustento diário. O desemprego nas zonas rurais aumentou consideravelmente, e a fome começou a aparecer em muitas regiões do país, especialmente nas zonas montanhosas, as primeiras a cogitarem deixar definitivamente a Itália.
A partir de 1875, não suportando mais a situação, ocorreu uma grande debandada de italianos para o exterior, a qual só arrefeceu com o início da I Grande Guerra, retomando logo após o término do conflito, porém, não mais com o mesmo ímpeto anterior. Em 1890, quando Francesco e Maria embarcaram, milhões de outros italianos, do norte ao sul da península, já tinham deixado definitivamente o país em busca de melhores oportunidades em países distantes do outro lado do oceano, especialmente nos Estados Unidos, Brasil e Argentina. Foi nesse ano que o casal Francesco e Maria, com a pequena Betina, finalmente realizou o sonho de tentar a sorte em um novo país, o Brasil, que tanto tinham ouvido falar através das cartas do tio Masueto, que tinha partido com a família nas primeiras levas de emigrantes.
Deslumbrados com a grande cidade de Gênova, o jovem casal dirigiu-se a uma pequena e barata estalagem, localizada em uma rua vizinha do cais. O embarque estava programado para daqui a dois dias, e na situação em que se encontrava Maria, não poderiam ficar ao relento todo esse tempo. Ainda fazia frio, e as madrugadas eram bastante geladas, especialmente pelo vento que vinha do mar. Apesar do pouco dinheiro que traziam, não havia outra opção para eles.
No dia do embarque, logo cedo, dirigiram-se ao cais onde o navio já estava ancorado. Um grande número de pessoas se amontoava no guichê de embarque, homens carregando grandes sacos e baús com seus pertences, e as mulheres levando os seus filhos. Do convés, ouviam-se ordens gritadas e os marujos correndo pelo tombadilho, ultimando os últimos preparativos para o embarque. No cais, um frenesi desordenado de carroças e carregadores de bagagens ao lado do grande navio a vapor. Subitamente, um longo apito agudo, seguido por dois outros mais graves, anunciava o início da admissão dos passageiros no barco.
Pela longa escada inclinada, encostada ao lado da embarcação, os passageiros subiam ordenadamente em fila, com os bilhetes de viagem e o passaporte nas mãos, as famílias agrupadas entre si, com as crianças pequenas agarradas nas saias das mães. O primeiro contratempo inesperado surgiu ao entrarem no interior do barco, que para eles parecia um verdadeiro monstro que os tinha engolido. Um dos membros da tripulação, com pouca paciência, separava os homens e os meninos maiores de oito anos das mulheres, meninas e crianças pequenas. As acomodações eram separadas por sexo.
Os grandes salões dormitórios, com o teto baixo e sem janelas, localizados nos porões do grande navio, consistiam de várias longas filas de beliches, de duas camas, fixados entre si e no piso. Nas extremidades de cada uma dessas filas, tinham colocado um grande balde de madeira com tampa, que deveria servir como sanitário para os passageiros fazerem as suas necessidades. Não havia muito conforto e nem privacidade. As instalações sanitárias e até mesmo a água eram insuficientes para o grande número de passageiros embarcados. O ambiente nesses dormitórios era quente, úmido e dele exalava um odor insuportável, depois de alguns dias de viagem.
O Matteo Bruzzo zarpou de Gênova em direção ao Porto de Nápoles, levando mais de seiscentos passageiros, a maioria imigrantes venetos e lombardos com destino ao Brasil e Argentina. Em Nápoles, subiram a bordo mais outros quinhentos passageiros, todos emigrantes provenientes de várias províncias do sul da Itália. A lotação, como quase sempre acontecia, já havia ultrapassado o número legal de passageiros permitido pela lei; entretanto, as autoridades portuárias faziam vista grossa e o ilícito se repetia a cada viagem.
Com exceção de algum enjoo e vômitos no início da viagem, Maria estava bem e suportando o duro trabalho de cuidar da Betina, que, amedrontada, exigia mais atenção do que o costume. As refeições servidas a bordo eram até relativamente boas, e tanto Maria como Cesco não tiveram problemas em se adaptar. Tudo ocorria tranquilamente, com a grande embarcação sulcando águas calmas, até quando chegaram próximo à linha do Equador, onde a temperatura era muito mais quente, e o mar começou a ficar mais agitado devido aos fortes ventos.
No final de uma tarde muito quente e abafada, o céu ficou carregado por ameaçadoras nuvens escuras e, de repente, iniciou-se uma grande tempestade, com ventos bastante fortes que faziam a água do mar saltar acima do convés, molhando cadeiras e outros equipamentos ali amarrados. Os passageiros foram proibidos de ficar ali e receberam ordens expressas para se dirigirem aos seus dormitórios. O navio balançava furiosamente, e as grandes ondas produziam um barulho ensurdecedor batendo como martelos no costado do barco. Objetos soltos nos dormitórios eram arremessados, e os passageiros precisavam se segurar para não caírem. A tripulação corria de um lado para o outro verificando todos os cantos do navio para ver se havia alguma infiltração da água do mar. O pânico começou a tomar conta dos passageiros, que tiveram a sensação de que iriam morrer afogados.
Maria, que estava sozinha em um dos dormitórios femininos, junto à filha Betina, ficou muito agitada e com medo, começou a se sentir mal, com enjoo e fortes cólicas na barriga. Ficou na sua cama, agarrada com a filha na esperança de que as dores aliviassem. Entretanto, elas não cessavam; pelo contrário, estavam cada vez mais frequentes. Maria, desesperada, pediu para chamar o marido que, avisado, prontamente correu para encontrá-la. O que os familiares de Maria temiam estava acontecendo; era evidente que as dores do parto haviam começado. O médico de bordo foi chamado, e depois de examiná-la, encaminhou-a diretamente para a enfermaria, tudo isso no meio da gritaria e correria causada pela tempestade, a qual não dava um minuto de trégua, balançando freneticamente o grande navio. Não demorou muito tempo e um forte choro anunciou o nascimento de Tranquilo, o segundo filho do casal Maria e Francisco. Como já estavam em águas brasileiras, o bebê seria registrado com essa nacionalidade.
Maria tinha leite em abundância, e o pequeno recém-nascido tinha um grande apetite. Com exceção do primeiro choro, o bebê era calmo e sossegado, o que corroborou a prévia escolha do nome que os pais fizeram, em homenagem ao pai de Francisco, que tinha este nome, cumprindo-se assim uma antiga tradição vêneta.
Depois de mais três dias, chegaram ao Porto do Rio de Janeiro, desembarcando na Ilha das Flores e sendo levados para a Hospedaria dos Imigrantes, onde foram abrigados por mais alguns dias. Até chegar ao porto, o navio costeiro Rio Negro, que os levaria até o Rio Grande do Sul, a jornada da família de Cesco ainda estava longe de terminar. Centenas de passageiros que viajavam no Matteo Bruzzo não desembarcaram no Rio de Janeiro, seguindo com o mesmo navio para a Argentina, que era seu destino final.
Com a chegada do vapor Rio Negro, Cesco e a família, acompanhados por várias dezenas de outros passageiros, embarcaram novamente, para mais oito dias de viagem até o Porto de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Desembarcaram e foram alojados em grandes barracões de madeira, sem conforto ou privacidade. Deveriam ficar esperando pela chegada dos barcos fluviais, que os levariam rio Caí acima até a colônia Caxias.
Há vários anos, um tio de Cesco havia emigrado com toda a sua família logo no início da fundação da colônia Caxias, alguns anos antes. Pela correspondência que recebiam do tio, ficaram sabendo das grandes oportunidades que ali existiam para aqueles que queriam trabalhar. O tio Mansueto e um sócio tinham uma grande fábrica de carroças naquela colônia, e não foram poucas as vezes que convidava os parentes na Itália para se juntarem a ele. Como Cesco, apesar de jovem, era um bom carpinteiro, esta foi uma das razões do casal ter escolhido a colônia Caxias para viverem. Esperava trabalhar na empresa do tio e, se possível, mais tarde, quando tivesse juntado algum dinheiro, abrir a própria carpintaria.
Depois de quase dez dias de espera naqueles incômodos barracões, finalmente chegou o dia de embarcarem novamente em direção à nova vida. Embarcaram no vapor Garibaldi, um pequeno vapor fluvial, e, seguindo pelo rio Guaíba, atravessaram a Lagoa dos Patos até a cidade de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul. Nesse ponto, desembocavam vários importantes rios que vinham do interior do estado. Tomaram a direção do Rio Caí e começaram a lenta subida de quase dez horas, seguindo contra a forte correnteza, até o Porto Guimarães, na cidade de São Sebastião do Caí, onde então desembarcaram.
Desse porto até a Colônia Caxias, ainda deveriam percorrer um longo trecho pela irregular e acidentada estrada Rio Branco, a pé ou em carroças, levando no colo os dois filhos e os poucos pertences que tinham trazido. Fizeram uma parada para descanso e abastecimento e, no dia seguinte, partiram em direção à grande colônia, seu destino final. Foram recebidos pela família do tio Mansueto, com inúmeros primos que Cesco ainda não conhecia.
Francisco trabalhou duramente por alguns anos na fábrica de carroças do tio, demonstrando grande talento como carpinteiro, sendo elogiado por todos os clientes. Alguns anos mais tarde, já respeitável chefe de família com uma prole de oito filhos, abriu a sua própria oficina, aventurando-se em grandes obras como construções de igrejas e moinhos movidos por água, suas duas especialidades com as quais se tornou famoso e solicitado em toda a região de colonização italiana da Serra Gaúcha.
Tranquilo, o filho mais velho, nascido durante a viagem de navio para o Brasil, desde muito pequeno tinha um especial interesse no trabalho do pai, sempre o acompanhando alegremente como ajudante na oficina e durante suas frequentes viagens. Cresceu ajudando o pai e, logo, do qual aprendeu o ofício e, apesar da pouca idade, se tornou conhecido como um excelente mestre de obras, construtor de grandes obras como igrejas, pavilhões e moinhos coloniais movidos a água e, posteriormente, a eletricidade.



Texto
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS

sábado, 18 de novembro de 2023

Italianos Emigrados no Brasil: Uma Epopeia de Desafios e Resiliência dos Pioneiros


 


Antes de embarcar, a maioria dos imigrantes italianos enfrentava extensos dias que duravam muitas horas, cruzando as terras do país até alcançar os portos de Gênova ou Nápoles, principais pontos de partida para o Brasil. Deixavam suas aldeias e cidades natais para embarcar em trens, um meio de transporte ainda pouco utilizado pela maioria. Aqueles que se aventuravam nessa jornada partiam sem garantias, impulsionados apenas pela necessidade de buscar uma nova existência. Ao deixarem a Itália, a maioria desses emigrantes estava totalmente alheia ao destino que os aguardava no Brasil, descobrindo o caminho apenas ao chegar aos portos de Santos ou Rio de Janeiro.
Nos primeiros anos da emigração, durante o período de recrutamento agressivo de mão de obra, os bilhetes fornecidos pelo governo brasileiro às famílias dos imigrantes italianos eram limitados à terceira classe e, geralmente, destinados aos porões dos navios. Esses espaços, caracterizados por pouca ventilação, iluminação precária e umidade, frequentemente estavam superlotados, pois as companhias de navegação, ávidas por obter maiores lucros, burlavam as leis transportando um número de passageiros além do permitido. Após alguns dias de viagem, o odor proveniente dos porões tornava-se insuportável; uma mistura de odores de corpos pouco lavados e excrementos humanos tornava o ar irrespirável.
Nas primeiras décadas da emigração, antes da imensa onda de deslocamentos em massa, a travessia ocorria em velhos veleiros, levando cerca de 60 dias para chegar ao Brasil. Com a introdução posterior dos navios a vapor, mais rápidos e independentes dos ventos, o percurso foi reduzido para um intervalo de 20 a 30 dias.
Devido ao grande número de passageiros confinados, as condições higiênicas nesses navios eram deprimentes, favorecendo o surgimento de epidemias de doenças infecciosas como piolhos, tracoma, cólera, tuberculose e sarampo. A falta de meios para tratar os doentes resultava na perda de muitas vidas antes de chegarem ao destino final.
Dadas as condições lotadas nos porões, que se tornavam verdadeiros microcosmos de sobrevivência, e na persistente tentativa de conter a propagação de doenças, a prática de reter os corpos dos falecidos até a chegada ao Brasil para um funeral adequado era impraticável. Além disso, naquela época, ainda não havia câmaras frigoríficas a bordo. Em substituição a esse ritual póstumo, uma breve, mas comovente, cerimônia religiosa precedia a delicada procedimento de envolver os corpos em sacos de pano habilmente confeccionados com lençóis, amarrados com cordas e uma grande pedra atada aos pés do falecido. Esse gesto, por sua vez, representava não apenas uma despedida apressada, mas também uma dura realidade imposta pelas adversas condições da viagem, culminando no solene lançamento ao mar, assistido por familiares e amigos. Essa prática, mais do que um ato fúnebre, tornava-se uma dolorosa metáfora das dificuldades e dos sacrifícios enfrentados pelos imigrantes italianos durante sua travessia para o desconhecido.
Os imigrantes italianos enfrentavam dias de sofrimento devido a doenças, à perda de entes queridos e à saudade de tudo e todos deixados para trás. Para amenizar a dor e passar o tempo, era comum entoar canções tradicionais italianas. A chegada ao Brasil, para aqueles que conseguiram superar tantas adversidades e condições precárias, representava um alívio. A beleza da exuberante natureza tropical ainda preservada naquele período encantava os imigrantes, mesmo que intrigados pela presença de homens e mulheres de pele escura, geralmente empregados no porto, uma raridade na Europa daquela época. Após a extenuante viagem marítima entre a Itália e o Brasil, ao desembarcarem em Santos ou no Rio, os imigrantes italianos eram encaminhados para uma Casa do Imigrante para aguardar o prosseguimento de suas viagens para os locais de trabalho. Após alguns dias, eram designados para as fazendas que os haviam contratado, mas muitas vezes embarcavam em outros navios costeiros para trajetos ainda mais longos em direção ao destino. Alguns imigrantes seguiam para os portos de Paranaguá, no Paraná, enquanto outros se dirigiam a Desterro, em Santa Catarina. Aqueles com destino às plantações de café do Espírito Santo ou de Minas Gerais viajavam até o porto de Vitória e depois de trem para os destinos. No entanto, em determinados períodos, a maioria dos imigrantes optava por se dirigir ao movimentado porto de Rio Grande, localizado no estado do Rio Grande do Sul. Ao chegarem a esse destino, eram acomodados em modestos barracões coletivos, às vezes por períodos superiores a um mês, aguardando ansiosamente a chegada das lanchas fluviais que os levariam pelos intrincados cursos dos rios Caí e Jacuí. O destino final estava próximo das prósperas colônias Caxias, Dona Isabel e Conde D’Eu, através do primeiro rio, e da remota colônia Silveira Martins, situada no coração do estado, através do segundo. Dos portos fluviais onde desembarcavam, a jornada ainda não havia alcançado sua conclusão.
Deixando esses pontos de chegada, os imigrantes enfrentavam a necessidade de percorrer longas distâncias a pé ou em carroças, abrindo caminho através da densa floresta, ainda intocada. Nesse ambiente, a sinfonia dos cantos de milhares de pássaros se misturava aos sons imponentes e por vezes assustadores das tropas de bugios, cujo alvoroço era desencadeado pelo constante movimento da caravana.
Após horas, e às vezes dias, de trilhas sinuosas, os viajantes finalmente superavam as longas elevações, alcançando a sede das colônias. Lá, esperavam em barracões temporários, ansiosos pela atribuição de suas respectivas parcelas de terra, encerrando assim mais uma fase dessa árdua jornada rumo à construção de uma nova vida.
Essa fase adicional da viagem não apenas testava, mas aprofundava ainda mais a resiliência desses corajosos imigrantes, desafiando-os tanto na perigosa travessia fluvial quanto na difícil adaptação a uma vida completamente nova em um território estrangeiro.


Texto: Dr. Luiz Carlos Piazzetta 
Erechim RS