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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Náufragos de Almas: As Trágicas Odisséias dos Emigrantes no Mar

 



Náufragos de Almas: 
As Trágicas Odisséias dos Emigrantes no Mar



Nas águas revoltas do oceano, um lamento ecoa, 
Embarcações de sonhos, epidemias, morte e dor. 
A travessia incerta, destino sombrio a bordo, 
Levando emigrantes à sepultura nas profundezas do mar.

Em busca de novos horizontes, deixaram a terra natal, 
Mas a morte espreitava, silenciosa, implacável. 
Doenças cruéis, agouros sombrios no ar, 
Cobravam vidas preciosas, ceifando o sonho de recomeçar.

A bordo, corpos enfraquecidos, suspiros calados, 
Em meio às lágrimas, angústia e desespero. 
Enfrentavam a escuridão, a incerteza dos destinos traçados, 
Envolvidos em lençóis, ao mar profundo eram entregues, derradeiro adeus.

Pedras amarradas aos pés, símbolo triste de despedida, 
Submersos nas águas gélidas, abraçados pelo mar salgado. 
Seus nomes se perderam, suas histórias esquecidas, 
Mas o mar testemunha silencioso, guardião do passado.

Nas profundezas, suas almas vagam em eterno descanso, 
Em meio às ondas, encontraram a paz que lhes faltou na vida. 
Memórias daqueles que não chegaram ao novo lar, 
Nas águas vastas do oceano, eternamente entrelaçadas.

Lembramos dos que partiram, das vidas interrompidas, 
Das epidemias avassaladoras, das doenças cruéis. 
Honramos a coragem e a esperança, mesmo diante das despedidas, 
Erguemos nossos olhares ao céu, lembrando que o sonho é fiel.

Que suas histórias sejam contadas, lembradas com carinho, 
Esses emigrantes corajosos, que enfrentaram a travessia dura. 
A bordo da esperança, lutaram contra o destino mesquinho, 
Seu legado vive em nós, mesmo na sepultura obscura.

E assim, perpetuamos a memória daqueles que se perderam, 
Honrando a bravura e a resiliência que carregaram consigo. 
Nas ondas do tempo, suas vozes ecoam, jamais desvanecem, 
As epidemias, as doenças e as mortes não apagam seu abrigo.

de Gigi Scarsea
erechim rs



quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Torna Viagem

 


A longa viagem transoceânica, enfrentada pelos nossos antepassados na ânsia por uma vida melhor, foi sem dúvida uma empreitada repleta de situações de risco. Entre elas as doenças transmissíveis que surgissem a bordo podiam rapidamente se transformar em sérias epidemias impossíveis de serem controladas.

Os imigrantes italianos que chegavam ao Brasil  já a partir das últimas décadas do século XIX, deviam obrigatoriamente, como também todos aqueles de outras nacionalidades, passar por uma inspeção de saúde e vistoria das embarcações para o controle de epidemias que pudessem ter ocorrido a bordo, durante a longa travessia. 

Centenas de pessoas mal nutridas, amontoadas em velhos e lentos navios, dividindo, por várias semanas, reduzidos espaços abafados devido a má ventilação, sem instalações higiênicas adequadas e com insuficiência de água para a higiene pessoal, se tornavam presas fáceis para a eclosão e disseminação de doenças infecciosas graves, as quais podiam levar a morte em poucos dias, tais como o tifo, o cólera e outras doenças infantis que causaram inúmeras perdas de vida.

Pensando na proteção da saúde da população das nossas cidades, o governo imperial brasileiro decretou que a entrada de imigrantes no país deveria ser realizada somente pelo porto do Rio de Janeiro. Para isso, construiu na Ilha das Flores uma Hospedaria para Imigrantes, um Lazareto e o Hospital de Isolamento de Jurujuba, tudo com o propósito de minimamente acolher os enfermos e os portadores de moléstias contagiosas em um regime de quarentena.

Por acordos internacionais, os navios que transportavam grande número de passageiros  deveriam sempre ter um médico responsável a bordo e quando surgisse alguma epidemia ele deveria obrigatoriamente informar as autoridades portuárias, no momento do desembarque. Também por esse acordo as companhias de navegação marítima eram obrigadas a manter um relatório minucioso e atualizado dos casos médicos e óbitos ocorridos durante todo o período da viagem. Este relatório, assinado pelo médico de bordo, deveria ser entregue às autoridades sanitárias do porto de desembarque. 

Se em algum navio surgisse alguma epidemia, o capitão deveria, ao entrar no porto, hastear uma bandeira de cor amarela no mastro da embarcação, para indicar a presença de doenças transmissíveis a bordo.   

Esses navios com doenças transmissíveis a bordo não recebiam permissão para atracar no porto e deveriam se manter ao largo, longe da costa, até a decisão das autoridades portuárias, após inspeção pelo serviço sanitário brasileiro. Nos casos que os doentes encontrados eram em grande número, excedendo as capacidades de atendimento organizado pelas autoridades sanitárias do porto, a solução encontrada foi proibir definitivamente a atracação do navio, o qual deveria retornar ao porto de origem, com toda a sua carga de imigrantes. Era a cruel ordem de torna viagem que ninguém queria ouvir. 




Nesses casos extremos os navios eram reabastecidos de água potável, medicamentos e víveres para enfrentarem a longa e frustrante viagem de retorno. Muitos foram os imigrantes italianos que tiveram assim abruptamente interrompidos os seus sonhos de uma nova vida. 

Esse foi o triste destino de quatro navios com imigrantes italianos que chegaram ao Brasil entre os meses de agosto e setembro de 1893, ocasião em que grassava uma grande epidemia de cólera na Europa. 

O navio Remo chegou no porto do Rio de Janeiro  zarpando do Porto de Gênova, fazendo uma escala em Nápoles para o embarque de mais passageiros, todos imigrantes com destino ao Brasil. Transportava um número excessivo de passageiros, muito além da capacidade nominal estabelecida para aquele tipo de navio. Transportava um total de 1494 passageiros, a maioria imigrantes.  Na travessia surgiu uma grave epidemia de cólera a bordo, ocasionando várias mortes. Ao chegar no Brasil não recebeu permissão para entrar no Porto do Rio de Janeiro recebendo ordens das autoridades portuárias para permanecer ancorado longe da costa. Após a inspeção realizada pelas autoridades sanitárias do porto foi obrigado a retornar para Itália com todos os seus passageiros e tripulação. 

O navio Andrea Doria chegou ao Porto do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1893 pelos mesmos motivos também não obteve a permissão para desembarcar os seus passageiros. Durante a travessia tinham ocorrido 91 casos de cólera a bordo e assim o navio recebeu a ordem de retornar ao porto de origem, frustando todos aqueles imigrantes e suas famílias. 

No dia 16 de setembro do mesmo ano foi a vez do navio Vicenzo Florio ser proibido de desembarcar os seus passageiros devido o surgimento de uma epidemia a bordo enquanto atravessava o oceano com destino ao Brasil. Este navio também foi proibido de desembarcar os passageiros ou qualquer membro da tripulação e teve que empreender a viagem de volta ao porto de origem.

No dia 24 de agosto de 1893 o navio italiano Carlo R. chegou ao Porto do Rio de Janeiro com o triste saldo de 100 mortos a bordo causados por um epidemia de cólera e um número muito maior de doentes contaminados. Relatos das autoridades sanitárias e portuárias brasileiras que vistoriaram esse navio nos dão conta que dele exalava um odor insuportável. Não podendo desembarcar seus passageiros no Rio de Janeiro, recebeu ordens de retornar para o porto de origem, levando consigo toda aquela carga de doentes e os seus sonhos de uma nova vida.




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS





sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A Odisséia da Emigração Italiana



“Às duas horas da manhã do dia 6 de setembro, no porão 2, nos braços de seus pais, uma menina de 7 anos morreu, e logo foi jogada ao mar. Às 9 horas, uma menina de 11 meses deixou de viver; esta tinha sido internada no hospital e, assim que morreu, foi jogada ao mar, o médico e os passageiros presentes. Esta é uma das passagens mais dramáticas do livro A Odisséia do Steamer Remo, um livro de memórias escrito por um passageiro em fevereiro de 1894, poucos meses após o fim da viagem que custou a vida de 96 emigrantes italianos, de cólera, tifo e difteria. O volume é pouco conhecido pela historiografia e praticamente desconhecido do grande público, com exceção de um parágrafo do livro Odissee do jornalista Gian Antonio Stella; no entanto, seria muito útil republicá-lo e torná-lo conhecido, para fornecer novos instrumentos de reflexão a um debate público que, sobre essas questões, atingiu picos de rara ignorância sobre quais são os fundamentos da identidade italiana, forjada não pouco nas tragédias da emigração. , com sua carga de exploração, falsas promessas, violência e retrocessos aos portos. 

O navio a vapor Remo zarpou de Gênova em 15 de agosto de 1893, dois dias antes de outra tragédia da emigração italiana, o massacre de Aigues Mortes, quando 500 franceses irados massacraram trabalhadores italianos acusados ​​de roubarem seu pão. Muitos dos passageiros do navio vieram da planície inferior de Modena, que foi duramente atingida pela crise agrária do final do século XIX. Só no ano de 1888, 415 pessoas emigraram do Município de Cavezzo (de uma população de 4.876 habitantes). Uma investigação realizada no ano seguinte no município de Mirandola explicava as razões deste enorme êxodo, “até então desconhecido numa terra que sempre deu aos seus habitantes um sustento”. As principais causas desta fuga de braços foram «a miséria e a falta de trabalho para os diaristas e operários. A maior parte dos camponeses do nosso campo, repleto de numerosas famílias - lê-se no relatório -, são dormitórios e carecem de um trabalho diário seguro e lucrativo para si e para a sua família. "Nossos trabalhadores preferem emigrar na incerteza de uma renda segura, convencidos de que não encontrarão miséria maior do que a que têm em casa ”. “No ano passado - o jornal mensal local, escreveu o Indicador Mirandolês em 1889 - famílias inteiras de nossos camareiras colonos com seus parcos utensílios domésticos partiram para Gênova para embarcar lá para as longínquas praias do Brasil e do Prata. Portanto, nós também fomos testemunhas oculares deste deplorável flagelo da emigração, que já há muito tempo aflige muitas outras partes da Itália. Essa praga está crescendo cada vez mais a cada dia e ameaça assumir formas contagiosas. O êxodo desconsolado dessa população rural - concluiu amargamente o escritor - entre os quais vimos velhos decadentes, mulheres grávidas, crianças chorando de frio e de fome que, perdidas, fugiam de sua pátria ingrata e rumaram para o exterior em busca de destinos melhores, sem garantia certa, formando o mais desolador dos espetáculos, que deve também dar a pensar a todos aqueles que se preocupam seriamente com os interesses nacionais ”. 

Hospedaria da Ilha das Flores

Se a miséria era a causa das partidas, os agentes da emigração, que com seus discursos, folhetos e livrinhos tranquilizavam sobre as condições da viagem e exageravam as oportunidades oferecidas pelos países de chegada  tirando  as dúvidas e muitas vezes escondendo a verdades bem claras para aqueles que organizavam esse tráfico de homens; em primeiro lugar, que a viagem muitas vezes se revelava a própria e verdadeira odisseia, depois os frequentes casos de engano, ilícito e abusos de poder contra quem havia decidido mudar de vida deixando o seu torrão natal. No início dos anos noventa do século XIX, existiam dois agentes que operavam na zona entorno a Mirandola. O primeiro foi o Capitão Celso Ceretti, conhecido garibaldiano e anarquista, representante da Companhia Geral de Navegação, que segundo o Indicador Mirandolês estava fazendo "excelentes negócios". O segundo foi o tipógrafo e editor Candido Grilli, agente da Companhia de Navegação La Veloce de Gênova, que ao contrário tinha "pouco sucesso". 

“Do nosso município - lê-se na edição de agosto de 1891 - mais de 300 pessoas já partiram este ano com a Sociedade de Navegação Geral com as viagens e alimentação pagas até o Brasil. Muitos outros estão se preparando para a partir, a qual  acontecerá assim que concluída a colheita no campo". 

Um desses emigrantes foi Cesare Malavasi, natural de Cavezzano, autor do livro impresso pelo agente e editor Grilli. Chegando com a mulher ao porto de Gênova, Malavasi teve que "dar uma boa gorjeta" para os carregadores embarcarem a bagagem, que ultrapassava o peso permitido. A maioria dos emigrantes esperava a partida num grande salão, sentados ou deitados no chão: «Uns comiam, outros dormiam. Vi mulheres que, cansadas dos sofrimentos e da insônia das noites anteriores, dormiam numa espécie de sono letárgico; e crianças pequenas que, sem o seu conhecimento, sugavam o leite do peito. Havia choros, gritos, gemidos e palavrões em mil disfarces, causados ​​por diferentes motivos. Fiquei maravilhado com aquela visão, com aquele espetáculo e, se bem me lembro, nunca havia sentido essa emoção em toda a minha vida ”. 

No dia 15 de agosto, às 3h30 da tarde, os 900 passageiros embarcaram, depois que uma comissão de saúde "examinou, fez a vacina de varíola nas crianças e examinou os outros emigrantes em geral". O navio tinha uma tonelagem de 2.964 toneladas, tinha 100 metros de comprimento e 12 de largura e foi construído em 1891 no estaleiro Ansaldo, em Sestri Ponente, com o nome de Michele Lazzaroni, por encomenda da empresa Mazzino de Gênova. Ele tinha 60 lugares na primeira classe e 900 na terceira classe. Em 1892, o mesmo proprietário o rebatizou como Remo.  

Os que estavam partindo conheciam superficialmente os detalhes da travessia, mas, neste caso, os viajantes foram deixados propositalmente no escuro sobre um detalhe decisivo, isto é, que o primeiro destino era Nápoles, onde grassava uma epidemia de cólera. Os temores de alguns passageiros mais bem informados foram até desmentidos, sem o mínimo pudor, por um agente de emigração.

O navio ancorou às 4,10 da tarde e pouco antes da meia-noite de 16 de agosto embocou no porto de Nápoles, onde entrou no dia seguinte. Outros 700 passageiros e uma grande quantidade de mercadorias foram embarcados, incluindo 400 barris de vinho. Os novos emigrantes eram vistos com desconfiança, pois além de reduzirem espaço e alimentação, aumentavam o risco de doenças. 

Na noite de 17 de agosto, o navio partiu. Depois de cruzar o estreito de Gibraltar, em 21 de agosto, o navio enfrentou as ondas "furiosas e violentas" do oceano. «Quando apareceram no convés, quase todos ficaram mareados; gemidos foram ouvidos, contorções e esforços causados ​​pela forte ânsia de vômito, de ficar horrorizado. O café foi distribuído, mas quase ninguém - escreve Malavasi - conseguiu tirar proveito dele, e o mesmo vale para todas as outras comidas servidas naquele dia”. Após a parada em Nápoles, a comida servida começou a diminuir e a piorar, em meio a protestos dos passageiros. A partir de 24 de agosto, “eclodiram discussões e lutas pela ocupação dos postos”. Uma delas envolvia Rosalia Biscuola, uma concidadã de Malavasi. Subindo ao convés para ocupar o lugar dos dias anteriores, encontrou-o ocupado «por uma mulher do sul; ela implorou que se retirasse, mas a mesma se recusou. La Biscuola colocou as suas roupas, mas a sulista por três vezes refutou-as com insistência. A minha ousada compatriota zangou-se, atirou-se sobre a adversária e deu-lhe uma forte série de socos. Se a sulista não tivesse carregando uma criança nos braços, que servia de escudo, ela teria levado mais. Outros sulistas ao mesmo tempo ajudaram a colega, e a essa altura a ousada cavezzese já teria levado a pior. Mas a sorte quis que, naquele momento, eles também não tivessem a intenção de brigar por aquele motivo, de modo que o incidente passou despercebido ". 

A partir de uma pesquisa no Arquivo Histórico Municipal de Cavezzo, verifica-se que em junho de 1893 o marido da fogosa Rosália, Teodorico Lugli, 42, agricultor, havia pedido passaporte para viajar ao exterior com seu sobrinho Ildegardo Lugli para São Paulo, com "certeza de emprego". Tendo conseguido um emprego lucrativo, Tedorico pediu a Rosália (casada em segundo casamento) e sua filha, Ernesta Lugli, que se juntassem a ele. No arquivo histórico municipal encontram-se muitos outros pedidos de passaporte da época, entre os quais o de Brunechilde Minelli, embarcado no vapor Remo com as filhas Maria e Ida (ou Iva).

A viagem continuou em meio a graves inconvenientes, maus-tratos, perseguições por parte dos oficiais do navio e brigas furiosas. Quatro toscanos que estavam tentando persuadir outros emigrantes a não comparecerem para a receber a ração foram amarrados a grandes correntes da âncora em uma prisão sob a proa.

A comida era ruim. No dia 2 de setembro, pela manhã, foi servido um café "muito parecido com água quente". Às 11 horas, a distribuição de «pequenos macarrões indevidamente chamado, de "in brodo"; e para prato principal, um pouco de carne cortada em pedaços muito pequenos. A outra ração consistia em um pouco de arroz, muito comprido e que não serve para nada, e carne salgada cozida, acompanhada de lentilha”. Outras vezes serviam grão-de-bico, batata, atum e salada, "baccalà in umido"e outras imundícies, que eram não só de mau gosto, como também faziam muito mal à saúde de todos, produzindo diarréia, disenteria, com dores na maioria de passageiros com dores tais de fazer você rastejar".

Com a aproximação da "terra prometida", uma grande agitação se espalhou pelo Remo. Todo mundo estava falando sobre a América, agora apenas alguns dias de distância. Alguns estavam começando a pensar que os sonhos de riqueza - ou pelo menos de progresso tangível na própria condição humilde - estavam para se tornar realidade; outros se limitaram a planejar a viagem de Santos, porto de desembarque, à São Paulo, destino final de muitos emigrantes. Para economizar tempo, alguns chegaram a pensar em pagar do seu próprio bolso por esta última etapa da viagem, ao invés de aproveitar o transporte gratuito oferecido pelas agências de viagens. O clima de grande euforia foi abruptamente interrompido no dia 6 de setembro, com a notícia (que mencionei no início) da morte de duas meninas, atiradas ao mar na presença de seus parentes desesperados. Mas para a carga humana do navio a vapor Remo foi apenas o começo.

“Chove muito, o frio é forte, é um desconforto geral, principalmente para mulheres e crianças. Ao anoitecer, o médico foi chamado para visitar um passageiro de Catanzaro gravemente doente no primeiro porão, andar inferior. Quando o médico veio, após um exame minucioso, disse que era indigestão de água. Estou muito convencido de que aquele seguidor de Esculápio havia entendido bem que era cólera quase fulminante, mas ele tinha um bom motivo, se não queria colocar a apreensão a bordo! Ele ordenou que fossem preparados conhaque, marsala e caldo para o paciente, e antes das 20h foi transportado para o hospital"..

Na manhã do dia 7 de setembro, foi avistado o farol de Cabo Frio, no Brasil. A navegação continuou, no sentido sudoeste, em direção ao Rio de Janeiro e Ilha Grande. Quando o navio estava a apenas 70 milhas de distância, dois sulistas adoeceram "de cólera, de modo que todos os outros foram dispensados ​​do hospital, do qual ninguém estava gravemente enfermo, com exceção do passageiro de Catanzaro, que deixou de viver às 2 da tarde". Ao anoitecer o navio parou na Ilha Grande, aguardando o exame médico. No dia seguinte, uma comissão de saúde chegou com um pequeno navio a vapor, ordenou ao comandante do Remo que voltasse 20 milhas, para lançar o corpo do  passageiro de Catanzaro ao mar antes de retornar ao porto. Aqui o pequeno navio a vapor esperava por outros procedimentos  sob a ameaça dos canhões de um encouraçado brasileiro. Na noite entre 8 e 9 de setembro, um homem e uma mulher foram hospitalizados com sinais claros de cólera. Então, pela manhã, veio a notícia que lançou a todos no mais profundo desespero. O governo brasileiro decidiu rejeitar os emigrantes italianos em bloco. 

Não foi o primeiro navio a sofrer este destino e também não foi o último. Muitos navios italianos tiveram negada a possibilidade de atracar. Também por isso, muitos outros italianos morreram durante as travessias da esperança. Por exemplo, foram centenas de mortes por cólera entre os 1.333 passageiros do Matteo Bruzzo, rejeitado com tiros de canhão pelas autoridades uruguaias e forçado, como o Remo, a acabar com a epidemia vagando pelos mares e jogando os cadáveres no oceano. Os casos de acidentes com esses vapores eram tão frequentes que o termo "navios da morte" passou a ser usado para defini-los. O navio a vapor Carlo Raggio, colocado em quarentena na baía da Ilha Grande junto com o Remo, teve 211 mortes por uma epidemia de cólera e sarampo. Neste mesmo navio, outros passageiros já haviam morrido de fome seis anos antes.

No Remo, na noite entre 9 e 10 de setembro, "um calabres  que se encontrava no convés, teve uma congestão cerebral, caiu da sala que ficava na primeira espera. Ao se levantar três ou quatro vezes, ele caiu outras vezes, batendo com tanta força no chão de ferro que parecia impossível não quebrar seu crânio. Chamado com urgência o chefe do porão, apelou aos conterrâneos do desafortunado, que, embora com relutância, esbanjaram-lhe os cuidados indicados para tal acontecimento”. 

Durante a noite também faleceu o filho de um certo Primo Luppi de San Prospero (Modena). "De manhã, no rosto de cada um podia ler-se dor e tristeza; muitos tinham o rosto molhado de lágrimas: mas era preciso resignar-se ao destino adverso ", comentou Malavasi.

O navio foi abastecido com água e comida, incluindo 13 bois, farinha, galinhas e macarrão. Em 12 de setembro, morreu um piemontês que tinha mulher e dois filhos a bordo, e um sulista, de cerca de 60 anos e um filho, no terceiro porão. Então o filho de um certo Angelo Bosi de Disvetro, uma fração do município de Cavezzo, estava em estado grave. Antes da noite, Clementina Meschiari, também da fração Disvetro, também adoeceu com uma forte febre. "Consultada pelo médico, foi-lhe receitado um determinado medicamento que desta vez restaurou a sua saúde." 

"Antes do anoitecer apareceu um pequeno barco a vapor rebocando uma lancha, trazendo medicamentos e a notícia de que as provisões solicitadas chegariam no dia seguinte". Às 8 da noite, o encouraçado de guerra levantou as âncoras e deixou apenas a tripulação do Remo.

Na manhã de 13 de setembro, uma certa Filomena Garuti, esposa de Angelo Bosi, foi levada ao hospital "por vômitos, diarréia e câimbras.  Na mesma hora, o vapor Andrea Doria, que chegou aqui ontem, passou perto de nós e foi dar sepultamento para os cadáveres que ele tinha a bordo; o conhecido barco a vapor que nos trouxe a completação da água também chegou... Uma vêneta às 16 horas  pediu ao médico para ele consultar o marido hospitalizado; ele a princípio se opôs, depois a alertou sobre a morte da esposa de seu amante. Nessa época, uma certa Mazza Cleonice de Cavezzo adoeceu, com disenteria e vômitos, e foi consultada pelo médico. Ao cair da noite, soube-se que Garuti Filomena tinha piorado e que Mazza tinha sido estado hospitalizado ”.

Malavasi também nos deixou uma amostra interessante do estado de espírito dos passageiros: “Vi homens e mulheres decididos a ler e meditar sobre as coisas sagradas; Vi outros que se ocupavam com leituras profanas e até obscenas; mulheres que rezaram o rosário durante a maior parte do dia, e outras que investiram contra seus filhos e maridos, lançando contra eles as mais torpes vilanias; maridos que amaldiçoavam seus filhos e esposas vomitando as mais atrozes blasfêmias. Finalmente, ouvi a viúva do piemontês [...] articular as orações fúnebres aos seus dois ternos filhos e ao pai falecido. Uma variedade semelhante de coisas e fatos me comoveu profundamente"

Na noite de 13 de setembro, o Remo zarpou para a Itália. Na manhã seguinte “para alguns foi dada a permissão de abrir o baú e tirar peças de roupa, porque as roupas usadas pela maioria não só estavam imundas, mas também infestadas de insetos asquerosos. Não faltaram mortes [...]. Estamos nas hora antes do meio dia  de 15 de setembro e uma charmosa menina de 7 anos morre de cólera; no terceiro porão, outro morreu e uma mulher estava gravemente doente. Em uma tarde Mazza Cleonice deixou de viver: no hospital estavam doentes e mortos. Agora o tifo e a difteria se associaram ao cólera e todos com verdadeiro heroísmo aguardam a vez de morrer, pois acreditavam que é moralmente impossível que pessoas maltratadas, esgotadas das finanças, sofram pela perda, algumas do pai, outras do marido, que da esposa, alguma do irmão, ou do amigo, pode ter força suficiente para sobreviver a tantas calamidades”. Nos dias seguintes a situação não melhorou: 

Muitos são os que adoecem no dia 16 de setembro e, consequentemente, são hospitalizados, e a bordo corre-se o boato de que seis tinha ido servir alimento para os peixes. A uma hora da tarde se soube pelo Comissário que tanto Garuti Filomena como o seu filho tinham pagado a inefável homenagem à natureza. Agata Tozzini também deixou de viver pelo cólera, apesar do fato de seu marido Pietro Naldini, de Calci (Pisa), com excepcional favor, ter descido ao hospital, era talentoso, a esbanjar todas as curas, durante o transcurso da doença. Havia muitas crianças doentes na terceira e quarta estiva na manhã de 17 de setembro, e às 10 horas se adoentava novamente Meschiari Clementina, que tinha a bordo seu marido Pivetti Primo e um filho de apenas cinco meses. O marido com muita dor foi ao médico, e somente à 1 hora da tarde ele conseguiu permissão para encontrá-lo. A Meschiari tinha disenteria, dores intestinais, perda de apetite, aperto no estômago e teve uma crise de febre. [...] O relógio de bordo marcava 17 horas quando se agravou o quadro clínico de Meschiari, somando-se também vômitos e câimbras, pelos quais ela teve que ser hospitalizada. Antes de se retirar, seu marido Pivetti, por ordem do médico, trouxe o bebê Tonino ao hospital para que sua mãe pudesse amamentá-lo, mas logo em seguida ordenou que o retirasse e o levasse para seu beliche". 

Em 23 de setembro também faleceu Clementina Meschiari. Ao marido, "imerso em dores, restou a tarefa de prosseguir, tanto de dia como de noite, com todos os cuidados necessários ao filho pequeno Tonino, que, por falta de leite, estava extremamente enfraquecido"

Nos últimos dias de setembro, quando o navio se preparava para entrar no Mediterrâneo, a epidemia começou a diminuir de intensidade, mas os mortos já se somavam 76. No dia 29 de setembro o navio fez escala em Tenerife, depois partiu para Asinara, onde os passageiros seriam colocados em quarentena. Naqueles dias também morreu a pequena Iva Flandoli, que partiu com a mãe e a irmã para se reencontrar com o pai. O Remo chegou à ilha no nordeste da Sardenha na manhã de 6 de outubro. Seis grandes fossos, com três metros de profundidade, foram cavados em Asinara para recolher os mortos de quatro navios atingidos por epidemias (além do Remo, o Carlo Raggio, o Vincenzo Florio e o Andrea Doria). No dia 7 de outubro, foi iniciada a desinfecção do navio. Os doentes foram transportados para o hospital, enquanto os passageiros saudáveis ​​foram encaminhados para desinfecção. Às 10h30 do dia 14 de outubro, outro navio a vapor também rejeitado pelo Brasil chegou à ilha, o Vincenzo Florio, com 19 mortes e com possibilidades de aumentarem.

Após as operações de desinfecção, o navio partiu para Nápoles, após o sinal verde de uma comissão de saúde. Antes de partir, porém, alguns passageiros do sul enviaram uma carta ao prefeito napolitano denunciando os tratamentos sofridos durante a travessia. Enquanto isso, Malavasi fora nomeado, junto com outros dois passageiros, para uma comissão encarregada de apresentar ao capitão do navio as reclamações coletadas entre os passageiros. 

O navio chegou a Nápoles no dia 18 de outubro e de lá, no dia seguinte, partiu inesperadamente para Nisida. O prefeito, ao receber a carta, ordenou de fato uma investigação imediata, confiando-a à Autoridade Portuária de Nápoles. A comissão responsável interrogou vários passageiros e marinheiros. Numerosas irregularidades e árbitrios emergiram da investigação. Um certo Luigi Pedrazzi de Cavezzo, por exemplo, tinha pedido repetidas vezes ao subcomissário do navio que lhe pudesse abrir a mala para tirar roupa, obtendo sempre uma resposta negativa. Pedrazzi pediu então a sua concidadã Maria Zucchi que se apresentasse ao vice-comissário declarando por sua vez que precisava abrir um baú, contando com o fato, escreve Malavasi, “que as mulheres, especialmente se forem bonitas, muitas vezes são chaves poderosas que todos destravam". O oficial concordou, mas quando Pedrazzi também apareceu para a nomeação, o vice-comissário, "amargurado", desafiou-o "para um duelo, deixando-lhe a escolha das armas". Também descobriu-se que alguns passageiros foram maltratados e que dinheiro e alimentos foram roubados de outros. 

A comissão de inquérito realizou rapidamente os seus trabalhos e na manhã de 22 de Outubro foram levantadas as âncoras da enseada de Nisida para Nápoles, onde desembarcaram os sulistas, e depois para Gênova. Na manhã de 26 de outubro, os últimos passageiros desembarcaram no cais. Se a dramática história do Remo tivesse acabado, a miséria dos passageiros continuaria. “A maioria - concluiu Malavasi desconsolado - parecia sentir alívio e revigoramento ao narrar, sem a menor reticência, a miséria em que logo se encontrariam: sem pão, sem teto, na impossibilidade de ganhar um centavo, sem saber o que fazer para saciar a fome deles, de suas esposas e de numerosos descendentes. Não são palavras, são fatos, e fico horrorizado a cada momento que os meus pensamentos voam para esses momentos de tanta miséria, de tanto desânimo"



sábado, 12 de setembro de 2020

As Condições Sanitárias e as Epidemias a Bordo dos Navios de Emigrantes

Emigrantes no Porto 
Eram denominados pelas companhias de navegação da época, de tonelada humana aqueles milhares de pobres emigrantes que deixavam a Itália depois da metade do século XIX. As condições de vida que esses pobres emigrantes encontravam à bordo eram ainda muito mais precárias do que eles haviam pensado. Agachados no convés, perto da escada, com o prato entre as pernas e um pedaço de pão entre os pés, comiam como mendigos à porta dos conventos. Assim descreveu  em 1908 o que pode ver um inspetor de saúde nos navios de emigrantes. Ele continua dizendo que aquilo era uma grande humilhação e um grave perigo sob o ponto de vista sanitário pois, todos nós podemos imaginar como devia ficar um convés de navio à vapor, no meio do oceano, jogado pelos fortes ventos, enfrentando grandes ondas, onde todo o lixo e dejectos humanos se misturam se espalhando perigosamente por todos os cantos. 

Navio super lotado 

A grande emigração italiana, no período compreendido entre os anos de 1876 a 1915, envolveu diretamente mais de 14 milhões de homens, mulheres e crianças, expulsos de suas casas pela fome, desemprego e falta de perspectiva no futuro, muito  especialmente, depois da crise agrária surgida após 1870. Esse verdadeiro êxodo é somente comparável aquele da fuga dos hebreus do Egito, contados pela bíblia, despovoou inteiras vilas e pequenas cidades do norte e do sul da Itália. No início as mais atingidas eram apenas as comunidades de montanha que precisaram emigrar, pois o tipo de agricultura que praticavam nesses locais era muito atrasada, dando somente para a subsistência, não suportava mais o crescente aumento populacional, agravados por seguidas frustrações de safras por fenômenos naturais, como avalanches e inundações. 

Emigrantes no porto de Gênova 

Primeiramente, nos primeiros 10 anos desse período,  observamos a quase exclusividade da emigração masculina, essa por vários séculos,  já acostumada a migrações sazonais para outros países da Europa, como a França e a Alemanha, mais ricos e desenvolvidos, mas, sempre após algum tempo de permanência, retornavam para as suas casas. Com o crescente agravamento da situação econômica da Itália, os homens passaram emigrar de forma definitiva, mas, desta vez  para países longínquos situados do outro lado do oceano e, logo após conseguirem uma colocação de trabalho, chamavam as esposas, filhos e o restante da família para os encontrar na nova pátria. 

Depois de 1901, mais de 500.000 italianos deixavam a pátria a cada ano, a maioria deles tendo como destino os Estados Unidos e em sua maioria esse torrente humana era constituída de moradores das regiões ao sul da Itália. Os muitos registros da época nos contam da triste partida de navios levando cada um centenas de pobres camponeses e artesãos. 

Epidemia de cólera a bordo

O abastecimento de água nos precários cargueiros apressadamente transformados navios para passageiros era geralmente mantido em barris que eram enchidos na partida.  Caso essa provisão de água fosse contaminada  durante a navegação ou, mesmo, se o alimento fosse contaminado durante o preparo, o risco de propagação da uma grave epidemia entre passageiros e tripulantes seria rápido. As condições higiênicas à bordo desses barcos eram muito precárias especialmente pelo fato deles não terem sido construídos para o transporte de seres humanos mas, sim de mercadorias. Animais vivos também eram embarcados, eles serviriam de alimento para os passageiros e tripulação, eles conviviam nos porões, confinados em jaulas construídas para esse fim. Durante a travessia eles seriam sacrificados à bordo, usando a pouca água disponível para a limpeza, a inexistência de meios adequados para a conservação da carne e a precária higiene  do pessoal de serviço, sendo assim muito grande a possibilidade de contaminação e o aparecimento de uma epidemia. Geralmente, em um ambiente tão restrito como os estreitos alojamentos, sem instalações sanitárias adequadas, com pouca água para a limpeza e sem suficiente ar circulante, onde as pessoas, principalmente, nos porões da terceira classe dos navios, viviam em estreita promiscuidade, as possibilidades de contágio acabavam se somando. 

Os emigrantes no Porto - quadro de Arnaldo Ferragutti 

Em diversas ocasiões surgiram epidemias devastantes que ceifavam a vida dos mais debilitados, as crianças e os mais velhos. Em 1884, no vapor Matteo Bruzzo, que se dirigia para Montevideo com 1333 passageiros à bordo surgiu uma epidemia de cólera que matou 22 passageiros, não tendo permissão para embarcar naquele porto, tendo que retornar para a Italia. O cólera já tinha se manifestado na cidade de Genova, o porto de origem, mas, foi mesmo assim dada a ordem de zarpar. Os operadores de transporte já tinham o conhecimento que a Argentina e o Uruguai já haviam declarado o fechamento dos seus portos para navios provenientes daquele destino. Pensaram que pudessem ficar à bordo em quarentena, o que acabou não acontecendo. Por este fato podemos avaliar a maneira superficial que as companhias de navegação trataram a questão saúde dos emigrantes. 

Passageiros embarcados em navios superlotados 

Nessas longas viagens que levavam os emigrantes não havia somente o perigo de epidemias de cólera, mas também, de febre tifóide, sarampo, difteria e infecções por tuberculose. O navio Carlo Raggio, no ano de 1888, quando em uma das suas viagens para a América do Sul teve 18 de seus passageiros mortos pela fome. Alguns anos depois, em 1894, o mesmo navio contabilizou 206 mortes de passageiros devido principalmente à fome, epidemias de cólera e sarampo. A epidemia desta última doença também foi a causa da morte de 34 passageiros do navio Pará no ano de 1889. 

Emigrantes no convés do navio quadro - quadro Oceano, de Arnaldo Ferragutti 

As condições da vida nos porões e conveses desses navios de emigrantes, onde eles se aglomeravam na mais precária falta de higiene, foram de tal maneira duras para ficarem marcados indelevelmente, muitos anos após na memória daqueles pobres emigrantes e de seus descendentes. No vapor Cachar, com 2000 emigrantes para o Brasil, durante a travessia aconteceram 34 mortes por fome e asfixia. As condições de ventilação nas repartições coletivas da terceira classe eram dramáticas e causavam muitas mortes entre os passageiros. No navio Frisia, com destino ao Brasil no ano de 1889 teve 27 mortos durante a travessia e mais de 300 que adoeceram. Em 1894, no navio Andrea Doria com 1317 passageiros ocorreram 159 mortes e no vapor Vicenzo Florio, com 1321 passageiros, mais 7 mortes. As precárias condições de viagem nesses navios eram conhecidas das autoridades italianas, principalmente pelas cartas com os relatos dos emigrantes. Mesmo assim as companhias de navegação marítima não tiveram problemas para completar a carga, eles enchiam os barcos com mais pessoas que a lotação oficial. 

Emigrantes amontoados a bordo 

Nessa época da grande emigração italiana não existiam ainda os antibióticos e as vacinações para difteria muito deficiente. Para se ter uma ideia do que acontecia com esses pobres infelizes, segue alguns relatos de passageiros dessa viagem. Assim em 1893, a bordo do vapor Remo tendo como destino o Porto do Rio de Janeiro, Brasil, com 1500 emigrantes embarcados, dos quais um grande número deles provenientes de Modena e outras províncias emilianas vizinhas, aconteceram 96 mortes por difteria e cólera. Nos relatos desses emigrantes nos contam que:  "a maioria dos emigrantes ficava sentada ou deitada no chão do navio, enquanto uns dormiam outros comiam". Esse relato continua:  "que o navio zarpou de Gênova em direção a Nápoles, onde por sua vez foram embarcados outros 700 passageiros, atingindo o total de 1500 emigrantes a bordo. Essa super lotação se tornou insuportável e deu origem, ainda no início da viagem, a protestos contra a companhia de navegação e brigas entre aqueles vindos do norte com os que partiram do sul da Itália. Em um cartaz afixado por eles em respirador de popa e encontrado mais tarde estava escrito protestos contra a companhia de navegação". O mesmo relato nos diz que "a comida servida a bordo era muito pobre, o café que serviam, era pura água quente. Na refeição das 11 horas era distribuída uma pequena porção de macarrão em um caldo aguado. A carne servida era pouquíssima e já cortada. Uma outra ração que também era servida em outras ocasiões consistia de um pouco de arroz, com carne salgada cozida e um pouco de lentilhas. Essa pobre alimentação causava dores abdominais e copiosas diarréias. Tudo isso era somado ao desconforto causado pelas condições do mar tropical com fortes e contínuas chuvas. 

Oceano - quadro de Arnaldo Ferragutti 

Os passageiros expostos às intempéries no convés do navio super lotado, tendo que sobreviver às disputas com outros passageiros e autoridades de bordo". Quando em 7 de Setembro de 1893 o vapor Remo estava para ancorar no Porto do Rio de Janeiro, pelo fato de ter havido uma epidemia, com vários mortos à bordo, as autoridades locais do Brasil estavam avaliando a possibilidade de proibir a atracação e ordenarem o retorno para o porto de origem, na Itália. Muitos daqueles imigrantes tinham vendido o pouco que possuíam para comprar os bilhetes da viagem, outros tinham deixado tudo para se reunirem com os cônjuges de filhos já no Brasil. Podemos imaginar a aflição que tomou posse desses passageiros, que após enfrentarem uma viagem tão desesperadora, com tantos problemas, foi anunciado que não poderiam entrar no Brasil. 

Emigrantes amontados no convés do navio durante a travessia 

Na manhã do dia 15 de Setembro, o navio Remo zarpou com destino à Itália com toda a sua carga de sofrimento humano. No dia 4 de Outubro após 50 dias de navegação, sem nunca terem desembarcado, m uma viagem tão dura como a de ida para o Brasil, aqueles pobres emigrantes foram mandados, pelas autoridades italianas, para a Ilha de Asinara, na Sardenha, onde desembarcaram. Ficaram em um período de quarentena e após 10 dias o navio retomou viagem primeiro para Nápoles, onde os passageiros meridionais foram desembarcados e depois rumou para Gênova, onde atracaram em 26 de Outubro. Viagem total de ida e volta do Brasil durou 70 dias e custou a vida de 96 passageiros e algumas centenas de doentes. 

Emigrantes a bordo durante uma travessia 

Proporcionalmente esta viagem não foi a pior delas em número de mortos. A viagem do vapor Carlo Raggio, que inicialmente foi construído para o transporte de carvão, foi apressadamente adaptado para o transporte oceânico de passageiros. Partindo do porto de Gênova e após uma escala em Nápoles, com um total de 1000 passageiros e 16 tripulantes, foi identificada uma epidemia de cólera a bordo. Durante o trajeto teve 211 mortes a bordo, uma para cada 5 passageiros. Nesses navios o cólera era diagnosticado apenas com critérios clínicos.

No outono de 1892, o navio Giulio Cesare, recém construído, estava para deixar o porto de Gênova, para a sua primeira viagem ao Brasil com 900 emigrantes a bordo, quando foi impedido de zarpar devido o aparecimento de uma grave intoxicação que acometeu cerca de 40 dos passageiros que já estavam embarcados, logo após terem consumido a primeira refeição. Na investigação médica que se seguiu pela autoridades portuárias concluiu que se tratava de uma intoxicação alimentar  causada pela recente soldagem e estanhamento das tigelas usadas naquela refeição. 

No final do século XIX o problema da má higienização dos alimentos já se fazia sentir, com o aparecimento frequente de intoxicações alimentares de passageiros e tripulantes. Um regulamento de 1890 já regulava a necessidade de maiores controles com a higienização de alimentos, bebidas e utensílios de cozinha usados nos navios. Infelizmente nesses navios que transportavam emigrantes essas medidas foram transcuradas, como quase tudo que se referia a melhoria da qualidade de vida a bordo. 

Oceano - Quadro de Arnaldo Ferragutti

Alguns anos mais tarde, a mesma empresa de navegação oceânica, se envolveu em outros incidentes semelhantes. Um dos casos foi o do vapor Agordar, com destino ao Brasil, quando, ainda no porto, teve 10 de seus passageiros acometidos por intoxicação alimentar e mais 130 que desistiram da viagem. Ficava assim evidente a incapacidade e a falta de vontade das companhias marítimas  em resolverem este grave problema de melhoria da qualidade dos serviços de bordo. Isso tudo para conservarem os seus lucros e manterem o preço dos bilhetes da passagem competitivos, uma vez que os custos dessas melhorias não conseguiriam repassar para os passageiros. 

As probabilidades de desenvolverem doenças durante a viagem, como a tuberculose, era muito alta. Dormiam empilhados um encima do outro. Muitos relatos de passageiros, principalmente, aqueles de terceira classe, amontoados nos porões dos navios,  testemunham: "Nós, pobres  desgraçados descemos ao porão do navio através de um alçapão, Havia uma grande escuridão e logas filas de beliches de madeira onde tos dormíamos juntos: alemães, italianos, poloneses, suecos, franceses. Lá embaixo não tínhamos água nem luz e já no inicio da viagem muitos ficaram mareados e vomitavam. Ficamos presos como ratos em um buraco, agarrados a suportes de cama ou estruturas de ferro para evitar sermos arrastados pelo balanço do navio, principalmente quando ele enfrentava ventos fortes e grandes ondas". Naqueles navios homens, mulheres e meninas ficavam todos na mesma cama, separados apenas por uma ripa, para evitar rolar uns sobre os outros. 

Emigrantes no Porto a espera do embarque

Durante a longa travessia, em caso de morte de um passageiro, a prática era jogar o corpo no mar o mais rápido possível, de preferência à noite ou nas primeiras luzes da madrugada, para evitar a presença de curiosos, e em seguida providenciar a desinfecção das instalações para prevenir uma possível epidemia. A urgência de se livrar do corpo, passageiro ou tripulante, era muito maior nos casos ocorridos durante a vigência de uma epidemia de doença contagiosa. Nos diários de bordo de navios daquela época e disponíveis para consultas pode-se ter uma ideia do ocorria nesses momentos. Na pressa de se desfazer do corpo, muitos daqueles jogados ao mar podiam ainda não estarem realmente mortos. 


Porto de Santos

Nas viagens para o Brasil e Argentina, também surgiram epidemias de febre amarela, encontradas em navios dos portos brasileiros e argentinos, muito difícil de diferenciar daqueles  sinais e sintomas que apresentavam os passageiros desacostumados ao balanço do navio e os longos períodos no mar. O sarampo também foi uma doença que ocasionou muitas epidemias. Em 1892 um navio norte americano retornando à Gênova, depois de atracar  nos portos de Buenos Aires, Montevideo e Rio de Janeiro, teve uma grave epidemia a bordo. Todas as crianças que viajaram na terceira classe foram infectadas, das quais 5 morreram e 32 passageiros foram desembarcados e hospitalizados em Gênova. 

Neste artigo podemos aquilatar que as condições sanitárias a bordo eram bastante precárias e não raras vezes aquela esperança de conquistar o desejado bem estar, que os tinha sustentado até ali, poderia se esvanecer diante da realidade que encontravam durante a travessia. Mas, a forte decisão de emigrar era muito maior do que o possível sofrimento que os esperava.

A letra de uma canção entoada a bordo pelo emigrantes italianos com destino ao Brasil dizia: 

"Vai ser o que for,

Pior do que está, não será

Vamos tentar nossa sorte.

E já que teremos que morrer, mais cedo ou mais tarde,

Podemos muito bem deixar nossa pele na América como na Europa...

Viva a América! Morte aos Senhores! 

Vamos para o Brasil!

Agora caberá aos proprietários trabalharem a terra". 


Esse era o espírito dos emigrantes italianos que embarcavam nos navios para cruzar o grande e desconhecido oceano. Todo esse indiscritível sofrimento físico e psicológico não reduziram a onda de migração para o novo mundo. 

No segundo decênio do século XX, ao acercasse da I Grande Guerra Mundial ocorreu uma desaceleração do fenômeno migratório. No período entre as duas guerras mundiais a emigração de italianos em busca de trabalho continuou, mas,  com um número bem mais reduzido de emigrantes, principalmente, devido às medidas restritivas adotadas pelos países anfitriões e a política anti-imigração imposta pelo fascismo. 


Dr. Luiz Carlos Piazzetta 

Erechim RS