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domingo, 14 de setembro de 2025

Raízes e Tempestades A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes e Tempestades 

A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes Rotas

Lendinara, Rovigo, Vêneto — Outubro de 1886.

As folhas amareladas dançavam ao vento como se soubessem o que estava por vir. Enrico Bellò passava o dedo pelas tábuas gastas da janela, enquanto observava o horizonte enevoado. Sua esposa, Marianna Zardini Bellò, dobrava silenciosamente as últimas peças de roupa dos filhos. Ela não respondeu. Apenas olhou os filhos — Ernesto e Giacomo — que dormiam lado a lado no catre de palha. A decisão já estava tomada havia dias, mas ali, diante da última manhã na pátria, o peso era quase insuportável. Venderam o pouco que tinham — o terreno herdado do pai de Enrico, duas vacas, e a prensa de uva que por gerações havia produzido o vinho da família. Trocaram tudo por passagens de terceira classe num navio com destino ao Brasil. A travessia foi um inferno de tosses, gemidos e náuseas. Marianna passava noites em claro, com os meninos febris no colo. Enrico cuidava do pouco que tinham com olhos de lobo: um baú com ferramentas, uma fotografia dos pais, e o caderno onde anotava sonhos e cálculos de futuro.

A Dor Verde

Desembarcaram em Santos com os corpos curvados, mas os olhos acesos. A viagem para o interior os levou a Piracicaba, onde a natureza parecia querer engolir tudo — até mesmo a esperança. Foram designados à fazenda do Barão de Alvarenga, uma imensidão de canaviais onde italianos, espanhóis e negros libertos se misturavam em silêncio e suor. O barraco de madeira cheirava a mofo e solidão. Enrico era hábil na terra, mas a lida ali era desumana. Marianna cuidava dos filhos durante o dia e cozinhava a polenta à noite, com farinha comprada a crédito no armazém da fazenda. As dívidas cresciam. A febre também. Em menos de seis meses, Giacomo faleceu. Três semanas depois, Ernesto o seguiu. Marianna não gritou. Nem chorou diante dos outros. Apenas cavou a cova com as próprias mãos. Enrico ficou três dias sem dizer palavra. Na noite do terceiro, rabiscou no caderno:

“Se ghe ze un Dio, el ghe de forsa a chi no la ga pì.”


Polenta, Suco e Sobrevivência

Depois da dor, veio o silêncio. E logo depois, o trabalho ainda mais duro. Enrico trocava milho por farinha no engenho da Fazenda São Benedito. Comia-se polenta e laranja. Era pouco, mas era constante. Os anos trouxeram três filhos: Guido, Rosina e Natale. Marianna voltava a sorrir, aos poucos. Nas noites de sábado, Enrico contava histórias aos filhos: de Veneza, de neve, de campos de papoula. Os meninos ouviam como se escutassem lendas de um outro mundo — e de fato, era. Rosina aprendeu a fazer queijo com a mãe. Guido alimentava os porcos. Natale, ainda pequeno, já se enfiava entre os canaviais como se fosse parte da terra. A esperança recomeçava a brotar.

La Terra Prometida

Com o pouco que economizaram em mais de vinte anos, Enrico arriscou tudo de novo. Compraram um terreno em Mombuca — terra escura, úmida, fértil como ventre de mulher nova. Era pequena, mas era deles. E isso mudava tudo. Construíram uma casa de madeira, sólida e aberta ao sol. Guido casou-se com uma moça de origem calabresa. Natale seguiu o irmão. Rosina, bela e decidida, ficou para cuidar dos pais. A cada novo neto que nascia, Marianna plantava uma árvore no quintal. A terra deu café, mandioca, milho e, aos poucos, também prosperidade. A família Bellò se espalhou pelos arredores como raízes subterrâneas.

A Lavoura da Memória

Os primeiros anos em Mombuca foram marcados por um silêncio novo — não mais o silêncio da dor, mas o silêncio do trabalho em terra própria. Ali, cada amanhecer era uma promessa. Enrico passava os dias examinando o solo, corrigindo falhas, construindo com paciência uma fazenda que pudesse resistir ao tempo. A vida na colônia era ainda rudimentar, mas o simples fato de não depender mais de ordens alheias era um luxo impensável em outros tempos.

Marianna reorganizava a casa com mãos firmes e uma serenidade adquirida nas perdas. Suas rotinas tinham agora um sentido mais profundo. A horta crescia como uma extensão de seu cuidado — alfaces, batatas, tomates, ervas. No quintal, as árvores plantadas em nome dos filhos cresciam altas, e ela as regava como se conversasse com o passado.

O pequeno celeiro virou centro de produção. O queijo feito por Rosina e os pães que Marianna assava em forno de barro passaram a ser trocados com vizinhos, criando laços com outras famílias de imigrantes: lombardos, piemonteses, alguns trentinos. A terra, antes estrangeira, agora tinha nomes italianos espalhados por cada curva de estrada.

Ciclos que se Repetem

Os netos chegaram como vindima farta depois de um verão generoso. As crianças corriam pelos canteiros, aprontavam nas cocheiras, escondiam-se entre os milharais. Enrico assistia de longe, em silêncio, com os olhos cansados e satisfeitos. Sentia o corpo pesar como nunca, mas a alma leve como não se lembrava de ter sido um dia.

Guido prosperava com o plantio de café e a criação de porcos. Natale seguiu para a cidade, atraído pela modernidade de Rio Claro, onde tornou-se marceneiro. Rosina permaneceu fiel à terra, cuidando dos pais e da pequena capela erguida sob uma figueira, onde se rezavam terços nas noites de sábado.

Com o tempo, os filhos construíram suas próprias casas ao redor da sede principal. Um núcleo familiar tomou forma como uma aldeia invisível, unida por sangue e por história. Nas festas de colheita, os tambores improvisados e os violinos dos imigrantes enchiam o ar de um entusiasmo quase ancestral. Marianna olhava para aquilo tudo com uma expressão que misturava gratidão e cansaço.

A Última Estação

Os últimos anos de Enrico foram silenciosos. Seus passos tornaram-se lentos, os olhos demoravam mais tempo observando o horizonte do que o necessário. Ele passava horas sentado sob o alpendre, com um caderno no colo e um lápis já tão pequeno quanto sua respiração. Anotava datas de nascimentos, mortes, safras, doenças, nomes. Era como se quisesse registrar cada detalhe para impedir que o tempo os engolisse.

Quando faleceu, em 1943, foi enterrado sob a mesma figueira onde Rosina mantinha as velas acesas. Não houve discurso, apenas o som das enxadas abrindo a terra para mais uma semente — não de planta, mas de permanência.

Marianna viveu ainda nove anos. Seus cabelos embranquecidos se tornaram símbolo da família, sua presença era reverenciada pelos netos como a de uma matriarca silenciosa. Já não costurava tanto, nem cuidava dos porcos, mas sua autoridade se manifestava em pequenos gestos — um olhar, um aceno, um gesto de aprovação ou correção.

No dia de sua morte, um verão abafado de 1952, a família se reuniu inteira no terreno. Ninguém chorou alto. Não era preciso. Sua ausência se impunha com uma solenidade silenciosa, como o fim de uma colheita abundante.

Herdeiros do Silêncio

Com a partida de Marianna, Rosina assumiu o centro da casa. Já velha, sabia que a sua missão era diferente: preservar. Os filhos e netos dos Bellò se espalharam pelo interior paulista, muitos se urbanizaram, alguns se tornaram professores, outros comerciantes. Mas o nome resistia.

Na casa original, as paredes foram reforçadas, o forno de barro mantido. As árvores frutíferas plantadas por Marianna ainda davam sombra às novas gerações. O velho caderno de Enrico foi descoberto por um bisneto curioso, que se tornaria historiador e usaria aquelas anotações como base para um livro sobre imigração italiana no Brasil.

Na lápide do casal, sob a figueira que crescia firme, uma frase gravada por Rosina resumia tudo o que haviam vivido:

“Radise che no se spaca — solo cámbia tera.”


Nota do Autor

A história que o leitor tem em mãos é uma obra de ficção histórica, construída com base em um fragmento autêntico da vida de emigrantes italianos que, como milhares de outros, cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de terra, trabalho e um futuro menos incerto.

O texto se inspira livremente em uma carta escrita por um imigrante vêneto e preservada nos arquivos públicos do interior paulista. Nesse testemunho silencioso, revelam-se os traços de uma jornada marcada por perdas profundas, resistência cotidiana e uma fé obstinada no valor do esforço.

Embora os personagens desta narrativa — Enrico e Marianna Bellò, seus filhos e descendentes — sejam fictícios, suas vivências ecoam as experiências reais descritas na carta: a travessia atlântica, o luto por filhos perdidos, os anos de trabalho duro nas fazendas de café e, por fim, o triunfo discreto da terra conquistada com suor e perseverança.

A escolha por evitar diálogos é intencional. O silêncio, que permeia esta narrativa, busca refletir o modo como tantos desses homens e mulheres viveram: com dignidade contida, gestos firmes e palavras medidas. Suas histórias foram escritas mais com as mãos do que com a voz.

Esta obra é dedicada a todos os que partiram sem promessa de retorno, levando consigo apenas a memória dos que ficaram — e semeando, em solo estranho, as raízes do que viria a ser um novo lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





domingo, 2 de março de 2025

O Embarque dos Emigrantes



O Embarque dos Emigrantes


Nos últimos anos do século XIX, o embarque dos emigrantes italianos no porto de Gênova se desenhava como uma cena de profundas emoções, repleta de simbolismo e caos. O movimento constante no porto se transformava em um cenário de despedida, onde a esperança e o desespero se entrelaçavam. O grande navio, ancorado nas docas, aguardava em silêncio, mas imponente, absorvendo um fluxo incessante de pessoas. Famílias inteiras, camponeses, operários e jovens em busca de novas oportunidades avançavam em um cortejo interminável, cada um carregando não apenas suas malas, mas também os sonhos e os temores de uma vida nova. Muitos passaram a noite nas ruas de Gênova, sem recursos para uma hospedagem adequada, e chegavam ao porto exaustos, famintos e com o cansaço de muitas horas de viagem de trem.

O cenário era um tumulto. Homens carregavam cadeiras dobráveis, malas improvisadas, sacolas de tecido gasto, colchões e cobertores pendurados sobre os ombros. Mulheres, muitas com bebês nos braços e crianças pequenas ao lado, equilibravam fardos pesados com a boca enquanto caminhavam. Camponesas idosas, vestidas com roupas simples e tamancos de madeira, levantavam as saias para não tropeçar na estreita ponte suspensa. Alguns estavam descalços, com os sapatos pendurados ao pescoço, poupando-os para quando chegassem ao novo mundo. O porto ressoava com uma mistura de dialetos regionais, formando um mosaico de vozes que refletia a diversidade dos que partiam.

Entre a multidão, crianças pequenas, algumas ainda com as placas das creches presas às roupas, seguravam firmemente as mãos de seus responsáveis. Mães balançavam seus filhos, buscando acalmá-los, enquanto os pais tentavam disfarçar a ansiedade, embora os olhares deles revelassem um mar de incertezas. O processo de embarque era um desafio emocional, com famílias sendo separadas ao entrarem no navio. Mulheres e crianças eram direcionadas a alojamentos diferentes dos homens, e a dor dessa separação se tornava palpável. As mulheres, com passos hesitantes, desciam as escadas íngremes em direção a dormitórios frios e abarrotados de beliches, como prateleiras dispostas em um galpão. Aqueles espaços, gelados e desumanizados, refletiam as dificuldades que estavam por vir.

O som do porto era ensurdecedor. Além da agitação das pessoas, ecoavam os rugidos das máquinas do navio, os gritos dos trabalhadores e o estrondo das gruas carregando baús e caixotes. O barulho dos animais sendo embarcados também se misturava à confusão, com bois, ovelhas e até cavalos sendo empurrados para o convés. Seus sons se entrelaçavam com as vozes humanas, criando um caos interminável. No meio dessa massa de emigrantes pobres, passavam passageiros de classe alta, com roupas finas e bagagens leves, seus rostos impassíveis contrastando com os de trabalhadores cansados e sujos, que haviam vendido tudo para financiar a viagem.

O registro dos passageiros acontecia logo na entrada do navio, onde um oficial os agrupava em pequenos grupos, chamados "ranci", compostos por seis pessoas, responsáveis por dividir as refeições durante a travessia. Muitas vezes, famílias menores eram forçadas a se juntar a estranhos, gerando desconfiança e tensão. O medo de serem enganados era evidente, especialmente quando um oficial com uma caneta e um bloco de registros surgia, provocando temor de que algo fosse perdido, principalmente com relação aos descontos para as crianças. Discussões e protestos surgiam, mas eram rapidamente abafados pela pressa e pela autoridade do processo.

À medida que os emigrantes subiam a bordo, o navio parecia uma criatura colossal, imóvel e ávida, engolindo as pessoas e seus pertences. A despedida no cais era marcada por lágrimas e gritos de despedida. Muitos sabiam que jamais retornariam a suas terras natalinas, enquanto os que ficavam sentiam o peso da separação, cientes de que aquele poderia ser o último adeus. Para muitos, aquele embarque em Gênova representava o fim de uma vida de privações e o início de uma jornada cheia de incertezas. Cada passo em direção ao navio era um salto no desconhecido, mas também uma tentativa desesperada de alcançar algo melhor.

O navio, como um monstro marinho, parecia engolir não apenas os corpos, mas também os sentimentos, as memórias e os sonhos de centenas de pessoas. Quando o embarque se completava e o navio se preparava para zarpar, o ar se impregnava de uma mistura de excitação e luto. De um lado, o som das máquinas crescendo indicava a partida iminente, e do outro, os últimos gestos de despedida e as lágrimas incontroláveis marcavam o corte profundo que se fazia na alma de todos ali presentes. A partida do porto de Gênova não era apenas uma travessia física, mas um rito de passagem, um adeus definitivo ao passado e a entrada em um novo mundo onde o futuro ainda era uma incógnita.



sábado, 1 de março de 2025

O Trem, os Navio e a Emigração Italiana no Século XIX

 

O Trem, o Navio e a Emigração Italiana no Século XIX


O século XIX foi um período marcado por profundas transformações tecnológicas e sociais que alteraram a maneira de viver e de se locomover, especialmente para os milhões de europeus que buscavam melhores condições de vida em terras distantes. Entre as inovações que favoreceram a emigração europeia em geral, e a italiana em particular, destaca-se o surgimento do trem a vapor. Substituindo as lentas carruagens e diligências, o trem revolucionou o transporte terrestre, encurtando distâncias entre cidades e portos. Paralelamente, o advento dos navios a vapor substituiu os veleiros, reduzindo significativamente o tempo das travessias marítimas entre a Europa e as Américas, transformadas no novo El Dorado para aqueles que sonhavam com prosperidade.

Para os italianos que partiam de pequenas aldeias no interior do país, o trem representava não apenas um meio de transporte, mas também um primeiro encontro com a modernidade. Muitos desses emigrantes eram camponeses analfabetos, habituados a uma vida simples e cercada por tradições. A visão daquele "monstro de ferro", soltando fumaça e rugindo com estrondos que ecoavam pelas montanhas, era, ao mesmo tempo, fascinante e aterradora. Alguns encaravam a máquina com temor, acreditando que aquilo era algo sobrenatural, enquanto outros se maravilhavam com a possibilidade de deixar para trás a miséria e as restrições impostas pela vida rural.

A jornada de emigração começava ainda antes de embarcarem em um navio. Muitos viajavam longas distâncias a pé ou em carroças para alcançar a estação ferroviária mais próxima. Para famílias inteiras, essa era uma experiência inédita e repleta de incertezas. Subir em um trem pela primeira vez era um desafio. As sensações de movimento, o barulho das rodas nos trilhos e os solavancos causavam espanto e desconforto. As crianças choravam, as mães tentavam acalmá-las, enquanto os pais lidavam com a ansiedade de garantir a segurança de todos.

Ao chegar ao porto de Gênova ou outros grandes portos de embarque, como Nápoles, enfrentavam uma nova etapa do processo migratório. Ali, os navios a vapor os aguardavam, verdadeiras cidades flutuantes que prometiam levá-los ao outro lado do oceano. Para muitos, o navio era uma visão ainda mais impressionante do que o trem. Acostumados à calmaria de seus vilarejos, embarcar em uma embarcação tão gigantesca era um teste de coragem. Dentro do navio, amontoados nos porões apertados, os emigrantes conviviam com a insegurança sobre o futuro. A viagem era longa e marcada por condições precárias, mas também por esperança.

O trem e os navios a vapor foram os grandes facilitadores dessa migração em massa, encurtando não apenas as distâncias físicas, mas também o tempo necessário para que os emigrantes italianos pudessem tentar uma nova vida. Antes, uma viagem que durava semanas ou meses em embarcações movidas a vela passou a ser realizada em dias. Isso abriu portas para que um número ainda maior de pessoas tivesse acesso a essa oportunidade.

No entanto, o impacto psicológico dessa modernidade repentina era inegável. Para os emigrantes, deixar suas terras natais já era doloroso. O trem e o navio simbolizavam uma ruptura definitiva com o conhecido e o mergulho no desconhecido. Os campos verdejantes e as casas de pedra de suas aldeias davam lugar ao frio aço das máquinas e ao horizonte vasto do oceano. Cada etapa da viagem era permeada por sentimentos conflitantes de medo, saudade e esperança.

No Brasil, na Argentina ou nos Estados Unidos, ao desembarcar, enfrentavam novos desafios. Mas foi graças à infraestrutura proporcionada pelo trem e pelos navios que milhões de italianos puderam reescrever suas histórias. Eles levaram consigo suas tradições, gastronomia, língua e fé, ajudando a moldar a identidade cultural dos países que os acolheram.

Assim, o trem e os navios a vapor não foram apenas instrumentos de transporte, mas verdadeiros símbolos da transformação de um tempo. Eles não apenas encurtaram distâncias geográficas, mas conectaram sonhos e destinos, permitindo que milhões de emigrantes italianos buscassem uma vida melhor no Novo Mundo.