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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Sob o Vento das Colônias: A Travessia de Domenico Cavallin para a Colônia Dona Isabel (1878)

 


Sob o Vento das Colônias 

A Travessia de Domenico Cavallin para a Colônia Dona Isabel (1878)

História da imigração italiana no Rio Grande do Sul – Colônia Dona Isabel


Domenico Cavallin nasceu na localidade San Giovanni, pertencente ao município vêneto de Valdobbiadene, uma terra de colinas que ondulavam como um imenso tapete verde, belo à distância, mas implacável para quem dependia dele para sobreviver. Ali, sob o peso silencioso da rotina, gerações inteiras haviam aprendido a extrair sustento de parcelas mínimas de terra, trabalhando de sol a sol para colher apenas o necessário. Em San Giovanni, a esperança sempre fora um recurso tão escasso quanto o próprio dinheiro. Naquele inverno de 1878, quando os vinhedos adormeciam sob uma neblina espessa que descia dos montes, a paisagem parecia refletir a alma do lugar: silenciosa, resignada, contida. As noites eram longas e frias, e o eco distante dos sinos do campanário não trazia consolo; pelo contrário, repetia um aviso sombrio que todos já conheciam — ali, naquele canto da província de Treviso, o futuro diminuía a cada ano, como um fio de vida que se desgastava lentamente. Para muitos jovens, especialmente aqueles que, como Domenico, não herdariam terras nem ofício seguro, a pequena localidade já não oferecia caminhos, apenas a lenta certeza de que permanecer era aceitar uma vida inteira limitada pelas mesmas colinas que os cercavam desde o nascimento.

A Itália recém-unificada não oferecia saída para quem vivia nas franjas do campo. A promessa de um país moderno parecia distante demais para alcançar localidades como San Giovanni: as terras eram poucas, fragmentadas entre herdeiros, e as bocas eram muitas, sempre mais numerosas do que as colheitas exíguas que a terra permitia. A cada estação, aumentava a sensação de que o novo país existia apenas nos discursos políticos de Turim e Florença, enquanto nas aldeias rurais persistia o mesmo cenário de dívidas, impostos e escassez. Assim, as únicas promessas reais chegavam em envelopes gastos, vindos do outro lado do oceano Atlântico, trazendo a caligrafia torta de parentes que haviam partido antes. Eram cartas do Brasil, cheias de relatos incertos, mas carregadas de uma luz que não existia em Valdobbiadene. Nelas, repetia-se o nome de um destino que começava a circular entre os imigrantes: a Colônia Dona Isabel, um lugar remoto “no sul do mundo”, onde — diziam — a terra se abria como um livro em branco, esperando pela coragem de quem aceitasse recomeçar. Essas cartas, escritas por mãos calejadas que conheciam a pobreza tão bem quanto Domenico, revelavam algo quase inacreditável: que, do outro lado do oceano, homens simples finalmente respiravam dignidade. Eram palavras que atravessavam mares não apenas com notícias, mas com uma promessa silenciosa de futuro, capaz de inquietar até os mais resignados.

Domenico guardou uma dessas cartas sob o colchão por semanas, como se o simples contato com o papel pudesse iluminar os dias sombrios de San Giovanni. Ele a relia sempre que o desânimo o apertava, repetindo cada frase como quem procura sinais de um destino possível. A caligrafia trêmula do parente que escrevera do Brasil se tornara quase uma oração particular, um lembrete de que a vida podia ser maior do que a pobreza que cercava a vila. Até que, numa manhã de geada, quando o frio parecia entrar pelas frestas da casa e congelar qualquer ilusão de futuro, Domenico tomou sua decisão: partiria. Depois de uma noite inteira de vigília silenciosa, levantou-se com uma determinação inédita. Vendeu a velha carroça herdada do pai — último símbolo de um passado que já não o sustentava — e juntou moedas que mal enchiam o fundo de um bolso. Era pouco, quase nada, mas suficiente para iniciar a travessia que mudaria sua vida. A despedida da mãe foi o momento mais duro: ela não tinha palavras, apenas um olhar que misturava orgulho e temor. Antes que ele cruzasse o limiar da porta, colocou em suas mãos um pequeno crucifixo de madeira, gasto pelos anos e pelas preces. “Leva contigo”, murmurou. Domenico apertou o objeto com força, sabendo que, entre tudo o que deixava e tudo o que buscaria no caminho até a Colônia Dona Isabel, aquele crucifixo seria o único companheiro que jamais abandonaria.

A viagem de Valdobbiadene até Gênova foi longa e cansativa, uma travessia que parecia medir não apenas a distância entre duas cidades, mas o próprio peso da decisão que Domenico havia tomado. A cada milha vencida, o trem e as estradas revelavam rostos diferentes, todos marcados pelo mesmo misto de apreensão e esperança que ele próprio carregava. Entre aqueles viajantes que cruzavam seu caminho, muitos vinham de regiões vizinhas da província de Treviso: famílias inteiras de Vidor, levando baús improvisados e crianças sonolentas; grupos de jovens de Farra di Soligo, que escondiam o medo sob uma coragem quase teatral; trabalhadores de Follina e Cison di Valmarino, homens habituados ao esforço físico, mas visivelmente abalados pela incerteza que envolvia a partida. Alguns viajavam em silêncio absoluto, outros repetiam histórias sobre parentes que já haviam embarcado rumo ao Brasil, como se as palavras pudessem firmar a própria decisão. E, embora cada um carregasse motivações distintas — dívidas, sonhos, promessas ou pura necessidade —, todos traziam no olhar o mesmo brilho inquieto, uma combinação profunda de dúvida e desejo. Era esse olhar, tão humano e tão familiar, que lembrava a Domenico que sua jornada não era única: fazia parte de um movimento maior, um êxodo silencioso que transformava camponeses anônimos em imigrantes, empurrando-os em direção ao desconhecido.

O navio que os conduziu ao Brasil era um gigante cansado, um casco de ferro que rangia como se carregasse séculos de histórias e desalento. No porão, onde a maioria dos imigrantes encontrava seu lugar forçado, o ar úmido misturava o sal do oceano ao cheiro de medo que parecia escorrer das paredes escuras. Crianças choravam sem alívio, velhos apertavam terços gastos entre os dedos deformados pelo trabalho, e os dias se arrastavam em um ciclo de náuseas, escuridão e lembranças que doíam. Cada balanço do mar fazia o futuro parecer ainda mais distante, e cada noite trazia a certeza de que não havia retorno possível para quem deixara a Itália unificada em busca de sobrevivência. Ainda assim, por mais sombrio que fosse o porão, havia algo que nenhum vento contrário conseguia apagar: a esperança persistente — quase teimosa — de um recomeço. Era essa esperança que sustentava aqueles homens e mulheres, transformando a travessia do Atlântico em um ritual de passagem para uma nova vida na terra prometida.

Quando avistou o Rio de Janeiro, Domenico sentiu o coração falhar por um segundo, como se a imensidão diante dele exigisse uma pausa para ser compreendida. A cidade surgia do mar com uma grandiosidade quase irreal: montanhas íngremes que pareciam brotar das águas verdes, uma vegetação exuberante que o sol tropical incendiava em tons impossíveis, e uma luz intensa que não existia em nenhum recanto da Itália recém-unificada. Era um cenário que misturava beleza e estranhamento, marcando de forma indelével a chegada dos imigrantes italianos ao Brasil.

Mas Domenico sabia que aquele deslumbramento não seria o fim de sua jornada. O Rio de Janeiro era apenas o primeiro sopro de um continente desconhecido. Seu destino estava muito além, no extremo sul, onde as colônias italianas se multiplicavam entre vales úmidos, encostas férteis e florestas densas que ainda carregavam o cheiro da mata virgem. Para lá seguiriam homens como ele — homens que buscavam não apenas terra, mas a chance de construir uma vida que a Europa nunca lhes oferecera. Aquele era apenas o começo, o primeiro capítulo de uma travessia que o conduziria à Colônia Dona Isabel e ao coração da imigração italiana no Brasil.

A chegada à Colônia Dona Isabel foi um choque de realidade que desmontou qualquer ilusão construída pelas cartas enviadas do Brasil. Não havia estradas que facilitassem o caminho, nem casas erguidas à espera dos recém-chegados. O que se estendia diante de Domenico era uma imensidão de mata fechada, onde a vegetação densa escondia barrancos escorregadios, raízes traiçoeiras e um silêncio profundo que só era quebrado pelo ritmo cadenciado dos machados abrindo clareiras na floresta. Era o som do início de tudo — duro, lento, irremediável.

Quando finalmente recebeu o lote 56 da Linha Leopoldina, percebeu que seu novo mundo cabia naquele retângulo de floresta bruta. Ali não havia nada que lembrasse Valdobbiadene, nem as colinas suaves da frazione San Giovanni. Seus olhos, acostumados aos vinhedos ordenados do Vêneto, precisaram se habituar à desordem selvagem da mata brasileira, onde cada palmo parecia resistir ao toque humano. Para transformar aquele chão em sustento, Domenico teria de domá-lo com as próprias mãos — derrubar árvores centenárias, abrir trilhas, erguer uma casa que o protegesse das chuvas violentas e das noites úmidas que pareciam não ter fim.

Naquele primeiro instante, ele compreendeu que a colonização no sul do Brasil não era apenas promessa de terra; era sobretudo uma prova de resistência, coragem e fé. Ali começaria sua verdadeira luta por um futuro.

Os primeiros meses na Colônia Dona Isabel foram exaustivos, quase impiedosos. O sol ardia sem trégua sobre a clareira recém-aberta, queimando a pele e roubando o fôlego de quem ousava trabalhar desde antes da aurora. Quando a chuva chegava, não vinha como alívio, mas como ameaça: penetrava pelas frestas da palhoça improvisada, inundando o chão de terra batida, apagando o pequeno fogo que Domenico tentava manter aceso e transformando as noites em longas vigílias de frio e incerteza. A solidão pesava como uma rocha — silenciosa, constante, difícil de afastar.

Ainda assim, a colônia oferecia dois milagres que nenhum outro presente poderia superar: o trabalho, que dava sentido aos dias, e a amizade, que dava coragem para enfrentá-los. Foi nesse ciclo de esforço e necessidade que Domenico conheceu Caterina Fregonese, recém-chegada da localidade de Bigolino, também pertencente ao comune de Valdobbiadene. Ela era jovem, de passos firmes e olhar decidido, com uma determinação que parecia desafiar a rudeza da floresta e a precariedade das primeiras moradias.

Juntos, aprenderam a derrubar árvores que pareciam impossíveis de tombar, a abrir trilhas que serpenteavam entre galhos retorcidos e raízes profundas, e a transformar o medo silencioso das primeiras noites na mata em força compartilhada. A cada jornada, a cooperação entre eles se tornava mais natural; a cada obstáculo vencido, crescia a convicção de que recomeçar naquele pedaço de Brasil era difícil — mas possível. E talvez, pela primeira vez, Domenico sentiu que aquele novo mundo poderia, um dia, tornar-se um lar.

Ao lado dos vizinhos — a família Dalla Costa, oriunda de Pieve di Soligo; os irmãos Zanin, vindos de Sernaglia della Battaglia; e o velho Peruzzetto, que deixara para trás as colinas de Vidor — Domenico descobriu que o Brasil não era apenas um destino final, mas uma tarefa diária, quase um chamado silencioso que exigia força, coragem e persistência. A convivência com aquelas famílias, igualmente marcadas pela dureza da travessia e pela esperança de reconstruir a vida, ensinou-lhe que a colonização no sul do Brasil só era possível porque ninguém caminhava sozinho.

Cada árvore derrubada parecia um monumento erguido contra a própria adversidade. Cada tora arrastada pelo barro, sob sol ou chuva, era um lembrete de que nenhum deles havia atravessado o oceano para se render. E cada broto plantado na terra recém-limpada — milho, trigo, feijão, videiras ainda frágeis — tornava-se um gesto de afirmação: estavam vivos, estavam presentes e pertenciam àquele chão novo e indomado.

Na união entre os imigrantes, Domenico percebeu que o Brasil os moldava tanto quanto eles moldavam a terra. Era um pacto tácito entre homens e floresta, entre passado e futuro. E, dia após dia, as raízes que lançavam no solo da Colônia Dona Isabel começavam a se entrelaçar com as raízes que haviam deixado para trás na província de Treviso, criando uma nova história — deles, e de todos que chegariam depois.

Quando finalmente ergueu sua primeira casa de madeira, Domenico chorou sem pudor, como alguém que, depois de longa tempestade, avista um pedaço de céu limpo. A construção não tinha beleza: as tábuas eram irregulares, o telhado deixava passar vento pelas frestas, e o chão ainda era terra batida. Também não era grande; mal comportava o fogão improvisado, a pequena mesa de pinho e a cama onde ele caía exausto todas as noites. Mas era dele — fruto de semanas de esforço contínuo, de machadadas que feriam as mãos, de dias escuros em que a saudade da Itália quase o paralisava.

Aquela casa simples tornou-se o símbolo vivo de que a travessia do Atlântico, os medos do porão e as despedidas do Vêneto haviam valido a pena. Era a prova de que nenhum sofrimento tinha sido em vão. Ali, naquele pedaço de terras brasileiras da Colônia Dona Isabel, Domenico sentiu nascer algo que jamais encontrara em San Giovanni: a convicção profunda de que o futuro podia finalmente ser construído com as próprias mãos.

A cada martelada que ouviu ecoar na mata, ele compreendeu que não era apenas uma casa que se erguia, mas uma existência inteira que ganhava forma — uma vida nova, plantada com coragem naquele solo distante do qual começava, pouco a pouco, a sentir-se parte.

E assim, no coração verde do Rio Grande do Sul, Domenico Cavallin deixou de ser apenas um camponês anônimo da província de Treviso, moldado pelas colinas estreitas de San Giovanni e pelas limitações de uma terra que já não lhe prometia futuro. No Brasil, tornou-se mais do que imigrante: tornou-se colono, pioneiro e fundador de um modo de vida que exigia coragem para cada amanhecer e fé para cada noite.

Com o passar dos anos, suas marcas se espalharam pela Colônia Dona Isabel — na roça aberta à força dos braços, nas videiras que insistiam em crescer mesmo sob o clima incerto, nas pequenas sendas que ligavam um lote ao outro, criando uma comunidade onde antes só havia mata densa e silêncio. Cada gesto seu, cada metro de terra domada, cada árvore derrubada para dar espaço à vida, ajudou a transformar aquele núcleo isolado em povoado, o povoado em vila, e a vila em cidade.

Quando os primeiros sinos ecoaram no vale, quando as primeiras colheitas foram celebradas, e quando as crianças da segunda geração começaram a falar português com sotaque de Vêneto, Domenico compreendeu que algo maior havia sido construído — algo que sobreviveria a ele. Sua trajetória, entrelaçada às de tantos outros imigrantes italianos, tornou-se parte da memória eterna que deu origem à futura Bento Gonçalves, erguida sobre trabalho, esperança e sacrifício.

Assim, sem alarde e sem ambição além do necessário, Domenico Cavallin inscreveu seu nome na história de um novo mundo. E o Brasil, que antes lhe parecia apenas destino incerto, transformou-se no lugar onde seu passado encontrou repouso e onde seu futuro — e o de seus descendentes — encontrou raiz.

Nota do Autor 

Esta narrativa é inteiramente ficcional e não representa a biografia real de nenhuma pessoa específica. Os nomes, sobrenomes e locais utilizados — embora comuns na província de Treviso durante o período da grande emigração italiana — foram escolhidos ao acaso e servem apenas para conferir verossimilhança histórica ao enredo. O objetivo deste texto é homenagear a trajetória dos imigrantes que ajudaram a construir a Colônia Dona Isabel e preservar a memória da imigração italiana no Rio Grande do Sul.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

La Saga de Giovanni e Maria R. – Da Cismon del Grappa fin a le Floreste del Rio Grande do Sul


 

La Saga de Giovanni e Maria R. – Da Cismon del Grappa fin a le Floreste del Rio Grande do Sul

La vècia casa de piera de Cismon del Grappa, ’ndove che Giovanni e Maria R. i ga vissù, la resta come testimónea silensiosa de un passà duro. Le pareti oramai consumà, el piso fredo e la scaleta streta conta la stòria de generassion che le ga passà drento. Da quel posto sui prealpi vèneti, tra montagne e boschi, la mancansa de speransa ´nte l’Itàlia pòvera de fin del sècolo XIX la ga spentonà el casal a scampar via, seguendo tanti altri compaesan che i sercava ’na vita nova.

´Ntei ùltimi 25 ani del sècolo XIX la vita la zera storta par i pìcoli agricoltori, sopratuto par chi che laorava ´nte le zone pì montagnose, ’ndove che la tera rendea poco. La famèia de Giovanni vardava le racolte calar ogni ano, e Maria, straca e preocupà, sercava strade par mantegner vivi i fiòi. Restar volea dir misèria; partir volea dir risco, ma anca speransa.

El adio vero el ze scominsà quando Giovanni el ga serà la porta de la vècia casa par l’ùltima volta. La cesa de la Madona del Pedacino ´ndove lori i se ga sposà, i parenti a do passi, i amissi de ogni zorno: tuto zera restà indrìo. Quela partensa zera ’na rutura che no gavea ritorno.

´Nte la traversia del ossean, el navio stracarico che el ga partì del porto de Génova el zera un inferno de odor de carbon, de corpi mal lavà e malatie. Maria, presa da la febre e da la fiachessa, no la ga resistì. El so corpo el ze stà consegnà al mar, impacotà in ’na lona rùvida legà con soga. Quel suon smorsà del corpo che toca l’onda scura el ze restà registrà par sempre ´nte la memòria de Giovanni e dei fiòi. Quela pèrdita la ga segnà par sempre la famèia.

Quando finalmente lori i ga vardà el Brasil, el dolor zera ancora vivo, ma la vita domandava coraio. ´Nte le colónie taliane del Rio Grande do Sul, Giovanni el ga alsà un riparo con rami de le àlbari abatù e baro, scominsiando a far neto la mata grossa. Le noti le zera pien dei urli de bèstie selvàdeghe, e par tegner sicuri i fiòi el tegnea un fogo sempre ardendo davanti a l´assesso de la tana.

Con el passar del tempo, la tera netà la ze diventà campo de piantassion, e le sementi taliane le ga meso radise ´nte la tera brasilian. I fiòi, sobrevissù a la traversia, i ga cressù forti come Giovanni e Maria. Anca i dissendenti lontan che no conossea ancora el Vèneto i ga portà drento la memòria de quela vècia casa e del sacrifìssio grande che gavea dado origin a tuto.

Incòi, quando qualche dissendente torna in visita a Cismon del Grappa, el sente che le piere de la vècia casa no conta sol el tempo, ma anca coraio, dolor, speransa e rinàssita. La stòria de Giovanni e Maria R. la resta ’na prova del sacrifìssio che ga donà vita e futuro a tante generassion brasilian de orìgene vèneta.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Do Vêneto à Serra Gaúcha: a jornada de Carlo Bernardini e o início da Colônia Caxias – 1890

 


Do Vêneto à Serra Gaúcha: a jornada de Carlo Bernardini e o início da Colônia Caxias – 1890


A Travessia de Carlo Bernardini

Quando o navio cruzou o Atlântico e o horizonte começou a se apagar sob o peso das nuvens, Carlo Bernardini entendeu que a vida antiga havia terminado. Maser, o vilarejo de colinas e neblinas na província de Treviso, ficava para trás como um quadro guardado na memória. No outono de 1887, abandonara a terra natal com o coração dividido entre a necessidade e a esperança. A Itália, unificada há pouco, era uma promessa quebrada; o solo empobrecido, o trabalho escasso, o pão medido em fatias. A América, ao contrário, era um rumor distante — o país onde se dizia que o trigo brotava sem pedir licença e o governo entregava terra a quem tivesse coragem de lavrá-la.

Três anos depois, no alto da serra do Rio Grande do Sul, Carlo aprendera a suportar o peso dos dias. Trabalhava para o governo, abrindo picadas e demarcando os terrenos que seriam destinados aos imigrantes. O engenheiro responsável — um brasileiro de fala pausada e modos firmes — reconhecera em Carlo um homem de confiança, e por isso intercedeu unto ao governo que lhe concedeu um lote à beira da estrada principal da Colônia Caxias. Era um pedaço de terra rude e fértil, onde o mato se erguia até o peito e o ar cheirava a resina.

Carlo construiu ali uma casa simples, de madeira escura, e cada tábua pregada era um gesto de renascimento. Trabalhava desde o romper do dia, recebendo cinco florins por jornada — o suficiente para manter o corpo de pé e o espírito em paz. Com o pouco que ganhava, comprou duas vacas e um cavalo, sinal de que o tempo começava a recompensá-lo. O governo prometera novos pagamentos, e ele esperava pelo próximo como quem espera a colheita depois da seca.

A solidão era a única coisa que o dinheiro não comprava. Nas tardes em que a chuva descia grossa sobre o vale, Carlo sentava-se diante da janela e olhava o caminho lamacento por onde, de tempos em tempos, passavam tropeiros, colonos e carroças cobertas. A ausência dos pais lhe pesava como pedra no peito. Sonhava em vê-los chegar, velhos e curvados, trazendo consigo o cheiro da terra vêneta e o calor das vozes familiares.

O Brasil, aos seus olhos, era um mundo novo e indecifrável. As florestas pareciam intermináveis, e os sons da mata — pássaros, insetos, o estalo dos galhos — lembravam-lhe que estava longe de tudo o que conhecia. Ainda assim, havia uma força secreta naquela solidão. O trabalho constante, o suor e o cansaço faziam-no sentir parte da paisagem. A cada árvore derrubada, a cada cerca erguida, Carlo via nascer não apenas uma colônia, mas uma civilização.

Os colonos que chegavam de outras partes da Itália traziam histórias parecidas: fome, dívidas, despedidas. Todos falavam com o mesmo sotaque cansado e o mesmo brilho de obstinação nos olhos. Juntos, transformavam o mato em lavoura, as picadas em estradas, os barracos em vilas. O nome “Caxias” começava a ganhar sentido — símbolo de uma nova vida construída sobre o esforço de quem não tinha nada além das próprias mãos.

Com o passar dos meses, a colônia se organizou. A estrada principal virou o eixo da vida comunitária: ao longo dela, surgiram a venda, a ferraria, a igreja de madeira e, mais tarde, a escola. Carlo era visto como um dos pioneiros — um homem que aprendera a lidar com as ferramentas do governo e com a dureza da terra. O engenheiro Brito, seu superior, elogiava-lhe a disciplina e a fé.

Apesar do progresso, a saudade nunca o abandonou. Nas noites de verão, quando o vento trazia o cheiro úmido da floresta, Carlo recordava o som dos sinos de Maser e a voz da mãe chamando da porta. Sonhava que, um dia, poderia juntar dinheiro suficiente para trazê-los. Imaginava o pai caminhando pela estrada de Caxias, espantado com a vastidão da América, e a mãe chorando de emoção diante da casa que o filho erguera com as próprias mãos.

O tempo, no entanto, seguia implacável. As cartas que mandava à Itália demoravam meses, e muitas não recebiam resposta. Ainda assim, ele escrevia, movido por um dever silencioso: o de manter viva a ponte entre o velho e o novo mundo. Em cada linha, descrevia os vales, o trabalho, a esperança de que um dia todos se reuniriam sob o mesmo teto.

Quando o outono de 1890 chegou, Carlo percebeu que o Brasil já o transformara. Não era mais o camponês de Maser, mas um homem endurecido pela distância e pelo destino. Os calos nas mãos eram suas medalhas; o campo que arava, seu testamento. Olhava a colônia e via crianças correndo, mulheres amassando pão, homens carregando madeira — a prova de que o sacrifício não fora em vão.

Naquela terra distante, Carlo encontrou mais do que trabalho: encontrou sentido. A solidão dera lugar à certeza de pertencer a algo maior. A Colônia Caxias, ainda jovem e coberta de mato, tornava-se um pedaço de Itália fincado no coração do sul.

Sob o céu avermelhado do entardecer, Carlo Bernardini ergueu os olhos e pensou que talvez o futuro começasse ali — no ponto exato em que o cansaço e a esperança se encontravam.

Nota do Autor

Esta narrativa é uma obra de ficção histórica, construída a partir de fatos, datas e emoções reais contidas em antigas cartas de emigrantes italianos do Vêneto, hoje preservadas em acervos museológicos do Rio Grande do Sul.

Embora os nomes e alguns detalhes tenham sido alterados, o enredo segue de perto as experiências relatadas por esses pioneiros que deixaram Maser e outras pequenas vilas de Treviso em direção às matas e vales da Colônia Caxias, no final do século XIX.

Trata-se, portanto, de uma recriação literária — uma tentativa de dar voz a homens e mulheres anônimos que transformaram o exílio em pátria e a saudade em herança. Suas palavras, escritas há mais de um século, continuam a atravessar o tempo, lembrando-nos que a história da imigração italiana no Brasil não é feita apenas de datas, mas de silêncios, distâncias e esperanças.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

Dal Vèneto a la Serra Gaúcha: La Zornada de Carlo Bernardini e el Scomìnsio de la Colònia Caxias – 1890 CORRIGINDO

 


Dal Vèneto a la "Serra Gaúcha": la zornada de Carlo Bernardini e el scomìnsio de la Colónia Caxias – 1890

Quando el bastimento el ga traversà l’Atlántico e l’orisonte el se scoverse soto le nèbie pesà, Carlo Bernardini capì che la vita vècia la zera finì. Maser, el paeseto de coline e de nèbia in provìnsia de Treviso, restava drio de luse, come un quadro consomà dal tempo. In autono de 1887, lu avea lassà la so tera con el cuor spacà tra la misèria e la speransa.
L’Itàlia, che da poco la zera fata unita, no zera gnanca pì un sònio: tera poca, fame tanta, e el pan contà. Ma l’Amèrica, al contràrio, la se disea che la iera ’na tera de promesse, ndove el grano el nasséa sensa dificoltà e el Governo regalava tera a chi che gavéa el corio de lavorarla.

Tre ani dopo, su l’alture frede dei  monti del Rio Grande do Sul, Carlo l’avea imparà a portar su la pena del zorno. El laorava par el Governo, taiando la foresta e segnando i loti par i coloni novi. El capi ingegnere, un brasilian de modo fermo e parola lenta, l’aveva vardà che Carlo el zera un omo de fidùssia, e ghe gavea solicità per l´aministrassion de la Colònia de Caxias darghe un peso de tera lungo la strada granda.
Lì, tra i pini e el fumo de le prime foghere, Carlo l’alzò la so césa de tavole scure, e ogni martelà iera come un fià de vita nova. El lavorava da la matina fin che calava el scuro, guadagnando cinque fiorin al zorno — quanto bastava par viver e no morir de fame. Co’ quei pochi schei, el comprò do vacche e un caval, segno che la sorte, forse, la ghe faseva el primo sorriso.

El Brasile, par lù, iera un mistero che profumava de resina e de speransa. El mato se alzava fino al peto, el silensio de la selva el iera vivo come un respìro. Ogni albero butà zo, ogni pala infìssa ne la tera, iera un atto de fede.
Carlo sentiva che ’sto mondo novo, benché duro, ghe stava cambiando l’ànima.

La solitùdine la iera ’na compagna fedele. Ne le sere de piova, sentà davanti a la finestra, el vardava la strada de fango dove passava qualche caròssa o i altri emigranti che venìa dai altri paesi del Vèneto.
El pensiero del pare e de la mare el ghe serava el peto. El sognava de vedarli rivar, stanchi e curvi, portando co’ lori el odor de la tera e la vòs del campanile.

El Brasil ghe pareva un paese sensa fine. Ma sotto quel ciel tanto lontan, el sentiva ’na forsa nova che ghe teneva in piè. El lavor continuo, el sudore, la fadiga, iera diventai la so preghiera.
Con i altri coloni, che rivava da Treviso, Belluno e Vicenza, el metéa insieme speranse e mani. De mato fazéa campo, de pietra fazéa casa. Caxias, pian pian, diventava ’na parola con sentido, ’na patria che naséa nel silensio.

El tempo passava, e la colònia la se sistemava. Lungo la strada granda se fazéa la venda, la ghe se alzava la gleisa, la scola, la ferraria.
Carlo, che el lavorava par el Governo, l’era vardà come un pionèr, un che sapeva tegnér su el cor anche ne le giornàe più nere.
L’ingegnere Brito, el so caposuperiore, el diseva che in quel vèneto ghe iera più corajo che in dezena de brasiliani.

Ma la nostalgia no lo molava mai. Ne le noti de estate, co el vento portava l’odor umido del mato, Carlo rivedeva la nèbia de Maser, i sò campi, el fogo ne la casa. El sognava che, un dì, i genitori i rivasse anca lori, e che la mare la piangesse de contentessa vardando la casa nova che el fiol gaveva fato co le man.

Le letare le partiva ogni tanto, ma poche le rivava in tera. El sapeva che le parole, qualche volta, le se perdeva tra i monti e i mari. Ma el scriveva lo stesso, perché scrìvar iera come respirar. El ghe contava de la vita de Caxias, de la tera che rendeva, de la speransa de rivédarse tuto un giorno.

In autun del 1890, Carlo capì che el Brasile lo gaveva fato novo.
No iera più el contadin povero de Maser, ma un omo temprà da la fadiga e da la lontanansa.
I calli ne le man iera la so gloria, la tera lavoràa el so orgoglio.
E vardando i fioi de altri coloni che coréa tra le case nove, el sentiva che el sacrificio so no iera sta invano.

Soto quel ciel rosso de sera, Carlo Bernardini alzò el sguardo e capì che forse el futuro el naséa lì — proprio nel ponto dove la fadiga e la speransa se tocava.

Nota del Autor

’Sta stòria la ze ’na fission stòrica, ma nassesta sora le parole vere de emigranti veneti che, tra el fin del sècolo XIX, i scrivea da le colonie del Rio Grande do Sul.
Le so lètare, incoi custodì in musei e archivi, le conta la fadiga, la lontanansa e la fede de chi che i ga lassà Maser e le contrade de Treviso par trovar vita nova tra i monti e i vali de Caxias.

I nomi i ze stà cambià, ma l’ànima de la stòria la resta vera. L’intento de ’sto raconto el ze de far parlar ’na altra volta ancora quei òmeni e quei done che, con le man rote e el cuor pien de speransa, i ga fato del silénsio ’na pàtria e de la misèria ’na eredità.
Le so vose, scrite sora carta descolorà dal tempo, le resona ancora tra ’sti monti — come ’na preghiera che no se desmentega mai.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Echi de un Sònio Lontan


Echi de un Sònio Lontan


Lo scomìnsio de un Viaio

Zera i primi zorni de novembre del 1876, e i venti fredi zà sofiava sora la pìcola vila in meso al comun de Cison de Valmarino, su le coline del Vèneto. La vila, tuta avolta da la nèbia, la parea un quadro vivo de l’austerità che marcava la vita dei contadin. Le campane de la cesa de San Michele Arcangelo ecoava per le coline, anunsiando la messa de matina, mentre la famèia Bernasconi, formà da Pietro, Luisa e i so do fiòi pìcoli, Emilia e Lorenzo, la se trovava a infrontar el momento che ghe cambiava par sempre la vita.

La resolussion de partir par el Brasil la zera dolorosa, ma inevitàbile. L’Itàlia ghe dava poco pì che dèbiti, fame e tera straca. Pietro, un omo robusto con le man calegà, el zera abituà a la fadiga de ogni zorno contra el teren àrido e el clima duro. Ma anca la so resistensa, che no se piegava mai, la scominsiava a vassilar davanti a la misèria che cressea. El savea che la tera, che ‘na volta gavea mantegnù generassion de la so famèia, adesso no la zera pì bona gnanca par dar de magnar ai so fiòi.

´Ntela piasseta davanti a la cesa, ndove el vento al levava su le fóie seche e portava el profumo de castagne rostolà, Pietro el gavea abrassà so mòier Luisa. Lei la tegniea Emilia, de do ani apena, con la delicatessa de ‘na mama che gavea paura de perder quel poco che ghe restava. Lorenzo, de sete ani, el tegnea forte la man del papà, come se quel tasto el podesse mandar via la paura che el sentia. Intorno a lori, i amissi e i parenti i se gavea radunà par dirghe adio. I genitori de Pietro, zà veci, i ghe gavea dà un rosàrio e un libreto de orassion de Sant’Antonio. La benedission murmurà dal papà de Pietro la se smissiava con le làgreme che corea su la so fàssia inrugà.

«Prometi, Pietro, che no te desmentegarà le to radise», la disea so mama, tegnendoghe la fàssia tra le man. «E che, ovunque te sìi, te pregarà par che Sant’Antonio te guide i passi.»

El treno che i portava a Genova el spetava ´nte la stassion de ‘Valmarino. El fìs-cio, acuto e malincónico, el taiava l’ària freda come un adio definitivo. Mentre lori i montava su, Pietro el gavea aiutà Luisa a sistemar i pochi averi che i gavea podù portar: un bau de legno, ndove i tegnea vestiti rapesà, carte e qualche semensa che Pietro el gavea insistì a portar, come un sìmbolo de speransa.

Quando el treno el ga lassà la staion, le campagne familiari, con le so coline ondulà e i vigneti abandonà, le spariva pian pian. Luisa la tegnea Emilia in brasso, provando a calmarghe con cansonete basse, che gavea ninà generassion de la so famèia. Lorenzo, con i oci ùmidi, el scorava la testa su la spala del papà, provando a sconder le làgreme che no voleva lassar cader. «Te prometo che sarà mèio, fiol mio», el disea Pietro, con la vose ferma, ma el cuor pesà. El savea che ste parole no le zera solo par Lorenzo, ma anca par lu stesso.

La strada fin a Genova la zera segnà da silensi interoti da pochi discorsi. ´Ntel scompartimento del treno, altri contadin come lori i parlava del Brasil, descrivendolo come ‘na tera de oportunità. Pietro el scoltava atento, come se ogni parola la fusse ‘na mapa par el futuro.

A Genova, el movimento del porto i gavea siapà ´nte un vòrtice de rumori e odor. I navi grandi i spetava par traversar l’Atlántico, con le so ciminiere che sbufava fumo contra el cielo griso. El olor de sal, oio e pesse se smissiava con le vosi in tante léngue diverse. Pietro el tegnea Emilia in brasso e la man de Lorenzo ben streta, guidando la famèa in meso a la fola.

A bordo del vapor che i portava in Brasil, la vita la zera diventà ‘na rotina de spasi streti, magnar scarso e la presensa costante del mar infinito. Lorenzo el passava ore a vardar le onde, mentre Luisa la provava a tegner viva Emilia con stòrie de la so vila. Pietro, invece, el aiudava i altri passagieri con pìcole fassende, e la so’ atitude pràtica e determinassion ghe gavea fato guadagnà el rispeto de tuti.

Anca se el futuro el zera ancora un mistero, i Bernasconi i trovava conforto l’un in l’altro. Soto le stele de l’Atlántico, mentre la nave la dondolava pian, Pietro e Luisa i condivideva soni e paure. In ‘na de ste note, Pietro, con i oci fissi su l’orisonte, el gavea sussurà: «Noialtri construiremo qualcosa, Luisa. Qualcosa che i nostri fiòi i podarà ciamar casa.»

E cussì, con el cuor spartio tra la nostalgia e la speransa, la famèia Bernasconi la navigava verso un destin inserto, ma pien de promesse. Soto el cielo stelà del osseano, Pietro el pregava in silénsio, domandando forsa par infrontar le sfide che el savea che i ghe spetava.

El Mar de Promesse

A Génova, dopo quatro zorni de spera al porto, in meso al caos e a l’ánsia, finalmente i zera montà su el vapor Salier, ´na nave grande che prometea de portarli de l’altra parte de l’Atlántico, ma che drento la nascondea el vero peso de la traversia. L’imbarco el zera un spetàcolo de urli, pianti e òrdini confusi in tante léngue, mentre casse e valise le zera butà in freta ´ntel soto ponte e i passagieri i zera amontonà come mersi umane.

Quando lori i gavea passà la rampa par imbarcar su la nave, Pietro el tegnea forte la man de Lorenzo, mentre Luisa la portava Emilia in brasso, i so oci fissi su la nave grande, come se lori i volesse capir i segreti de la traversia. Apena messi piè su el ponte, i zera stà mandà zò ´ntei alogiamenti, ndove l’ària la zera densa e i spassi streti. Soto el ponte, le condission le zera dure: el olor de sal se ga misturà con el sudor, con el rancio de magnar guasto e con i rifiuti. El rumor del mar, che dovea essar tranquilisante, el zera coperto dai lamenti dei malà e dal pianto dei fiòi.

L’ambiente el zera ‘na lota contìnua par sopraviver. Famèie intere le condividea spasi pìcoli con sachi de roba e bèstie che fasea parte del càrico vivo de la nave. I pasti, servì in poche porsion, i zera quasi sempre ‘na zupa rala e pan duro che no bastava par la fame. L’aqua, spesso calda e con un gusto de fero, la zera rasionà, e questo creava tension tra i passagieri.

Lorenzo el ze stà el primo de la famèia Bernasconi a sentir el peso de quel ambiente. Dopo ‘na setimana de viaio, el gavea scominsià a gaver febre alta, con ‘na tosse che no finia e che preocupava tanto Luisa. Lei la passava le note in bianco, bagnando pani in aqua freda par metergheli in fronte e pregando Sant’Antonio con fervor, mentre Emilia la piansea sercando conforto. Pietro, anca se el provava a mostrar forsa, el sentia el peso de l’insertessa. El aiutava i altri passagieri con lavoreti come spartir el magnar o netar i spasi, ma la paura de perder el fiol la lo seguia come ‘na ombra.

Su el Salier, la morte no la zera ‘na visita inaspetada; la zera ‘na compagna silensiosa. Ogni novo zorno, el pianto sofocà revelava n´ altra pèrdita. I corpi che no resistea a le malatie i zera involti in lensuoi e, dopo ‘na breve orassion fata da un passagiero, el zera butà in mar. Vardar quei corpi sparir ´nte l’aqua profonda e sensa pietà la zera un ricordo crudele de la fragilità de le speranse. Pietro, quando el vardava ste serimónie improvisà, el strensea Lorenzo ancora pì forte, come se podesse protegerlo solo con l’ato de no lassarlo.

In meso a la desolassion, nasseva pìcoli gesti de solidarietà. ‘Na zòvane, che viagiava sola, lei ga condividì con Luisa qualche erba medissinal che lei gavea portà da la so’ tera, spiegando che podaria iutar a calmar la febre de Lorenzo. Pietro el se gavea unì a altri òmeni par improvisar ‘na zona pìcola ndove i fiòi i podesse star lontan dai corenti fredi che corea su la nave de note.

Quando el Salier finalmente el ga vardà la costa brasilian, el 30 de novèmbre del 1876, el solievo el zera mescolà de contentessa e strachessa. La nave la gavea rivà al porto de Rio de Janeiro soto un cielo blu ciaro, che contrastava con l’oscurità che tanti portava drento. I sopravissuti i zera ussì dal sotoponte come fantasmi: strachi, afamà e distruti, ma con ‘na scinta de speransa ancora viva ´ntei oci.

Pietro el gavea vardà Luisa e i fiòi con un sospiro de solievo, ma la so mente zà la zera ocupà con quel che vegnia dopo. Sbarcar la voleva dir solo lo scomìnsio de ‘na nova batàia. Con i piè finalmente su la tera brasilian, Pietro el gavea streto la man de Lorenzo e, con decision, el gavea sussurà: «Semo rivai, fiol mio. Adesso scomìnsia el nostro vero laoro.»

‘Na Nova Strada

Dopo un zorno de interminàbili speta in un alogiamento del governo al porto, ndove l’odor de sal, pòlvere e pesse màrssio se snissiava con le voci dei emigranti, finalmente el ze rivà el momento de ndar avanti. Le autorità brasilian, con la so’ fredessa burocràtica, le gavea organizà i novi rivà in grupi e, soto un caldo sofocante, i gavea mandà verso sud, verso el Rio Grande do Sul. La nave i gavea portà fin al porto de Rio Grande, ndove, dopo qualche zorno de sosta, i zera stà messi su picoli vapori fluviali, che i portava su per el rio, traversando la grande Lagoa dos Patos.

El viaio su el fiume Caí el zera incantador, ma anca triste. La natura selvàdega, con verdi profondi e montagne lontan, la se stendea davanti a lori come un quadro, ma sensa segni de civiltà. Foreste dense, con àlbari dai tronchi storti e grandiosi, le copriva le rive, mentre la corente del fiume Caí a volte la pareva voler inghiotir i vapori con le so aque ribeli. El rumor dei motori e de le èliche che taiava l’aqua el zera quasi l’ùnico suon che rompeva el silénsio pesà, interoto solo dai sussurri de le famèie, che provava a coprir l’ànsia con parole basse e oci sospetosi. Pietro e Luisa, con i fiòi, i vardava l’imensità de ‘sta natura primitiva, sensa ancora capir la grandessa de la sfida che i gavea davanti.

Quando i ze rivà al porto de Montenegro, ‘na sitadina pìcola su la riva del rio Caí, Pietro no podea no sentir un nodo al cuor. El posto, ancora greso e poco svilupà, el zera lontan milie da le promesse de prosperità che i gavea sentì. A Montenegro no ghe zera altro che qualche casa sèmplisse e un comèrssio scarso, tuto in condission precàrie. Là, i emigranti, sensa la mìnima idea de quel che vegnia dopo, i zera stà lassà a lori stessi. No ghe zera ripari pronti, no ghe zera magnar bastante, e gnanca un piano ciaro su come rivar a le tere promesse. El sol el stava calando quando le autorità locai le gavea dito che i dovea continuar el viaio, ma no ghe zera tempo o forsa par protestar. Lori i zera soli.

El cielo scuro de la note, pien de stele iluminà, el zera l’ùnica protession che i gavea trovà. Sensa altre possibilità, Pietro e Luisa i gavea steso i so’ pochi averi su el teren, creando un leto improvisà tra lori e la tera dura. Emilia, ancora pìcola, la se gaveva strenta a la mama, mentre Lorenzo, con i so sete ani, el podea a pena tegner i oci verti par la stranchessa. El teren el zera fredo e rùvido, ma el caldo de la famèia, unì ´nte la stessa pena e la stessa speransa, el dava un poco de conforto. Con la pansa voda e l’ánima pesà, i se gavea sdraià soto el cielo stelà, provando a tegnerse a ‘na breve sensassion de sicuresa, mentre la paura de quel che vegnia dopo la strensea i so cuor.

La matina dopo, ancora con i segni de la stranchessa in fàssia, le famèie le gavea scominsià a radunarse, preparandose par la strada nova. Montenegro la zera solo ‘na tapa, un punto de passàgio par i emigranti, che adeso i dovea infrontar un novo sfido: el viaio fin a le tere promesse, ´nte le colònie italiane de la serra gaùcha. La strada che i spetava la zera dura, storta e sensa nessuna comodità, come i gavea sentì contar da altri emigranti.

Da lì, scominsiava ‘na strada segnà da la forsa, la resistensa e la grande speransa che ancora vivea ´ntel cuor de sti òmeni e fémene. Certi i ze ndà a piè, portando i fiòi pìcoli in brasso o legà su la schena con lensioi consumà, mentre altri i infrontava el viaio su cari improvisà. El scricolar de le rode ´ntei solchi de la tera seca se smissiava con i lamenti de la fame, e la pòlvere de la strada, alsà a ogni passo o scossà, la parea incolarse a la pele e ai polmoni, rendendo el viaio ancora pì duro. El caldo del zorno, misturà a l’umidità de la mata, el trasformava ogni passo in ‘na lota. La foresta infinita la parea inghiotirli pian pian, i fiumi ribeli i desafiava i so limiti, e l’imensità de le tere vèrgini la zera come ‘na metàfora de la solitùdine che spetea tuti.

A ogni chilómetro, el peso del viaio cressea, ma anca la determinassion. Pietro, con le so man calose de ‘na vita de lavoro, no lassava che la debolessa ghe vincesse. Luisa, con l’òcio fermo e la vose dolse, la consolava i fiòi, disendo che el futuro che i spetava in fondo a la strada el saria stà degno de tuti i sacrifìssi. A ogni sosta, a ogni note soto el ciel stelà, ‘na nova speransa la nassea in lori, come ‘na fiameta che resistea al vento fredo de l’incertessa.

Traversando foreste dense, superando fiumi pericolosi, Pietro e la so famèa i ndava avanti, lassando drio i echi de l’Itàlia e enfrentando le novi sfide de ‘sta tera strana. I zera lontan da le so case, lontan da le strade de Cison de Valmarino, ma el spìrito de lota e la promessa de ‘na vita nova in Brasil i tegnea saldi.

La Lota ´nte na Tera Nova

I zorno dopo l’arivo ´ntel mondo novo i zera stà duri. El caldo de l’istà del sud el bateva forte, sensa pietà, mentre l’umidità de la foresta la parea involver tuto come ‘na nèbia sofocante. Ma la famèia Bernasconi no gavea tempo par lamentarse. Ogni matina, el suono de la manara de Pietro che taiava la foresta el bateva insieme al so cuor determinà. El zera un omo con le man calose e ‘na volontà che no se piegava, pronto a trasformar la tera cruda e ostile in qualcosa de suo.

Con solo un’ascia e ‘na falce in man, Pietro el gavea scominsià el laoro duro de desbravar el teren par costruir ‘na capana par la so’ famèia. Ogni colpo de l’atreso ´nte la tera el parea un sforso grandioso, parché el suolo, coperto da ‘na vegetassion densa e dura, el resisteva con forsa. Ma Pietro no se gavea lassà bater. Ogni toco de tera che sedeva soto i so brassi, un spiraio de futuro el brilava pì forte ´ntel so cuor. La so mente, anca se straca e pien de dificoltà, la zera sempre voltà verso quel che vegnia: ‘na casa, el sustento e la promessa de un novo scomìnsio.

Luisa, ancora dèbole dal viaio sfassiante, ma con ‘na forsa silensiosa che parea vegnir da un posto profondo, la se dividea tra curar Lorenzo, che se recuperava pian da ‘na febre che l’avea colpì ´ntel viaio, e preparar el magnar. Polenta fata con formenton sèmplise, qualche pignon e radise che la gavea trovà su le rive del fiume i zera el pasto de ogni zorno, ma el magnar no bastava mai par sfamar la fame. Nonostante tuto, lei no se lamentea. L’òcio che la dava ai fiòi, Emilia e Lorenzo, el zera quel de ‘na mama che, anca con la pena e la strachessa, lei gavea ancora speransa che, con el tempo, el sol el saria tornà a brilar sora de lori.

De note, quando el laoro del zorno finalmente el lassava posto al silènsio de le stele, Pietro el se sentava con i fiòi intorno a ´na pìcola foghera che i podea tegner impissà, anca ´ntei zorni pì ùmidi. El fogo, anca se dèbole, el scaldava i so corpi strachi, ma, ancora pì importante, el nutria le so ànime. Pietro, con la vose grave e calma, el contava stòrie de la so tera in Itàlia provando a tegner viva la conession con el passà, con el Piave e le montagne che tanto el amava. «Lorenzo», el disea, con la man su la spala del fiol, «ricordate chi che semo. No desmentegar mai el Piave e le nostre montagne. Le vive drento de noialtri. No importa quanto ‘sta tera sia strana, no importa la distansa da casa, ste montagne le sarà sempre con noialtri.»

Ste parole le zera el so conforto, la so àncora, mentre i provava a dar forma al futuro lontan che i soniava. Ma el presente, con la so duressa, el zera sensa pietà. L’isolamento el zera total. L’ùnico contato con el mondo el zera con i pochi che passava per le strade de la mata, e le malatie, sensa dotor e con pochi rimedi, le rendeva le note ancora pì longhe e preocupanti. Quando Lorenzo el ze tornà malà, la febre che lo consumava la gavea portà ‘na nova paura, ‘na paura profonda che se infilava ´ntei cuor dei genitori, ma, come sempre, la speransa la era più forte. Luisa, con la so dolcesa e dedicassion, lei passava le note in bianco visin al fiol, fasendo compresse e sussurando orassion, mentre Pietro, anca se tasea e preocupà, el fasea quel che podea par portar pì legna e magnar.

I zorni, e dopo i mesi, i passava lenti, con la sttachessa che se formava ´nte la so vita come ‘na ombra costante. Ma a la fin de l’inverno, quando la tera la zera ancora freda e ùmida, Pietro el gavea podesto versa un toco de tera arà. El gavea vardà la tera, con le man sporche e el sudor che colava da la fronte, e un soriso legero el ze nato su la so’ fassia. La zera ‘na pìcola vitòria, ma par lu la valeva pì de ogni altra cosa. El primo toco de tera che el gavea domà con el so sforso e sacrifìssio ghe gaveva fato vegnir le làgreme ai oci. El zera come se el gavea finalmente tocà ‘na parte del so sònio, qualcosa che, fin alora, el parea lontan come le montagne de la so tera.

Par la famèia, quel toco de tera el rapresentava lo scomìnsio de qualcosa de pì grande, de ‘na casa fata con sudor, con dolori, ma anca con la sertessa che la vita la continuava, che se podea ricominsiar. I gavea ancora tante dificoltà, ma qualcosa de novo el nassea lì, in meso a la solitudine de la mata, a la duressa del laoro e al peso de la nostalgia. La promessa de un futuro mèio la scominsiava a diventar vera.

Pietro, straco ma con l’ànima forte, el gavea vardà la capana che csominsiava a prender forma e, con un fià profondo, el gavea murmurà: «Questa sarà la nostra casa, Luisa. Qua, troveremo pase.»

E cussì, la strada de la famèia Bernasconi la gavea scominsià a prender la forma che i sperava. Un passo a la volta, con fede, con forsa, con speransa.

El Nadal del 1876

Quando el Nadal del 1876 el ze rivà, in quei tempi no ghe zera regali, né àlbori adornà come incòì. El caldo de l’istà el involgea la pìcola capana ndove i Bernasconi i se riparava, e la tera, ancora cruda, la mandava odor de erba seca e de foresta densa che i sirconda. No ghe zera bancheti su la tola, solo la semplissità de la polenta e el poco che i podea coier da la tera.

In quela note, soto el cielo ciaro e caldo, Pietro, Luisa e i fiòi i se gavea riunì intorno a la foghera. El caldo de la fiama el contrastava con la bresa calda che passava tra le àlbori, ma tutavia ghe zera un silénsio profondo e ‘na sensassion de union. El Nadal, par lori, no el zera ‘na festa, ma un momento de orassion, de pensier e de ringrasiamento par la vita e par el coraio de ndar avanti.

«Che el Signor daga a noialtri forsa par continuar», el gavea dito Pietro, con la vose bassa e ferma, vardando le stele che scominsiava a brilar in cielo. «Questo no ze la fin de la nostra lota, ma lo scomìnsio de qualcosa de novo. Insieme, construiremo un futuro.»

No ghe zera risa o canti alegri, ma ghe zera la certessa che lori i zera vivi, e questo, in qualche modo, el zera un motivo par dir gràssie. Le orassion de Luisa e Pietro le se intresiava, domandando forsa e speransa par i zorni che vegnia, un futuro che ancora el parea lontan e inserto.

E cussì, in quela note calda e silensiosa, i Bernasconi i gavea selebrà un Nadal diferente: sensa lussi, sensa feste, ma con la fede silensiosa che, nonostante tute le dificoltà, el futuro ghe reservava ancora ‘na possibilità de prosperar.

Nota del Autor

La costrussion de Echi de un Sònio Lontan la ze nata da ‘na profonda admirassion par le stòrie de coraio e resistensa che ga formà le basi de tante nasion. Inspirà da la saga dei emigranti italiani che, a la fin del secolo XIX, i ga traversà ocean in serca de un futuro mèio, sto romanso el vol onorar le memòrie de quei che, anca davanti a dificoltà che no se podea imaginar, i ga tegnù viva la fiama de la speransa.

Sto libro el ze ‘na òpera de fission, ma tante de le situasion contà le ze el riflesso de raconti veri che mi go trovà in diari, letere e registri stòrici. La soferensa, l’isolamento e le fadighe ‘nfrentà da sti pionieri no le ze stà romantisà; al contràrio, mi go provà a mostrar la cruda realtà che i sirconda. Tutavìa, mi go sercà de selebrar la so forsa, le so tradission e l’eredità cultural rica che i ga portà con lori.

La narrassion, pì de tuto, la ze un omaio. ‘Na ode a quei che no solo i ga sonià, ma i ga avù l’audassia de lotar par el sònio, anca in tere scognossù, tra foreste dense e mari ribeli.

Ringrazio tuti i stòrici, i risercatori e i dissendenti de emigranti che i ga condividì le so stòrie con mi, permetendo che le so vose le ecoa in sto libro. Spero che Echi de un Sònio Lontan no solo el comova, ma el inspire anca pensier sul poder del spìrito umano davanti ai sfidamenti, ricordandose che le radise che piantemo ancò le pol fiorir in qualcosa de straordinàrio par le generassion che vegnerà.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



sábado, 18 de outubro de 2025

A Promessa de Liberdade


 

A Promessa de Liberdade

Caminhos de coragem e esperança

No final do outono de 1876, Giovanni Santaron, natural do pequeno comune de Valstagna, no coração da província de Vicenza, sentiu o peso de séculos de montanhas estreitas e terras insuficientes ficarem para trás. O Adriático já estava distante, e o som constante do Brenta correndo entre as rochas havia sido substituído pelo silêncio profundo das matas brasileiras. Ele chegara, com a esposa e os filhos, após meses de incertezas e mares revoltos, a um pedaço de mundo chamado Campo dei Bogheri, parte da recém-criada colônia de Caxias, no extremo sul do Brasil, província do Rio Grande do Sul.

A paisagem o impressionou desde o primeiro instante. Ondulações verdes se estendiam até onde a vista alcançava, quebradas apenas por árvores de troncos grossos e copas altas, como sentinelas de um reino intocado. O solo, escuro e fértil, prometia abundância a quem soubesse dominá-lo. Os colonos diziam que cento e cinquenta campos de terra poderiam sustentar setenta famílias com folga, e Giovanni, ao percorrer os limites de seu lote, via a promessa materializar-se em cada palmo. Ali, um mês de trabalho duro podia prover alimento para um ano inteiro. Para um homem que conhecera a fome e o frio das encostas alpinas, aquilo soava quase como milagre.

As autoridades imperiais brasileiras haviam cumprido sua palavra: na chegada, receberam víveres suficientes para atravessar os primeiros meses. Restava transformar a mata cerrada em lavouras, mas o tempo jogava a favor. A cada machadada, o cheiro fresco de madeira recém-cortada se misturava ao aroma úmido da terra exposta, e o suor parecia se converter em esperança.

Giovanni sentia a ausência da família deixada na Itália como uma ferida aberta. O pai, já envelhecido, e o irmão Pietro, preso às obrigações da aldeia, não conheciam a liberdade que ele experimentava. Em suas cartas, descrevia o ar puro e a água cristalina que corria em abundância, tão diferente da escassez do vilarejo natal. Repetia que não havia perigos nem no mar nem na terra, que o governo era justo e que, ali, até os velhos rejuvenescendo pareciam reencontrar a força.

No silêncio das noites frias, imaginava a chegada deles. Já se via indo ao porto fluvial com os cavalos para buscá-los, conduzindo-os diretamente ao novo lar, sem o desconforto das casas de imigração. Recomendava que trouxessem ferramentas de ferro, sementes e mudas de videiras, pois sonhava em ver o vale coberto por parreirais como os que conhecera em Vicenza.

Para ele, partir da Itália fora mais que uma decisão econômica: era um ato de libertação. Chamava sua terra natal de "prisão", não por falta de amor, mas pelo peso das limitações impostas por séculos de pobreza e de terras insuficientes. No Brasil, encontrara não apenas espaço e fartura, mas a sensação de que, pela primeira vez, era dono do próprio destino.

Enquanto o inverno se aproximava, Giovanni ergueu a primeira casa de madeira, sólida e simples. No quintal, linhas de milho já despontavam, e entre as árvores, reservava espaço para as primeiras videiras que chegariam com a família. Ele sabia que a vida ali exigiria trabalho árduo, mas já não temia o futuro. Naquele pedaço de terra distante, a promessa de liberdade finalmente tinha raízes.

A construção, feita com troncos cortados na própria mata, exalava o perfume fresco da madeira recém-trabalhada. As paredes ainda guardavam marcas de machado e de serrote, testemunho da força e da persistência aplicadas em cada encaixe. Ao redor, o chão de terra batida começava a tomar forma de quintal, com pequenas clareiras abertas para a horta e um cercado improvisado para as galinhas que pretendia criar.

Nos finais de tarde, quando o sol se inclinava por trás das colinas, a luz dourada se infiltrava entre as frestas da casa, pintando de âmbar o interior simples. Giovanni observava o milho crescer dia após dia, sentindo que aquelas hastes verdes eram mais do que cultivo: eram o sinal concreto de que a dependência dos auxílios iniciais do governo logo ficaria para trás.

No espaço reservado para as videiras, ele já visualizava fileiras ordenadas que, no futuro, dariam sombra nos verões quentes e cachos maduros para o vinho que lembraria as colinas de Vicenza. Essa imagem lhe trazia um conforto silencioso, como se parte da Itália fosse recriada ali, no coração da colônia.

O inverno chegaria breve, trazendo noites frias e neblinas densas que se deitariam sobre os vales. Mas Giovanni sentia-se preparado. A casa lhe oferecia abrigo, a terra começava a responder ao seu esforço e, pela primeira vez em muitos anos, o horizonte não lhe parecia uma barreira, mas uma promessa aberta.

Nas madrugadas claras, quando o orvalho se acumulava como pequenas pérolas sobre as folhas, ele caminhava lentamente pelo terreno, ouvindo apenas o próprio passo sobre a relva úmida. Nessas horas, percebia que a liberdade não era apenas a posse da terra ou a fartura que ela prometia, mas também a ausência do medo constante que o acompanhara na Itália — medo de más colheitas, de impostos sufocantes, de senhores distantes decidindo o destino de famílias inteiras.

Agora, cada amanhecer trazia um sentido novo. Os filhos, brincando no terreiro, aprendiam a medir o tempo pelo crescimento das plantas e pela chegada das estações. A esposa, mesmo cansada, cantava baixinho enquanto cuidava das primeiras ervas da horta. Tudo ainda era frágil, mas tudo também era verdadeiro.

E, assim, no coração do inverno que se anunciava, Giovanni compreendeu que não havia viajado apenas para escapar da miséria: ele havia vindo para plantar um futuro. E esse futuro, tal como as raízes que se aprofundavam sob a terra negra, estava destinado a permanecer.

Nota do Autor

Ao escrever esta história, busquei captar não apenas as palavras de um tempo distante, mas a alma pulsante daqueles que, com coragem e fé, deixaram para trás suas terras natais em busca de uma vida melhor. A saga de Giovanni Santaron — homem simples, mas imenso em sua determinação — é também a história de milhares de italianos que cruzaram oceanos, enfrentaram a incerteza, o medo e o esforço para construir novos lares sob céus desconhecidos.

Para vocês, descendentes dessa herança rica e profunda, ofereço esta narrativa como uma ponte entre passado e presente. Que ela traga à tona o orgulho das raízes que vocês carregam e a consciência do sacrifício silencioso que moldou suas famílias. Que possam sentir, nas palavras, o cheiro da terra recém-arada, o frio das noites no novo mundo e o calor das esperanças que jamais se apagaram.

Esta é uma homenagem aos imigrantes que, mesmo diante das adversidades, encontraram na coragem a força para recomeçar. Que seu legado inspire a cada um de vocês a valorizar o passado, a respeitar a luta daqueles que vieram antes e a construir, com a mesma bravura, os sonhos do amanhã.

Com profunda gratidão e respeito,

Dr. Piazzetta


quarta-feira, 15 de outubro de 2025


A Promessa de um Novo Horizonte

A Saga de Pietro Galvani em Terras Gaúchas

Na quase esquecida fração de Alberoro, no pequeno município de Monte San Savino, com somente uma dúzia de construções em pedra, nas planícies onduladas da Toscana, em 1884, a conversa sobre a "Merica” dominava as praças e os encontros em família. Pietro Galvani, um homem de 36 anos, ouvia atento as histórias contadas após a missa dominical na pracinha da localidade por algum vizinho que havia recebido cartas da Argentina ou do Brasil. Diziam que essas terras eram um paraíso onde o ouro fluía nas águas dos rios e as plantações cresciam sozinhas sob um sol generoso.

Piero era um agricultor modesto, casado com Francesca De Martino, uma mulher decidida e resiliente. Eles tinham quatro filhos: Emilio, de 12 anos, que já ajudava o pai no campo; Giulia, de 10, sonhadora e talentosa com agulhas e linhas; Antonio, de 7, sempre curioso e questionador; e o pequeno Luca, de apenas 2 anos. A vida na Toscana era muito dura naqueles anos. As terras estavam exauridas, os impostos eram sufocantes e os Galvani mal conseguiam alimentar a família. Quando o tio de Pietro, Domenico Galvani, escreveu do Brasil falando sobre a abundância de terras férteis e os salários pagos em ouro, Pietro e Francesca começaram a considerar o impensável: também emigrar, seguindo aquela corrente que desde 1875 engrossava a cada ano, de milhares de compatriotas que descontentes deixavam tudo em busca de uma nova vida do outro lado do oceano. 

Francesca hesitava. Deixar a Itália era abandonar o que restava de sua identidade, sua língua, suas tradições. Mas Pietro sabia que não tinham outra escolha. Em uma noite fria de final de novembro, com o vento uivando pelas frestas da janela, ele disse:

— Francesca, é agora ou nunca. Se ficarmos, não teremos futuro. Se formos, podemos dar às crianças uma vida que nunca sonharíamos aqui.

Com lágrimas nos olhos, Francesca concordou. Venderam tudo o que possuíam: os móveis, a mula, até mesmo os utensílios de cozinha. Em março de 1885, embarcaram no porto de Genova no navio a vapor Príncipe de Asturias, rumo ao Brasil.

A viagem foi uma provação. Por 33 dias, enfrentaram tempestades, enjôos e a monotonia do oceano. Luca, o mais jovem, contraiu uma febre durante o trajeto, e Francesca passava noites em claro cuidando dele. Apesar das dificuldades, Pietro mantinha a esperança viva, reunindo os filhos todas as noites para contar histórias sobre as terras que os aguardavam.

Chegaram ao porto de Santos em um dia chuvoso. A visão do cais, com suas multidões de imigrantes, trabalhadores e mercadores, foi ao mesmo tempo assustadora e emocionante. Após alguns dias de espera, foram transferidos para o sul, chegando ao Rio Grande em um outro navio menor, apertado, ao lado de outras famílias italianas. Finalmente, desembarcaram no Porto de Rio Grande, no dia 13 de maio de 1888, o mesmo dia em que a escravidão foi abolida no Brasil.

Os Galvani foram enviados para uma colônia em uma região de mata densa chamada Colonia Dona Isabel. Cada família adquiriu do governo em incontáveis prestações, um grande pedaço de terra coberto por árvores altas e cipós, e a primeira tarefa era desbravar a floresta. Pietro e Emilio trabalhavam incansavelmente, derrubando árvores e preparando o solo para plantar milho, trigo e feijão em pequenos espaços abertos na mata enquanto Francesca cuidava das crianças e sempre achava tempo de dar uma mão ao marido no trabalho duro da roça.

As noites eram longas e difíceis. Giulia, que sentia muita falta da avó e dos primos, chorava baixinho para não preocupar os pais. Antonio fazia perguntas intermináveis sobre os animais da floresta e sobre os diversos sons que ouvia à noite. E Francesca, apesar de sua resistência, às vezes murmurava em voz baixa:

— "Se eu encontrasse Cristóvão Colombo, eu o faria pagar por ter descoberto esse lugar".

Depois de alguns anos de luta constante, a família começou a ver os frutos de seu trabalho. A primeira colheita foi modesta, mas suficiente para sobreviver. Piero construiu uma pequena adega onde fermentava vinho com as primeiras uvas que plantaram. O vinho logo se tornou conhecido entre os colonos, e os Galvani ganharam um pouco de crédito com os comerciantes locais.

Em 1892, Emilio, agora com 19 anos, casou-se com Teresa Benvenuto, uma jovem da colônia vizinha de Caxias. Juntos, começaram a expandir os vinhedos da família, plantando novas variedades de uvas trazidas da Itália. Antonio, sempre curioso, tornou-se um talentoso carpinteiro, fabricando móveis que eram vendidos em Porto Alegre. Giulia, com seu talento, começou a ensinar outras jovens da colônia, enquanto Luca, o caçula, se tornou o contador da família.

Pietro faleceu em 1912, aos 63 anos, deixando um legado de perseverança e coragem. Francesca viveu até 1925, cercada pelos netos que a ouviam contar histórias da Itália e da travessia que mudou o destino da família. A colonia prosperou rapidamente, tornando-se o município de Bento Gonçalves, e a cantina dos Galvani é hoje uma das mais renomadas da região.

Os descendentes de Pietro e Francesca continuam a celebrar as tradições italianas, lembrando-se dos sacrifícios de seus antepassados e da coragem que os trouxe a esta nova terra.

Nota do Autor

Os personagens e nomes apresentados nesta narrativa são fictícios, mas a história é real. Ela nasceu a partir de uma carta familiar autêntica, escrita no final do século XIX, que chegou às minhas mãos durante uma pesquisa em um acervo museológico no Rio Grande do Sul — um lugar de memória onde se preservam cartas, diários, mensagens e objetos pessoais dos pioneiros imigrantes italianos que ajudaram a construir o sul do Brasil.

Ao decifrar a caligrafia desbotada e as palavras marcadas pela saudade e pela esperança, foi possível entrever o drama humano que se escondia nas entrelinhas: o medo da travessia, o choque com o desconhecido e a obstinada fé no trabalho como caminho para a dignidade. A carta original não mencionava apenas fatos, mas sentimentos — o desespero de deixar a pátria, a ternura pelos filhos, a coragem silenciosa das mulheres e a esperança renascida a cada amanhecer na nova terra.

Os nomes foram alterados para preservar a privacidade dos descendentes e para permitir liberdade literária na reconstrução dos eventos. No entanto, cada gesto, cada dor e cada conquista descritos nesta história pertencem verdadeiramente aos homens e mulheres que, com as próprias mãos, transformaram a mata bruta em vinhedos e vilas — e que, sem saber, escreveram um dos capítulos mais comoventes da saga da imigração italiana no Brasil.

Esta narrativa é, portanto, uma homenagem a eles: aos Galvani de todos os sobrenomes, cujas vozes ecoam ainda hoje entre os vales, nos sotaques mistos, nas celebrações familiares e no vinho que perpetua a memória dos que ousaram sonhar com um novo horizonte.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta




sábado, 11 de outubro de 2025

Traduçao da Carta de Dom Domenico Munari ao Arcebispo em 1877

 



Carta de Dom Domenico Munari

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 21 de outubro de 1877

Diletíssimo Arcebispo,

Este dia, que em anos passados eu costumava passar em meio à alegria de doces amigos, este dia me recorda Arsiè e a bela sua solenidade aniversária do terceiro domingo de outubro, e muito mais me recorda os dilettíssimos amigos com os quais eu costumava conversar com alegria em tempos menos infelizes do que o presente.

Antes de todos esses amigos, naturalmente, vem Vossa Senhoria, diletíssimo Arcipreste, e por isso a Vós devo por esse título escrever a presente, e escrever-Vos destas múltiplas penas.

Gozo perfeitamente de saúde, embora a sorte iníqua se ria de mim e me lance os golpes mais cruéis nos meus espíritos, especialmente no decorrer do meu destino a estes lugares do novo mundo; todavia não perdi ainda aquele meu habitual e natural bom humor, que me faz rir até mesmo da desgraça.

Depois de tantas desventuras, a partida e o naufrágio nas costas da França (coisas que já conhecereis), depois de 40 dias de viagem, decidi arriscar-me a vir aqui, ao Brasil, que ainda não conhecia, apenas ouvindo falar. Atravessei o Atlântico desembarcando em Rio Grande no dia 10 de agosto; de lá embarquei num vaporzinho e em 12 dias, passando por Lisboa e Santa Cruz das Canárias, finalmente me encontrei nesta terra.

Permaneci no Rio de Janeiro por 12 dias; mas vendo que ali circulava a “Seca”, que com a foice da febre amarela ameaçava mandar-me ao coveiro e engordar os ratos, tratei logo de escapar e embarquei num vapor que me trouxe ao Rio Grande do Sul; entrei pelo canal de Porto Alegre e fui enviado para a cura de Conde d’Eu, colônia italiana de 4.000 e mais almas. Logo em seguida foi anexada também a colônia Dona Isabel de outros tantos italianos; mas, considerando a impossibilidade de poder reger com tanto encargo, especialmente com a indiferença, com o astúcia das vorazes Harpias que presidem aquela infeliz colônia, apresentei ao Governo a minha demissão, por ter o Bispo erigido uma nova Paróquia, como me foi prometido e espero.

Agora gozo de ótima saúde e bom humor, e com isso celebro o Ofício e a Missa, e escrevo a alguns amigos. Não será surpresa que eu não retorne à colônia Conde d’Eu, mas agora por conselho do Bispo não volto, nem os colonos querem, e com razão, dar uma lição de equidade e justiça ao Chefe da Colônia que os trata pior que escravos. Oh! pobres italianos imigrados! Quanta angústia e privações devem sofrer, e quantos sacrifícios devem fazer para se estabelecerem em uma selva selvagem áspera e forte! A maioria amaldiçoa o dia em que descobriu a América, maldizendo o desgosto, a emigração e o dia da sua partida para estas partes, e desejariam morrer miseráveis e nus em sua pátria, em vez de se verem privados de cada conforto em meio a essas antigas selvas, sem esperanças de retorno, e com pouca esperança de prover o necessário.

E como são tratados os colonos, posso jurar que nenhuma miséria é igual a essa.

Mas quem acreditará em mim? Tantos desses miseráveis, quando escrevem, por medo de que suas cartas não cheguem às suas pobres famílias (porque o Czar das colônias tem tudo em mãos para entregar ao longínquo correio), escrevem bem; mas isso não é verdade e não pode ser. E como poderão chamar-se felizes?

Aqui é uma selva, e no princípio sem teto, e depois uma cabana semelhante ao presépio de Belém, feita em grande parte de varas, onde o ar e a água dominam sempre.

Enquanto escrevo, os colonos devem levar-se à própria colônia, onde encontram apenas mato, mato e mais mato. Dez dias só de comida são dados a eles, e depois nada, nada e nada. Uma vez paga a casa com 105 florins, depois muda-se a máscara, e só 25 florins (quando Deus quer) são dados de ajuda, que equivalem a 25 francos de nossa moeda, e a menos de 25 francos.

Verdadeiramente digo-vos, e o Senhor é minha testemunha.

De fato, neste emaranhado não entra o Governo do Brasil, porque este estaria disposto a ajudar; mas são as companhias que, como o Czar e as Harpias, sugam das últimas forças do pobre colono, até o ponto de este sucumbir miseravelmente.

Avisai ao Governo já que a emigração deve ser fechada, se ele vos ouvir, e se me ouvir também. Oh, pobres cegos e miseráveis, nada são e nada mais se tornarão, senão ainda mais miseráveis! Agora a Vós posso e devo escrever a verdade, porque estou fora da pressão deles. Avisai em Igreja o povo, que não tome por ora o caminho da América, pelas causas indicadas.

Passo a falar de outras coisas da emigração.

As notícias que tenho em resumo são estas: os emigrados italianos sofrem com o calor excessivo do clima, com a absoluta falta de pão, de vinho, que devem substituir (se podem) por uma espécie de água extraída da cana-de-açúcar fermentada, com sabor desagradabilíssimo. A terra é fértil, mas é coberta de mato e de florestas imensas, com árvores de até 2 metros de diâmetro; para derrubá-las é preciso o trabalho de dois homens robustos durante um dia inteiro, trabalho desproporcional ao hábito do italiano emigrado, que muitas vezes não compensa a fadiga suportada. Além disso, muitas vezes a seca arruína as colheitas, e se não há seca, uma chuva repentina as destrói, ou uma geada mata as plantas na primavera; outro dia foi uma grande granizada, que em um quarto de hora, enquanto o pobre colono mal acreditava no que via, arrasou tudo.

Quando a terra tivesse muito fruto, o colono não poderia pagar ao Governo o preço da terra, pela absoluta falta de comércio, estando as colônias muito longe dos centros comerciais e com estradas tão péssimas que nem mulas podem transitar. Assim, em meio às misérias e angústias, prepara-se talvez um pão, mas certamente se prepara uma grande dívida, que dificilmente poderá pagar.

Quanto ao espiritual, é coisa péssima em tudo.

A religião professada pelos americanos do Rio Grande do Sul é precisamente a nulidade de toda religião; são “frammassoni”, mas não sabem o que isso significa; são católicos, mas não conhecem nada do cristianismo; são protestantes sem saber o que é o protesto. Na verdade, são indiferentes à religião, e nada mais.

A esse propósito, quero transcrever duas linhas do Boletim da Sociedade de Patronato dos Emigrantes Italianos, publicado em Roma em janeiro de 1876:
“As mulheres (dos imigrantes) se dão à prostituição; ao redor das meretrizes vivem outros emigrantes italianos, em péssimos costumes, lascivos, e sem freios.”

E mais:
“Há um turbilhão de emigrantes italianos atirados à mendicância, sem advertência da sua condição e da sua miséria, de modo que uma décima parte deles se encontra em situações horríveis, arruinados moral e materialmente, expostos a todos os perigos, reduzidos à condição de escravo por muitos e muitos anos.”

Portanto, quanto ao corpo e quanto ao espírito, os colonos perecem, e infeliz será quem se aventurar a emigrar para cá. A Providência talvez reprovará a nossa emigração: para mim isso já é mais que suficiente.

Assim escrevo apenas para bem do povo italiano.

De coração, vos saúdo.
Vosso devotíssimo amigo e confrade,

Don Domenico Munari
Ex-pároco de Fastro 

Nota do Autor

A carta do padre Domenico Munari, escrita em 1877, é um documento raro e pungente, impregnado de desilusão, compaixão e testemunho humano diante do drama dos primeiros colonos italianos no Rio Grande do Sul. Nela transparece a alma de um pároco sensível, formado na serenidade dos vales vênetos, lançado de súbito ao coração de uma terra bravia e hostil, onde seus conterrâneos lutavam para sobreviver entre o mato, a fome e a solidão.
Munari não escreve como observador distante, mas como alguém que compartilha a dor dos seus. Sua pena é, ao mesmo tempo, denúncia e desabafo. Ele vê nas companhias colonizadoras “harpias vorazes”, exploradoras do suor dos emigrantes, e descreve com espanto o contraste entre as promessas de um novo mundo fértil e a dura realidade de selvas, miséria e abandono. Sua carta é também um clamor pastoral — alerta às autoridades e súplica ao céu — pedindo que se interrompa a emigração antes que mais famílias sejam arrastadas à ruína moral e física.
Em suas linhas ecoa o sentimento profundo de quem, longe de casa, percebe o fracasso de um ideal. O tom é de desalento, mas também de fidelidade: o padre, embora vencido pelas circunstâncias, conserva o humor e a fé, e ainda encontra forças para celebrar a missa e escrever a verdade, mesmo sabendo que poucos acreditariam.
O sentimento que percorre toda a missiva é o de triste compaixão — a dor de ver um povo generoso, cheio de esperança, transformado em vítima das ilusões da emigração. Na sua voz, mistura-se o desencanto de um homem de fé com a ternura de um pastor que, mesmo exilado e impotente, ainda deseja proteger o rebanho disperso nas florestas do Novo Mundo.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta