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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

La Saga de Giovanni e Maria R. – Da Cismon del Grappa fin a le Floreste del Rio Grande do Sul


 

La Saga de Giovanni e Maria R. – Da Cismon del Grappa fin a le Floreste del Rio Grande do Sul

La vècia casa de piera de Cismon del Grappa, ’ndove che Giovanni e Maria R. i ga vissù, la resta come testimónea silensiosa de un passà duro. Le pareti oramai consumà, el piso fredo e la scaleta streta conta la stòria de generassion che le ga passà drento. Da quel posto sui prealpi vèneti, tra montagne e boschi, la mancansa de speransa ´nte l’Itàlia pòvera de fin del sècolo XIX la ga spentonà el casal a scampar via, seguendo tanti altri compaesan che i sercava ’na vita nova.

´Ntei ùltimi 25 ani del sècolo XIX la vita la zera storta par i pìcoli agricoltori, sopratuto par chi che laorava ´nte le zone pì montagnose, ’ndove che la tera rendea poco. La famèia de Giovanni vardava le racolte calar ogni ano, e Maria, straca e preocupà, sercava strade par mantegner vivi i fiòi. Restar volea dir misèria; partir volea dir risco, ma anca speransa.

El adio vero el ze scominsà quando Giovanni el ga serà la porta de la vècia casa par l’ùltima volta. La cesa de la Madona del Pedacino ´ndove lori i se ga sposà, i parenti a do passi, i amissi de ogni zorno: tuto zera restà indrìo. Quela partensa zera ’na rutura che no gavea ritorno.

´Nte la traversia del ossean, el navio stracarico che el ga partì del porto de Génova el zera un inferno de odor de carbon, de corpi mal lavà e malatie. Maria, presa da la febre e da la fiachessa, no la ga resistì. El so corpo el ze stà consegnà al mar, impacotà in ’na lona rùvida legà con soga. Quel suon smorsà del corpo che toca l’onda scura el ze restà registrà par sempre ´nte la memòria de Giovanni e dei fiòi. Quela pèrdita la ga segnà par sempre la famèia.

Quando finalmente lori i ga vardà el Brasil, el dolor zera ancora vivo, ma la vita domandava coraio. ´Nte le colónie taliane del Rio Grande do Sul, Giovanni el ga alsà un riparo con rami de le àlbari abatù e baro, scominsiando a far neto la mata grossa. Le noti le zera pien dei urli de bèstie selvàdeghe, e par tegner sicuri i fiòi el tegnea un fogo sempre ardendo davanti a l´assesso de la tana.

Con el passar del tempo, la tera netà la ze diventà campo de piantassion, e le sementi taliane le ga meso radise ´nte la tera brasilian. I fiòi, sobrevissù a la traversia, i ga cressù forti come Giovanni e Maria. Anca i dissendenti lontan che no conossea ancora el Vèneto i ga portà drento la memòria de quela vècia casa e del sacrifìssio grande che gavea dado origin a tuto.

Incòi, quando qualche dissendente torna in visita a Cismon del Grappa, el sente che le piere de la vècia casa no conta sol el tempo, ma anca coraio, dolor, speransa e rinàssita. La stòria de Giovanni e Maria R. la resta ’na prova del sacrifìssio che ga donà vita e futuro a tante generassion brasilian de orìgene vèneta.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Além do Piave, o Brasil: A Travessia de Matteo Pianaro

 


Além do Piave, o Brasil

A Travessia de Matteo Pianaro


O sino da pequena igreja da localidade de San Damiano di Piave bateu lento naquela manhã de dezembro de 1884. Matteo Pianaro ergueu os olhos, sem devoção, apenas por instinto. O inverno ainda não chegara com toda a força, mas o frio já corroía as juntas, e a geada dos campos era tão espessa quanto a fome de quem os arava. Com os dedos rachados e os olhos fundos, Matteo sabia que não havia mais como resistir à terra ingrata. A promessa do Brasil lhe parecia remota, quase ilusória — mas era a última que ainda podia acalentar.

O som grave e metálico do sino reverberava como um lamento, dissolvendo-se lentamente no ar gelado da planície vêneta, onde os campos jaziam imóveis, envoltos numa bruma que não se dissipava nem ao meio-dia. Ao redor da igrejinha, as poucas casas de pedra e cal exalavam fumaça cinzenta pelas chaminés, numa tentativa vã de aquecer corpos cansados e espíritos derrotados. Matteo, envolto num casaco puído herdado do pai, sentia o peso dos anos dobrado pela desesperança. Aos trinta e cinco, seus ombros já se curvavam como os dos velhos que viam seus filhos partir — ou seus netos morrerem — antes de tempo.

Cada sulco da terra congelada que se estendia diante dele parecia zombar de seu esforço, das madrugadas passadas com as mãos enfiadas na lama, dos domingos sem descanso. A vinha morria, o milho não vingava, e os filhos choravam à noite com os estômagos vazios. Nem mesmo os santos pareciam mais escutar as preces. A promessa do Brasil era mais que um boato entre camponeses: era o sussurro de um mundo desconhecido onde o trabalho ainda rendia pão, onde os filhos poderiam crescer sem carregar, tão cedo, o peso do fracasso.

Na véspera, Matteo ouvira de um forasteiro na taverna que uma nova leva de partidas estava sendo organizada em Treviso. Diziam que as passagens eram subsidiadas, que havia terras férteis à espera de braços dispostos. Não confiava em palavras soltas no vinho, mas sentira nelas algo que não sentia havia muito tempo: uma fagulha de direção. Ainda não havia falado com sua mulher, nem mesmo ousara escrever ao irmão em São Paulo — mas, no fundo, já sabia que a decisão estava tomada. O sino, naquela manhã, não chamava para a missa: anunciava o fim de um tempo, o fim da espera.

E enquanto os sons do bronze se apagavam entre os galhos nus das amoreiras, Matteo fechou os olhos por um instante e imaginou o cheiro da terra úmida sob o sol do outro lado do oceano. Não era fé, não era certeza. Era o último sopro de esperança que ainda lhe restava. E às vezes, sabia ele, era disso que nasciam os atos mais audaciosos dos homens.

Partiu com a esposa, três filhos pequenos e uma mala onde cabiam os restos do que fora sua vida. Embarcaram em Gênova num cargueiro saturado de corpos e esperanças. O porão escuro era úmido, fétido. O tempo ali passava como febre: indistinto, ardente, alucinante. Quarenta dias de travessia. Quarenta dias entre o enjoo, o medo e as orações. Quarenta dias vendo o mar apagar tudo o que ficava para trás.

Naquela embarcação enferrujada e rangente, o ar rarefeito misturava o cheiro da maresia com o suor ácido do desespero. As crianças choravam de fome ou de susto, às vezes sem motivo aparente — ou talvez por sentirem nos adultos uma inquietação que nem o balanço do navio conseguia disfarçar. Os colchões, quando existiam, eram fardos de palha úmida infestados de vermes. Ratos deslizavam por entre as frestas das tábuas, indiferentes às orações murmuradas em vários dialetos. Homens tossiam em cantos escuros, mulheres amamentavam sob o olhar da miséria, e cada amanhecer trazia consigo o medo de que alguém não despertasse mais.

Matteo, mesmo fraco e abatido, mantinha os olhos fixos na parede de madeira mofada à sua frente como quem tenta enxergar o outro lado do mundo através do casco. Cada noite parecia mais longa do que a anterior, e o som das ondas batendo contra o porão soava, ora como ameaça, ora como um apelo. O espaço, apertado e sufocante, fazia com que os dias se confundissem. A única certeza era o mar — uma presença constante, indiferente, imensa. Ele lavava, apagava, engolia.

Havia momentos em que Matteo se perguntava se havia cometido um erro fatal. Se não teria condenado a família a morrer ali mesmo, cercada de sal, de miséria e de silêncio. Mas então olhava para os filhos — magros, adormecidos em cima da mala que guardava suas origens — e se obrigava a crer que aquilo tudo fazia parte de uma travessia maior. Não apenas entre continentes, mas entre o passado e a promessa, entre a terra que o expulsara e o destino que ainda não ousava imaginar.

E assim seguiam, dia após dia, como sombras suspensas entre o céu e o abismo. Quarenta dias. Quarenta noites. Um tempo suspenso onde tudo o que tinham era a esperança — e um ao outro.

Desembarcaram em um porto escuro e barulhento no litoral brasileiro — a língua estranha, o calor pesado, a confusão de nomes e ordens lançadas aos gritos. Receberam instruções vagas e um destino longínquo: uma colônia chamada Santa Apolônia, situada no interior da Província do Espírito Santo. Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada.

O cais fervilhava como uma colmeia desorganizada, onde o tropel de vozes misturava ordens dos funcionários da alfândega, lamentos de famílias perdidas e o estalido constante das carroças que vinham e iam carregadas de fardos e confusão. O sol pesava sobre as costas dos recém-chegados como uma punição, e o ar úmido e denso fazia o suor brotar antes mesmo de qualquer esforço. Matteo apertava a mão da esposa enquanto mantinha os olhos atentos às crianças, tentando não se perder naquele labirinto de sons e de rostos apressados.

A terra que os acolhia parecia, à primeira vista, tão hostil quanto a que haviam deixado. Não havia placas, não havia intérpretes, não havia qualquer traço do mundo que conheciam. Apenas promessas pronunciadas às pressas, dedos apontando para mapas improvisados e ordens gritadas em português, idioma que mais confundia do que guiava. A única coisa clara era que precisavam seguir rumo ao interior, atravessar serras e vales até alcançar a tal Santa Apolônia.

Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada. Caminhos primitivos riscados por tropeiros, ladeados por árvores tão altas que pareciam tocar o céu. O mato denso engolia os sons, abafava os passos, ocultava perigos invisíveis. Sob os pés, o barro sugava as botas e o ânimo, tornando cada metro conquistado uma batalha. Mosquitos zumbiam incessantes, o silêncio da floresta era entrecortado por gritos de aves estranhas, e o tempo parecia ter parado numa eternidade verde e úmida.

Marcharam assim por dias, carregando crianças, mantimentos e lembranças. A cada curva da trilha, a esperança oscilava entre a exaustão e o impulso de continuar. Matteo sabia que a travessia ainda não havia terminado. O navio fora apenas o começo — agora começava a verdadeira luta para conquistar o chão prometido.

O sol tropical, implacável mesmo sob a sombra da mata, derretia os últimos vestígios do inverno europeu que ainda resistia nos corpos e nos pensamentos. Os pés afundavam no barro espesso, onde até os mais leves passos exigiam esforço dobrado. Às costas, Matteo carregava parte da bagagem; nos braços, a filha mais nova adormecida, a cabeça tombada de cansaço. A cada passo, um rangido nas costas, um latejar nos joelhos, um suspiro contido que não ousava se transformar em lamento.

A trilha era estreita, muitas vezes tomada por raízes retorcidas, pedras traiçoeiras ou pequenos riachos que surgiam como obstáculos imprevisíveis. Havia noites em que dormiam sob abrigos improvisados de folhas e galhos, ouvindo os sons inquietantes da floresta — ruídos que nenhum deles sabia nomear. Rugidos distantes, estalos secos, zumbidos incessantes. E havia manhãs em que acordavam encharcados por chuvas súbitas, espremendo as roupas molhadas antes de seguir adiante, pois parar era morrer um pouco.

Os mantimentos escasseavam. Dividiam pedaços de pão seco com gestos solenes, como se fossem relíquias de um tempo mais generoso. A cada dia, Matteo via a expressão de sua esposa perder cor, os olhos se tornarem mais opacos, mas também mais firmes. Ela não reclamava. Carregava o que podia, segurava as mãos dos filhos, e avançava. Era como se, entre as raízes daquelas árvores estranhas, brotasse também uma fibra nova, feita de resistência e teimosia.

Ao longe, quando um colonizador veterano lhes falara da terra fértil, das sementes, das casas de madeira e do café que brotava como milagre da terra morna, Matteo acreditara apenas pela necessidade de crer. Mas agora, no interior daquela selva viva e sufocante, ele percebia que o sonho não se comprava com promessas — era preciso atravessar o inferno para alcançá-lo.

E ele marchava. Com os pés doendo, o corpo em frangalhos e os olhos voltados para a frente. Porque a esperança, mesmo combalida, era mais poderosa que o medo. E porque o chão prometido, embora ainda invisível, começava a existir em cada passo vencido com suor, silêncio e fé.

Sem dinheiro, como muitas outras famílias, seguiram a pé. Corta-mato. Homens, mulheres e crianças abrindo caminho à foice, dormindo sob folhas, comendo o que se podia cozinhar em panelas encardidas sobre o fogo. As crianças choravam de exaustão. As mulheres carregavam trouxas e filhos no colo. Os homens andavam calados, olhos fixos no horizonte que não chegava nunca.

As trilhas improvisadas sumiam sob a vegetação densa, obrigando os mais fortes a abrir caminho com golpes compassados, a lâmina da foice ressoando como um metrônomo de sobrevivência. Cada clareira conquistada era um alívio momentâneo antes da próxima parede verde. Os pés nus ou mal calçados sangravam sobre pedras e raízes, mas ninguém reclamava. A dor já era parte da marcha — assim como a fome, a sede e o cansaço que transformava até o silêncio em peso.

Dormiam onde a noite os alcançava. Às vezes sob árvores retorcidas, outras em barrancos encharcados, e quando a sorte ajudava, sob alguma saliência de pedra onde o vento não soprava tão forte. O fogo, quando conseguiam acendê-lo, era pequeno e tímido, cercado por olhares vigilantes. Em volta dele, panelas amassadas ferveram raízes desconhecidas, um pouco de farinha, às vezes uma casca de fruta ou um punhado de grãos resgatados da última parada.

As crianças, consumidas pela fadiga, choravam pouco e dormiam como se o sono fosse uma defesa contra o desespero. Algumas adoeceram. Outras perderam peso tão rápido que pareciam desaparecer entre os braços das mães. Mas mesmo assim seguiam. As mulheres, com os cabelos presos em nós desfeitos, os rostos cobertos de fuligem e pó, avançavam firmes, embalando os filhos no colo enquanto equilibravam trouxas amarradas em panos desbotados.

Os homens caminhavam calados, com os olhos fixos no horizonte que não chegava nunca. Eram olhares vazios, duros, talhados pelo instinto de proteger, de resistir — mesmo sem saber até quando. A esperança já não se dizia em palavras, mas nos passos que insistiam em avançar, um após o outro, como se cada metro vencido arrancasse do destino um fragmento de futuro.

E assim continuaram, dia após dia, como uma caravana de náufragos da terra, cruzando uma vastidão verde onde tudo era incerteza — menos a determinação de chegar.

Ao final de cada dia, paravam onde a floresta permitia. As mães acendiam o fogo, ferviam um punhado de milho, estendiam as mantas. Quando chovia, dormiam encolhidos, esperando a lama baixar. A viagem, que deveria durar três dias, estendeu-se por semanas. Cada passo era uma luta. Cada rio cruzado, uma prova. Cada árvore derrubada, uma conquista amarga.

Finalmente, encontraram o tio de Matteo — um velho emigrado anos antes, que os recebeu com lágrimas e pão seco. Estavam perto da colônia. Mas o pior ainda viria.

O terreno que lhes fora reservado era um fiapo de encosta pedregosa, voltado para o vento, difícil de domar. O solo cuspia enxadas, rejeitava sementes. Ainda assim, fincaram ali as estacas da vida nova. Construíram uma casa de barro e pau-a-pique. Plantaram milheto, criaram porcos e galinhas. Acordavam antes da luz, dormiam depois do cansaço. A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência.

O reencontro com o tio, encolhido pela idade e pelas décadas de lida solitária, trouxe um alívio breve, quase simbólico. A casa do velho era pouco mais que um abrigo, mas ali compartilharam o primeiro alimento quente em dias — caldo ralo e palavras entrecortadas pela emoção. O velho apertou Matteo contra o peito com a força de quem agarra o que pensava ter perdido para sempre. E então, no dia seguinte, apontou com a mão trêmula o rumo da terra que fora designada ao sobrinho. Seu olhar, sombrio, dizia mais do que os lábios permitiam.

A tal terra era dura, inclinada, coberta de pedra e mato bravo. Uma vertente ingrata, açoitada pelos ventos que uivavam à tarde e gelavam ao amanhecer. Os primeiros golpes de enxada ricocheteavam como se o solo zombasse da tentativa. Quando não era a pedra, era a raiz. Quando não era a raiz, era a erosão. O milheto crescia ralo, amarelecido, e os porcos escapavam pelas cercas frágeis feitas com o que a mata deixava arrancar. As galinhas eram mais teimosas que produtivas.

Mas não voltaram atrás. Ali fincaram as estacas, batendo-as com mais fé que força, porque força já não sobrava. A casa de barro e pau-a-pique nasceu como todas as coisas que realmente importam: de forma imperfeita, mas essencial. Um cômodo só, coberto de folhas e esperança. A fumaça do fogão de lenha subia torta pela telha solta, e os dias se marcavam pela luz que entrava entre as frestas.

As noites eram longas e ruidosas. O canto das cigarras, os estalos da mata, os gritos distantes de algum bicho noturno criavam um concerto que mantinha os sentidos em alerta. E mesmo assim dormiam — não porque o medo cessasse, mas porque o corpo exigia rendição. Cada manhã trazia uma tarefa nova, um problema novo, um desafio mais absurdo que o anterior.

A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência. Cada árvore tombada era uma conquista. Cada metro roçado, uma vitória. Não havia heroísmo naquilo, apenas sobrevivência. Mas, dia após dia, como soldados de uma guerra silenciosa, Matteo e os seus foram abrindo clareiras, construindo raízes, reinventando o destino com as próprias mãos.

A mulher de Matteo, Benedetta, passou a fiar algodão trazido por outros colonos. Os filhos cresceram com os pés descalços, os joelhos em sangue, os olhos já endurecidos pela luta. Um deles morreu de febre no terceiro ano — e Matteo o enterrou com as próprias mãos, sem padre, sem hino, apenas com uma cruz improvisada de bambu.

As noites, para Benedetta, tornaram-se longas jornadas diante da roca, os dedos calejados puxando o fio com a precisão de quem transformava a dor em trabalho. O algodão era bruto, cheio de sementes, mas suas mãos sabiam domá-lo. Com o tempo, trocava novelos por sal, por farinha, por pequenos favores entre vizinhos. Fiava como quem reza — não por piedade, mas por necessidade. Quando os filhos dormiam, ela ainda estava de pé, os cabelos presos de qualquer jeito, o corpo já exausto, mas os olhos fixos no movimento da roda.

As crianças aprendiam com a terra e com os tropeços. Cresceram selvagens, espertos, com a pele marcada de arranhões e picadas, os pulmões acostumados ao ar pesado do mato e os músculos moldados pelo trabalho precoce. Subiam em árvores, pescavam em riachos, aprendiam a distinguir os sons da floresta antes mesmo de saber escrever o próprio nome. A infância era curta — interrompida não por um rito de passagem, mas pela urgência da sobrevivência.

Foi no terceiro ano que a febre chegou. Veio como um sussurro quente, depois virou incêndio. Matteo observou o filho delirar por dois dias, os olhos vidrados no teto de palha, o corpo pequeno queimando como brasa viva. Não havia médico, nem farmácia, nem santo que acudisse. Os vizinhos apenas observavam à distância, impotentes, pois todos sabiam que a febre, quando tomava uma criança, raramente devolvia.

Quando o menino morreu, ao amanhecer, o silêncio na casa foi mais ensurdecedor que qualquer grito. Benedetta permaneceu sentada por horas, o rosto escondido nas mãos. Matteo saiu em silêncio, cavou a cova com uma enxada cega e enterrada pela ferrugem, num canto de terra onde o sol ainda batia com gentileza. Não houve padre, não houve hino. Apenas uma cruz improvisada de bambu, cortada às pressas, fincada com força no chão duro.

Depois, Matteo voltou para casa, lavou o rosto na bacia de alumínio, sentou-se ao lado da esposa e esperou a noite cair. O luto, como tudo ali, não tinha luxo — mas era profundo. E no dia seguinte, como sempre, o galo cantou, o mato cresceu e a vida recomeçou. Porque não havia escolha.

O tempo passou sem pressa. A colônia cresceu. Vieram mais famílias, abriram mais trilhas, construíram uma escola, um pequeno mercado, uma capela. Matteo envelheceu curvado, mas não amargurado. A vida nunca foi boa, mas deixou de ser impossível. Seu nome jamais foi registrado em livro algum, mas viveu o suficiente para ver o primeiro neto nascer sob um teto de telha, em vez de palha.

A lentidão dos dias esculpiu a colônia com o cinzel da persistência. A cada estação, as picadas viravam trilhas, as trilhas, estradas. As primeiras casas de pau-a-pique deram lugar a moradias de madeira lavrada, e os telhados de sapê, tão frágeis às chuvas, começaram a ser substituídos por telhas vermelhas trazidas por tropeiros vindos do sul. A escola nasceu de uma sala improvisada com bancos rústicos e uma professora que ensinava com a voz firme e a palma da mão, mas ali começou a germinar o futuro.

O pequeno mercado, instalado no anexo de uma casa de imigrantes bávaros, passou a vender sal, querosene, pregos e, com o tempo, até café moído em saco de pano. A capela, de madeira escura, erguia sua cruz simples contra o céu comovido das manhãs de domingo. Os sinos, quando enfim chegaram, foram içados por uma multidão de mãos calejadas — e tocavam não só por fé, mas também por memória.

Matteo assistia a tudo com o olhar de quem soube esperar. O corpo já dobrado, a barba encanecida como a palha madura do milheto, os olhos fundidos à paisagem. Já não lavrava a terra com a mesma força, mas ainda inspecionava cercas, afiava ferramentas, sentava-se ao entardecer no banco à sombra do galpão para observar os netos correrem descalços, como haviam feito seus filhos — mas agora sem fome nos olhos.

O passado não o deixava, mas também já não o feria. Tinha cicatrizes demais para se dar ao luxo de arrependimentos. Havia perdido, sofrido, enterrado, mas também resistido, construído, deixado raízes. Sua história, embora nunca registrada em livro algum, estava gravada nas paredes das casas que ajudou a levantar, nas estradas abertas à foice, nas sementes que fincaram o chão duro com esperança.

E quando segurou o primeiro neto nos braços — um menino rosado, de olhos escuros como os seus — e viu que ele nascia sob um teto de telha, em vez de palha, sentiu pela primeira vez algo próximo da paz. Não era glória, nem recompensa. Era apenas a confirmação de que tinha valido a pena.

E quando morreu, deitado em silêncio no chão de sua casa, foi velado por vizinhos que o chamavam de "fundador", embora ele jamais tenha se visto assim. Matteo Pianaro não descobriu nada, não venceu nada. Apenas chegou — e ficou.

Sua história, como a de tantos, é feita de lama, suor, perda e persistência. Não há glória. Há sobrevivência. E, com ela, um tipo raro de heroísmo: o dos que vieram a pé e, mesmo sem entender a língua dos céus tropicais, aprenderam a cultivar raízes em terra estranha.

Morreu como viveu: sem alarde, sem testemunhas ilustres, sem cerimônia. A respiração foi ficando rasa, o olhar, cada vez mais longe. Ninguém ouviu suas últimas palavras — talvez não tenham existido. Quando o neto o encontrou ao amanhecer, estendido sobre o esteiro de palha junto ao fogão de lenha já apagado, Matteo parecia apenas adormecido, o rosto sereno como raramente fora em vida.

O velório aconteceu ali mesmo, no pequeno cômodo onde vivera seus últimos anos. Os vizinhos vieram aos poucos, em silêncio, trazendo flores do mato, pão fresco, cachaça. Sentaram-se em bancos de madeira, contaram histórias antigas, algumas talvez inventadas, outras exageradas, como é de costume entre os que precisam manter viva a memória dos que partem. Chamavam-no de “fundador” com uma reverência tímida, quase envergonhada — porque sabiam que Matteo jamais se reconheceria nesse título.

Ele não fora pioneiro por vocação, nem líder por talento. Fora apenas um homem comum, empurrado pelo desespero, sustentado pela necessidade, endurecido pela vida. Alguém que, diante do infortúnio, escolheu não voltar — e com isso, sem perceber, abriu caminho para os outros. Não construiu monumentos, mas sua ausência deixava um vazio do tamanho de uma geração.

E assim, sob uma tarde morna, foi enterrado com a mesma simplicidade com que vivera: num pedaço de terra roçada à mão, entre dois pés de guabiroba, com uma cruz de madeira cravada firme no chão. Sem epitáfio. Sem discurso. Mas com o reconhecimento silencioso dos que sabiam que, se hoje havia telhas nos telhados, crianças na escola e pão na mesa, era porque homens como Matteo haviam suportado o peso dos primeiros dias.

A história dele — como a de tantos outros — não cabe nos livros de heróis. Mas se imprime na paisagem, se espalha no sangue dos descendentes e ressoa, ainda que sem palavras, no modo como as comunidades respiram. Um heroísmo sem medalhas, sem bustos, mas com raízes profundas: o dos que, mesmo vencidos pela terra, jamais deixaram de semeá-la.

Nota do Autor

Esta história nasce da voz silenciosa de tantos emigrantes do século XIX que deixaram suas terras, suas famílias e suas memórias em busca de um futuro incerto além do Atlântico. Embora os nomes e lugares aqui apresentados sejam fruto da ficção, eles carregam o peso e a verdade de experiências vividas por milhares de homens e mulheres que enfrentaram o desconhecido com coragem e perseverança.

A narrativa não pretende glorificar, mas revelar a dura realidade de quem atravessou florestas densas, abriu estradas com o facão e plantou raízes em solo estranho, muitas vezes sob condições adversas e promessas não cumpridas. É um tributo às jornadas anônimas que ajudaram a construir o Brasil interior, terra de conflitos, resistência e esperança.

Que esta obra sirva para lembrar que a história é feita não apenas pelos grandes feitos, mas principalmente pelo esforço cotidiano daqueles que, mesmo invisíveis nos grandes registros, imprimiram sua presença na terra e na memória.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

sábado, 13 de setembro de 2025

Morte a Bordo

 

Morte a Bordo

Uma família de agricultores italianos da quase perdida localidade de Carmignano di Brenta, no interior da província de Padova, na Itália, no final do século XIX,  Giovanni e Antonella, viviam com muitas dificuldades. A vida no interior da Itália estava se tornando insustentável devido à fome, à falta de trabalho e à pobreza extrema que surgiu após as guerras pela unificação da Itália e a formação do reino italiano. O ônus maior da construção do Reino d'Itália recaiu sobre os mais pobres e desamparados da população. Os novos impostos e taxas criadas para a manutenção do estado, afetaram de forma desproporcional os camponeses e trabalhadores rurais, que constituíam a maioria da população italiana na época. Entre as medidas mais impopulares estava o imposto sobre a moagem, conhecido como la tassa sul macinato, introduzido em 1868, que taxava a moagem de grãos, um alimento básico para os italianos. Isso resultou em um encarecimento do pão e de outros produtos essenciais, agravando ainda mais as condições de vida das famílias rurais e urbanas mais pobres. A unificação trouxe também o serviço militar obrigatório, que retirava os jovens de suas famílias por longos períodos, prejudicando a economia familiar baseada na agricultura de subsistência. Além disso, a política de centralização do novo estado, inspirada no modelo piemontês, desconsiderou as especificidades regionais, exacerbando o descontentamento em muitas regiões, especialmente no sul da Itália, conhecido como Mezzogiorno. Aqui, a unificação foi percebida mais como uma conquista do que como uma libertação. A pobreza extrema, a concentração fundiária e a repressão estatal contribuíram para o surgimento de movimentos de resistência, como o brigantaggio - ou banditismo, que foi combatido com dureza pelo exército italiano. As promessas de redistribuição de terras e melhoria nas condições de vida para os camponeses não se concretizaram, ampliando a desigualdade social e o êxodo rural.

Esses fatores, somados às dificuldades econômicas e à ausência de oportunidades, levaram a uma emigração em massa, principalmente entre os finais do século XIX e início do XX. Milhões de italianos, especialmente do sul, deixaram sua terra natal em busca de uma vida melhor em países como os Estados Unidos, Argentina e Brasil. Essa diáspora teve um impacto profundo, tanto para as comunidades que partiram quanto para as que permaneceram, moldando a história italiana e mundial.

Foi nesse contexto, que Giovanni decidiu que também deveria tentar uma vida melhor na América, no Brasil, onde naqueles anos corriam notícias que havia promessas de terra e trabalho.

Antonella, apesar da dor de ficar longe de Giovanni e das crianças, concordou que a melhor oportunidade para a família seria a emigração. Mas, por questões financeiras, Antonella teve que ficar em casa, enquanto Giovanni embarcava sozinho na viagem para o Brasil. Ele prometeu que, assim que se estabelecesse, mandaria buscar Antonella e as crianças.

Giovanni partiu para o Brasil com grandes esperanças. A viagem, no entanto, foi marcada por dificuldades, mas, ao chegar ele logo encontrou trabalho em terras de cafeicultores. Ele enviava cartas a Antonella, contando-lhe as dificuldades do início, mas também lhe dando esperança de um futuro melhor.

Antonella, por sua vez, esperava ansiosamente o dia em que poderia reunir sua família. Com as crianças em casa, ela estava cheia de saudades de Giovanni, mas sabia que a decisão dele fora tomada por um bem maior, e que logo se reuniriam. Ela mantinha a esperança e a fé de que, em breve, faria a viagem ao Brasil com os filhos, reunindo-se com Giovanni para começar uma nova vida.

Finalmente, o dia chegou. Antonella conseguiu economizar o suficiente para pagar sua viagem. Com seus filhos Pietro e Maria ao seu lado, ela embarcou rumo ao Brasil. A longa viagem foi cheia de dificuldades, mas Antonella estava determinada a reunir-se com seu marido.

Entretanto, o destino se mostrou cruel. Durante a travessia, uma epidemia de sarampo se espalhou rapidamente entre as crianças a bordo. Pietro, seu filho de 8 meses, foi uma das vítimas da doença. Antonella, desesperada, viu seu filho sofrer e falecer antes que pudesse chegar ao Brasil. A dor de perder Pietro foi insuportável, e ela mal conseguia processar a tragédia enquanto a viagem continuava.

Finalmente, depois de muitas semanas no mar, o navio chegou ao Brasil. Antonella, com Maria ainda ao seu lado, desembarcou em solo brasileiro, mas com o coração partido pela perda de Pietro. Ela agora tinha de enfrentar a dura realidade de começar sua vida no Brasil, em um novo país, mas também sabia que a promessa de uma nova vida com Giovanni era a única coisa que poderia lhe dar forças.

Quando Antonella finalmente se reencontrou com Giovanni, ele a acolheu com carinho, mas o luto pela perda de Pietro nunca desaparecerá. O Brasil era vasto e promissor, mas para Antonella, cada dia estava marcado pela ausência do pequeno Pietro. A saudade de sua terra natal, da Itália, e a dor da perda de um filho eram pesadas, mas ela tinha Maria e Giovanni para seguir em frente.

Juntos, tentaram reconstruir suas vidas no Brasil, mas a memória de Pietro nunca seria apagada. Antonella, embora marcada pela dor, sabia que o melhor que podia fazer por sua família era seguir em frente, pois o amor de Giovanni e Maria era o que a fazia ter forças para continuar.


Nota do Autor

Este trecho é um resumo do livro Morte a Bordo, escrito com a intenção de não deixar cair no esquecimento os dramas e as vicissitudes enfrentadas por milhares de homens e mulheres que, forçados pela fome e pela ausência de perspectivas em sua terra natal, viram-se obrigados a abandonar as aldeias, os campos e até mesmo as famílias que os sustentavam em suas raízes mais profundas.

A travessia do Atlântico não foi apenas uma mudança geográfica, mas sobretudo uma ruptura dolorosa e definitiva com o mundo conhecido. Os emigrantes, expulsos pela miséria e pelo desespero, lançaram-se ao mar na esperança de encontrar no Brasil uma terra nova e promissora, onde o trabalho e o sacrifício pudessem transformar-se em futuro.

Este livro é, portanto, um testemunho de memória e resistência: uma forma de dar voz aos que viveram – e muitas vezes morreram – nesse caminho entre o abandono e a esperança. Cada página busca resgatar a dignidade de quem ousou sonhar com um amanhã melhor, mesmo à custa do maior dos sofrimentos.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



sábado, 16 de agosto de 2025

O Fio, o Couro e o Mar


O Fio, o Couro e o Mar

Entre a Agulha e o Couro, o Sonho de um Novo Mundo


No coração de uma pequena cidade costeira da Apúlia, nascia e crescia uma geração moldada pela pobreza, pelo trabalho manual e pelas rígidas regras de um mundo em que a mulher pouco decidia sobre a própria vida. Entre as casas baixas e as ruas de pedra irregular, viviam artesãos de mãos calejadas — sapateiros, barbeiros, alfaiates — homens que raramente sabiam ler ou escrever, mas dominavam como poucos o ofício herdado dos pais. As mulheres, em sua maioria, permaneciam no lar ou se dedicavam a tecer, costurar e cultivar a terra. Para poucas, a distinção social lhes concedia o título de donna, reservado às esposas de homens com certo prestígio.

Era uma sociedade onde até o casamento obedecia a uma ordem severa. A bênção para a união partia primeiro do pai; se este tivesse partido, passava ao avô paterno. Só na ausência de ambos a mãe podia conceder o consentimento. Era um patriarcado tão sólido que até o amor precisava aguardar a permissão dos homens da família.

A vida era frágil. A mortalidade infantil rondava cada casa como um vento frio. Registros de óbitos mostravam páginas e mais páginas de nomes de crianças que mal haviam aprendido a respirar. Quando um filho morria, o nome era frequentemente passado ao próximo recém-nascido, como se, ao repetir a palavra, pudessem enganar a morte. Algumas famílias batizavam três filhos com o mesmo nome, numa tentativa silenciosa de perpetuar algo que lhes fora arrancado cedo demais.

Nessa realidade, também havia as crianças sem pai declarado — os proietti. Muitas vezes, a parteira do vilarejo as levava ao oficial de registro. Algumas jovens, contrariando as convenções, ousavam criar sozinhas o próprio filho, pagando com o isolamento social essa escolha.

Foi assim com Lucia Bertoni. Nascida em uma família de tecelões pobres, aprendeu desde cedo o ofício de costureira. Quando, aos vinte anos, deu à luz uma filha sem casamento, chamou-a de Rosa e ensinou-lhe a manejar a agulha e o pano. Rosa, apesar da habilidade, carregava o peso do estigma que afastava pretendentes.

Anos depois, cruzou o caminho de Matteo Branciforte, um sapateiro que havia deixado a aldeia natal nas montanhas do Abruzzo para buscar vida nova na costa. Trazia consigo um passado marcado por vergonha e tragédia: filho de um contrabandista abatido pela guarda alfandegária. Essa mancha, no entanto, não lhe roubara a dignidade do trabalho.

Lucia e Matteo uniram suas vidas e, com paciência, construíram um lar sólido. Ela continuava a costurar para sustentar a casa, ele moldava o couro em calçados resistentes que ganhavam fama na cidade. Não eram ricos, mas ofereciam aos filhos aquilo que nunca tiveram: estabilidade e algum prestígio.

Mas, em 1879, as ruas estreitas da cidade começaram a encher-se de boatos vindos de além-mar. Falava-se de terras férteis no Brasil, de um trabalho que, embora duro, poderia abrir caminho para a propriedade e a liberdade. Eram palavras que encontravam terreno fértil nos corações aflitos, pois a Itália daquele tempo, recém-unificada, carregava feridas profundas. No Mezzogiorno, os campos secavam sob o sol implacável, e a terra, fragmentada e insuficiente, já não sustentava as famílias. A pobreza, quase endêmica, misturava-se à falta de oportunidades; o trabalho escasseava e os salários, quando existiam, mal compravam o pão. Muitos viam seus filhos crescerem com o ventre vazio e o olhar cansado antes mesmo da juventude. Nessa atmosfera de fome e desesperança, qualquer rumor sobre um lugar distante, onde a terra esperava braços dispostos e o pão não faltava à mesa, tornava-se mais do que uma notícia — era uma promessa de salvação. 

Os dois sabiam que, se ficassem, a vida seguiria o mesmo traçado das gerações anteriores e falta de futuro para os filhos. Venderam o pouco que possuíam e, com Rosa já moça e o filho pequeno nos braços, embarcaram em um navio abarrotado de famílias como a deles, partindo de Gênova rumo ao desconhecido.

A travessia foi longa e áspera. No porão úmido, o cheiro de maresia se misturava ao de corpos cansados e barris de provisões. O balanço constante fazia muitos adoecerem. Ainda assim, a promessa de uma vida nova sustentava cada manhã.

Chegaram ao porto de Santos exaustos, mas logo foram conduzidos de trem para o interior, rumo à região de Ribeirão Preto. Ali, sob um sol inclemente, trabalharam como colonos em uma fazenda de café. O contrato com o proprietário era de quatro anos: dias começando antes do amanhecer, acordando ao som de um sino da fazenda, mãos feridas pelo manejo das ramas durante as colheitas e costas curvadas pelo peso do trabalho. O calor abafado do verão e a umidade das madrugadas paulistas moldaram seus corpos à nova terra.

Ao término do contrato, tinham guardado o suficiente para não voltar à condição de servos. Estavam decididos a permanecer no Brasil e não mais retornar para a Itália. Corajosamente, seguiram para um pequeno núcleo de povoamento que, com o tempo, ganharia o nome de Batatais. Ali, retomaram as profissões que carregavam da Itália. Matteo abriu uma modesta oficina de sapatos, oferecendo botas para lavradores e calçados finos para comerciantes locais. Lucia montou seu pequeno ateliê de costura, atendendo esposas de fazendeiros e moças que preparavam o enxoval.

Os filhos cresceram respirando o cheiro de couro curtido e tecidos recém-passados. Rosa, a primogênita, tornou-se a assistente de Lucia, reproduzindo com paciência e perfeição os pontos aprendidos desde a infância. Jamais se casou, mas deixou um legado silencioso nas roupas que confeccionou para toda uma geração. Angelo, o segundo filho, abriu um bar e cafeteria na praça principal, onde mais tarde também veio a funcionar a pequena rodoviária da cidade, que se tornaria ponto de encontro de imigrantes e brasileiros, onde se discutiam colheitas, negócios e notícias do velho continente. Pietro, o terceiro, herdou a determinação do pai e se tornou sapateiro, expandindo o negócio familiar e abastecendo armazéns das cidades vizinhas. O mais novo, Ernesto, estudou com afinco graças ao sacrifício dos irmãos e formou-se guarda livros, sendo o primeiro da família a terminar o segundo grau.

As filhas caçulas, Maria e Antonietta, não tiveram as mesmas oportunidades de estudo, mas sustentaram a família em momentos de dificuldade, costurando, atendendo no bar e cafeteria, e cuidando dos sobrinhos. Entre eles, nasceria uma nova geração que já se considerava brasileira, embora o sotaque e as tradições ainda denunciassem as raízes italianas.

Com o passar dos anos, o casarão simples de Batatais tornou-se o centro das reuniões familiares, onde as histórias da Itália e da travessia eram contadas ao redor da mesa. Matteo envelheceu curvado, mas orgulhoso, sempre com um pedaço de couro nas mãos. Lucia, mesmo com a visão turva, ainda passava os dedos pelas costuras para verificar a firmeza do ponto.

Quando Matteo partiu, numa manhã fria de inverno, a cidade já o reconhecia como um dos pioneiros que haviam ajudado a erguer Batatais. Lucia resistiu alguns anos mais, guardando numa caixa de madeira as cartas não enviadas para a Itália e as ferramentas gastas do marido. Foi sepultada ao lado dele, sob uma lápide simples que trazia apenas os nomes e as datas.

O fio e o couro, que um dia haviam sido apenas instrumentos de sobrevivência, tornaram-se o símbolo de uma família que atravessara o oceano para costurar, com trabalho e coragem, o tecido de um novo destino. E, embora o mundo tivesse mudado, cada geração que descia à praça de Batatais para tomar café ou comprar sapatos feitos à mão ainda carregava, invisível mas intacta, a marca da travessia de 1879.

Nota do Autor

Esta história é inspirada em acontecimentos reais, reconstruídos a partir de cartas preservadas ao longo de gerações e dos relatos orais de familiares que, com emoção, mantiveram viva a memória de seus antepassados. As experiências narradas refletem as dificuldades, esperanças e decisões que marcaram a vida de homens e mulheres no final do século XIX, quando a emigração era, para muitos, a única saída diante da pobreza e da falta de oportunidades.

Por respeito à privacidade dos descendentes e para preservar a intimidade das famílias envolvidas, todos os nomes e alguns detalhes de identificação foram modificados. Ainda assim, buscou-se fidelidade ao contexto histórico e à essência das vivências descritas, de modo que o leitor possa sentir o peso das escolhas e a força da esperança que conduziu aqueles personagens rumo a um futuro incerto, mas desejado.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





terça-feira, 5 de agosto de 2025

A Saga de um Emigrante Italiano no Novo Mundo

 


A Saga de um Emigrante Italiano 

no Novo Mundo

 


Capítulo I – A Partida

Em 1878, a luz pálida do amanhecer tingia os campos de Bassano del Grappa com tons de melancolia. Pietro Morello, um jovem camponês de 28 anos, permaneceu imóvel à beira do terreno árido que um dia fora a maior dádiva de sua família. As oliveiras, outrora símbolos de fartura, agora eram espectros retorcidos, testemunhas silenciosas da crise que devastara a região. As histórias que ouvira na infância sobre colheitas abundantes e vinhedos férteis pareciam agora ecos de um mundo que nunca existiu. A pequena mala de madeira repousava ao seu lado, repleta de ausências mais do que de pertences. Continha uma muda de roupa, um caderno vazio e uma relíquia da avó: uma imagem desgastada de Santa Lúcia, que prometia proteção em tempos de incerteza. Ao longe, o galo anunciava o início de mais um dia de lutas infrutíferas, mas Pietro sabia que aquela manhã marcaria o fim de uma era. A vila parecia mergulhada em uma quietude pesada. As paredes descascadas das casas e os rostos cansados dos poucos que se aventuravam pelas ruas eram reflexos de um destino comum: a resignação. Ao caminhar em direção à estrada que o levaria ao porto de Gênova, Pietro sentia o peso de uma despedida não pronunciada. Cada passo parecia selar a distância crescente entre ele e tudo o que conhecera. No porto, o cenário era um caos organizado. Havia fileiras de malas improvisadas, multidões de camponeses vestidos com trajes simples, e um ar denso de ansiedade. O navio, imponente e metálico, destacava-se contra o céu nublado, uma promessa de salvação para uns, de ruína para outros. Pietro observou as águas turvas do Mediterrâneo que começavam a refletir a luz do meio-dia, tentando encontrar nelas algum sinal de direção. O embarque era lento e marcado por tensões. Famílias inteiras, carregando o que podiam, se moviam com uma urgência silenciosa. Os olhares perdidos eram similares, histórias diferentes condensadas em um mesmo destino: o desconhecido. Pietro sentia o cheiro do sal misturado ao suor das multidões, enquanto enfrentava a longa espera para pisar no convés. Uma vez a bordo, o espaço era apertado e sufocante. Os porões do navio eram preenchidos por camas improvisadas, cordas soltas e um calor úmido que fazia o ar parecer pesado. Pietro encontrou um pequeno canto onde poderia guardar sua mala e repousar durante a longa travessia. Ali, cercado por estranhos que compartilhavam a mesma miséria, ele finalmente se deu conta da magnitude de sua decisão.

Enquanto o Città di Napoli deixava o porto, o horizonte mudava rapidamente. As colinas italianas desapareciam, consumidas por uma névoa que parecia carregar consigo o passado de cada passageiro. O som das ondas, constantes e hipnóticas, contrastava com o ritmo acelerado de seu coração. Pietro agarrou o caderno vazio, ainda sem saber que tipo de história ele contaria, mas certo de que seria uma história de luta. O mar aberto se estendia à frente, vasto e insondável, refletindo o destino incerto que esperava por ele e por todos os que compartilhavam aquela travessia. As águas não prometiam respostas, apenas a certeza de que nada seria como antes.

Capítulo II – A Travessia

A bordo do Città di Napoli, Pietro foi engolido pela realidade brutal de uma travessia que desafiava tanto o corpo quanto o espírito. O porão do navio, onde ele foi confinado junto a centenas de outros emigrantes, era um labirinto claustrofóbico de camas improvisadas, baús desgastados e rostos marcados pela exaustão. A madeira rangia a cada balanço da embarcação, misturando-se aos gemidos e tosses persistentes que ecoavam no ambiente abafado.

O ar, saturado pelo odor de corpos suados, alimentos deteriorados e fezes, tornava a respiração um ato penoso. As poucas ventilações disponíveis eram disputadas como se fossem portais para a sobrevivência, mas mesmo ali, o vento marítimo carregava a umidade salgada que impregnava a pele e os pulmões. Na penumbra, Pietro via figuras esqueléticas lutando para encontrar um sono inquieto, enquanto crianças choravam, seus lamentos dissolvendo-se na monotonia do casco enfrentando as ondas.

As doenças tornaram-se companheiras inseparáveis. Escabiose transformava o sono em tortura, enquanto a tuberculose, com sua tosse profunda e constante, parecia consumir os infectados à vista de todos. Pietro observava as marcas da enfermidade nos rostos ao seu redor: olhos encovados, lábios rachados e uma palidez que sugeria que alguns não completariam a jornada.

Os poucos alimentos distribuídos — pedaços de pão seco e sopas insípidas — não eram suficientes para apaziguar a fome que corroía a todos. As longas filas para um balde de água, muitas vezes contaminada, eram outro lembrete das limitações impostas pela travessia. Pietro, no entanto, mantinha uma disciplina rígida em relação a sua pequena ração, ciente de que ceder à fraqueza seria como permitir que o navio o derrotasse.

Havia momentos, entre os balanços do navio e os sons das ondas quebrando no casco, em que Pietro encontrava pequenos respiros de contemplação. Ele abria o caderno que trouxera consigo, mas as páginas em branco continuavam a zombar de sua tentativa de registrar os dias. Não eram as palavras que lhe faltavam, mas a coragem de enfrentar a profundidade do que estava vivendo.

Nas noites mais calmas, subia até o convés, onde o céu aberto oferecia um consolo inesperado. O manto estrelado, ininterrupto e indiferente à miséria dos passageiros, era ao mesmo tempo um lembrete de sua insignificância e uma promessa de algo maior além do horizonte. Nessas ocasiões, Pietro encontrava forças para acreditar na promessa do Brasil — terras férteis, trabalho e a possibilidade de reconstruir a dignidade perdida.

Ao longo dos dias, ele percebia como a convivência forçada criava laços inesperados. Um aceno de cabeça, um gesto de solidariedade ao dividir um pedaço de pão ou uma troca de olhares que dizia mais do que palavras — esses pequenos atos humanizavam a experiência desumana. Mesmo nos momentos mais sombrios, Pietro sentia a força coletiva de centenas de pessoas que, como ele, tinham escolhido o exílio em nome da esperança.

Quando o Città di Napoli enfrentava tempestades, a fragilidade da embarcação tornava-se assustadoramente evidente. A água invadia os compartimentos inferiores, e os gritos de pânico ressoavam como ecos em uma caverna. Pietro, encharcado e agarrado a um poste de madeira, enfrentava essas noites com uma determinação quase mecânica, movido pela única certeza que lhe restava: a necessidade de sobreviver.

Após semanas que pareciam intermináveis, o ritmo do mar e o sofrimento constante tornaram-se quase normais. No entanto, Pietro sabia que aquele não era o fim da provação. A travessia era apenas o início de uma jornada cujo destino prometia tanto redenção quanto novos desafios. Mesmo assim, a chama de sua coragem permanecia acesa, alimentada pela fé em um futuro melhor e pela certeza de que nada seria mais difícil do que deixar tudo para trás.

Capítulo III – O Novo Mundo

Quando o navio finalmente atracou no porto de Santos, Pietro Morello foi tomado por uma mistura de alívio e apreensão. O aroma salgado do mar se fundia ao cheiro pungente de óleo e mercadorias descarregadas, enquanto o caos do porto se desenrolava diante de seus olhos. Homens e mulheres se amontoavam com suas malas e caixas improvisadas, olhares perdidos em meio à cacofonia de gritos de capatazes, mugidos de gado e o ranger de carroças sobre as pedras do cais. Pietro, como tantos outros, carregava não apenas sua bagagem física, mas também o peso de uma nova vida ainda por começar.

Encaminhado à imponente Hospedaria dos Imigrantes, um edifício de paredes brancas e janelas largas que se erguia como um bastião de transição entre o velho e o novo mundo, ele foi recebido com uma série de procedimentos rígidos. Inspeções médicas avaliavam a saúde dos recém-chegados, enquanto listas intermináveis de nomes eram recitadas e registrados com meticulosidade. No grande salão repleto de beliches, Pietro dividia o espaço com dezenas de outros homens, mulheres e crianças, cujas línguas misturadas criavam um som contínuo e desconcertante.

Ali, o tempo parecia se arrastar. Aguardava-se a chegada dos fazendeiros ou de seus representantes, que selecionavam trabalhadores como se escolhessem ferramentas. Pietro observava com atenção, estudando aqueles que poderiam definir os próximos passos de sua jornada. Havia nos olhares dos recém-contratados uma mistura de alívio e resignação, um reconhecimento tácito de que o verdadeiro desafio estava apenas começando.

Quando finalmente chegou sua vez, Pietro foi designado a uma fazenda de café no interior de São Paulo. A viagem, agora por trem e carroça, revelou um Brasil diferente daquele imaginado: vasto, verdejante e hostil. As plantações de café se estendiam até onde os olhos podiam alcançar, dominando a paisagem como um tapete interminável de arbustos simétricos. Porém, a beleza da paisagem contrastava com a realidade brutal que o esperava.

Na fazenda, Pietro foi conduzido a uma habitação coletiva, uma precária estrutura de madeira com telhado de sapê que oferecia pouco em termos de conforto ou privacidade. O espaço era dividido por famílias e solteiros, todos apertados em cubículos que mal continham um colchão de palha e uma arca para guardar pertences. O calor era sufocante, e à noite, o som de insetos e o murmúrio de vozes cansadas ecoavam no ar pesado.

As jornadas de trabalho começavam antes do amanhecer, quando a escuridão ainda abraçava os campos. Sob a luz trêmula de lamparinas, os trabalhadores se organizavam em filas, caminhando em silêncio para as plantações. O trabalho era incessante: colher grãos, carregá-los em sacos pesados, e transportá-los para as áreas de secagem, tudo sob o olhar vigilante dos capatazes. O sol escaldante castigava sem piedade, tornando o suor uma segunda pele e a sede uma companheira constante.

A alimentação era simples e insuficiente. Milho, feijão e pequenas porções de carne eram distribuídos com parcimônia, enquanto a água, retirada de poços improvisados, muitas vezes carregava um gosto metálico ou de terra. Pietro, no entanto, aproveitava cada migalha com uma gratidão forçada, ciente de que qualquer desperdício seria um luxo que ele não podia se permitir.

Mesmo nas condições mais adversas, Pietro recusava-se a sucumbir ao desespero. Havia uma força quase obstinada em seu caráter, um fogo que se recusava a ser apagado. Nos raros momentos de pausa, ele observava o céu amplo e aberto, que se estendia sobre as plantações como um lembrete da vastidão do mundo e das possibilidades que ele ainda não explorara.

A vida na fazenda era uma luta constante, mas Pietro via em cada dia sobrevivido uma pequena vitória. Sua perseverança não era motivada apenas por um desejo de sobrevivência, mas por uma determinação inabalável de que, em algum momento, o solo que ele cultivava daria frutos não apenas para o patrão, mas também para ele mesmo. Cada semente que plantava era uma promessa silenciosa de que sua existência naquele novo mundo não seria em vão.

Capítulo IV – A Luta e a Esperança

Os anos passaram como ciclos das estações, cada um trazendo consigo um misto de sacrifício e progresso. Pietro Morello, antes um simples camponês submetido às intempéries do destino, começou a vislumbrar o fruto de seu trabalho árduo. As moedas acumuladas com parcimônia, cada uma conquistada ao custo de dias extenuantes e noites insones, tornaram-se o alicerce de um sonho que ganhava forma: a posse de sua própria terra.

A propriedade adquirida não era extensa, tampouco fértil à primeira vista. Tratava-se de um pedaço de solo bruto e inclinado, rodeado por mata cerrada e marcado por pedras que desafiavam o arado. Mas para Pietro, aquele pequeno domínio era um reino em potencial, uma tela onde ele poderia pintar sua visão de um futuro digno. Com as mãos calejadas, iniciou o trabalho incessante de desbravar o terreno, limpar a mata e preparar o solo para o cultivo.

O espírito coletivo que marcava a convivência dos imigrantes italianos revelou-se uma força motriz nesse processo. Ao redor de Pietro, outros conterrâneos que haviam compartilhado as mesmas adversidades e esperanças uniram-se para construir uma nova comunidade. O isolamento que antes definia suas existências deu lugar a um senso de pertencimento. Casas de madeira começaram a surgir entre as clareiras, cada uma erguida com o esforço conjunto de homens e mulheres que entendiam o valor de apoiar uns aos outros.

Pietro, guiado por uma memória viva de sua Bassano del Grappa natal, propôs o cultivo de uvas. As encostas pedregosas e a terra que muitos julgavam ingrata tinham uma semelhança sutil com as colinas de sua terra de origem. Ele via ali não apenas a possibilidade de sustento, mas também uma forma de perpetuar as tradições que carregava consigo. As mudas de videiras, cuidadosamente transportadas por outros imigrantes ou adquiridas com esforço, foram plantadas com reverência.

O cultivo das uvas exigia paciência e dedicação. As plantas, frágeis nos primeiros anos, demandavam cuidado meticuloso contra pragas, intempéries e a imprevisibilidade da natureza. Pietro e seus companheiros enfrentaram cada desafio com determinação, aprimorando técnicas que mesclavam o conhecimento herdado de seus antepassados com a adaptação às condições do novo mundo.

Quando as primeiras colheitas começaram a dar frutos, o vinho tornou-se mais do que uma bebida. Era uma celebração da resistência e da identidade cultural. As barricas improvisadas, armazenadas em adegas escavadas à mão, guardavam um líquido que simbolizava a ligação entre o passado e o presente, entre a Itália distante e a nova pátria que construíam.

A comunidade crescia em torno desse esforço comum. Além das videiras, os imigrantes introduziram pomares de frutas, pequenas hortas e até mesmo animais de criação, garantindo uma economia diversificada. Estradas improvisadas conectavam as propriedades, e aos poucos, uma pequena vila surgiu. A igreja, construída com madeira local, tornou-se o coração espiritual do lugar, e as celebrações religiosas eram marcadas por festas que uniam famílias inteiras.

Pietro tornou-se uma figura de respeito entre seus pares. Sua história personificava o ethos do imigrante: resiliência, trabalho árduo e a capacidade de transformar adversidades em oportunidades. Sob sua liderança tácita, a vila prosperou. Em poucos anos, tornou-se um ponto de referência na região, atraindo comerciantes e outros imigrantes que buscavam integrar-se a um ambiente promissor.

Mais do que uma conquista material, o sucesso de Pietro e da comunidade era uma afirmação de sua contribuição ao Brasil. Eles não apenas desbravaram a terra; moldaram uma cultura que combinava o melhor de suas origens com as possibilidades de um novo lar. Cada videira que florescia, cada garrafa de vinho produzida, era um testemunho de que a identidade italiana não fora perdida, mas transformada em algo maior e duradouro.

Quando Pietro contemplava os campos ondulados de videiras ao entardecer, o sol pintando o céu com tons de ouro e carmesim, sentia-se finalmente parte de um destino maior. Ele havia plantado não apenas raízes na terra, mas também no coração de um país que agora chamava de lar.

Epílogo

Décadas transcorreram desde os primeiros passos de Pietro Morello em terras brasileiras, e o eco de sua jornada reverbera como um cântico silencioso entre as gerações que se sucederam. O nome Morello, outrora pertencente a um jovem camponês que deixou Bassano del Grappa com pouco mais do que esperança e determinação, tornou-se sinônimo de resiliência e visão.

Seus descendentes, agora espalhados por vilas e cidades do interior, não apenas relembram, mas vivem o legado que Pietro construiu. A terra que ele cultivou, resgatada de sua condição bruta e indomada, transformou-se em campos produtivos que geravam não apenas sustento, mas também um orgulho indelével. As vinhas, que floresciam em fileiras ordenadas como soldados em formação, não eram apenas plantações; eram um símbolo da tenacidade e da capacidade de adaptação dos imigrantes italianos.

Mas o impacto de Pietro ia além do tangível. Sua história, contada e recontada em almoços de família e celebrações anuais da colheita, tornou-se uma narrativa fundadora para seus descendentes. A epopeia do jovem que cruzou o oceano, enfrentou o calor abrasador das plantações de café e, por fim, ergueu uma comunidade próspera em meio às adversidades, era um lembrete constante do poder do trabalho árduo e da visão coletiva.

A vila que Pietro ajudara a fundar, inicialmente uma aglomeração humilde de casas de madeira, floresceu em um núcleo cultural e econômico. Ao lado das vinhas e dos pomares, ergueram-se oficinas, padarias e pequenas fábricas de conservas, onde o vinho produzido pelos Morello ganhava forma e identidade. A tradição vinícola que Pietro iniciara tornou-se um emblema da comunidade, com garrafas que exibiam rótulos adornados com o nome da família, um ramo de videira entrelaçado com a cruz de sua fé.

Ao longo das décadas, o Brasil mudou, assim como a vila. Estradas que antes eram trilhas rudimentares deram lugar a vias pavimentadas, conectando o pequeno vilarejo ao restante do estado. Os descendentes de Pietro não apenas preservaram sua herança agrícola, mas também expandiram suas ambições. Alguns tornaram-se professores, outros advogados e engenheiros, mas todos, sem exceção, carregavam consigo o espírito pioneiro de seu antepassado.

A história de Pietro Morello, no entanto, não era apenas pessoal; era coletiva. Era uma fração de uma narrativa maior que unia milhares de imigrantes italianos que desembarcaram no Brasil ao longo do século XIX. Cada um deles trouxe consigo sonhos fragmentados que, unidos, ajudaram a moldar a paisagem econômica e cultural do país.

Os italianos trouxeram muito mais do que braços para o trabalho; trouxeram alma. Trouxeram uma cozinha rica que se fundiu aos sabores locais, música que animava celebrações comunitárias, e uma ética de trabalho que se enraizou profundamente nas gerações subsequentes. Pietro foi parte integrante desse movimento, um dos milhões de fios que teceram o tecido vibrante da nova nação.

Quando seus descendentes erguem taças de vinho em festas familiares, brindam não apenas ao presente, mas à memória de Pietro e de tantos outros como ele. O vinho, que escorre rubro como o sangue que regou aquela terra, é o testemunho líquido de que o esforço e a coragem de seus antepassados não foram em vão.

E assim, a história de Pietro Morello transcende a mortalidade. Ele não é apenas lembrado como um nome em um registro genealógico ou um rosto em uma fotografia desbotada. Ele vive nos campos cultivados, nas tradições mantidas e no espírito indomável de uma comunidade que, como ele, nunca deixou de acreditar que até mesmo o solo mais árido pode florescer sob as mãos de quem tem fé no futuro.

Nota do Autor

Embora esta história seja fruto da imaginação, ela se entrelaça com eventos reais que marcaram profundamente a trajetória dos imigrantes italianos no Brasil. O personagem de Pietro Morello e os desafios que ele enfrenta ao longo de sua jornada representam uma homenagem simbólica a todos os homens e mulheres que, movidos pela necessidade e pela esperança, deixaram suas terras natais em busca de um futuro mais promissor.

Para a criação deste romance, mergulhei em extensas pesquisas sobre as condições sociais, econômicas e culturais que impulsionaram o êxodo italiano no final do século XIX e início do XX. Consultei documentos históricos, cartas de imigrantes, registros de hospedarias e relatos orais que preservam as memórias desses pioneiros. Cada detalhe, desde os porões dos navios até os campos de café e as vilas emergentes, foi inspirado por fontes confiáveis e pelo desejo de retratar, com fidelidade, os desafios e conquistas desse período.

Esta obra também é, em essência, uma celebração da coragem e da resiliência de nossos antepassados, que enfrentaram o desconhecido para construir não apenas novas vidas, mas também contribuir para o desenvolvimento de uma nova pátria. Suas histórias, muitas vezes silenciadas pelo passar do tempo, merecem ser lembradas e compartilhadas.

Através deste romance, espero não apenas entreter, mas também resgatar e valorizar a memória daqueles que, com sacrifício e determinação, ajudaram a moldar a identidade cultural e social do Brasil. Que as páginas desta obra possam honrar seu legado e inspirar em nós a mesma força de espírito que os guiou em suas jornadas.

Dr. Piazzetta


quinta-feira, 24 de julho de 2025

A Odisseia de um Imigrante Italiano


Enrico Castellari 

A Odisseia de um Imigrante


Em 1899, já no final do século, Enrico Castellari, um agricultor mantovano, vivia os dias difíceis de uma Itália marcada pela fome, desemprego e crise social. Com 34 anos, Enrico era um homem dedicado à família e ao trabalho na pequena localidade rural de Piubega. Contudo, as terras de sua região, empobrecidas por décadas de cultivo intensivo, já não ofereciam o sustento necessário para ele, sua esposa Rosa e seus dois filhos, Carlo e Bianca.

A decisão de emigrar surgiu como uma luz em meio às trevas. Nos dias sombrios em que o peso da fome apertava e os campos, antes férteis, se tornavam incapazes de sustentar a família, a visita de um agente de imigração trouxe um misto de esperança e incerteza. Ele passava pelas pequenas cidades e vilas italianas com discursos eloquentes, pintando o Brasil como um paraíso distante. "Uma terra onde a riqueza brota do solo e o trabalho honesto é recompensado", dizia ele, enquanto distribuía panfletos e mostrava ilustrações de vastos campos e famílias sorridentes.

Enrico ouviu falar do agente durante a missa dominical. A pequena igreja de pedra ecoava murmúrios sobre as promessas da nova terra, e, embora muitos hesitassem, ele sentiu algo despertar dentro de si. Movido pela esperança e pelo desespero, reuniu-se com o agente na praça principal de sua aldeia. A conversa foi breve, mas cada palavra parecia carregar um peso imenso: uma promessa de futuro ou uma armadilha disfarçada de oportunidade.

Após dias de reflexão e noites insones, Enrico tomou sua decisão. Vendeu seus poucos pertences: a velha carroça, os utensílios de cobre herdados da mãe, e até mesmo o pequeno rebanho que restava. Com o dinheiro, comprou passagens para ele e sua esposa no próximo navio que zarparia de Gênova rumo ao Brasil. A visão da travessia era ao mesmo tempo assustadora e excitante; o desconhecido os atraía como um chamado irresistível.

Enquanto empacotava os poucos pertences que restaram, Enrico sentiu um nó na garganta ao dobrar as roupas simples de trabalho e guardar o velho rosário que pertencera ao seu pai. Sua casa de pedra, pequena e humilde, parecia agora mais cheia de memórias do que de paredes. Ao lado da esposa, olhou pela última vez para os campos que os viram crescer e sofrer. A terra que sempre fora seu lar agora era apenas um peso de dor e despedida. O dia da partida chegou sob o céu cinzento de uma manhã fria. A vila inteira parecia estar presente para se despedir daqueles que embarcavam na jornada. Lágrimas se misturavam com sorrisos encorajadores, enquanto Enrico subia na carroça que os levaria ao porto. O som das rodas no cascalho parecia marcar o início de uma nova vida.

A jornada começou em Gênova, onde o cais fervilhava de atividade. Homens gritavam ordens, bagagens eram empilhadas desordenadamente, e o cheiro de maresia misturava-se ao aroma agridoce da ansiedade que pairava no ar. Enrico e sua família chegaram cedo, mas mesmo assim enfrentaram longas horas de espera. O navio a vapor, um gigante metálico com chaminés que cuspiam fumaça negra, parecia quase vivo, com suas máquinas ruidosas e tripulação apressada.

Quando finalmente embarcaram, foram direcionados ao convés inferior, um espaço apertado e abafado que parecia mais uma caverna metálica do que um lar temporário. Ali, centenas de famílias se amontoavam com suas posses, tentando criar alguma ordem no caos. O calor era insuportável, e o ar pesado trazia uma sensação de sufocamento constante. Bebês choravam, mães cantavam baixinho tentando acalmá-los, e o murmúrio de orações em diferentes dialetos italianos preenchia os momentos de silêncio.

Durante as semanas no mar, enfrentaram desafios que testaram tanto o corpo quanto o espírito. Os mares revoltos balançavam o navio de forma implacável, deixando muitos à mercê do enjoo e do desespero. As doenças, inevitáveis em um ambiente tão insalubre, começaram a se espalhar rapidamente. A febre e a tosse eram visitantes frequentes entre os passageiros. Rosa, sempre vigilante, cuidava de Bianca com uma devoção incansável, enquanto Carlo, com sua energia infantil, encontrava maneiras de transformar aquele espaço limitado em um campo de brincadeiras, usando um pedaço de corda como um jogo improvisado.

Enrico, por sua vez, passava longos momentos em silêncio, observando a família e refletindo. Ele se perguntava se havia tomado a decisão certa. A saudade do que haviam deixado para trás era uma dor persistente, um peso invisível que carregava a cada instante. No entanto, cada vez que olhava para Rosa embalando Bianca, ou ouvia o riso inocente de Carlo, sentia uma centelha de esperança. Talvez o sacrifício valesse a pena.

Então, um dia, após o que parecia uma eternidade, o navio entrou em águas mais calmas. A tripulação começou a correr pelo convés, e um burburinho tomou conta do ambiente. Enrico subiu ao convés superior, seguido por Rosa, que carregava Bianca, e por Carlo, com os olhos brilhando de curiosidade. Lá, no horizonte, ele viu pela primeira vez o porto do Rio de Janeiro. Montanhas imponentes erguiam-se contra o céu azul, enquanto as águas reluziam sob o sol. A paisagem era majestosa, quase surreal. Enrico sentiu um nó na garganta; as dúvidas que o haviam assombrado começaram a se dissipar. Ele segurou a mão de Rosa com firmeza, compartilhando com ela aquele momento que parecia um sonho. “Estamos aqui”, sussurrou, mais para si mesmo do que para ela. Era o começo de uma nova vida, e pela primeira vez em muito tempo, ele acreditou que poderiam vencer.

Do Rio de Janeiro, a família seguiu para o Espírito Santo. Após dias costeando a praia, chegaram ao porto de Vitória e, dali, foram transportados em pequenos barcos para uma colônia chamada São Antônio. Giuseppe Artioli, um italiano que já vivia ali há anos, os acolheu e explicou as dificuldades que enfrentariam.

“Essa terra é generosa, mas precisa ser domada”, disse Giuseppe. As terras designadas a Enrico eram vastas, mas cobertas por uma floresta densa e desconhecida. Ele passou os primeiros dias limpando o terreno, aprendendo sobre o clima e tentando se adaptar à comida local. A mandioca, o feijão e as frutas tropicais eram estranhos ao paladar lombardo, mas, com o tempo, tornaram-se parte de sua dieta.

O cultivo do café era a principal promessa de riqueza. Enrico, com a ajuda de Rosa e Carlo, começou a plantar as primeiras mudas. O trabalho era extenuante, mas ele nunca reclamava. Cada semente plantada representava a esperança de um futuro melhor.

A floresta também era fonte de aventura e perigo. Carlo adorava explorar, mas Enrico sempre o alertava sobre os animais selvagens. Certo dia, um grupo de colonos encontrou uma preguiça gigantesca, que despertou a curiosidade de todos. “Esse lugar é cheio de surpresas”, disse Rosa, sorrindo.

A colônia era um mosaico de culturas. Italianos, alemães, franceses e suíços conviviam, trocando conhecimentos e experiências. As ocasionais festas comunitárias, onde se misturavam músicas italianas e danças locais, eram momentos de união e alegria.

Enrico começou a ensinar os vizinhos sobre técnicas de cultivo que havia aprendido na Lombardia. Em troca, aprendeu a lidar com as particularidades do solo brasileiro. “Aqui, todos dependem de todos”, dizia ele.

À noite, quando o trabalho terminava, Enrico escrevia cartas aos parentes que haviam ficado na Itália. Contava sobre as dificuldades, mas também sobre as conquistas. “Esta terra é diferente de tudo que conhecemos, mas tem um potencial imenso. Se tivermos coragem, construiremos algo grandioso”, escreveu ao irmão Matteo.

A saudade era uma constante. Rosa, às vezes, chorava ao lembrar dos campos da Lombardia. Mas Enrico a consolava dizendo: “Estamos plantando nossas raízes aqui. Um dia, nossos netos falarão deste lugar como sua casa.”

Anos se passaram, e a família Castellari prosperou. O café floresceu nas terras de Enrico, e sua colônia tornou-se um exemplo de sucesso. Carlo cresceu e começou a ajudar o pai, enquanto Bianca se tornou uma jovem forte e alegre, adaptada à vida no Brasil.

Enrico Castellari nunca voltou à Itália, mas seu espírito aventureiro e sua dedicação deixaram um legado. Ele e Rosa encontraram no Brasil não apenas um novo lar, mas uma nova identidade, onde as raízes italianas se misturaram com o solo brasileiro, criando uma história de coragem, resiliência e esperança. 

Nota do Autor

Escrever Enrico Castellari: A Odisseia de um Imigrante foi como traçar um mapa das complexas emoções e desafios que envolvem o ato de recomeçar em terras desconhecidas. Inspirada em histórias reais de imigrantes italianos, esta obra é uma homenagem à coragem daqueles que, movidos pela necessidade e pela esperança, deixaram para trás suas raízes para plantar novas em um solo distante.

Enrico Castellari é mais do que um personagem; ele é um símbolo da resiliência humana e da capacidade de sonhar mesmo em tempos de adversidade. A narrativa busca capturar não apenas os grandes feitos, mas também os pequenos momentos de dúvida, dor e triunfo que marcam a jornada de cada imigrante. Ao mergulhar nas dificuldades da viagem transatlântica, nos desafios do trabalho árduo e no esforço para adaptar-se a uma cultura diferente, espero que o leitor possa sentir a profundidade da luta e da fé de famílias como a de Enrico. Mais do que um relato histórico, esta é uma história sobre a alma humana, que persevera e floresce mesmo nas condições mais difíceis.

Dedico este livro aos descendentes daqueles que vieram antes de nós, que trazem em seu sangue a força de seus ancestrais, e a todos que acreditam no poder transformador da esperança. 

Dr. Luiz C. B. Piazzetta