Mostrando postagens com marcador travessia do oceano. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador travessia do oceano. Mostrar todas as postagens

sábado, 3 de dezembro de 2022

A Perigosa Travessia do Oceano

Navio Principessa Mafalda



Apesar do desânimo e da pobreza em que viviam na Itália, para a grande maioria das pessoas, a tomada de decisão de emigrar não deve ter sido uma tarefa fácil. Foi certamente uma escolha muito dolorosa, pois necessitavam se desfazer dos seus poucos pertences, as suas casas, de deixar para sempre a sua pequena vila que os tinha visto nascer e crescer, em se despedir dos amigos e entes queridos, para talvez nunca mais voltar a vê-los. 

A tomada de decisão foi um processo bastante delicado que envolvia ao mesmo tempo muitas esperanças, raiva, medo e insegurança pelo futuro desconhecido, a incerteza do que iriam encontrar no novo país e principalmente o temor pela travessia do oceano. 

A viagem seria uma grande aventura e, a maioria deles não tinha consciência das dificuldades e perigos que iriam encontrar. Era um fator desconhecido que incomodava quase todos. A cansativa viagem de trem até o porto já representava uma inusitada aventura para a maioria, pois ainda era um meio de transporte quase desconhecido que muitos nunca haviam experimentado. Mas, a longa travessia do oceano de navio, era o pensamento que mais amedrontava a mente daqueles que partiriam e também dos que ficavam. Sabiam que a viagem através do oceano estava repleta de perigos e armadilhas até mesmo antes da partida.

Para embarcar o emigrante precisava, antes de tudo, estar quites com as suas obrigações militares e obter os documentos necessários para deixar o país. Os que estavam prestes a servir o exército, ou completariam os 18 anos, não recebiam permissão para embarcar. O passaporte para toda a família era emitido pela prefeitura local, bem como o necessário certificado de boa conduta. Com esses procedimentos realizados o candidato a emigrante passava a fase seguinte, de conseguir o dinheiro necessário para comprar os bilhetes de viagem.

Para obter a quantia necessária para as passagens de terceira classe, muitos foram obrigados a vender os poucos bens que possuíam e ainda se cuidar para não serem vítimas de aproveitadores. No início do período da emigração ainda podiam contar com os bilhetes grátis, emitidos pelas companhias de navegação, que eram contratados pelo governo dos países interessados na mão de obra, como foi o caso do Brasil que terceirizava o recrutamento para escritórios de emigração.

A viagem de navio a vapor assustava bastante pois, quase todos tinham pavor do mar, um elemento até então desconhecido para eles, habitantes de montanhas ou de zonas localizadas distantes do litoral, no interior da região. Também a possibilidade real de um naufrágio deixava ainda mais nervosos aqueles emigrantes. No entanto, poucos deles sabiam de outros riscos que teriam que enfrentar depois de embarcados, especialmente aqueles emigrantes pioneiros, que constituíram as primeiras levas a deixar a Itália. 

A desumana lotação de passageiros nos navios, que, sistematicamente, excediam a capacidade nominal das embarcações, levavam à promiscuidade e a falta de higiene. A inspeção sanitária superficial, realizada antes do embarque, muitas vezes deixava passar indivíduos portadores de doenças transmissíveis, que, uma vez em alto mar, se transformavam em epidemias mortais, ceifando a vida dos mais fracos: os velhos e as crianças.

Se ocorresse uma epidemia durante a viagem o navio deveria ficar em quarentena e impedido de desembarcar os passageiros em qualquer porto. Em casos mais graves, com mortes a bordo por tifo ou cólera, o navio seria obrigado a regressar ao porto de partida com todos os passageiros. 

Com o passar dos anos a situação dos passageiros melhorou um pouco, principalmente, depois da aprovação pelo parlamento italiano em 1901, de leis que regulamentavam a emigração. As companhias de navegação foram então obrigadas a melhorar as condições de hospedagem a bordo, fornecendo espaços pessoais e áreas comuns adequadas, além de garantir aos passageiros alimentação de melhor qualidade e em quantidade adequada. Foram obrigadas também a manter médico e pessoal sanitário durante as travessias.

Os naufrágios, infelizmente, aconteceram e por diversos motivos, levando milhares de emigrantes à morte por afogamento. Navios como o Sirio, o Utopia, o Principessa Mafalda e o Titanic são alguns exemplos desses acidentes. A má conservação das embarcações e erros da tripulação foram as principais causas.




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS





segunda-feira, 4 de julho de 2022

De Amicis e Trecho do Livro "Sobre o Oceano"

 

Emigrantes



Edmundo De Amicis, militar e escritor italiano, nasceu na localidade Borgo d' Oneglia, no município de Imperia, província de Imperia, em 21 de outubro de 1846 e faleceu em Bordighera, um município da província de Imperia, em 11 de março de 1908. 

Escreveu diversos livros sendo que a sua obra Sull'oceano, publicado em 1889, alcançou um grande sucesso, com  várias edições impressas. Misto de romance e diário de bordo, conta uma viagem feita pelo autor, entre Gênova e Montevideu, na primavera de 1884, a bordo do vapor Nord America, que no livro recebeu o nome de Galileo.

O navio também transportava cerca de 1600 pequenos agricultores italianos que estavam fugindo do país em busca de uma vida melhor na América do Sul. 

Este livro somente foi publicado no Brasil em 2017 com o título "Em Alto Mar". Foi considerado o primeiro livro sobre a grande emigração italiana que teve o seu auge nos 25 anos finais do século XIX e início do século XX.

A narrativa se passa a bordo do navio em que o autor viajou com um grande número de emigrantes italianos. A embarcação levava na terceira classe 1.600 emigrantes italianos com destino à Argentina, sendo que uma minoria tinha como destino final o Uruguai. Também transportava 50 passageiros na primeira classe e 20 na segunda, além de cerca de 200 tripulantes.

O livro é um resumo da sociedade italiana da época. A Itália era então um país recém nascido, cuja unificação só havia acontecido em 1861, após um longo e doloroso processo conhecido como Risorgimento. 

A unificação da Itália foi seguida do êxodo massivo de cidadãos do país que ficaram em situação de penúria. Concluída em 1861 a unificação marginalizou uma grande parte da população e abriu uma ferida na sociedade italiana. Foram justamente estes mais pobres e desamparados que arcaram em seus ombros o ônus da construção do novo estado italiano. A  grande emigração ficou marcada como uma cicatriz resultante deste penoso processo que deu nascimento ao país. 

A obra Sull'Oceano mostra com detalhes como essa cicatriz se manifestava a bordo daquele navio de emigrantes: alguns sentiam desprezo pela pátria, outros desconfiança, raiva ou rancor por serem praticamente obrigados a abandonar a terra natal. Para a maioria deles a Itália não agia como uma mãe e sim como uma madrasta má que não se importava com a sorte dos seus filhos.

Apesar de que a Itália tivesse se tornado um país em 1861, a grande quantidade de dialetos a bordo revela claramente que, em 1884, a nação italiana ainda não existia. Os emigrantes, vindos de diferentes regiões, não se entendiam entre si. 

O romance mostrou à elite italiana da época as péssimas condições da viagem enfrentada pelos emigrantes e emitiu um sinal de alerta para as autoridades, que em 1901 estabeleceram uma série de normas a serem obedecidas pelos navios de emigrantes.

Trecho do livro Sull'oceano


EMBARQUE DE EMIGRANTES"


Quando cheguei, ao entardecer, o embarque dos emigrantes já havia começado há uma hora, e o Galileo, unido à descida de uma pequena ponte móvel, continuava a sofrer: uma interminável procissão de pessoas saindo em grupos do lado oposto do edifício, onde um delegado do quartel general da polícia examinava os passaportes. A maioria, tendo passado uma ou duas noites ao ar livre, agachada como cães nas ruas de Gênova, estava cansada e com sono. Trabalhadores, camponeses, mulheres com bebês no peito, meninos que ainda tinham a placa do jardim de infância presa ao peito, passavam, quase todos carregando uma cadeira dobrável debaixo do braço, bolsas e malas de todos os formatos na mão ou na a cabeça, braçadas de colchões e cobertores, e o bilhete com o número do beliche pressionado entre os lábios. Pobres mulheres que tinham um filho em cada mão seguravam com os dentes suas grandes trouxas; algumas velhas camponesas de tamancos, levantando as saias para não tropeçar nas travessas da ponte, mostravam as pernas nuas e secas; muitos estavam descalços e com os sapatos pendurados no pescoço. De vez em quando passavam entre aquela miséria cavalheiros vestidos com elegantes sobretudos, padres, senhoras com grandes chapéus de penas, que traziam nas mãos um cachorrinho, ou uma caixa de chapéus, ou um maço de romances ilustrados franceses, da velha edição de Lévy. Então, de repente, a procissão humana foi interrompida, e uma manada de gado e carneiros avançou sob uma tempestade de madeira e maldições, balindo com o relinchar dos cavalos de proa, com os gritos dos marinheiros e carregadores, com o rugido ensurdecedor de o guindaste a vapor, que levantava pilhas de baús e caixotes no ar. Depois disso, recomeçou o desfile de emigrantes: rostos e roupas de todas as partes da Itália, trabalhadores robustos de olhos tristes, velhos esfarrapados e sujos, mulheres grávidas, meninas alegres, jovens bêbados, camponeses em mangas de camisa e meninos atrás de meninos, que, mal tendo posto os pés no convés, em meio àquela confusão de passageiros, garçons, oficiais, funcionários da companhia e guardas da alfândega, ficavam atônitos, ou se perdiam como numa praça lotada. Duas horas após o início do embarque, o grande vapor, ainda imóvel, como um enorme cetáceo mordendo a praia, ainda sugava o sangue italiano. 

Enquanto subiam, os emigrantes passavam diante de uma mesa, à qual estava sentado o comissário; que os reunia em grupos de meia dúzia, chamados ranci, escrevendo seus nomes em uma folha impressa, que ele devolvia ao passageiro mais velho, para que ele pudesse ir com ele buscar comida na cozinha, na hora das refeições. As famílias menores de seis pessoas foram registradas com um conhecido ou com o primeiro a chegar; e durante esse trabalho de inscrição havia em todos um medo vívido de serem enganados na conta de meias vagas e quartos para meninos e crianças, a desconfiança invencível que inspira no camponês todo homem que segura a caneta na mão e um livro de registro a sua frente. Surgiram contestações, reclamações e protestos foram ouvidos. Então as famílias se separaram: homens de um lado, mulheres e crianças do outro, foram levados para seus dormitórios. E foi uma pena ver aquelas mulheres descerem com dificuldade as escadas íngremes, e tatearem por aqueles dormitórios amplos e baixos, entre os inúmeros beliches dispostos em pisos como as caixas do e alguns, sem fôlego, pedem conta de um pacote perdido a um marinheiro que não os compreende, os outros sentam-se onde estavam, exaustos, como que atordoados, e muitos vão e vêm ao acaso, olhando para todos aqueles companheiros de viagem desconhecidos, inquietos como eles, também confusos por aquela aglomeração e aquela desordem. Alguns, que desceram ao primeiro andar, vendo outras escadas descerem no escuro, recusaram-se a descer mais. Pela escotilha escancarada vi uma mulher soluçando alto, com o rosto no beliche: queria dizer que poucas horas antes de embarcar, uma filha havia morrido quase de repente, e que seu marido teve que deixar o corpo na Segurança Pública de o porto, para levá-lo ao hospital. Das mulheres, a maioria ficou abaixo; os homens, por outro lado, largaram as roupas, subiram e se apoiaram nos parapeitos. Curioso! Quase todos eles estavam pela primeira vez em um grande vapor que deveria ser como um mundo novo para eles, cheio de maravilhas e mistérios; e ninguém olhou em volta ou para cima ou parou para considerar uma única das cem coisas maravilhosas que eles nunca tinham visto. Alguns olhavam com muito cuidado para qualquer objeto, como a mala ou a cadeira de um vizinho, ou um número escrito em um baú; outros mordiscavam uma maçã ou um pedaço de pão, examinando-o a cada mordida, com a mesma calma que fariam na porta do estábulo. Algumas mulheres tinham olhos vermelhos. Os jovens estavam rindo; mas, em alguns, entendia-se que a felicidade era forçada. A maioria deles não mostrava nada além de fadiga ou apatia. O céu estava nublado e começava a escurecer.

De repente, gritos furiosos foram ouvidos do escritório de passaportes e pessoas foram vistas correndo. Mais tarde soube-se que ele era agricultor, com sua esposa e quatro filhos, que o médico havia reconhecido doente pela pelagra. Nas primeiras perguntas, o pai ficou louco e, tendo sido negado o embarque, reagiu por insanidade.

Havia cerca de cem pessoas na descida: parentes dos emigrantes, muito poucos; os mais curiosos, e muitos amigos e parentes da tripulação, acostumados com essas separações.

Uma vez que todos os passageiros foram instalados, uma certa quietude se seguiu sobre o vapor, o que permitiu que o ronco surdo da máquina a vapor fosse ouvido. A maioria deles estava no convés, lotado e silencioso. Aqueles últimos momentos de espera pareciam eternos.

Por fim, os marinheiros da popa e da proa foram ouvidos gritando: - Quem não é passageiro, em terra!

Essas palavras provocaram um estremecimento de uma ponta à outra do Galileu. Em poucos minutos todos os estranhos saíram, o convés foi elevado, as cordas removidas, a escada levantada: um apito foi ouvido e o vapor começou a se mover. Então as mulheres começaram a chorar, os jovens rindo ficaram sérios, e um homem barbudo, até então impassível, foi visto passando a mão nos olhos. Essa emoção contrastava estranhamente com a calma dos cumprimentos que os marinheiros e oficiais trocavam com amigos e parentes reunidos na descida, como se estivéssemos partindo para La Spezia. - Muitas coisas. - Eu recomendo para esse pacote. - Você vai dizer a Gigia que eu vou fazer o recado. - Instale-o em Montevidéu. - Estamos interessados no vinho. - Boa caminhada. - Está bem. - Alguns, então chegados, ainda tiveram tempo de jogar fora maços de charutos e laranjas, que foram apanhados no ar a bordo; mas os últimos caíram no mar. Na cidade, as luzes já estavam brilhando. O navio a vapor deslizou lentamente pela meia escuridão do porto, quase furtivamente, como se carregasse um carregamento de carne humana roubada. Fui até a proa, na multidão mais densa, que estava toda voltada para a terra, para olhar o anfiteatro de Gênova, que se iluminava rapidamente. Poucos falavam em voz baixa. Aqui e ali, na escuridão, vi mulheres sentadas, com crianças apertadas contra o peito, com a cabeça abandonada nas mãos. Perto do castelo de proa uma voz rouca e solitária gritou em trovão de sarcasmo: - Viva a Itália! - e olhando para cima, vi um velho comprido mostrando o punho para a pátria. Quando saímos do porto, era noite. 

Triste com a visão, voltei à popa e desci para o dormitório da primeira classe, para procurar meu camarim. Deve-se dizer que a primeira descida neste tipo de hotel subaquático lembra deploravelmente uma primeira entrada em prisões celulares. Naqueles corredores estreitos e esmagados, impregnados com os vapores salinos da madeira, o fedor das lamparinas, o cheiro do couro búlgaro e os perfumes das damas, encontrei-me no meio de uma azáfama de pessoas ocupadas, que disputavam o garçons e empregadas com aquele egoísmo rude que é típico dos viajantes na fúria da primeira acomodação. Naquela confusão, desigualmente iluminada aqui e ali, vislumbrei o rosto risonho de uma bela loura, três ou quatro vagabundos pretos, um padre muito alto e a grande ousadia de uma empregada irritada, e ouvi palavras genovesas, francesas, italianas e espanholas. Na curva de um corredor encontrei uma mulher negra. De um camarim veio o solfejo de uma voz de tenor. E na frente daquele camarim encontrei o meu, uma gaiola de meia dúzia de metros cúbicos, com uma cama de procusto de um lado, um sofá do outro, e no terceiro um espelho de barbeiro, colocado em uma bacia embutida na parede . . , ao lado de um abajur pendurado, que balançava com o ar de me dizer: Que ideia maluca você tem de ir para a América! Acima do sofá brilhava uma janela redonda semelhante a um grande olho de vidro, para o qual eu deveria olhar, como em um olho humano, que piscou para mim, com uma expressão de zombaria. E, de fato, a ideia de ter vinte e quatro noites para dormir naquele cubículo sufocante, o pressentimento da chuva e do calor da zona tórrida, e dos títulos que daria às paredes em dias de mau tempo, e dos mil pensamentos inquietos ou tristes que eu teria que ruminar ali dentro pelo espaço de seis mil milhas... Mas agora não adiantava me arrepender. Olhei para minhas malas, que me diziam tantas coisas naqueles momentos, e as toquei como faria com cães fiéis, os últimos restos vivos de minha casa; Roguei a Dominedio que não me fizesse arrepender de ter recusado as ofertas de um empregado de uma companhia de seguros, que tinha vindo me tentar na véspera da minha partida; e abençoando em meu coração os bons e confiáveis ​​amigos que estiveram ao meu lado até o último momento, embalada pelo mar querido da minha pátria, adormeci. 

NO GOLFO DE LEÃO

Quando acordei era dia e o vapor já estava rolando no Golfo de Leão. Imediatamente ouvi o gargarejo do tenor na cabine em frente, e na ao lado uma voz seca de mulher dizendo: - Seu pincel? O que eu sei sobre o seu pincel! Procure! -; uma voz que revelava não apenas um aborrecimento momentâneo, mas um temperamento acre e duro, e que despertava em mim um sentimento de profunda piedade pelo dono do objeto perdido. Mais adiante, outra voz feminina cantava uma canção de ninar para uma criança, com um canto estranho, e uma modulação que eu não achava que pudesse ser de uma criatura de nossa raça: ocorreu-me que era a negra que conheci à noite, e a música foi interrompida pelas vozes baixas e sibilantes de duas empregadas falando no corredor sobre uma picaggietta (uma toalha). Escutei: algumas palavras foram suficientes para me convencer de que, se uma mulher no mundo pode enfrentar uma empregada genovesa, ela só pode ser uma empregada veneziana. Um garçom entrou na cabine com o café. Na primeira manhã tudo é observado. Ele era um jovem bonito e desagradável, com cabelos penteados para trás escorridos, cheio de auto-respeito e sorrindo para sua própria beleza como um ator vaidoso. Questionado sobre qual era o seu nome, ele respondeu: "Antonio" com modéstia afetada, como se esse Antonio fosse o nome falso de um duchino, disfarçado de garçom para um caso de amor. Quando ele saiu, eu saí também, encostado nas paredes, e virando no corredor principal, vi as costas do gigantesco padre da noite anterior, que voltava para sua cabine, e um passo adiante, através do fenda de uma porta, precisamente onde a cortina verde caiu, duas mãos brancas puxando uma meia de seda preta sobre uma bela perna. A maioria dos passageiros ainda estava em seus camarins, onde se ouvia a água espirrando nas tigelas, e um grande farfalhar de escovas e mãos remexendo nas malas. À popa, encontrei apenas três pessoas. O mar estava agitado, mas de uma linda cor azul, e o tempo estava limpo. Não se via terra.

Mas o espetáculo era a terceira classe, onde a maioria dos emigrantes, tomados pelo enjôo, deitavam-se ao acaso, jogados sobre os bancos, nas posturas de doentes ou mortos, com rostos sujos e cabelos desgrenhados, em meio a um grande farfalhar de cobertores e trapos. Vimos famílias inteiras em grupos compassivos, com aquele ar de abandono e perplexidade, característico da família sem-teto: o marido sentado e dormindo, a esposa com a cabeça apoiada nos ombros e os filhos no assoalho, que dormiam com a cabeça sobre os joelhos de ambos: montes de trapos, onde não se via nenhum rosto, e só saía um braço de criança ou uma trança de mulher. Mulheres pálidas e desgrenhadas se dirigiram para as portas do dormitório, cambaleando e se agarrando aqui e ali. O que o padre Bartoli chama nobremente de angústia e indignação do estômago já deve ter feito a grande limpeza, desejada por todo bom comandante, dos maus frutos habituais dos quais os pobres emigrantes são plantados em Génova e da festa sacramental que aqueles que têm alguma coisa fazem na taberna. Mesmo aqueles que não sofreram pareciam desanimados e mais como deportados do que emigrantes. Parecia que a primeira experiência da vida inerte e desfavorecida do navio havia abafado em quase todos a coragem e as esperanças com que partiram, e que naquela prostração de espírito que se seguiu à agitação da partida, o sentimento de todas as dúvidas , todo o tédio e amargura dos últimos dias de sua vida doméstica, ocupados na venda das vacas e daquele centímetro de terra, em discussões amargas com o mestre e com o pároco, e em despedidas dolorosas. E o pior estava embaixo, no grande dormitório, cuja escotilha se abria perto do tombadilho da popa: olhando para fora, viam-se na penumbra corpos sobre corpos, como nos navios que trazem de volta os corpos dos emigrantes chineses à sua terra natal. ; e dali, como de um hospital subterrâneo, um concerto de lamentos, suspiros e tosses, tentou-nos a desembarcar em Marselha. A única nota agradável daquele espetáculo foram os poucos intrépidos que, no convés, saíram das cozinhas com tigelas cheias de sopa nas mãos, para ir comer em paz em seus lugares: alguns, fazendo maravilhas de equilíbrio, conseguiram ; outros, com o pé errado, caíram com o focinho na tigela, espalhando caldo e macarrão por toda parte, em meio a um desencadeamento de maldições. 

Ouvi com prazer o sino nos chamando para a mesa, onde esperava ver um quadro mais alegre.

Cerca de cinqüenta de nós estávamos sentados a uma mesa muito comprida, no meio de um vasto salão, todo decorado com ouro e espelhos, e iluminado por muitas janelas, nas quais se via dançar o horizonte do mar. No ato de sentar-se, e alguns minutos depois, os comensais não fizeram outra coisa senão olhar uns para os outros, escondendo sob uma indiferença simulada a curiosidade perscrutadora que sempre inspira os desconhecidos com quem se sabe ter de conviver por algum tempo em uma familiaridade inevitável. O mar estava um pouco agitado, faltaram várias senhoras. Na parte de trás da mesa notei imediatamente o sacerdote gigante, que ultrapassou seus vizinhos pela cabeça inteira: uma pequena e careca cabeça de pássaro grifo, com olhos orlados de presciutto, plantada em um pescoço interminável; e suas mãos me chamaram a atenção enquanto desdobravam o guardanapo, enorme e fino, com certos dedos que pareciam tentáculos de polvo: a figura de um Dom Quixote, sem poesia. Do mesmo lado, mas mais adiante, reconheci a loura que conhecera lá embaixo na noite anterior. Era uma bela dama de cerca de trinta anos, com dois olhos azuis demais e um nariz despreocupado, fresca e muito móvel, vestida com uma elegância um pouco vistosa demais; que agitou todos os comensais, como se conhecesse todo mundo, um olhar vago e sorridente de uma dançarina sob os holofotes; e não sei por quê, podia jurar que a meia de seda preta que vislumbrava de manhã só podia ser dela. O legítimo dono daquela seda era, sem dúvida, um senhor de uns cinquenta anos, que se sentava ao lado dela: um rosto resignado e benevolente, rodeado por um esfregão professoral, com dois olhinhos semicerrados, nos quais brilhava um sorriso de uma astúcia mais ostensiva. que verdade, que deve ter sido seu hábito. À sua direita estavam duas meninas, que pareciam ser parentes ou amigas íntimas; uma delas, vestida de verde-mar, impressionou-me no rosto esquelético e muito pálido, que se destacava ainda mais sob uma massa de cabelos negros e brilhantes, que parecia o cabelo de uma mulher morta: e ela tinha uma grande cruz negra. Depois, havia um casal curioso: dois esposos certamente, muito jovens, ambos pequenos, dois esturjões de Lucca, que comiam de cara baixa e conversavam sem olhar um para o outro, envergonhados, como se estivessem maravilhados com a comensais. Eu não daria mais de vinte anos a uma, nem mais de dezessete à outra, e apostaria que não tinham passado mais de quinze dias desde a sua aparição na Câmara Municipal: uma freira e um seminarista que sabiam a tempo de uma absoluta falta de vocação, e que eles não precisavam se dar preto sob seus olhos. De um lado do noivo havia uma matrona de cabelos mal tingidos, de seios até o queixo, com um rosto grande como caricaturistas na lua de mau humor, marcado acima da boca pelos traços indubitáveis ​​de uma depilação muito cáustica: que era toda ocupada comendo conscienciosamente, deixando-se puxar para baixo por um desses armários aéreos que pendiam sobre nossas cabeças como candelabros, ora a mostarda, ora a pimenta, ora a mostarda, como se ela quisesse recomendar uma dor de estômago e limpar a garganta rouca , que ele estava tentando de vez em quando com um pouco de tosse. À cabeceira da mesa sentava-se o Comandante, uma espécie de Hércules encolhido e carrancudo, ruivo e de rosto brilhante; quem falou com voz rouca, ora em puro genovês para o transeunte à sua direita, ora em espanhol impuro para um cavalheiro à sua esquerda: um velho alto e magro, com longos cabelos brancos e olhos profundos e vivos, exibindo os últimos retratos do poeta Hamerling.

Não conhecendo ainda a maioria dos passageiros entre eles, mal podíamos ouvir alguma conversa em voz baixa, acompanhada pelo tilintar de tachos de óleo suspensos, e ocasionalmente interrompida pelo golpe forte com que um comensal parava uma maçã ou laranja que escapou sobre a mesa ; quando uma frase em espanhol dita em voz alta e seguida por um coro de risadas fez todas as cabeças se virarem para o fundo do salão. "É uma brigada argentina", disse meu vizinho da esquerda.

Quando me virei para olhá-los, minha atenção foi desviada pelo belo rosto masculino do meu vizinho à direita, cuja voz eu ainda não tinha ouvido. Era um homem de cerca de quarenta anos, com aparência de soldado antigo, com um corpo poderoso, mas que ainda podia ser adivinhado rapidamente; já cinza. A testa ousada e os olhos injetados me lembraram Nino Bixio; mas a parte inferior do rosto era mais suave, embora triste, e como que contraída por uma expressão de desprezo, que violentava a bondade da boca. Não sei para que associação de ideias, pensei numa dessas figuras nobres de Garibaldini de 60, que conhecera nas inesquecíveis páginas de Cesare Abba, e fixei-me na cabeça que ele tinha feito aquela campanha, e que ele deve ter sido lombardo.

Ao olhar para ele, meu vizinho da esquerda bateu com o garfo na mesa, dizendo: - Não adianta... se eu comer, vou rachar. Era um homenzinho magro, com uma cara de dor no corpo e uma grande barba negra, comprida demais para ele, que parecia grudada nele, como as dos bruxinhos que saltam de caixas de mola.

Perguntei-lhe se ele se sentia mal. Ele respondeu com a familiaridade imediata dos doentes, que são informados sobre sua doença.

Ele não se sentiu mal ou, melhor dizendo, não sofria de enjôo. Ele sofria de uma doença particular, mais moral do que física, que era uma aversão invencível ao mar, uma inquietação raivosa e triste que o dominou na primeira vez que subiu no vapor, e que não o abandonaria até sua chegada, mesmo que sempre tivesse o mar como lago e o céu como espelho. Ele havia feito várias travessias oceânicas, pois sua família estava sediada na Argentina, em Mendoza; mas sofreu na última as mesmas torturas que na primeira: de dia uma exaustão e uma agitação mórbida, e de noite uma insônia incurável, atormentada pelas imaginações mais sombrias que podem passar por uma mente humana. Ele odiava o mar a tal ponto que conseguia ficar sete dias sem olhar para ele, e toda vez que encontrava uma descrição marinha em um livro, ele pulava nele. Por fim, ele me jurou que, se pudesse ter ido para a América por terra, teria viajado um ano de carruagem em vez de fazer aquela travessia de três semanas. A isso foi reduzido. Um médico amigo seu lhe contara de brincadeira, mas ele acreditava firmemente que aquela aversão violenta ao mar não podia derivar de outra coisa senão de um misterioso pressentimento de ter de morrer num naufrágio.

- Shâ se ele tirar essas idéias da cabeça, advogado! - disse seu vizinho do outro lado.

O advogado balançou a cabeça, apontando para o fundo do mar com o dedo indicador.

Vendo que ele já tinha conhecidos a bordo, pedi-lhe informações. Como eu tinha adivinhado

certo! Meu vizinho da direita, na verdade, deve ter sido lombardo: ele o ouvira falar lombardo com um amigo, na descida de Gênova: e um antigo garibaldiano, sem dúvida: o comissário lhe dissera isso pela manhã. - Mas como você sabe? - Eu me pergunto. - Exaltei minha faculdade divinatória. Ele continuou a me dar notícias. A família que estava no fundo da tabela, composta por pai e mãe, e por quatro filhos, era uma família brasileira, indo para o Paraguai. O moço de bigode louro, sentado ao lado do menor brasileiro, acreditava ser um tenor italiano (era meu vizinho no camarim) que ia cantar em Montevidéu. Quem falava alto naquele momento, do nosso lado da mesa, era um vilão original de um moleiro piemontês, que, tendo enriquecido na Argentina, agora voltaria para lá para sempre, depois de ter feito uma curta estadia em sua terra natal, onde parecia não ter encontrado a acolhida triunfal que esperava; e desde a noite anterior pretendia-se contar a um garçom sua história e contar aos chifres da Itália, que não teriam seus ossos. Aqui ele parou e me disse em voz baixa: "Olhe para esse braço."

Ele mencionou a garota pálida, com a cruz no pescoço, que eu já havia notado. Olhei e senti uma sensação de quase nojo: não era um braço, mas um pobre osso branco que parecia sair de um túmulo. E observei ao mesmo tempo seus olhos, velados e quase desaparecidos, com uma expressão de infinita tristeza e doçura, que pareciam olhar tudo e não ver nada. E observei que também o Garibaldino a olhava com os olhos semicerrados, talvez para esconder o sentimento de compaixão que também lhe inspirava.

A empresa, em suma, apresentava uma variedade bastante satisfatória para um observador. Percebi, entre outros, um estranho rosto bronzeado, de um homem de cerca de trinta e cinco anos, de traços graves e vagamente melancólicos, do qual não consegui desviar os olhos por um tempo quando o advogado me disse que era peruano. ; pois me parecia que a forma oblonga da cabeça e a boca grande e a barba rala correspondiam às descrições que se lêem nas histórias daqueles misteriosos incas, que sempre atormentaram minha imaginação. Eu o imaginei vestido de lã vermelha, com uma bandagem na cabeça e brincos de ouro, destinados a marcar seus pensamentos com os fios multicoloridos de um cordão nodoso, e vi as gigantescas estátuas douradas do palácio imperial resplandecendo atrás dele, de Cuzco, cercado por jardins reluzentes de frutas e flores douradas. E ele era o dono de uma fábrica de casamenteiros em Lima, que falava prosaicamente sobre sua indústria com o restaurante à sua frente.





sábado, 30 de outubro de 2021

Os Navios de Lázaro

Emigrantes amontoados para o embarque

 

“Le Navi di Lazzaro”, assim eram definidos pelos jornais e opinião pública italiana, na época da grande emigração, os navios que atravessavam o oceano com sua carga de miséria e doenças, ou seja, com os milhares de emigrantes.

Após todo sofrimento, ainda em terra, desde  o momento da decisão de emigrar e o embarque no navio, a viagem transoceânica transformava-se em uma nova batalha, talvez a mais difícil, a ser vencida pelos emigrantes. 

Com a finalidade de conhecer melhor e apresentar uma descrição mais completa e precisa, e não apenas se baseando em números estatísticos de doenças e de mortalidade que ocorriam a bordo, nos valemos também da literatura disponível sobre o tema, em especial o livro Sull’Oceano, publicada em 1889 obra do escritor Edmondo De Amicis, nascido em 1846 e falecido em 1908, e amplamente utilizada por aqueles que se dedicam a historiografia da emigração.



Esse célebre livro é considerado um dos primeiros romances italianos a afrontar o tema da grande emigração. Foi escrito depois da viagem do seu autor, de Gênova à Montevidéu, no vapor Galileo, no ano de 1884. Este livro relata essa experiência vivida em primeira pessoa pelo escritor. Ele é basicamente uma espécie de diário de bordo, dedicado à viagem dos emigrantes, provenientes de muitas regiões italianas, que falavam somente os seus dialetos locais e, portanto, comunicavam-se apenas com os próprios "paesani".

No livro estão relatos de fatos ocorridos com famílias que viajavam para a América do Sul, em terceira classe, na busca de uma vida melhor, retratados pelo escritor, que lhes deu voz e mostrou suas agruras. Aqui temos um trecho: 


A situação precária dos emigrantes italianos a bordo de um navio


"Quando cheguei, ao entardecer, o embarque dos emigrantes já havia começado há uma hora, e o Galileu, junto com a descida de uma pequena ponte móvel, continuava a embarcar  miséria: uma procissão interminável de pessoas saindo em grupos do edifício do outro lado, onde um delegado de Polícia examinava os passaportes. A maioria, tendo passado uma ou duas noites ao ar livre, agachados como cães nas ruas de Gênova, estava cansada e com sono. Trabalhadores, camponeses, mulheres com bebês no peito, meninos que ainda tinham a chapa de metal do jardim de infância presa ao peito, passavam, quase todos carregando uma cadeira dobrável debaixo do braço, sacolas e malas de todos os formatos na mão ou na cabeça, braçadas de colchões e cobertores, e a passagem com o número do leito pressionado entre os lábios. Mas o espetáculo foi na terceira classe, onde a maioria dos emigrantes, apanhados pelo enjôo, deitavam-se ao acaso, atirados sobre os bancos, em posturas de doentes ou mortos, com o rosto sujo e os cabelos despenteados, no meio de um grande monte de cobertores e trapos. Vimos famílias unidas em grupos de compaixão, com aquele ar de abandono e perplexidade típica da família de sem-teto: o marido sentado e dormindo, a esposa com a cabeça apoiada em seus ombros e os filhos na mesa, que dormiam com a cabeça apoiada nos joelhos dos dois: montes de trapos, onde não se via nenhum rosto, e saía apenas o braço de uma criança ou a trança de uma mulher. (...) 

E o pior estava embaixo, no grande dormitório, cuja escotilha se abria perto do tombadilho de popa: olhando para fora, via-se na meia escuridão corpos sobre corpos, como nos navios que trazem os corpos de emigrantes chineses de volta à pátria; e dali saía um concerto de lamentos, chocalhos e tosses, como de um hospital subterrâneo, para nos tentar a desembarcar em Marselha. 

De Amicis pouco enfatizou questões delicadas como a alimentação a bordo, as condições de higiene e a mortalidade durante a viagem. Na verdade, muitos morriam devido a doenças ou a desconfortos sofridos nos navios – na maioria das vezes os mais vulneráveis: as crianças e os mais velhos. 




Exemplos dessa triste realidade não faltaram, sobretudo nos vapores que rumavam para o Brasil levando emigrantes com o bilhete subvencionado pelo governo do grande império sul-americano: em 1888, morreram de fome 36 pessoas no navio Matteo Bruzzo e 18 no Carlo Raggio; em 1889, no Frisia, 300 emigrantes adoeceram e 27 faleceram por asfixia em decorrência da proximidade entre o dormitório e a sala das máquinas.

As observações do deputado Pantano em uma sessão do Parlamento no ano de 1899 apontam claramente o motivo de tantas mortes. De acordo com o parlamentar:

"Os navios eram carcaças já muitas vezes dedicadas ao transporte de carvão, cargas de carne humana, amontoada e desprotegida, cuja passagem pelo oceano era assinalada por uma esteira de cadáveres ceifados pela morte nas fileiras dos emigrantes mais fracos e doentes, das mulheres e das crianças, extenuadas, mal de saúde devido aos alimentos insuficientes ou de má qualidade, pela inexistência de cuidados sanitários e pela falta de ar respirável na plenitude de um horizonte livre"


Emigrantes a bordo amontoados no tombadilho do navio


Em relação a esses episódios, a fase mais crítica ocorreu antes da lei de 1901. Nesse período, a tutela sanitária das massas de emigrantes, na falta de uma lei orgânica sobre emigração, era legada ao Regolamento della Marina Mercantile de 1879 e depois ao Regolamento di Sanità Marittima de 1895. 

O primeiro limitava-se ao conjunto de normas higiênicas para as embarcações adaptadas ao transporte de emigrantes; o segundo foi pioneiro na matéria sanitária, contemplando diretrizes para a tutela do emigrante – então definido como objeto jurídico específico – e delimitando, em termos gerais, uma série de funções competentes aos oficiais de porto e aos médicos de bordo.

Pesquisadores utilizaram um desses documentos, o boletim de bordo do vapor Giava, escrito pelo médico Teodoro Ansermini, para apresentar descrição minuciosa da situação higiênico-sanitária dentro do vapor da Navigazione Generale Italiana em uma das inúmeras viagens de transporte de emigrantes para a América do Sul. O navio deixou Gênova em 8 de outubro, aportou em Buenos Aires em 8 de novembro e retornou à Gênova em 4 de dezembro de 1899, passando por Santos e Rio de Janeiro.

Os problemas começaram logo na partida, quando Ansermini, o médico de bordo, solicitou o documento comprobatório da desinfecção do navio e foi prontamente lembrado de que era pago pela companhia e, portanto, não deveria criar obstáculos. Discorrendo sobre a estrutura interna do vapor, o médico acusava a falta de ventilação e de luz natural, as péssimas condições de alimentação e de alojamento, que dificultavam até mesmo o emigrante de lavar-se, além da escassez de remédios. Diante desse quadro de precária higiene, o alastramento de doenças era sua principal preocupação: 

"Se quisermos dar ao médico do navio uma certa responsabilidade em casos de epidemias, é absolutamente essencial que ele também tenha autoridade para fazer a higiene necessária a bordo: ainda não consegui obter, exceto por uma noite, que a permanência dos passageiros no convés seja prolongada, o que será preciso para tentar conter as duas invasivas epidemias de tifo e varíola, porque os porões não são suficientemente ventilados, e o pouco ar que existe, já doentio, esquenta muito e se decompõe, até se tornar irrespirável". 

Antes do início da viagem de retorno, Ansermini revelou outra preocupação com a higiene quando veio a ordem para o capitão do navio desfazer-se de grande quantidade de camas para abrir espaço ao carregamento de mercadoria. Tal fato expunha, mais uma vez, o emprego promíscuo dos vapores no transporte de emigrantes e merdorias. 

"O problema é que, depois de tantas doenças epidêmico-contagiosas a bordo (varíola, tifo, difteria, mortes), as desinfecções não podem mais ser feitas, e as mercadorias ficarão acondicionadas em instalações já habitadas por passageiros há um mês (... )". 

Finalizando os registros no boletim de bordo, o médico recuperou seu pequeno histórico de vida profissional para expressar sua indignação e perplexidade mediante a viagem que durara quase dois meses. 

"Não me lembro, no meu exercício prático de sete anos, de ter sido médico dos pobres e de seis sociedades operárias, nunca ter visto tanta sujeira e tantas vidas amontoadas em salas tão estreitas e menos adequadas ao uso pretendido ".

O testemunho do médico Teodoro Ansermini,  constituiu-se em corajosa denúncia do sistema que explorava o emigrante e uma prova do tratamento dispensado pelas autoridades competentes, mais atentas aos interesses das companhias de navegação do que aos daqueles que emigravam. 

Por conta disso, criou-se uma comissão formada por um oficial e um médico do porto de Gênova para analisar as denúncias. As medidas tomadas mostram com clareza de que lado os órgãos oficiais estavam: interpelada verbalmente, a Navigazione Generale Italiana garantiu que tais fatos jamais se repetiriam, enquanto o médico, cujos escritos foram considerados exagerados, recebeu severa censura do Ministério da Marinha, ao qual era subordinado.




Vários outros documentos oferecem testemunhos dramáticos, sobretudo no período da emigração subvencionada para a América do Sul, quando a lei de 1888 ainda não havia regulamentado as condições de viagem e permitia a utilização de navios a vela ou mistos.

Os interesses dos armadores e o conivente silêncio das autoridades marítimas somados às estratégias engendradas para enfrentar a concorrência asseguravam contratos lucrativos de introdução da imigração subvencionada, apoiados no baixo preço da rota sul- americana. 

De outra parte, o emigrante italiano era mercadoria barata, solicitada a mover-se com baixos preços do bilhete de viagem. A estatística sanitária oficial da emigração italiana começou a ser publicada apenas em 1903. Alguns estudos contemporâneos, no entanto, fornecem dados sobre as condições sanitárias das viagens transoceânicas. 

Apesar algumas incoerências, são considerados como as únicas fontes relativamente confiáveis para o período após a aprovação da lei de 1888. Pesquisadores atuais apresentaram alguns números sobre a mortalidade e morbidade nos navios de emigrantes. 

Dos 480 casos examinados por Druetti, 133 apresentaram mortes e destes, 90 diziam respeito a crianças com idade inferior a 5 anos. As altas taxas de mortalidade eram causadas por doenças infecciosas, intestinais ou do aparelho respiratório. Quanto aos adultos, a principal causa de morte era a tuberculose pulmonar.

No século XX, quando a lei de 1901 instituiu as diretrizes básicas da tutela sobre a saúde do emigrante antes do embarque e durante a viagem, estabelecendo responsabilidades e controles, começaram a ser produzidos documentos importantes. Com base nesse documentos desnuda os problemas higiênico-sanitários da travessia do Atlântico e seus desdobramentos em mortes ou doenças. 

As taxas anuais de mortalidade para o período 1903-1915 foram quantificadas de acordo com o destino no Novo Mundo e se a viagem era de ida ou volta. Essas taxas nunca ultrapassaram o índice de uma morte a cada mil embarcados, sendo que os números concernentes à América do Sul sempre foram superiores aos da América do Norte, com exceção dos anos de 1914-1915.

No movimento de retorno, as taxas aproximavam-se – ultrapassando, em alguns anos (1903, 1904 e 1907) – do índice citado acima, e os valores para a América do Norte superaram os do Sul em 1909, 1910 e 1915. A taxa de mortalidade superior na emigração para a América do Sul pode ser explicada pela prevalência de grupos familiares, ou seja, pela maior presença de crianças nos navios. Vítimas potenciais de doenças infecto-contagiosas, não por acaso elas lideravam as estatísticas dos óbitos.




As doenças mais freqüentes nos vapores que se dirigiam às Américas eram malária, sarampo e doenças bronco-pulmonares. Em relação à viagem de retorno, havia certa diferença entre o Norte e o Sul do continente americano. Entre os italianos que voltavam da América do Norte, a principal doença que os acometia era a tuberculose pulmonar, seguida pela alienação mental e o sarampo. Para aqueles que vinham da América do Sul, prevaleciam o tracoma, a tuberculose pulmonar e o sarampo.

As péssimas condições e a lotação dos vapores que transportavam emigrantes, muitas vezes navios de carga adaptados para essa função, ofereciam a combinação ideal para a disseminação de doenças. 

Outro fator importante era o mal estado de saúde daqueles que deixavam a Itália. Mas o que chama atenção é a superioridade das taxas de mortalidade e morbidade da viagem de retorno, revelando também a situação precária desses emigrantes em terras americanas e, até talvez, uma política intencional por parte desses governos para se livrarem dos considerados não aptos. 




domingo, 15 de abril de 2018

Emigração Italiana e a Travessia do Oceano Desconhecido


Chegada a hora do embarque, o movimento era intenso no porto e o barulho de vozes, ordens gritadas e apitos, em torno do vapor, deixavam muito nervosos os emigrantes, que se amontoavam para não perderem a chamada. 

No barco seguiam as ordens recebidas dos marinheiros encarregados e se dirigiam em grupos aos porões fétidos e sufocantes da terceira classe a eles destinados, onde os esperavam catres com palha, onde ficariam amontoados e sem nenhuma privacidade.



Algumas famílias, para não serem dividas, voltavam dos porões e optavam em viajar na coberta do navio, ao descoberto, onde ali, pelo menos, podiam viajar juntos e respirar um ar melhor. Viajando na coberta do vapor suportaram frio intenso e calor sufocante, além dos perigos dos fortes ventos durante as frequentes tempestades em alto mar, principalmente ao cruzarem a linha do equador.






No início da grande emigração os barcos eram ainda muito lentos, não passando de velhos e despreparados navios veleiros ou mistos veleiro-vapor, geralmente usados para transporte de cargas e ligeiramente adaptados para transportar seres humanos. Depois, mais tarde, vieram aqueles navios somente à vapor, com caldeiras alimentadas à carvão, estes no entanto também eram quase sempre navios de transporte de cargas, como carvão e cereais, que foram adaptados às pressas para levar pessoas. 

A situação higiênica à bordo e a comida servida eram muito precárias. Às vezes chegava a faltar comida para atender à todos os passageiros. Sem nenhum conforto viajavam junto com animais vivos, que viriam a ser abatidos para servirem de alimentação durante a viagem. Os regulamentos em vigor na Itália, para o transporte de emigrantes, era indigno de um país civilizado. O transporte desses milhares de passageiros que queriam embarcar era resolvido com uma desumana exploração dos emigrantes.



Houve certamente uma conivência muito grande entre as autoridades do governo italiano e a recém criada indústria armadora do país. Até então, este serviço de transporte marítimo da Itália era bastante inexpressivo em relação a outros países europeus da época e cresceu graças ao transporte de milhões de emigrantes. Nesse período as autoridades competentes estavam mais preocupadas com os interesses das companhias do que com o sofrimento dos emigrantes.

Sem cuidados de higiene e de um médico à bordo, o perigo de epidemias era constante e, de fato, inúmeras ocorreram, dizimando centenas de vidas, quase sempre de crianças e idosos, cujos corpos eram então jogados ao mar, para o horror das suas famílias. 

A lembrança da grande travessia ficou indelevelmente marcada na memória dos nossos antepassados, persistindo até hoje nas narrativas dos seus descendentes. Foi sem dúvida o episódio mais marcante na vida desses pioneiros.



Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS