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sábado, 13 de setembro de 2025

Morte a Bordo

 

Morte a Bordo

Uma família de agricultores italianos da quase perdida localidade de Carmignano di Brenta, no interior da província de Padova, na Itália, no final do século XIX,  Giovanni e Antonella, viviam com muitas dificuldades. A vida no interior da Itália estava se tornando insustentável devido à fome, à falta de trabalho e à pobreza extrema que surgiu após as guerras pela unificação da Itália e a formação do reino italiano. O ônus maior da construção do Reino d'Itália recaiu sobre os mais pobres e desamparados da população. Os novos impostos e taxas criadas para a manutenção do estado, afetaram de forma desproporcional os camponeses e trabalhadores rurais, que constituíam a maioria da população italiana na época. Entre as medidas mais impopulares estava o imposto sobre a moagem, conhecido como la tassa sul macinato, introduzido em 1868, que taxava a moagem de grãos, um alimento básico para os italianos. Isso resultou em um encarecimento do pão e de outros produtos essenciais, agravando ainda mais as condições de vida das famílias rurais e urbanas mais pobres. A unificação trouxe também o serviço militar obrigatório, que retirava os jovens de suas famílias por longos períodos, prejudicando a economia familiar baseada na agricultura de subsistência. Além disso, a política de centralização do novo estado, inspirada no modelo piemontês, desconsiderou as especificidades regionais, exacerbando o descontentamento em muitas regiões, especialmente no sul da Itália, conhecido como Mezzogiorno. Aqui, a unificação foi percebida mais como uma conquista do que como uma libertação. A pobreza extrema, a concentração fundiária e a repressão estatal contribuíram para o surgimento de movimentos de resistência, como o brigantaggio - ou banditismo, que foi combatido com dureza pelo exército italiano. As promessas de redistribuição de terras e melhoria nas condições de vida para os camponeses não se concretizaram, ampliando a desigualdade social e o êxodo rural.

Esses fatores, somados às dificuldades econômicas e à ausência de oportunidades, levaram a uma emigração em massa, principalmente entre os finais do século XIX e início do XX. Milhões de italianos, especialmente do sul, deixaram sua terra natal em busca de uma vida melhor em países como os Estados Unidos, Argentina e Brasil. Essa diáspora teve um impacto profundo, tanto para as comunidades que partiram quanto para as que permaneceram, moldando a história italiana e mundial.

Foi nesse contexto, que Giovanni decidiu que também deveria tentar uma vida melhor na América, no Brasil, onde naqueles anos corriam notícias que havia promessas de terra e trabalho.

Antonella, apesar da dor de ficar longe de Giovanni e das crianças, concordou que a melhor oportunidade para a família seria a emigração. Mas, por questões financeiras, Antonella teve que ficar em casa, enquanto Giovanni embarcava sozinho na viagem para o Brasil. Ele prometeu que, assim que se estabelecesse, mandaria buscar Antonella e as crianças.

Giovanni partiu para o Brasil com grandes esperanças. A viagem, no entanto, foi marcada por dificuldades, mas, ao chegar ele logo encontrou trabalho em terras de cafeicultores. Ele enviava cartas a Antonella, contando-lhe as dificuldades do início, mas também lhe dando esperança de um futuro melhor.

Antonella, por sua vez, esperava ansiosamente o dia em que poderia reunir sua família. Com as crianças em casa, ela estava cheia de saudades de Giovanni, mas sabia que a decisão dele fora tomada por um bem maior, e que logo se reuniriam. Ela mantinha a esperança e a fé de que, em breve, faria a viagem ao Brasil com os filhos, reunindo-se com Giovanni para começar uma nova vida.

Finalmente, o dia chegou. Antonella conseguiu economizar o suficiente para pagar sua viagem. Com seus filhos Pietro e Maria ao seu lado, ela embarcou rumo ao Brasil. A longa viagem foi cheia de dificuldades, mas Antonella estava determinada a reunir-se com seu marido.

Entretanto, o destino se mostrou cruel. Durante a travessia, uma epidemia de sarampo se espalhou rapidamente entre as crianças a bordo. Pietro, seu filho de 8 meses, foi uma das vítimas da doença. Antonella, desesperada, viu seu filho sofrer e falecer antes que pudesse chegar ao Brasil. A dor de perder Pietro foi insuportável, e ela mal conseguia processar a tragédia enquanto a viagem continuava.

Finalmente, depois de muitas semanas no mar, o navio chegou ao Brasil. Antonella, com Maria ainda ao seu lado, desembarcou em solo brasileiro, mas com o coração partido pela perda de Pietro. Ela agora tinha de enfrentar a dura realidade de começar sua vida no Brasil, em um novo país, mas também sabia que a promessa de uma nova vida com Giovanni era a única coisa que poderia lhe dar forças.

Quando Antonella finalmente se reencontrou com Giovanni, ele a acolheu com carinho, mas o luto pela perda de Pietro nunca desaparecerá. O Brasil era vasto e promissor, mas para Antonella, cada dia estava marcado pela ausência do pequeno Pietro. A saudade de sua terra natal, da Itália, e a dor da perda de um filho eram pesadas, mas ela tinha Maria e Giovanni para seguir em frente.

Juntos, tentaram reconstruir suas vidas no Brasil, mas a memória de Pietro nunca seria apagada. Antonella, embora marcada pela dor, sabia que o melhor que podia fazer por sua família era seguir em frente, pois o amor de Giovanni e Maria era o que a fazia ter forças para continuar.


Nota do Autor

Este trecho é um resumo do livro Morte a Bordo, escrito com a intenção de não deixar cair no esquecimento os dramas e as vicissitudes enfrentadas por milhares de homens e mulheres que, forçados pela fome e pela ausência de perspectivas em sua terra natal, viram-se obrigados a abandonar as aldeias, os campos e até mesmo as famílias que os sustentavam em suas raízes mais profundas.

A travessia do Atlântico não foi apenas uma mudança geográfica, mas sobretudo uma ruptura dolorosa e definitiva com o mundo conhecido. Os emigrantes, expulsos pela miséria e pelo desespero, lançaram-se ao mar na esperança de encontrar no Brasil uma terra nova e promissora, onde o trabalho e o sacrifício pudessem transformar-se em futuro.

Este livro é, portanto, um testemunho de memória e resistência: uma forma de dar voz aos que viveram – e muitas vezes morreram – nesse caminho entre o abandono e a esperança. Cada página busca resgatar a dignidade de quem ousou sonhar com um amanhã melhor, mesmo à custa do maior dos sofrimentos.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta


sexta-feira, 22 de agosto de 2025

O Retorno Que Nunca Veio


O Retorno Que Nunca Veio
Crônica da coragem e da saudade dos imigrantes italianos no sul do Brasil

No verão de 1885, a palavra “Mérica” corria como vento quente pelas vielas poeirentas de San Martino di Lupari, na província de Pádua. Nos campos de trigo dourado e nos pátios silenciosos das casas de pedra, o murmúrio ganhava força. Diziam que havia terras imensas, onde o sol amadurecia vinhedos novos e as colheitas cresciam sem o peso dos impostos. Cartas atravessavam o Atlântico como folhas ao vento, escritas por aqueles que haviam partido antes. Vinham da Argentina e do Brasil carregadas de promessas — nelas, a América era pintada como a nova Gênesis, onde leite e mel corriam livres, e o ouro parecia repousar sob cada pedaço de terra.

Foi nesse cenário que Santo Bortelini, tio materno de Antonio Belluzzo, tomou a decisão que alteraria o curso de toda a família. O Vêneto, com suas planícies exaustas e colheitas cada vez mais magras, já não oferecia mais do que trabalho pesado e recompensas escassas. Santo, homem de coragem obstinada, partiu levando a esposa e as duas filhas pequenas. O embarque em Gênova foi silencioso e definitivo, como se cada passo sobre o cais fosse um rompimento com séculos de raízes.

Meses depois, as primeiras cartas começaram a chegar. O papel amarelado cruzara oceanos trazendo palavras embebidas em esperança. As frases eram medidas e precisas, mas carregavam um perfume de otimismo irresistível: falavam de terras férteis, onde a enxada parecia abrir não apenas o solo, mas um futuro inteiro; descreviam um clima generoso, onde o frio não esmagava as sementes e o sol amadurecia tudo com pressa; falavam de abundância, como se a fartura fosse uma recompensa garantida a quem tivesse força para trabalhar.

Essas cartas, lidas e relidas à luz fraca das lamparinas, caíram como sementes na imaginação dos que ficaram. Alimentaram sonhos que, até então, pareciam inalcançáveis. Cada palavra funcionava como um chamado silencioso para além do Atlântico, empurrando jovens e velhos a acreditar que, do outro lado do oceano, existia uma nova vida à espera.

Três anos mais tarde, Antonio, aos vinte anos, já sentia o mesmo peso de incerteza que havia empurrado tantos para longe do Vêneto. As cartas do tio Santo, cheias de promessas e detalhes sedutores, tinham se enraizado em sua mente como uma necessidade urgente. Com o pai, a mãe e os irmãos, embarcou em Gênova num vapor abarrotado de famílias como a sua, todas carregando o mesmo fardo invisível: um passado de privações e um futuro feito apenas de expectativas.

O navio cortava o oceano como uma lâmina lenta, e cada dia parecia suspenso no tempo. Vinte e dois dias se arrastaram entre o cheiro persistente de sal, o ranço das provisões mal conservadas e o ferro frio das correntes. O mar, às vezes sereno como um espelho, às vezes brutal como um animal ferido, embalava o navio e testava a resistência dos passageiros.

Quando finalmente avistaram a costa, o horizonte parecia dissolver as últimas ilusões. O cheiro salgado do Atlântico misturava-se ao odor metálico das correntes e ao ar espesso do porto. O som cadenciado das ondas foi sendo abafado pelo ruído áspero das gruas, dos guindastes e da multidão que se aglomerava. O cais porto do Rio de Janeiro surgia como uma entrada estreita para um mundo totalmente novo, mas ainda envolto em silêncio e estranheza.

Mal desembarcado, Antonio sentiu que o calor úmido e o movimento caótico daquela cidade desconhecida não eram o destino final sonhado durante a travessia. Com poucas palavras, pediu transferência para o Rio Grande do Sul, onde corria a fama de que as colônias italianas ofereciam melhores terras e clima mais próximo ao do Vêneto.

A espera, porém, tornou-se uma provação silenciosa. Setenta dias permaneceram na Hospedaria de Imigrantes, um edifício vasto, mas saturado de gente e de histórias interrompidas. Os corredores ecoavam passos apressados e murmúrios em dezenas de dialetos. Nos dormitórios coletivos, as famílias dividiam o pouco espaço que havia, e cada olhar carregava uma mistura incômoda de desconfiança e esperança. A umidade impregnava roupas e paredes, e o tempo parecia preso ali dentro, arrastando-se dia após dia. Para Antonio, cada amanhecer era mais um lembrete de que a promessa de um novo começo ainda estava suspensa, à espera de um chamado que nunca chegava depressa o bastante.

No dia 13 de maio de 1888, Antonio finalmente chegou ao Rio Grande do Sul. As cidades estavam tomadas por uma agitação incomum: era o dia em que a escravidão havia sido abolida no Brasil. Ruas fervilhavam com vozes exaltadas, passos apressados e celebrações dispersas. Para a história nacional, era um marco.

Mas, para Antonio e sua família, a data trazia outro significado — mais silencioso, mais áspero. A chegada não se pintava de cores festivas, mas de tons sombrios de incerteza. O que encontraram foi pobreza imediata, uma desorientação sufocante, a completa ausência de crédito e qualquer forma de amparo. Não havia ferramentas suficientes para cultivar, nem abrigo seguro contra o frio ou a chuva. Cada detalhe parecia reforçar a sensação de que a “terra prometida” talvez fosse apenas uma miragem bem contada em cartas.

Ali, no coração da cidade que comemorava a liberdade de um povo, Antonio sentiu que a liberdade dos imigrantes significava apenas enfrentar sozinhos um território imenso e indiferente. O sonho americano, que havia atravessado o Atlântico, parecia, de início, um equívoco cruel.

Longe dali, na Itália, o avô e o tio Giovanni, que haviam ficado, aconselharam o retorno. Mas o pai de Antonio, Vittorio, e o tio Prospero estavam exaustos de travessias. Não era apenas o cansaço do corpo — marcado por semanas no porão de um navio e meses em hospedarias superlotadas —, mas o desgaste silencioso de quem já havia gasto quase todas as reservas de esperança. Carregavam, nos ombros curvados, o peso invisível da escolha: voltar à Itália seria admitir derrota e enfrentar o olhar inquisidor dos que ficaram; permanecer significava abraçar o desconhecido e aceitar uma terra que ainda não os aceitava. Entre a humilhação do retorno e a incerteza da permanência, escolheram ficar.

As primeiras plantações de milho e trigo surgiram como um voto silencioso de confiança na terra. Os campos, antes cobertos por mato espesso e raízes retorcidas, foram abertos à força, com suor e ferramentas improvisadas. A cada sulco arado, parecia nascer não apenas uma fileira de sementes, mas também uma promessa de estabilidade.

A terra, embora dura e exigente, devolvia respostas visíveis. Brotos verdes começaram a despontar timidamente, criando manchas vivas sobre o solo marrom. O sol, implacável durante o dia, incendiava as colinas com uma luz quase cortante. E a chuva, embora nem sempre previsível, às vezes caía no momento exato, como se entendesse a necessidade dos que a aguardavam com ansiedade.

Cada grão germinado tornava-se uma confirmação silenciosa de que talvez fosse possível resistir. Mas no coração de Antonio ardia uma saudade que o trabalho não conseguia sufocar. Cada dia passado longe do Vêneto acrescentava um peso invisível à sua memória. A tia Lucia, envelhecida pela dureza dos dias, carregava esse peso de forma ainda mais evidente. Seu rosto trazia marcas não apenas do tempo, mas também da resignação de quem havia deixado para trás uma vida inteira em troca de um futuro que não se concretizava como prometido.

Ela raramente expressava seus sentimentos em palavras. Seus lamentos eram silenciosos, manifestos no modo como parava diante das matas densas e sombrias que cercavam a colônia. Ao olhar para aquele mundo bruto e intocado, sentia que Cristóvão Colombo havia traído todos ao revelar um continente que parecia destinado aos selvagens e não aos filhos cultivados do delicado solo italiano. Para ela, cada árvore retorcida e cada colina áspera eram um lembrete amargo de que a América não fora feita para acolher, mas para testar até o limite a resistência dos que ousassem fincar raízes ali.

Mesmo assim, o tempo avançava, implacável e inevitável. Com as mãos endurecidas pelo uso constante da enxada e do arado, Antonio tornou-se parte daquela terra áspera, moldando o solo com esforço e determinação. A cada estação, as lavouras cresciam, e ele ajudava a expandir os campos, transformando clareiras antes tomadas pelo mato em áreas produtivas.

Plantaram vinhedos, e as parreiras jovens começaram a escalar as encostas com uma promessa de vida e sabor. O verde intenso dos ramos trazia uma nota de esperança à paisagem, desenhando linhas de cor e lembrando a Antonio o perfil familiar das terras de San Martino, mesmo que distante.

Com o tempo, conseguiram abrir portas para crédito, conquistando a confiança dos poucos comerciantes e instituições locais que ousavam apostar naquele grupo teimoso de imigrantes. A miséria, embora persistente, foi cedendo espaço a uma rotina dura, mas marcada por uma estabilidade tênue — um equilíbrio frágil entre a luta constante e a promessa silenciosa de dias melhores.

Ainda assim, a terra natal jamais abandonou o coração de Antonio. Cada amanhecer trazia consigo o mesmo peso silencioso, uma mistura agridoce de saudade e resignação. Ele sabia, com a clareza cruel que o tempo impõe, que sua vida estava sendo construída longe da pátria — num solo estranho, onde a natureza exigia mais do que podia oferecer em retorno.

O horizonte distante da colônia jamais apagou a imagem das colinas de San Martino di Lupari, onde o céu parecia tocar o chão com delicadeza e onde o tempo fluía com a lentidão dos vinhedos. Ali, naquela terra natal, suas raízes profundas ainda se entrelaçavam com sua identidade — uma identidade que nem a distância, nem o suor derramado poderiam apagar.

A “Mérica”, como fora descrita nas cartas, não era a terra de leite e mel que as palavras haviam pintado com tanta generosidade. Era uma terra que não prometia nada, nem oferecia garantias, mas que, impiedosa, devorava o corpo e moldava a alma dos que tinham coragem de ficar. Era um solo onde a esperança se misturava à dureza da realidade, onde os sonhos sobreviviam apenas à sombra da perseverança.

Antonio aprendeu que emigrar não era apenas atravessar oceanos, mas carregar dentro de si uma luta diária, silenciosa, para transformar o que parecia inóspito em lar — um lar feito de coragem, de sacrifícios, e da eterna busca por um lugar onde o coração pudesse repousar.

E embora Antonio jamais tenha voltado a pisar as terras de seu nascimento, suas mãos e seus esforços plantaram mais do que apenas sementes no solo brasileiro. Plantaram raízes invisíveis que cresceriam nas gerações futuras — filhos e netos que, entre os vinhedos e as colheitas, carregariam a memória da pátria distante e a força de quem ousou transformar o deserto em promessa. A saga da família Belluzzo, marcada pela coragem e pela luta silenciosa, continuaria a ser escrita, não em cartas cruzando oceanos, mas em cada amanhecer daquela terra que, apesar de tudo, passou a chamar de lar.


Nota do Autor

Esta narrativa é uma ficção inspirada nas memórias e cartas dos imigrantes italianos que, no final do século XIX, atravessaram oceanos e fronteiras em busca de um futuro incerto no Brasil. Embora os nomes e detalhes tenham sido alterados, o coração da história permanece fiel à experiência daqueles homens e mulheres que enfrentaram dificuldades inimagináveis, carregando consigo a esperança e a dor da separação. Escrevo esta história para preservar a memória daqueles que deram suas vidas — muitas vezes em silêncio e anonimato — para construir as bases das comunidades que hoje prosperam. É uma homenagem à coragem dos que permaneceram, ao sacrifício dos que duvidaram, e à resiliência das famílias que, mesmo diante do abandono e da dureza, jamais esqueceram suas raízes. Em tempos em que a migração ainda é motivo de esperança e conflito, lembrar essas histórias é essencial para compreender o preço do sonho e o valor da perseverança humana. Que esta obra possa ser um farol para aqueles que buscam suas origens e um tributo à força que habita nos corações que atravessam mares.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


terça-feira, 26 de novembro de 2024

La Rota de i Esposti ´ntela Cesa de via Ognissanti a Padova


La Rota dei Esposti ´ntela Cesa de via Ognissanti a Padova


"Quando i putèi, gira ´ntel silindro, vagiti e scoasse de campanela par far capir el novo rivà a le suore del istituto".

A Padova, la Rota dei Esposti, che la ze stà ativa tra el 1847 e el 1888, la zera un silindro de legno che girava, verto su do lati e messo ´ntela cesa de via Ognissanti. In sto posto, ´ntel quartier del Portelo, lontan da la strada, ze stà messo pròprio l'istituto dei Esposti. Intel passato, la strutura de via Ognissanti la zera un posto par l'acolimento de chi che ndava su la strada che univa Patavium e Altinum (che incò ze Quarto d’Altino, in provìnsia de Venéssia), zona abità da i tempi de i Véneti antichi.

Drento la cesa, gh’è na targa messa dal consiglio del quartier stòrico che la ricorda l'esistensa de sta Rota sul sagratin de la cesa:

"Qua, nel 1888, ze finìa l'opera caritatevole de la Rota dei Esposti par i neonati abandonà, restaurà ´ntel 1988 par memòria stòrica."

Proteta da un vetro con una grata de fero che la separa dal resto del mondo, ghe ze scrito:

"Pater meus et mater mea derelinquerunt me / Dominus autem assumpsit me" – salmo XXVI: "El pare mio e la mare mia me ga abandonà, ma el Signore me ga racolto."

La rota la ze stà tolta via parché i putèi lassià lì, che veniva ciamà “figli de nissun”, portava dosso el màrchio de sta condission.

La sua funssione sossiale la ze stà importante, spèssie quando la povartà la ze vignesta pì granda e i abandoni i ze aumentà. Sto fenómeno el ze ricomparso dopo la Prima Guera Mondiale e fin ai anni Sessanta, e anca incòi, con i problemi de la crisi global, ghe ze de novo situasioni sìmili. In sti casi, na "Rota" o qualcosa de sìmile la ze vegnesta ripristinà. Un caso particolare ze quelo de na famèia che stava pròprio davanti a la cesa:
In tel 1931, un ano de misèria e malatie come la polmonite, fame e tifo, le done zòvani le ga scomenssià a busar a la porta de Emilia e Vittorio Eutemio Bolzan, e tra el 1931 e el 1970, lori i ga acolto 36 neonati.

Ntel 1947, na dona zòvane la ze vegnù a busar a la porta tenendo in brasso na bimba che la diseva de aver registrà e batisà. Emilia e Vittorio, che i gavea zà tre fiòi e un altro che stava rivando, no zera richi: lu zera un artisian che lucidava l’argento, e lei ga guadagnà qualcosa fassendo la stiradora. Al inìssio lori i no volea pì putèi, ma a la fine lori i ga deciso de tenerla. La stòria de i Bolzan la ze comovente: lori i ze vegnù a portar avanti l'òpera de la Rota dei Esposti, dando amore a chi no gavea gnente. Con gran fatica, lavando pani e sfamando le boche, i ze restà fedeli al loro cuor. Lori i ze morti a metà de i ani Setanta, e dal 2012, una targa in via Ognissanti i ricorda. Pròprio in quel ano, a Padova ze ricomparsa na nova Rota dei Esposti.

Tra el 1997 e el 2011, con l’aumento de i abandoni, l’ospedal de Padova ze diventà promotore de una inissiativa che ga riportà in sità una nova “rota”. Considerando che par ogni putin salvà, nove mori per strada, el nido del ospedal el ze entusiasta del progeto. Dopo Napoli, Varese e Parma, anca Padova ga inaugurà na cula moderna, na incubatrise scaldà a 22 gradi tuto l’ano, situà in via San Massimo.

El fenòmeno de i putèi abandonà esiste fin da i tempi pì antichi, da l’Egito a i Persiani, con i figli indesiderà lassià fora o dati in pasto ai animai. Ma gràssie a le "Rote" i putèi pì sfortunà ga ciapà na possibilità.