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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Os Destinos de Enrico e Adele Castrovinci: Uma Saga de Emigração e Resiliência



Os Destinos de Enrico e Adele Castrovinci

Uma Saga de Emigração e Resiliência

Enrico Castrovinci nasceu numa manhã luminosa de primavera em abril de 1841, no pequeno vilarejo de Canova Fornace, uma fração bucólica nos arredores de Sabbioneta, na província de Mantova. O amanhecer daquele dia trouxe consigo uma brisa suave, carregada com o perfume das flores silvestres que desabrochavam após um longo inverno. O sol tingia os campos com um dourado quase mágico, prometendo mais uma estação de fartura para quem ousasse desafiar a terra com as mãos calejadas e o coração repleto de fé.

Filho mais velho de Domenico Castrovinci e sua esposa, Beatrice, Enrico era a primeira centelha de esperança numa família que sobrevivia da generosidade ingrata dos campos. Suas primeiras lembranças eram as de caminhar descalço pelos vinhedos ao lado do pai, observando o suor escorrer pelo rosto dele enquanto lavrava a terra. A mãe, em contraste, lhe ensinava rezar e várias canções antigas em dialeto lombardo enquanto trançava cestos de vime na soleira da porta da casa simples de pedra. A pobreza moldava a rotina da família, mas não sua dignidade.

Enrico era um rapaz que combinava o vigor do trabalho com uma curiosidade inata sobre o mundo. As histórias que o velho pároco da aldeia contava sobre terras longínquas e cavalheiros nobres encheram sua mente com sonhos além dos campos de trigo e dos estreitos canais da região. Mas, por mais que sonhasse, ele sabia que o destino o chamava para ser o pilar de sua casa.

Quando completou 21 anos, em 1862, Enrico tomou uma decisão que alteraria o curso de sua vida. Ele desposou Adele Castiglioni, uma jovem cuja presença parecia iluminar qualquer ambiente. Adele era a filha mais nova de uma família vizinha, conhecida por sua generosidade e firmeza. Com olhos de um verde que rivalizava com os campos na primavera e uma determinação que superava a de muitos homens, Adele era uma força da natureza. Juntos, eles formavam um par quase mítico para os habitantes de Canova Fornace — o jovem trabalhador e a mulher de espírito indomável.

A celebração de seu casamento foi um evento memorável no vilarejo. Os poucos moradores locais se reuniram na pequena capela dedicada a São Remígio, decorada com flores colhidas dos campos. Após a cerimônia, uma modesta festa foi realizada ao ar livre, onde as mesas eram cobertas com pratos simples, mas preparados com o amor e o cuidado de uma comunidade que compartilhava tanto as alegrias quanto as dificuldades. O vinho local, embora rústico, fluía como se fosse o mais nobre elixir, e os risos ecoavam pelos vinhedos.

Na manhã seguinte ao casamento, enquanto os primeiros raios de sol iluminavam os campos, Enrico e Adele começaram sua jornada juntos. Eles sabiam que a vida não seria fácil. Os impostos esmagadores, as intempéries e a constante ameaça de fome faziam parte da realidade. Mas Enrico acreditava que, com trabalho e união, eles poderiam transformar até mesmo o mais estéril dos solos em um jardim fértil. E Adele, com sua força e resiliência, acreditava nele. Os anos que se seguiram foram marcados por desafios e conquistas. Entre o trabalho extenuante nos campos e as noites iluminadas apenas pela luz trêmula da lareira, o casal começou a construir algo maior do que eles mesmos. Mas a história de Enrico Castrovinci não seria apenas uma crônica sobre o trabalho árduo e a vida no campo. Era, acima de tudo, uma história de sonhos, sacrifícios e a luta constante entre o desejo de permanecer fiel às raízes e a tentação de buscar horizontes mais amplos. E assim, na pequena Canova Fornace, com seu céu amplo e horizonte limitado, começava a saga de Enrico e Adele, um prelúdio para um destino que, como as estações do ano, era inevitável e cheio de promessas ocultas.

Nos quinze anos que se seguiram, Enrico e Adele moldaram sua existência em Canova Fornace com uma resiliência que parecia desafiar a dureza da vida no campo. Seu lar, pequeno e simples, tornou-se o coração de uma família que crescia em número e em histórias. Os cinco filhos — Vittore, Luisa, Rosa, Gemma e Cesare — eram o reflexo do amor e da determinação do casal. Cada criança trazia consigo um traço único: Vittore, o primogênito, herdara a seriedade de Enrico e seu olhar atento para os detalhes da lavoura. Luisa, a mais velha das meninas, possuía a gentileza e a praticidade de Adele, enquanto Rosa era uma sonhadora incorrigível, com perguntas incessantes sobre o mundo além dos limites da aldeia. Gemma, por sua vez, tinha uma alegria contagiante que iluminava até os dias mais sombrios, e Cesare, o caçula, já demonstrava uma inquietação precoce, como se sua alma pressentisse aventuras além da terra natal. A vida, no entanto, não era feita apenas de momentos ternos e alegrias familiares. As colheitas eram incertas, e os impostos, cada vez mais pesados, gravavam como um fardo insuportável sobre os pequenos agricultores. Os esforços para expandir os vinhedos ou melhorar a produção de trigo frequentemente esbarravam em intempéries e pragas, deixando Enrico muitas vezes em noites insones, preocupado em como prover para sua crescente família.

A unificação da Itália, que deveria trazer um novo começo para o país, parecia um sonho distante para os habitantes de Canova Fornace. As promessas dos novos governantes chegavam à aldeia como ecos distantes, sem nunca se materializarem em mudanças concretas. Estradas continuavam intransitáveis, mercados permaneciam distantes e os camponeses ainda lutavam para vender seus produtos a preços justos. Enrico sentia que o peso de cada estação ficava mais difícil de suportar, e a sombra da desesperança começava a se insinuar em seus pensamentos.

Foi nesse cenário de incerteza que um dia, na praça do vilarejo, um vizinho retornou da América do Sul trazendo não apenas sua bagagem, mas também histórias que incendiavam a imaginação de quem o ouvia. Falava de terras vastas e férteis no Brasil, onde o solo respondia ao menor esforço, e de um governo disposto a conceder pedaços generosos de terra a imigrantes dispostos a trabalhá-la. As descrições eram tão vívidas que Enrico podia quase sentir o cheiro das novas colheitas e o calor do sol em um céu estrangeiro. No entanto, havia algo mais do que as histórias: havia esperança. Pela primeira vez em anos, Enrico viu uma luz no horizonte que parecia alcançável. Ele não era um homem de ilusões fáceis, mas as palavras do vizinho, combinadas com sua própria insatisfação crescente, acenderam uma chama em seu coração. Era como se o destino o chamasse para algo maior — algo que não apenas pudesse mudar sua vida, mas também a de seus filhos. Sentado à mesa de madeira rústica naquela noite, enquanto os filhos dormiam e Adele costurava à luz da lamparina, Enrico compartilhou com ela os pensamentos que o assombravam desde que ouvira as histórias. Adele, sempre prática, ouviu em silêncio, o olhar fixo nas mãos dele, que apertavam a xícara de chá com uma força nervosa. Quando ele terminou de falar, ela apenas assentiu. Não era uma decisão fácil, mas ela sabia, assim como ele, que talvez fosse a única escolha.

Em 1877, depois de meses debatendo a difícil decisão, Enrico e Adele Castrovinci venderam tudo o que possuíam: a pequena casa onde seus filhos haviam dado os primeiros passos, as ferramentas gastas pelo uso incessante nos campos e até mesmo os poucos móveis que compunham seu lar. Cada objeto vendido era uma despedida dolorosa de uma vida inteira de memórias, mas também um passo inevitável em direção ao desconhecido. Com o pouco que conseguiram arrecadar, compraram passagens para a travessia que prometia uma nova chance no Brasil.

A despedida em Canova Fornace foi marcada por lágrimas e abraços apertados. Amigos e familiares se reuniram para desejar sorte à família. Muitos, como eles, haviam considerado emigrar, mas não tiveram coragem ou recursos para dar o salto. Para os Castrovinci, aquela partida era tanto um adeus quanto um salto de fé. Quando o carro de bois que os levou até a estação de trem finalmente partiu, o silêncio que ficou na vila parecia ecoar a saudade que já começava a tomar conta de seus corações.

No porto de Gênova, o caos reinava. Homens gritavam ordens, crianças choravam, e o ar era uma mistura de sal e fumaça. O navio “Santa Maria” os esperava, imponente e ao mesmo tempo opressor. Ao subir a rampa de embarque, Adele apertava a mão de Enrico, enquanto os filhos olhavam com curiosidade e temor para o colosso de madeira e ferro que seria sua casa pelos próximos quarenta dias. A viagem pelo Atlântico foi um teste de fé e resistência para todos a bordo. O espaço era apertado, e as condições de higiene, praticamente inexistentes. O balanço implacável do mar fazia os estômagos revirarem, enquanto o cheiro de sal, umidade e corpos exaustos impregnava o ar. As rações eram magras: pão duro, uma sopa rala que mais parecia água quente, e, ocasionalmente, um pedaço de carne salgada que precisava ser mastigado com determinação.

As noites no porão do navio eram especialmente difíceis. Adele abraçava os filhos enquanto Enrico, mesmo exausto, permanecia alerta, como se sua vigilância pudesse afastar os perigos invisíveis que os cercavam. Entre os passageiros, circulavam histórias de doenças que se espalhavam rapidamente em navios como aquele, e Enrico sabia que um simples resfriado poderia ser fatal em um ambiente tão precário. Quarenta dias se passaram como uma eternidade. Quando finalmente avistaram a costa do Brasil, um misto de alívio e incerteza tomou conta dos passageiros. O desembarque no Rio de Janeiro foi um momento inesquecível. O porto fervilhava de atividade, com marinheiros e trabalhadores carregando cargas e chamando uns aos outros em uma língua que os Castrovinci não compreendiam.

Eles foram encaminhados para a Hospedaria da Ilha das Flores, em Niterói, um local improvisado que abrigava centenas de imigrantes diariamente. As condições ali não eram muito melhores do que as do navio, mas, pelo menos, havia terra firme sob seus pés. Enrico observava as outras famílias ao seu redor, seus rostos marcados pela exaustão, mas também por uma esperança teimosa, semelhante à que ele próprio carregava. Embora o futuro ainda fosse incerto, os Castrovinci sabiam que haviam superado o primeiro grande obstáculo de sua jornada. No íntimo, Enrico sentia que, por mais que o caminho fosse árduo, ele estava determinado a transformar aquela terra estranha no lar que sua família tanto merecia.

De Niterói, após alguns dias de repouso e incertezas, a família Castrovinci embarcou em um novo capítulo de sua jornada. Seguiram para Vitória, o destino que prometia ser o início de uma nova vida. Ao desembarcarem na cidade, foram encaminhados à Hospedaria da Pedra d’Água, um local simples, mas funcional, onde os recém-chegados eram recebidos e orientados antes de seguirem para as colônias agrícolas. Enrico, sempre atento ao ambiente ao seu redor, observava cada detalhe com uma mistura de fascínio e preocupação. A paisagem era dramaticamente diferente da planície fértil da Lombardia. As florestas densas se erguiam como muralhas verdes, e os rios caudalosos, com suas águas barrentas e correntes traiçoeiras, pareciam esconder segredos tão abundantes quanto os recursos que prometiam. Essa terra parecia ao mesmo tempo rica e implacável, cheia de promessas, mas exigindo coragem e determinação de quem quisesse conquistá-la. Após poucos dias, a família uniu-se a um grupo de outras onze famílias italianas. Juntos, formaram uma pequena caravana, determinada a enfrentar os desafios do interior. A jornada seguinte os levou a um novo tipo de transporte: canoas longas, esculpidas à mão pelos habitantes locais. O rio que cortava a floresta era a única estrada disponível. As águas os levavam em uma viagem lenta, mas incessante, rio acima, rumo a Santa Leopoldina e, posteriormente, Santa Teresa. Os dias na canoa eram exaustivos. Sob o sol escaldante, Enrico e Adele ajudavam a remar enquanto as crianças tentavam se distrair com os sons exóticos da mata ao redor: o canto dos pássaros, o farfalhar das folhas e os ocasionais rugidos de animais desconhecidos. À noite, o grupo montava acampamento nas margens do rio. As fogueiras iluminavam os rostos cansados, e as conversas, misturadas a cantos melancólicos, davam a todos uma sensação de comunidade e coragem compartilhada. Quando finalmente chegaram à região de Santa Joana, o grupo foi recebido com uma visão avassaladora: um mar de mata virgem que precisava ser desbravado. Cada família recebeu uma porção de terra, marcada apenas por estacas de madeira cravadas no chão, que delimitavam o início de seu novo lar. Não havia casas, nem estradas, apenas a promessa de que, com trabalho duro, aquela terra se tornaria fértil e produtiva. Os Castrovinci, como os outros, começaram imediatamente a trabalhar. Enrico e Adele, com a ajuda dos filhos mais velhos, ergueram uma estrutura de madeira improvisada para servir de abrigo temporário. Durante o dia, cortavam árvores e queimavam a vegetação, abrindo espaço para o plantio. À noite, reuniam-se ao redor de uma fogueira, contando histórias e tentando aliviar a saudade de tudo o que haviam deixado para trás. Embora os desafios fossem imensos, havia um senso de propósito que unia o grupo. Enrico, com sua determinação inabalável, liderava os esforços da família, acreditando que cada árvore derrubada, cada pedaço de terra arado, os aproximava de um futuro melhor. Para Adele, o trabalho era um ato de amor pelos filhos, um sacrifício que ela fazia na esperança de que eles pudessem crescer em um lugar onde sonhos pudessem florescer.

A chegada em Santa Joana marcava o início de uma nova vida. Entre o esforço de construir o presente e as lembranças do passado, os Castrovinci começavam a escrever sua própria história na vastidão da terra brasileira. Os Castrovinci se estabeleceram com determinação em um pedaço de terra que decidiram chamar de Nova Esperança, um nome que carregava tanto sua fé no futuro quanto a promessa de uma vida renovada. Era um pedaço de solo bruto, cercado por mata densa e rios serenos, onde o verde parecia não ter fim. Para Enrico, aquele lugar, apesar de sua aspereza inicial, era um campo onde ele plantaria não apenas sementes, mas também sonhos.

Logo nos primeiros dias, Enrico usou suas mãos calejadas e sua força inabalável para começar o trabalho árduo de preparar o solo. Escolheu o café como sua principal cultura, acreditando que o grão, tão apreciado pelos brasileiros, seria seu passaporte para a prosperidade. Entre as fileiras de café, plantou mandioca, um alimento resistente e nutritivo que ajudaria a sustentar sua família enquanto as plantas de café cresciam e amadureciam. 

Adele, por sua vez, tornou-se a guardiã de uma pequena horta próximo à casa que construíram com madeira e barro. Ali, ela cultivava ervas e legumes, cada planta escolhida com cuidado, não apenas para alimentar a família, mas também para trazer um pouco de sabor e cor ao cotidiano que, por vezes, parecia desafiador. Ervas como manjericão, salsa e orégano evocavam memórias das cozinhas italianas, enquanto os vegetais frescos, como abóboras e quiabos, aprendidos com os moradores locais, eram um símbolo da adaptação a um novo lar. As noites em Nova Esperança tinham um ritmo próprio. O silêncio da mata era pontuado pelo canto incessante das cigarras, uma sinfonia natural que parecia acompanhar os pensamentos de Enrico e Adele enquanto se sentavam em torno de uma lamparina tremeluzente. À luz amarelada, os filhos se aglomeravam, e as histórias tomavam conta do ambiente. Eram contos de coragem, lendas italianas trazidas na memória e até mesmo relatos das aventuras do dia a dia naquele novo mundo.

A nostalgia pela Itália era inevitável, mas a narração das histórias tornava a saudade mais suportável. Adele, com sua voz serena, relembrava os campos dourados e as aldeias de pedra de Sabbioneta, enquanto Enrico falava sobre os desafios vencidos e os que ainda viriam, sempre com um tom de esperança. Cada história não era apenas uma forma de entreter os filhos, mas também uma maneira de reafirmar sua identidade e passar adiante as tradições que traziam consigo. Assim, entre o trabalho extenuante sob o sol tropical e os momentos de intimidade ao anoitecer, os Castrovinci encontravam forças para continuar. Nova Esperança não era apenas um pedaço de terra; era o símbolo de sua resiliência, um local onde o passado e o futuro se encontravam, e onde cada dia era uma nova oportunidade de transformar sonhos em realidade.

Vittore, o primogênito da família Castrovinci, revelou-se desde cedo um jovem forte e ambicioso, com uma visão que ia além das colinas de Nova Esperança. Aos 25 anos, com o espírito de liderança herdado do pai e a resiliência aprendida na infância, casou-se com Angela Bellucci, uma jovem de olhar determinado e mente prática, recém-chegada da Toscana. Angela trazia consigo não apenas a herança cultural de sua terra natal, mas também habilidades e ideias que logo se tornariam fundamentais para o crescimento da nova família. Com um planejamento cuidadoso e uma boa dose de coragem, o casal adquiriu terras na região conhecida como Bananal, uma área promissora que combinava campos férteis com o acesso a trilhas comerciais. Enquanto Angela cuidava do lar e supervisionava as plantações, Vittore dedicou-se ao cultivo de pimenta, cuja demanda crescente prometia bons lucros. Além disso, aventurou-se na criação de gado, uma atividade que requeria não apenas força, mas também paciência e disciplina.

A ambição de Vittore, porém, não parava nos limites de suas terras. Ele vislumbrou oportunidades nos mercados de Vitória, a cidade portuária que se tornara um polo comercial em ascensão. Para isso, organizou caravanas cuidadosamente planejadas, compostas por pequenos grupos de burros de carga. Durante essas jornadas, ele transportava sacas de pimenta e produtos de sua criação, enfrentando desafios que poucos ousariam encarar.

As viagens eram uma verdadeira prova de resistência e habilidade. O caminho para Vitória serpenteava por florestas densas, onde a luz do sol mal conseguia penetrar o dossel das árvores. Além dos perigos naturais, como rios traiçoeiros e animais selvagens, Vittore precisava atravessar territórios habitados por comunidades indígenas. Ao invés de enfrentar esses grupos com hostilidade, ele optou por uma abordagem baseada no respeito e na diplomacia. Levava consigo pequenos presentes – fumo, tecidos coloridos e outras mercadorias simples –, que oferecia como símbolo de boa vontade. Esses gestos garantiram não apenas a segurança de suas caravanas, mas também o início de uma relação de confiança entre os colonos e os povos nativos. Vittore era conhecido não apenas como um comerciante ousado, mas também como um homem justo, que entendia o valor das alianças em uma terra repleta de desafios. Enquanto Angela transformava o Bananal em um exemplo de prosperidade e organização, Vittore se tornava uma figura de influência na região, inspirando outros colonos a seguirem seu exemplo. Juntos, eles não apenas construíram um legado, mas também reforçaram os valores que os Castrovinci traziam de sua Itália natal: trabalho árduo, coragem e a capacidade de sonhar em meio às adversidades.

Cesare, o caçula da família Castrovinci, parecia ter herdado não apenas o amor pela terra que seu pai, Enrico, tanto cultivava, mas também uma visão que transcendia os campos. Desde jovem, ele se mostrava fascinado pelas estruturas que abrigavam a vida e a fé da comunidade. Enquanto ajudava o pai na plantação de café e mandioca, Cesare passava as noites rabiscando esboços de construções na luz trêmula das lamparinas. Seu talento nato para a arquitetura era evidente, e sua paixão pelas construções logo se tornaria uma força transformadora na região. Com o passar dos anos, Cesare começou a unir suas habilidades agrícolas com sua vocação por edificar. Ele via as construções não apenas como abrigos físicos, mas como símbolos de unidade e progresso para a comunidade. Em 1893, aos 28 anos, ele tomou a iniciativa de liderar um projeto ambicioso: a construção da primeira capela da região, dedicada a São Benedito, padroeiro dos agricultores e símbolo de fé para as famílias italianas. A ideia de Cesare encontrou resistência inicial. Os colonos, ainda lutando para estabilizar suas vidas em terras estrangeiras, estavam hesitantes em desviar recursos e energia para algo que não fosse de necessidade imediata. No entanto, Cesare possuía uma habilidade natural para inspirar e convencer. Ele reuniu a comunidade em reuniões sob as sombras das árvores centenárias, argumentando que a capela não seria apenas um lugar de oração, mas um símbolo de esperança e identidade em uma terra onde tantos se sentiam deslocados. Os preparativos começaram modestos, com cada família contribuindo da forma que podia – madeira, pedras, ferramentas, e, acima de tudo, trabalho manual. Cesare assumiu a liderança com um fervor contagiante, coordenando as tarefas e ensinando técnicas simples de construção para aqueles que nunca haviam trabalhado com arquitetura. Mesmo com recursos limitados, a visão de Cesare se manteve clara: a capela seria uma estrutura simples, mas sólida e bela, refletindo a alma resiliente de sua gente. Depois de meses de esforço árduo, a capela finalmente ganhou forma. Suas paredes de pedra e seu teto de madeira eram modestos, mas a simplicidade carregava uma imponência que tocava todos os que a viam. No dia da inauguração, a comunidade se reuniu para uma celebração que ecoou pelos campos e florestas. Ao som de cânticos e preces, Cesare viu seu sonho se concretizar, emocionado ao testemunhar como a construção havia unido o povo em uma causa comum.

A capela de São Benedito tornou-se rapidamente o coração da comunidade. Além de missas e celebrações religiosas, o pequeno edifício abrigava reuniões, festas e momentos de solidariedade nos tempos mais difíceis. Cesare não apenas deixou sua marca com a construção, mas também inspirou outros a valorizarem o espírito coletivo e a criarem marcos que celebrassem a identidade e a união daquela terra repleta de desafios e oportunidades. Com o passar do tempo, Cesare se tornou conhecido como um visionário, alguém que enxergava além das dificuldades imediatas e acreditava no poder das construções – físicas e espirituais – para transformar vidas. A capela era mais do que pedra e madeira; era um testemunho do espírito indomável dos Castrovinci e de todos aqueles que escolheram transformar o desconhecido em lar.

Os anos passaram lentamente, marcados pelo ritmo implacável das estações e pelo trabalho constante que moldava a vida na nova terra. Enrico, embora carregasse em seu coração a saudade da Itália, sabia que seu destino estava ali, entre aquelas árvores, campos e pessoas que ajudara a construir. Os sonhos de um retorno à sua terra natal — a antiga Mantova, com suas paisagens familiares e memórias de infância — tornaram-se, aos poucos, desejos silenciosos guardados na profundidade de sua alma. Em 1911, aos setenta anos, Enrico Castrovinci partiu desta vida. Seu corpo descansou sob a sombra das árvores que ele ajudara a desbravar, e seu espírito permaneceu vivo naquelas terras batizadas de Nova Esperança. O homem que enfrentara as dificuldades de um mundo novo, com mãos calejadas e coração incansável, deixou para trás um legado muito além das plantações de café e mandioca — deixou a marca indelével da perseverança, da coragem e da esperança inquebrantável. Adele, sua companheira incansável e guardiã da família, viveu mais alguns anos, até 1920. Na serenidade de seus últimos dias, ela viu os frutos do trabalho árduo de Enrico e dela mesma florescerem através dos filhos e dos netos. Era um tempo de transformação para a colônia, onde as crianças cresciam com o legado dos valores italianos, mas já imersas na cultura brasileira que agora era sua casa. Com olhos carregados de memória e orgulho, Adele acompanhou as novas gerações perpetuando a coragem, o respeito pelo trabalho e a fé que os Castrovinci haviam trazido da antiga Mantova. Mesmo quando o peso da idade enfraquecia seu corpo, sua alma permanecia firme, alimentada pelas histórias contadas à beira do fogo, pelas tradições preservadas e pelo amor que unia aquela família e aquela comunidade. A partida de Adele marcou o fim de uma era, mas o início de um novo capítulo para os Castrovinci — um capítulo escrito por seus descendentes, que continuariam a transformar aquela terra distante em um verdadeiro lar, mantendo vivos os sonhos e valores que nasceram em uma pequena aldeia do norte da Itália, mas que floresceram sob o sol do Brasil.

Hoje, o que um dia foi apenas uma clareira na imensa mata virgem transformou-se em um próspero município chamado Itarana. As casas se multiplicaram, as ruas se abriram e o som da vida moderna preencheu o ar, mas, apesar de toda a transformação, as raízes italianas permanecem firmes e profundas, entrelaçadas ao solo brasileiro como as videiras que Enrico e Adele plantaram com suas próprias mãos. Nas celebrações locais, quando a comunidade se reúne em festas cheias de cor, música e dança, as histórias daqueles primeiros desbravadores são contadas com reverência e emoção. Enrico e Adele, com sua coragem silenciosa e fé inabalável, são lembrados não apenas como figuras do passado, mas como espíritos vivos que guiam e inspiram cada nova geração. Nos sorrisos dos seus descendentes — espalhados por toda a região e além — brilha o orgulho de quem conhece a saga de seus antepassados, que enfrentaram o desconhecido em busca de um futuro melhor. Esse legado de sacrifício e determinação é o alicerce sobre o qual construíram suas vidas, um fio invisível que une o passado ao presente e assegura que a história dos Castrovinci jamais seja esquecida. Assim, em Itarana, a memória da pequena aldeia de Canova Fornace, no coração da Mantova antiga, vive em cada casa, em cada campo cultivado e no calor das relações humanas que mantêm viva a chama da esperança que um dia Enrico e Adele acenderam naquela terra distante.


Nota do Autor


Esta obra é uma narrativa de ficção, mas está profundamente enraizada na realidade vivida por milhares de famílias que buscaram um novo começo no Brasil durante os séculos XIX e XX. A história de Enrico e Adele Castrovinci foi inspirada em relatos autênticos, encontrados em cartas e documentos históricos de imigrantes italianos que enfrentaram os desafios de uma vida repleta de esperança, sacrifícios e resiliência.

Embora os nomes dos personagens e alguns eventos tenham sido alterados para preservar a intimidade das famílias envolvidas e permitir maior liberdade narrativa, os sentimentos, as lutas e as conquistas descritos refletem as experiências reais de muitos imigrantes. Cada carta lida revelou uma nova faceta do espírito humano diante das adversidades, servindo como fonte de inspiração para esta obra.

Agradeço a todos os que preservaram essas memórias, permitindo que a voz de seus antepassados ecoe através do tempo. Que esta história homenageie não apenas aqueles que partiram em busca de um futuro melhor, mas também as gerações que hoje carregam o legado de sua coragem.

Com gratidão,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Além do Piave, o Brasil: A Travessia de Matteo Pianaro

 


Além do Piave, o Brasil

A Travessia de Matteo Pianaro


O sino da pequena igreja da localidade de San Damiano di Piave bateu lento naquela manhã de dezembro de 1884. Matteo Pianaro ergueu os olhos, sem devoção, apenas por instinto. O inverno ainda não chegara com toda a força, mas o frio já corroía as juntas, e a geada dos campos era tão espessa quanto a fome de quem os arava. Com os dedos rachados e os olhos fundos, Matteo sabia que não havia mais como resistir à terra ingrata. A promessa do Brasil lhe parecia remota, quase ilusória — mas era a última que ainda podia acalentar.

O som grave e metálico do sino reverberava como um lamento, dissolvendo-se lentamente no ar gelado da planície vêneta, onde os campos jaziam imóveis, envoltos numa bruma que não se dissipava nem ao meio-dia. Ao redor da igrejinha, as poucas casas de pedra e cal exalavam fumaça cinzenta pelas chaminés, numa tentativa vã de aquecer corpos cansados e espíritos derrotados. Matteo, envolto num casaco puído herdado do pai, sentia o peso dos anos dobrado pela desesperança. Aos trinta e cinco, seus ombros já se curvavam como os dos velhos que viam seus filhos partir — ou seus netos morrerem — antes de tempo.

Cada sulco da terra congelada que se estendia diante dele parecia zombar de seu esforço, das madrugadas passadas com as mãos enfiadas na lama, dos domingos sem descanso. A vinha morria, o milho não vingava, e os filhos choravam à noite com os estômagos vazios. Nem mesmo os santos pareciam mais escutar as preces. A promessa do Brasil era mais que um boato entre camponeses: era o sussurro de um mundo desconhecido onde o trabalho ainda rendia pão, onde os filhos poderiam crescer sem carregar, tão cedo, o peso do fracasso.

Na véspera, Matteo ouvira de um forasteiro na taverna que uma nova leva de partidas estava sendo organizada em Treviso. Diziam que as passagens eram subsidiadas, que havia terras férteis à espera de braços dispostos. Não confiava em palavras soltas no vinho, mas sentira nelas algo que não sentia havia muito tempo: uma fagulha de direção. Ainda não havia falado com sua mulher, nem mesmo ousara escrever ao irmão em São Paulo — mas, no fundo, já sabia que a decisão estava tomada. O sino, naquela manhã, não chamava para a missa: anunciava o fim de um tempo, o fim da espera.

E enquanto os sons do bronze se apagavam entre os galhos nus das amoreiras, Matteo fechou os olhos por um instante e imaginou o cheiro da terra úmida sob o sol do outro lado do oceano. Não era fé, não era certeza. Era o último sopro de esperança que ainda lhe restava. E às vezes, sabia ele, era disso que nasciam os atos mais audaciosos dos homens.

Partiu com a esposa, três filhos pequenos e uma mala onde cabiam os restos do que fora sua vida. Embarcaram em Gênova num cargueiro saturado de corpos e esperanças. O porão escuro era úmido, fétido. O tempo ali passava como febre: indistinto, ardente, alucinante. Quarenta dias de travessia. Quarenta dias entre o enjoo, o medo e as orações. Quarenta dias vendo o mar apagar tudo o que ficava para trás.

Naquela embarcação enferrujada e rangente, o ar rarefeito misturava o cheiro da maresia com o suor ácido do desespero. As crianças choravam de fome ou de susto, às vezes sem motivo aparente — ou talvez por sentirem nos adultos uma inquietação que nem o balanço do navio conseguia disfarçar. Os colchões, quando existiam, eram fardos de palha úmida infestados de vermes. Ratos deslizavam por entre as frestas das tábuas, indiferentes às orações murmuradas em vários dialetos. Homens tossiam em cantos escuros, mulheres amamentavam sob o olhar da miséria, e cada amanhecer trazia consigo o medo de que alguém não despertasse mais.

Matteo, mesmo fraco e abatido, mantinha os olhos fixos na parede de madeira mofada à sua frente como quem tenta enxergar o outro lado do mundo através do casco. Cada noite parecia mais longa do que a anterior, e o som das ondas batendo contra o porão soava, ora como ameaça, ora como um apelo. O espaço, apertado e sufocante, fazia com que os dias se confundissem. A única certeza era o mar — uma presença constante, indiferente, imensa. Ele lavava, apagava, engolia.

Havia momentos em que Matteo se perguntava se havia cometido um erro fatal. Se não teria condenado a família a morrer ali mesmo, cercada de sal, de miséria e de silêncio. Mas então olhava para os filhos — magros, adormecidos em cima da mala que guardava suas origens — e se obrigava a crer que aquilo tudo fazia parte de uma travessia maior. Não apenas entre continentes, mas entre o passado e a promessa, entre a terra que o expulsara e o destino que ainda não ousava imaginar.

E assim seguiam, dia após dia, como sombras suspensas entre o céu e o abismo. Quarenta dias. Quarenta noites. Um tempo suspenso onde tudo o que tinham era a esperança — e um ao outro.

Desembarcaram em um porto escuro e barulhento no litoral brasileiro — a língua estranha, o calor pesado, a confusão de nomes e ordens lançadas aos gritos. Receberam instruções vagas e um destino longínquo: uma colônia chamada Santa Apolônia, situada no interior da Província do Espírito Santo. Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada.

O cais fervilhava como uma colmeia desorganizada, onde o tropel de vozes misturava ordens dos funcionários da alfândega, lamentos de famílias perdidas e o estalido constante das carroças que vinham e iam carregadas de fardos e confusão. O sol pesava sobre as costas dos recém-chegados como uma punição, e o ar úmido e denso fazia o suor brotar antes mesmo de qualquer esforço. Matteo apertava a mão da esposa enquanto mantinha os olhos atentos às crianças, tentando não se perder naquele labirinto de sons e de rostos apressados.

A terra que os acolhia parecia, à primeira vista, tão hostil quanto a que haviam deixado. Não havia placas, não havia intérpretes, não havia qualquer traço do mundo que conheciam. Apenas promessas pronunciadas às pressas, dedos apontando para mapas improvisados e ordens gritadas em português, idioma que mais confundia do que guiava. A única coisa clara era que precisavam seguir rumo ao interior, atravessar serras e vales até alcançar a tal Santa Apolônia.

Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada. Caminhos primitivos riscados por tropeiros, ladeados por árvores tão altas que pareciam tocar o céu. O mato denso engolia os sons, abafava os passos, ocultava perigos invisíveis. Sob os pés, o barro sugava as botas e o ânimo, tornando cada metro conquistado uma batalha. Mosquitos zumbiam incessantes, o silêncio da floresta era entrecortado por gritos de aves estranhas, e o tempo parecia ter parado numa eternidade verde e úmida.

Marcharam assim por dias, carregando crianças, mantimentos e lembranças. A cada curva da trilha, a esperança oscilava entre a exaustão e o impulso de continuar. Matteo sabia que a travessia ainda não havia terminado. O navio fora apenas o começo — agora começava a verdadeira luta para conquistar o chão prometido.

O sol tropical, implacável mesmo sob a sombra da mata, derretia os últimos vestígios do inverno europeu que ainda resistia nos corpos e nos pensamentos. Os pés afundavam no barro espesso, onde até os mais leves passos exigiam esforço dobrado. Às costas, Matteo carregava parte da bagagem; nos braços, a filha mais nova adormecida, a cabeça tombada de cansaço. A cada passo, um rangido nas costas, um latejar nos joelhos, um suspiro contido que não ousava se transformar em lamento.

A trilha era estreita, muitas vezes tomada por raízes retorcidas, pedras traiçoeiras ou pequenos riachos que surgiam como obstáculos imprevisíveis. Havia noites em que dormiam sob abrigos improvisados de folhas e galhos, ouvindo os sons inquietantes da floresta — ruídos que nenhum deles sabia nomear. Rugidos distantes, estalos secos, zumbidos incessantes. E havia manhãs em que acordavam encharcados por chuvas súbitas, espremendo as roupas molhadas antes de seguir adiante, pois parar era morrer um pouco.

Os mantimentos escasseavam. Dividiam pedaços de pão seco com gestos solenes, como se fossem relíquias de um tempo mais generoso. A cada dia, Matteo via a expressão de sua esposa perder cor, os olhos se tornarem mais opacos, mas também mais firmes. Ela não reclamava. Carregava o que podia, segurava as mãos dos filhos, e avançava. Era como se, entre as raízes daquelas árvores estranhas, brotasse também uma fibra nova, feita de resistência e teimosia.

Ao longe, quando um colonizador veterano lhes falara da terra fértil, das sementes, das casas de madeira e do café que brotava como milagre da terra morna, Matteo acreditara apenas pela necessidade de crer. Mas agora, no interior daquela selva viva e sufocante, ele percebia que o sonho não se comprava com promessas — era preciso atravessar o inferno para alcançá-lo.

E ele marchava. Com os pés doendo, o corpo em frangalhos e os olhos voltados para a frente. Porque a esperança, mesmo combalida, era mais poderosa que o medo. E porque o chão prometido, embora ainda invisível, começava a existir em cada passo vencido com suor, silêncio e fé.

Sem dinheiro, como muitas outras famílias, seguiram a pé. Corta-mato. Homens, mulheres e crianças abrindo caminho à foice, dormindo sob folhas, comendo o que se podia cozinhar em panelas encardidas sobre o fogo. As crianças choravam de exaustão. As mulheres carregavam trouxas e filhos no colo. Os homens andavam calados, olhos fixos no horizonte que não chegava nunca.

As trilhas improvisadas sumiam sob a vegetação densa, obrigando os mais fortes a abrir caminho com golpes compassados, a lâmina da foice ressoando como um metrônomo de sobrevivência. Cada clareira conquistada era um alívio momentâneo antes da próxima parede verde. Os pés nus ou mal calçados sangravam sobre pedras e raízes, mas ninguém reclamava. A dor já era parte da marcha — assim como a fome, a sede e o cansaço que transformava até o silêncio em peso.

Dormiam onde a noite os alcançava. Às vezes sob árvores retorcidas, outras em barrancos encharcados, e quando a sorte ajudava, sob alguma saliência de pedra onde o vento não soprava tão forte. O fogo, quando conseguiam acendê-lo, era pequeno e tímido, cercado por olhares vigilantes. Em volta dele, panelas amassadas ferveram raízes desconhecidas, um pouco de farinha, às vezes uma casca de fruta ou um punhado de grãos resgatados da última parada.

As crianças, consumidas pela fadiga, choravam pouco e dormiam como se o sono fosse uma defesa contra o desespero. Algumas adoeceram. Outras perderam peso tão rápido que pareciam desaparecer entre os braços das mães. Mas mesmo assim seguiam. As mulheres, com os cabelos presos em nós desfeitos, os rostos cobertos de fuligem e pó, avançavam firmes, embalando os filhos no colo enquanto equilibravam trouxas amarradas em panos desbotados.

Os homens caminhavam calados, com os olhos fixos no horizonte que não chegava nunca. Eram olhares vazios, duros, talhados pelo instinto de proteger, de resistir — mesmo sem saber até quando. A esperança já não se dizia em palavras, mas nos passos que insistiam em avançar, um após o outro, como se cada metro vencido arrancasse do destino um fragmento de futuro.

E assim continuaram, dia após dia, como uma caravana de náufragos da terra, cruzando uma vastidão verde onde tudo era incerteza — menos a determinação de chegar.

Ao final de cada dia, paravam onde a floresta permitia. As mães acendiam o fogo, ferviam um punhado de milho, estendiam as mantas. Quando chovia, dormiam encolhidos, esperando a lama baixar. A viagem, que deveria durar três dias, estendeu-se por semanas. Cada passo era uma luta. Cada rio cruzado, uma prova. Cada árvore derrubada, uma conquista amarga.

Finalmente, encontraram o tio de Matteo — um velho emigrado anos antes, que os recebeu com lágrimas e pão seco. Estavam perto da colônia. Mas o pior ainda viria.

O terreno que lhes fora reservado era um fiapo de encosta pedregosa, voltado para o vento, difícil de domar. O solo cuspia enxadas, rejeitava sementes. Ainda assim, fincaram ali as estacas da vida nova. Construíram uma casa de barro e pau-a-pique. Plantaram milheto, criaram porcos e galinhas. Acordavam antes da luz, dormiam depois do cansaço. A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência.

O reencontro com o tio, encolhido pela idade e pelas décadas de lida solitária, trouxe um alívio breve, quase simbólico. A casa do velho era pouco mais que um abrigo, mas ali compartilharam o primeiro alimento quente em dias — caldo ralo e palavras entrecortadas pela emoção. O velho apertou Matteo contra o peito com a força de quem agarra o que pensava ter perdido para sempre. E então, no dia seguinte, apontou com a mão trêmula o rumo da terra que fora designada ao sobrinho. Seu olhar, sombrio, dizia mais do que os lábios permitiam.

A tal terra era dura, inclinada, coberta de pedra e mato bravo. Uma vertente ingrata, açoitada pelos ventos que uivavam à tarde e gelavam ao amanhecer. Os primeiros golpes de enxada ricocheteavam como se o solo zombasse da tentativa. Quando não era a pedra, era a raiz. Quando não era a raiz, era a erosão. O milheto crescia ralo, amarelecido, e os porcos escapavam pelas cercas frágeis feitas com o que a mata deixava arrancar. As galinhas eram mais teimosas que produtivas.

Mas não voltaram atrás. Ali fincaram as estacas, batendo-as com mais fé que força, porque força já não sobrava. A casa de barro e pau-a-pique nasceu como todas as coisas que realmente importam: de forma imperfeita, mas essencial. Um cômodo só, coberto de folhas e esperança. A fumaça do fogão de lenha subia torta pela telha solta, e os dias se marcavam pela luz que entrava entre as frestas.

As noites eram longas e ruidosas. O canto das cigarras, os estalos da mata, os gritos distantes de algum bicho noturno criavam um concerto que mantinha os sentidos em alerta. E mesmo assim dormiam — não porque o medo cessasse, mas porque o corpo exigia rendição. Cada manhã trazia uma tarefa nova, um problema novo, um desafio mais absurdo que o anterior.

A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência. Cada árvore tombada era uma conquista. Cada metro roçado, uma vitória. Não havia heroísmo naquilo, apenas sobrevivência. Mas, dia após dia, como soldados de uma guerra silenciosa, Matteo e os seus foram abrindo clareiras, construindo raízes, reinventando o destino com as próprias mãos.

A mulher de Matteo, Benedetta, passou a fiar algodão trazido por outros colonos. Os filhos cresceram com os pés descalços, os joelhos em sangue, os olhos já endurecidos pela luta. Um deles morreu de febre no terceiro ano — e Matteo o enterrou com as próprias mãos, sem padre, sem hino, apenas com uma cruz improvisada de bambu.

As noites, para Benedetta, tornaram-se longas jornadas diante da roca, os dedos calejados puxando o fio com a precisão de quem transformava a dor em trabalho. O algodão era bruto, cheio de sementes, mas suas mãos sabiam domá-lo. Com o tempo, trocava novelos por sal, por farinha, por pequenos favores entre vizinhos. Fiava como quem reza — não por piedade, mas por necessidade. Quando os filhos dormiam, ela ainda estava de pé, os cabelos presos de qualquer jeito, o corpo já exausto, mas os olhos fixos no movimento da roda.

As crianças aprendiam com a terra e com os tropeços. Cresceram selvagens, espertos, com a pele marcada de arranhões e picadas, os pulmões acostumados ao ar pesado do mato e os músculos moldados pelo trabalho precoce. Subiam em árvores, pescavam em riachos, aprendiam a distinguir os sons da floresta antes mesmo de saber escrever o próprio nome. A infância era curta — interrompida não por um rito de passagem, mas pela urgência da sobrevivência.

Foi no terceiro ano que a febre chegou. Veio como um sussurro quente, depois virou incêndio. Matteo observou o filho delirar por dois dias, os olhos vidrados no teto de palha, o corpo pequeno queimando como brasa viva. Não havia médico, nem farmácia, nem santo que acudisse. Os vizinhos apenas observavam à distância, impotentes, pois todos sabiam que a febre, quando tomava uma criança, raramente devolvia.

Quando o menino morreu, ao amanhecer, o silêncio na casa foi mais ensurdecedor que qualquer grito. Benedetta permaneceu sentada por horas, o rosto escondido nas mãos. Matteo saiu em silêncio, cavou a cova com uma enxada cega e enterrada pela ferrugem, num canto de terra onde o sol ainda batia com gentileza. Não houve padre, não houve hino. Apenas uma cruz improvisada de bambu, cortada às pressas, fincada com força no chão duro.

Depois, Matteo voltou para casa, lavou o rosto na bacia de alumínio, sentou-se ao lado da esposa e esperou a noite cair. O luto, como tudo ali, não tinha luxo — mas era profundo. E no dia seguinte, como sempre, o galo cantou, o mato cresceu e a vida recomeçou. Porque não havia escolha.

O tempo passou sem pressa. A colônia cresceu. Vieram mais famílias, abriram mais trilhas, construíram uma escola, um pequeno mercado, uma capela. Matteo envelheceu curvado, mas não amargurado. A vida nunca foi boa, mas deixou de ser impossível. Seu nome jamais foi registrado em livro algum, mas viveu o suficiente para ver o primeiro neto nascer sob um teto de telha, em vez de palha.

A lentidão dos dias esculpiu a colônia com o cinzel da persistência. A cada estação, as picadas viravam trilhas, as trilhas, estradas. As primeiras casas de pau-a-pique deram lugar a moradias de madeira lavrada, e os telhados de sapê, tão frágeis às chuvas, começaram a ser substituídos por telhas vermelhas trazidas por tropeiros vindos do sul. A escola nasceu de uma sala improvisada com bancos rústicos e uma professora que ensinava com a voz firme e a palma da mão, mas ali começou a germinar o futuro.

O pequeno mercado, instalado no anexo de uma casa de imigrantes bávaros, passou a vender sal, querosene, pregos e, com o tempo, até café moído em saco de pano. A capela, de madeira escura, erguia sua cruz simples contra o céu comovido das manhãs de domingo. Os sinos, quando enfim chegaram, foram içados por uma multidão de mãos calejadas — e tocavam não só por fé, mas também por memória.

Matteo assistia a tudo com o olhar de quem soube esperar. O corpo já dobrado, a barba encanecida como a palha madura do milheto, os olhos fundidos à paisagem. Já não lavrava a terra com a mesma força, mas ainda inspecionava cercas, afiava ferramentas, sentava-se ao entardecer no banco à sombra do galpão para observar os netos correrem descalços, como haviam feito seus filhos — mas agora sem fome nos olhos.

O passado não o deixava, mas também já não o feria. Tinha cicatrizes demais para se dar ao luxo de arrependimentos. Havia perdido, sofrido, enterrado, mas também resistido, construído, deixado raízes. Sua história, embora nunca registrada em livro algum, estava gravada nas paredes das casas que ajudou a levantar, nas estradas abertas à foice, nas sementes que fincaram o chão duro com esperança.

E quando segurou o primeiro neto nos braços — um menino rosado, de olhos escuros como os seus — e viu que ele nascia sob um teto de telha, em vez de palha, sentiu pela primeira vez algo próximo da paz. Não era glória, nem recompensa. Era apenas a confirmação de que tinha valido a pena.

E quando morreu, deitado em silêncio no chão de sua casa, foi velado por vizinhos que o chamavam de "fundador", embora ele jamais tenha se visto assim. Matteo Pianaro não descobriu nada, não venceu nada. Apenas chegou — e ficou.

Sua história, como a de tantos, é feita de lama, suor, perda e persistência. Não há glória. Há sobrevivência. E, com ela, um tipo raro de heroísmo: o dos que vieram a pé e, mesmo sem entender a língua dos céus tropicais, aprenderam a cultivar raízes em terra estranha.

Morreu como viveu: sem alarde, sem testemunhas ilustres, sem cerimônia. A respiração foi ficando rasa, o olhar, cada vez mais longe. Ninguém ouviu suas últimas palavras — talvez não tenham existido. Quando o neto o encontrou ao amanhecer, estendido sobre o esteiro de palha junto ao fogão de lenha já apagado, Matteo parecia apenas adormecido, o rosto sereno como raramente fora em vida.

O velório aconteceu ali mesmo, no pequeno cômodo onde vivera seus últimos anos. Os vizinhos vieram aos poucos, em silêncio, trazendo flores do mato, pão fresco, cachaça. Sentaram-se em bancos de madeira, contaram histórias antigas, algumas talvez inventadas, outras exageradas, como é de costume entre os que precisam manter viva a memória dos que partem. Chamavam-no de “fundador” com uma reverência tímida, quase envergonhada — porque sabiam que Matteo jamais se reconheceria nesse título.

Ele não fora pioneiro por vocação, nem líder por talento. Fora apenas um homem comum, empurrado pelo desespero, sustentado pela necessidade, endurecido pela vida. Alguém que, diante do infortúnio, escolheu não voltar — e com isso, sem perceber, abriu caminho para os outros. Não construiu monumentos, mas sua ausência deixava um vazio do tamanho de uma geração.

E assim, sob uma tarde morna, foi enterrado com a mesma simplicidade com que vivera: num pedaço de terra roçada à mão, entre dois pés de guabiroba, com uma cruz de madeira cravada firme no chão. Sem epitáfio. Sem discurso. Mas com o reconhecimento silencioso dos que sabiam que, se hoje havia telhas nos telhados, crianças na escola e pão na mesa, era porque homens como Matteo haviam suportado o peso dos primeiros dias.

A história dele — como a de tantos outros — não cabe nos livros de heróis. Mas se imprime na paisagem, se espalha no sangue dos descendentes e ressoa, ainda que sem palavras, no modo como as comunidades respiram. Um heroísmo sem medalhas, sem bustos, mas com raízes profundas: o dos que, mesmo vencidos pela terra, jamais deixaram de semeá-la.

Nota do Autor

Esta história nasce da voz silenciosa de tantos emigrantes do século XIX que deixaram suas terras, suas famílias e suas memórias em busca de um futuro incerto além do Atlântico. Embora os nomes e lugares aqui apresentados sejam fruto da ficção, eles carregam o peso e a verdade de experiências vividas por milhares de homens e mulheres que enfrentaram o desconhecido com coragem e perseverança.

A narrativa não pretende glorificar, mas revelar a dura realidade de quem atravessou florestas densas, abriu estradas com o facão e plantou raízes em solo estranho, muitas vezes sob condições adversas e promessas não cumpridas. É um tributo às jornadas anônimas que ajudaram a construir o Brasil interior, terra de conflitos, resistência e esperança.

Que esta obra sirva para lembrar que a história é feita não apenas pelos grandes feitos, mas principalmente pelo esforço cotidiano daqueles que, mesmo invisíveis nos grandes registros, imprimiram sua presença na terra e na memória.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Legado de Esperança: 150 Anos da Imigração Italiana nas Terras Brasileiras


 

A história da imigração italiana no Brasil revela um marco significativo que remonta ao desembarque, em 17 de fevereiro de 1874, do navio "La Sofia" no porto de Vitória. A bordo, 388 imigrantes italianos, recrutados pelo empresário italiano Pietro Tabacchi, desembarcaram para se integrar ao empreendimento da fazenda "Monte das Palmas", localizada em Santa Cruz. Parecia uma grande oportunidade para eles, que deixavam para trás um país recém unificado, repleto de problemas, onde o desemprego e até a fome rondava os lares nas zonas rurais. Contudo, as expectativas do grupo de uma vida melhor e prosperidade rapidamente desvaneceram, dando lugar a descontentamentos e insurgências. Diante disso, uma parte desses italianos optou por migrar para as colônias oficiais na Região Sul, enquanto outros acolheram a oferta do Governo do Espírito Santo para estabelecer-se na "Colônia Imperial de Santa Leopoldina", direcionados ao Núcleo de Timbuhy, hoje situado no município de Santa Teresa.

Nos registros do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, encontra-se uma grande quantidade de documentos que atestam este notável evento histórico. Entre estes documentos, destaca-se um ofício datado de outubro de 1874, assinalando a presença de imigrantes na área. Neste contexto, emerge um apelo por indenização apresentado por Francesco Merlo, colono que, em 28 de outubro de 1874, dirigiu-se ao Presidente da Província reivindicando o reembolso das despesas incorridas durante a jornada da Itália à Colônia de Nova Trento, totalizando 122 Fiorins, montante não ressarcido pelo contratante. Este episódio catalisou a promulgação da Lei nº 13.617, oficializando Santa Teresa como o berço da imigração italiana no Brasil.

A primeira grande leva de italianos que desembarcou no Espírito Santo foi batizada em homenagem ao empresário responsável, Pietro Tabacchi. Ele já residia na província desde os albores da década de 1850, comerciante astuto soube do interesse do governo imperial em trazer mão de obra da Europa. Ele concebeu a oferta de terras aos imigrantes, em troca do direito de explorar 3,5 mil jacarandás para exportação.

Após intensas negociações, o Ministério da Agricultura consentiu ao contrato com Tabacchi, que então enviou emissários ao Trentino, então sob domínio do império austro hungaro, para angariar famílias dispostas a emigrarem. Assim, em 3 de janeiro, às 15 horas, o navio "La Sofia" zarpou do porto de Gênova. Em 1º de março, a embarcação atracou no porto de Santa Cruz, em direção à propriedade de Tabacchi. Esta expedição marcou o início da migração em massa de camponeses italianos para o Espírito Santo, uma jornada que, porém, revelou-se repleta de decepções, com terras inexistentes e condições de alojamento precárias.

A Expedição Tabacchi inaugurou um fluxo migratório que reverberou além-fronteiras. Agora, os olhares dos agentes migratórios se voltavam para a península itálica, especialmente suas regiões norte e nordeste, de onde multidões partiram rumo a diversos destinos globais, incluindo o Brasil em números consideráveis. A recém unificada Itália deparava-se com desafios monumentais, caracterizada por altas taxas de crescimento populacional, déficit na produção agrícola, criação de novos impostos o que causou perdas de empregos no campo e uma volumosa massa de desempregados. Neste cenário, muitos não tiveram outra escolha do que arranjar uma forma de sair da Itália, tomando rumo em direção aos novos e ricos países do outro lado do oceano carentes de mão de obra. A partir de 1875, as partidas dos transatlânticos de Gênova e de outros portos europeus tornaram-se uma rotina estabelecida e milhões de italianos de norte ao sul abandonavam suas vilas em busca do pão de cada dia que a Itália não conseguia fornecer. Estas ondas de emigrantes atingiram proporções nunca antes vistas, um verdadeiro êxodo, que Deliso Villa em seu livro Storia Dimenticata, compara com a grande fuga dos judeus do Egito relatadas na bíblia.



sábado, 30 de setembro de 2023

Vapor Colombia: A Épica Jornada das Famílias Italianas Rumo ao Espírito Santo



 

Famílias Italianas no Espírito Santo

Vapor Colombia

15 de agosto de 1877




Amadio - Basso - Bazzo - 
Bibanel - Bigolin - Bit - Bitti - Bresciani - Cao - Caon - Casagrande - Chiaradia - Cisana - 
Costa - Cuzzuol - 
D' Ambros - Da Dalt - 
Dal Gobbo - 
Dall'Antonia - Dambom - 
D'Ambrosine - De Mari - De Mattia - 
De Nardi - De Poli - Del Pio Luogo - 
Del Puppo - 
Della Pascoa - Dusioni - 
Fantin - Faraon - Fiorot - Fiorotto - 
Follin - Franco - Furgeri - Garbelloto - 
Levis - Manente - Marin - Masullo - 
Mazzon - Menegazzo - Modolo - 
Moro - Nardi - Pazzin - Perin - Peruch - 
Pessot - Pianca - Pignaton - Pizzinat - 
Poletto - Redivo - Rizzo - Rosolen - 
Rossini - Rui - Sagrillo - Santret - Sarzi - 
Scarpat - Scopel - Soneghet - 
Sonego - Spinazzè -  
Susana - Tessianelli - Tonon - Venturin - 
Vighin - Zancanari - 
Zandonà