quinta-feira, 24 de julho de 2025

A Odisseia de um Imigrante Italiano


Enrico Castellari 

A Odisseia de um Imigrante


Em 1899, já no final do século, Enrico Castellari, um agricultor mantovano, vivia os dias difíceis de uma Itália marcada pela fome, desemprego e crise social. Com 34 anos, Enrico era um homem dedicado à família e ao trabalho na pequena localidade rural de Piubega. Contudo, as terras de sua região, empobrecidas por décadas de cultivo intensivo, já não ofereciam o sustento necessário para ele, sua esposa Rosa e seus dois filhos, Carlo e Bianca.

A decisão de emigrar surgiu como uma luz em meio às trevas. Nos dias sombrios em que o peso da fome apertava e os campos, antes férteis, se tornavam incapazes de sustentar a família, a visita de um agente de imigração trouxe um misto de esperança e incerteza. Ele passava pelas pequenas cidades e vilas italianas com discursos eloquentes, pintando o Brasil como um paraíso distante. "Uma terra onde a riqueza brota do solo e o trabalho honesto é recompensado", dizia ele, enquanto distribuía panfletos e mostrava ilustrações de vastos campos e famílias sorridentes.

Enrico ouviu falar do agente durante a missa dominical. A pequena igreja de pedra ecoava murmúrios sobre as promessas da nova terra, e, embora muitos hesitassem, ele sentiu algo despertar dentro de si. Movido pela esperança e pelo desespero, reuniu-se com o agente na praça principal de sua aldeia. A conversa foi breve, mas cada palavra parecia carregar um peso imenso: uma promessa de futuro ou uma armadilha disfarçada de oportunidade.

Após dias de reflexão e noites insones, Enrico tomou sua decisão. Vendeu seus poucos pertences: a velha carroça, os utensílios de cobre herdados da mãe, e até mesmo o pequeno rebanho que restava. Com o dinheiro, comprou passagens para ele e sua esposa no próximo navio que zarparia de Gênova rumo ao Brasil. A visão da travessia era ao mesmo tempo assustadora e excitante; o desconhecido os atraía como um chamado irresistível.

Enquanto empacotava os poucos pertences que restaram, Enrico sentiu um nó na garganta ao dobrar as roupas simples de trabalho e guardar o velho rosário que pertencera ao seu pai. Sua casa de pedra, pequena e humilde, parecia agora mais cheia de memórias do que de paredes. Ao lado da esposa, olhou pela última vez para os campos que os viram crescer e sofrer. A terra que sempre fora seu lar agora era apenas um peso de dor e despedida. O dia da partida chegou sob o céu cinzento de uma manhã fria. A vila inteira parecia estar presente para se despedir daqueles que embarcavam na jornada. Lágrimas se misturavam com sorrisos encorajadores, enquanto Enrico subia na carroça que os levaria ao porto. O som das rodas no cascalho parecia marcar o início de uma nova vida.

A jornada começou em Gênova, onde o cais fervilhava de atividade. Homens gritavam ordens, bagagens eram empilhadas desordenadamente, e o cheiro de maresia misturava-se ao aroma agridoce da ansiedade que pairava no ar. Enrico e sua família chegaram cedo, mas mesmo assim enfrentaram longas horas de espera. O navio a vapor, um gigante metálico com chaminés que cuspiam fumaça negra, parecia quase vivo, com suas máquinas ruidosas e tripulação apressada.

Quando finalmente embarcaram, foram direcionados ao convés inferior, um espaço apertado e abafado que parecia mais uma caverna metálica do que um lar temporário. Ali, centenas de famílias se amontoavam com suas posses, tentando criar alguma ordem no caos. O calor era insuportável, e o ar pesado trazia uma sensação de sufocamento constante. Bebês choravam, mães cantavam baixinho tentando acalmá-los, e o murmúrio de orações em diferentes dialetos italianos preenchia os momentos de silêncio.

Durante as semanas no mar, enfrentaram desafios que testaram tanto o corpo quanto o espírito. Os mares revoltos balançavam o navio de forma implacável, deixando muitos à mercê do enjoo e do desespero. As doenças, inevitáveis em um ambiente tão insalubre, começaram a se espalhar rapidamente. A febre e a tosse eram visitantes frequentes entre os passageiros. Rosa, sempre vigilante, cuidava de Bianca com uma devoção incansável, enquanto Carlo, com sua energia infantil, encontrava maneiras de transformar aquele espaço limitado em um campo de brincadeiras, usando um pedaço de corda como um jogo improvisado.

Enrico, por sua vez, passava longos momentos em silêncio, observando a família e refletindo. Ele se perguntava se havia tomado a decisão certa. A saudade do que haviam deixado para trás era uma dor persistente, um peso invisível que carregava a cada instante. No entanto, cada vez que olhava para Rosa embalando Bianca, ou ouvia o riso inocente de Carlo, sentia uma centelha de esperança. Talvez o sacrifício valesse a pena.

Então, um dia, após o que parecia uma eternidade, o navio entrou em águas mais calmas. A tripulação começou a correr pelo convés, e um burburinho tomou conta do ambiente. Enrico subiu ao convés superior, seguido por Rosa, que carregava Bianca, e por Carlo, com os olhos brilhando de curiosidade. Lá, no horizonte, ele viu pela primeira vez o porto do Rio de Janeiro. Montanhas imponentes erguiam-se contra o céu azul, enquanto as águas reluziam sob o sol. A paisagem era majestosa, quase surreal. Enrico sentiu um nó na garganta; as dúvidas que o haviam assombrado começaram a se dissipar. Ele segurou a mão de Rosa com firmeza, compartilhando com ela aquele momento que parecia um sonho. “Estamos aqui”, sussurrou, mais para si mesmo do que para ela. Era o começo de uma nova vida, e pela primeira vez em muito tempo, ele acreditou que poderiam vencer.

Do Rio de Janeiro, a família seguiu para o Espírito Santo. Após dias costeando a praia, chegaram ao porto de Vitória e, dali, foram transportados em pequenos barcos para uma colônia chamada São Antônio. Giuseppe Artioli, um italiano que já vivia ali há anos, os acolheu e explicou as dificuldades que enfrentariam.

“Essa terra é generosa, mas precisa ser domada”, disse Giuseppe. As terras designadas a Enrico eram vastas, mas cobertas por uma floresta densa e desconhecida. Ele passou os primeiros dias limpando o terreno, aprendendo sobre o clima e tentando se adaptar à comida local. A mandioca, o feijão e as frutas tropicais eram estranhos ao paladar lombardo, mas, com o tempo, tornaram-se parte de sua dieta.

O cultivo do café era a principal promessa de riqueza. Enrico, com a ajuda de Rosa e Carlo, começou a plantar as primeiras mudas. O trabalho era extenuante, mas ele nunca reclamava. Cada semente plantada representava a esperança de um futuro melhor.

A floresta também era fonte de aventura e perigo. Carlo adorava explorar, mas Enrico sempre o alertava sobre os animais selvagens. Certo dia, um grupo de colonos encontrou uma preguiça gigantesca, que despertou a curiosidade de todos. “Esse lugar é cheio de surpresas”, disse Rosa, sorrindo.

A colônia era um mosaico de culturas. Italianos, alemães, franceses e suíços conviviam, trocando conhecimentos e experiências. As ocasionais festas comunitárias, onde se misturavam músicas italianas e danças locais, eram momentos de união e alegria.

Enrico começou a ensinar os vizinhos sobre técnicas de cultivo que havia aprendido na Lombardia. Em troca, aprendeu a lidar com as particularidades do solo brasileiro. “Aqui, todos dependem de todos”, dizia ele.

À noite, quando o trabalho terminava, Enrico escrevia cartas aos parentes que haviam ficado na Itália. Contava sobre as dificuldades, mas também sobre as conquistas. “Esta terra é diferente de tudo que conhecemos, mas tem um potencial imenso. Se tivermos coragem, construiremos algo grandioso”, escreveu ao irmão Matteo.

A saudade era uma constante. Rosa, às vezes, chorava ao lembrar dos campos da Lombardia. Mas Enrico a consolava dizendo: “Estamos plantando nossas raízes aqui. Um dia, nossos netos falarão deste lugar como sua casa.”

Anos se passaram, e a família Castellari prosperou. O café floresceu nas terras de Enrico, e sua colônia tornou-se um exemplo de sucesso. Carlo cresceu e começou a ajudar o pai, enquanto Bianca se tornou uma jovem forte e alegre, adaptada à vida no Brasil.

Enrico Castellari nunca voltou à Itália, mas seu espírito aventureiro e sua dedicação deixaram um legado. Ele e Rosa encontraram no Brasil não apenas um novo lar, mas uma nova identidade, onde as raízes italianas se misturaram com o solo brasileiro, criando uma história de coragem, resiliência e esperança. 

Nota do Autor

Escrever Enrico Castellari: A Odisseia de um Imigrante foi como traçar um mapa das complexas emoções e desafios que envolvem o ato de recomeçar em terras desconhecidas. Inspirada em histórias reais de imigrantes italianos, esta obra é uma homenagem à coragem daqueles que, movidos pela necessidade e pela esperança, deixaram para trás suas raízes para plantar novas em um solo distante.

Enrico Castellari é mais do que um personagem; ele é um símbolo da resiliência humana e da capacidade de sonhar mesmo em tempos de adversidade. A narrativa busca capturar não apenas os grandes feitos, mas também os pequenos momentos de dúvida, dor e triunfo que marcam a jornada de cada imigrante. Ao mergulhar nas dificuldades da viagem transatlântica, nos desafios do trabalho árduo e no esforço para adaptar-se a uma cultura diferente, espero que o leitor possa sentir a profundidade da luta e da fé de famílias como a de Enrico. Mais do que um relato histórico, esta é uma história sobre a alma humana, que persevera e floresce mesmo nas condições mais difíceis.

Dedico este livro aos descendentes daqueles que vieram antes de nós, que trazem em seu sangue a força de seus ancestrais, e a todos que acreditam no poder transformador da esperança. 

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



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