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domingo, 5 de outubro de 2025

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro – De Ramodipalo a Mombuca


 

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro 

De Ramodipalo a Mombuca


O ano de 1886 trouxe consigo um vento gelado sobre os campos alagadiços de Ramodipalo Rasa, pequena localidade do município de Lendinara, na província de Rovigo. Domenico Azzolino, nascido em 1º de novembro de 1861, sabia que sua vida já estava marcada pelas águas do Pó e pela miséria sem fim que assolava aquelas terras. Sua esposa, Giudite Osti, nascida em 8 de setembro de 1867, compartilhava da mesma resignação. O solo parecia fértil apenas para a fome: milho mirrado, trigo que se perdia com as chuvas, e os vastos arrozais de Ramodipalo, embora abundantes, raramente beneficiavam os camponeses, que trabalhavam neles apenas como diaristas, sem jamais provar da prosperidade que produziam. Nada havia para os filhos pequenos, e nada haveria no futuro. A emigração não era escolha, era a última esperança. A decisão foi tomada como se fosse sentença. Venderam o pouco que tinham, juntaram as moedas, despediram-se da antiga casa de pedra e barro que guardavam memórias e partiram. A travessia do Atlântico começava.

No porto de Gênova, uma multidão de camponeses amontoava-se em filas desordenadas. Homens de mãos calejadas, mulheres de olhos cansados, crianças agarradas às saias das mães. Os navios eram fortalezas flutuantes, carregados não apenas de corpos, mas de ilusões. Domenico embarcou com Giudite e os dois filhos pequenos, levando na mala alguns utensílios, uma muda de roupas e um punhado de sementes de milho, como se pudesse, com aquilo, transportar um pedaço da pátria. A bordo, o tempo dissolvia-se em dias intermináveis. O espaço exíguo no porão cheirava a suor, maresia e doença. A comida, distribuída em porções miseráveis, misturava caldo ralo com pedaços de carne salgada. O mar, ora espelho, ora monstro, lembrava-os de que a viagem não tinha retorno. Crianças choravam noite adentro, velhos gemiam com febres. A cada enterro no oceano, quando um corpo era lançado às ondas envolto em lençóis brancos, o silêncio dos passageiros tornava-se mais pesado que o barulho das ondas.

Quando, finalmente, a silhueta do litoral brasileiro surgiu no horizonte, uma onda de alívio percorreu os emigrantes. Mas o desembarque em Santos trouxe mais medo que esperança: palmeiras se erguiam como sentinelas estranhas, o calor sufocava, os mosquitos zuniam em enxames. Dali, reunidos em um grande grupo, foram levados de trem para o interior de São Paulo, até Rio Claro, onde a Fazenda Bela Vista os aguardava.

A fazenda, propriedade dos irmãos Ribeiro, brasileiros de origem portuguesa, era um verdadeiro império de café. Fileiras intermináveis de pés verdes cobriam o horizonte, como um mar vegetal sem fim. Mas por trás da grandiosidade escondia-se a realidade brutal: trabalho incessante, dívidas no armazém da fazenda, alojamentos improvisados. Domenico e Giudite não tiveram escolha. Assinaram com as mãos trêmulas o contrato de colonos, sem entender cada cláusula, mas conscientes de que não havia outra saída.

A lida começava antes da luz da aurora, quando o sino da fazenda convocava os trabalhadores. Os colonos avançavam para o campo com enxadas, sacos e cestos, sob a vigilância dos feitores. O calor do meio-dia queimava a pele até abrir feridas; a chuva transformava o terreno em lama onde se afundava até os joelhos. O café exigia força, paciência e uma resistência quase sobre-humana.

Foi nesse ambiente que a tragédia se aprofundou. Domenico e Giudite já haviam perdido dois filhos na Itália, mas não imaginavam que as febres do Brasil arrancariam deles também os dois pequenos que haviam trazido. Enterraram as crianças em covas rasas, sob uma cruz improvisada, enquanto o trabalho não cessava. O luto era sufocado pelo toque do sino, que obrigava a todos a voltar ao campo.

A vida, porém, teimava em continuar. Vieram novos filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. Cada nascimento era uma vitória contra a terra hostil. Mas as dívidas cresciam no armazém da fazenda, onde cada saco de farinha, cada punhado de sal, era anotado com rigor no livro dos feitores. Para escapar à ruína, Domenico reduziu o sustento da família ao essencial. A polenta tornou-se o alimento de cada refeição, acompanhada apenas pelo suco das laranjas que apanhavam. O milho para a farinha ele conseguia trocando milhete no engenho de açúcar da Fazenda Itaúna.

Ainda assim, persistiam. Com permissão dos patrões, criavam dois porcos e algumas galinhas. Giudite enchia os quintais de vozes infantis e de canto de pássaros. O pouco transformava-se em muito, pela obstinação com que se agarravam à sobrevivência.

Anos de suor, silêncio e economia renderam frutos. Domenico e Giudite conseguiram juntar o suficiente para abandonar a condição de colonos assalariados. Compraram um terreno de terra fértil em Mombuca, não muito distante. Ali, pela primeira vez, respiraram o ar da liberdade. Construíram uma casa simples, cercada de lavouras próprias, e receberam de volta os filhos já casados, que ergueram suas famílias ao redor. Netos correram pelo pátio de terra batida, enchendo de risos o espaço que antes fora marcado pela morte.

Somente Teresa, a filha, não os acompanhou. Casada com Angelo Marino, também de origem italiana, fixou-se na Fazenda Santa Gertrudes, onde o marido trabalhava como um capataz. Ainda assim, a união familiar resistia à distância, como um fio invisível que mantinha todos ligados àquele núcleo fundado pelo sacrifício dos pais.

Em Mombuca, a vida encontrou um ritmo mais lento, sem, contudo, perder o peso da luta cotidiana. A pequena propriedade não lhes ofereceu riqueza, mas deu-lhes autonomia. Ali, já não eram obrigados a responder ao sino dos feitores, nem a comprar fiado no armazém da fazenda. Plantavam o que precisavam, criavam animais, e o que sobrava era trocado ou vendido nas feiras da região.

O tempo corria, trazendo casamentos dos filhos e o nascimento de netos que enchiam o terreiro com brincadeiras barulhentas. A casa, feita de madeira e barro, nunca foi grande, mas era suficiente para abrigar visitas frequentes. Ao redor, ergueram-se outras moradias simples, construídas pelos filhos, até que o pequeno núcleo familiar tomou ares de comunidade.

A velhice, porém, não trouxe apenas satisfação. Domenico carregava nos ossos o cansaço de décadas de trabalho duro, e seus silêncios prolongados denunciavam as lembranças que nunca se apagavam: a travessia pelo oceano, a fome dos primeiros anos e, sobretudo, os filhos perdidos ainda pequenos. Giudite, mais resistente, sustentava a rotina da casa, mas também se deixava vencer por recordações amargas, especialmente ao recordar os enterros apressados em solo estrangeiro.

As noites eram longas. Sentados sob o alpendre, ouviam os sons da mata misturados ao burburinho distante das vozes dos filhos. Às vezes, o silêncio pesava tanto quanto o trabalho dos tempos de colônia. Não falavam das dores, mas elas estavam presentes, invisíveis, em cada olhar cansado, em cada suspiro.

Aos poucos, Domenico e Giudite passaram a ser vistos como referências entre os filhos e vizinhos. Não porque fossem figuras grandiosas, mas porque haviam sobrevivido a tudo: ao desterro, à perda, ao trabalho sem fim. Tornaram-se testemunhas vivas de uma época em que milhares haviam cruzado o mar, e em cada ruga de seus rostos havia a marca dessa travessia.

Quando os anos avançaram ainda mais, e a vida começou a se esvair em silêncio, o casal já estava cercado por gerações que não haviam conhecido Rovigo, nem as águas do Pó, nem o medo dos primeiros dias no Brasil. Esses descendentes corriam livres pelos campos de Mombuca, alheios ao peso da história. Para Domenico e Giudite, essa era talvez a única vitória possível: deixar para os filhos e netos uma terra onde já não fosse preciso recomeçar do nada.

E assim se encerrou o percurso de dois imigrantes comuns, nem mais fortes nem mais fracos do que tantos outros, que viveram e morreram no interior paulista. A vida deles não foi marcada por glórias, mas por sobrevivência. E, no silêncio das suas memórias, encontrava-se a verdade mais dura e mais simples da grande imigração italiana: abandonar tudo, perder muito e, ainda assim, permanecer.

Nota do Autor

A trajetória de Domenico Azzolino e Giudite Osti não foi isolada. Entre 1870 e 1920, mais de um milhão e meio de italianos atravessaram o Atlântico em direção ao Brasil, muitos deles vindos do Vêneto, da Lombardia e do Piemonte. Assim como eles, deixaram para trás aldeias pobres, campos alagadiços ou montanhosos, e encontraram nas fazendas de café do interior paulista uma nova forma de sobrevivência. A vida dos Azzolino refletia a experiência de milhares: contratos mal compreendidos, dívidas no armazém, a fome vencida com polenta, a perda de filhos ceifados por doenças tropicais. Mas também revelava a lenta conquista da terra própria, a criação de novas gerações enraizadas no Brasil e a construção de pequenas comunidades familiares que se multiplicaram ao redor das antigas fazendas. Seus descendentes, espalhados hoje por diferentes cidades e regiões, carregam em silêncio essa herança feita de trabalho, sacrifício e persistência. E, na memória coletiva da imigração italiana, histórias como a de Domenico e Giudite são lembradas não como epopeias grandiosas, mas como a essência mesma da sobrevivência: homens e mulheres comuns que, ao abandonar sua terra natal, ajudaram a transformar o Brasil em um país de muitas pátrias.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


domingo, 14 de setembro de 2025

Raízes e Tempestades A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes e Tempestades 

A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes Rotas

Lendinara, Rovigo, Vêneto — Outubro de 1886.

As folhas amareladas dançavam ao vento como se soubessem o que estava por vir. Enrico Bellò passava o dedo pelas tábuas gastas da janela, enquanto observava o horizonte enevoado. Sua esposa, Marianna Zardini Bellò, dobrava silenciosamente as últimas peças de roupa dos filhos. Ela não respondeu. Apenas olhou os filhos — Ernesto e Giacomo — que dormiam lado a lado no catre de palha. A decisão já estava tomada havia dias, mas ali, diante da última manhã na pátria, o peso era quase insuportável. Venderam o pouco que tinham — o terreno herdado do pai de Enrico, duas vacas, e a prensa de uva que por gerações havia produzido o vinho da família. Trocaram tudo por passagens de terceira classe num navio com destino ao Brasil. A travessia foi um inferno de tosses, gemidos e náuseas. Marianna passava noites em claro, com os meninos febris no colo. Enrico cuidava do pouco que tinham com olhos de lobo: um baú com ferramentas, uma fotografia dos pais, e o caderno onde anotava sonhos e cálculos de futuro.

A Dor Verde

Desembarcaram em Santos com os corpos curvados, mas os olhos acesos. A viagem para o interior os levou a Piracicaba, onde a natureza parecia querer engolir tudo — até mesmo a esperança. Foram designados à fazenda do Barão de Alvarenga, uma imensidão de canaviais onde italianos, espanhóis e negros libertos se misturavam em silêncio e suor. O barraco de madeira cheirava a mofo e solidão. Enrico era hábil na terra, mas a lida ali era desumana. Marianna cuidava dos filhos durante o dia e cozinhava a polenta à noite, com farinha comprada a crédito no armazém da fazenda. As dívidas cresciam. A febre também. Em menos de seis meses, Giacomo faleceu. Três semanas depois, Ernesto o seguiu. Marianna não gritou. Nem chorou diante dos outros. Apenas cavou a cova com as próprias mãos. Enrico ficou três dias sem dizer palavra. Na noite do terceiro, rabiscou no caderno:

“Se ghe ze un Dio, el ghe de forsa a chi no la ga pì.”


Polenta, Suco e Sobrevivência

Depois da dor, veio o silêncio. E logo depois, o trabalho ainda mais duro. Enrico trocava milho por farinha no engenho da Fazenda São Benedito. Comia-se polenta e laranja. Era pouco, mas era constante. Os anos trouxeram três filhos: Guido, Rosina e Natale. Marianna voltava a sorrir, aos poucos. Nas noites de sábado, Enrico contava histórias aos filhos: de Veneza, de neve, de campos de papoula. Os meninos ouviam como se escutassem lendas de um outro mundo — e de fato, era. Rosina aprendeu a fazer queijo com a mãe. Guido alimentava os porcos. Natale, ainda pequeno, já se enfiava entre os canaviais como se fosse parte da terra. A esperança recomeçava a brotar.

La Terra Prometida

Com o pouco que economizaram em mais de vinte anos, Enrico arriscou tudo de novo. Compraram um terreno em Mombuca — terra escura, úmida, fértil como ventre de mulher nova. Era pequena, mas era deles. E isso mudava tudo. Construíram uma casa de madeira, sólida e aberta ao sol. Guido casou-se com uma moça de origem calabresa. Natale seguiu o irmão. Rosina, bela e decidida, ficou para cuidar dos pais. A cada novo neto que nascia, Marianna plantava uma árvore no quintal. A terra deu café, mandioca, milho e, aos poucos, também prosperidade. A família Bellò se espalhou pelos arredores como raízes subterrâneas.

A Lavoura da Memória

Os primeiros anos em Mombuca foram marcados por um silêncio novo — não mais o silêncio da dor, mas o silêncio do trabalho em terra própria. Ali, cada amanhecer era uma promessa. Enrico passava os dias examinando o solo, corrigindo falhas, construindo com paciência uma fazenda que pudesse resistir ao tempo. A vida na colônia era ainda rudimentar, mas o simples fato de não depender mais de ordens alheias era um luxo impensável em outros tempos.

Marianna reorganizava a casa com mãos firmes e uma serenidade adquirida nas perdas. Suas rotinas tinham agora um sentido mais profundo. A horta crescia como uma extensão de seu cuidado — alfaces, batatas, tomates, ervas. No quintal, as árvores plantadas em nome dos filhos cresciam altas, e ela as regava como se conversasse com o passado.

O pequeno celeiro virou centro de produção. O queijo feito por Rosina e os pães que Marianna assava em forno de barro passaram a ser trocados com vizinhos, criando laços com outras famílias de imigrantes: lombardos, piemonteses, alguns trentinos. A terra, antes estrangeira, agora tinha nomes italianos espalhados por cada curva de estrada.

Ciclos que se Repetem

Os netos chegaram como vindima farta depois de um verão generoso. As crianças corriam pelos canteiros, aprontavam nas cocheiras, escondiam-se entre os milharais. Enrico assistia de longe, em silêncio, com os olhos cansados e satisfeitos. Sentia o corpo pesar como nunca, mas a alma leve como não se lembrava de ter sido um dia.

Guido prosperava com o plantio de café e a criação de porcos. Natale seguiu para a cidade, atraído pela modernidade de Rio Claro, onde tornou-se marceneiro. Rosina permaneceu fiel à terra, cuidando dos pais e da pequena capela erguida sob uma figueira, onde se rezavam terços nas noites de sábado.

Com o tempo, os filhos construíram suas próprias casas ao redor da sede principal. Um núcleo familiar tomou forma como uma aldeia invisível, unida por sangue e por história. Nas festas de colheita, os tambores improvisados e os violinos dos imigrantes enchiam o ar de um entusiasmo quase ancestral. Marianna olhava para aquilo tudo com uma expressão que misturava gratidão e cansaço.

A Última Estação

Os últimos anos de Enrico foram silenciosos. Seus passos tornaram-se lentos, os olhos demoravam mais tempo observando o horizonte do que o necessário. Ele passava horas sentado sob o alpendre, com um caderno no colo e um lápis já tão pequeno quanto sua respiração. Anotava datas de nascimentos, mortes, safras, doenças, nomes. Era como se quisesse registrar cada detalhe para impedir que o tempo os engolisse.

Quando faleceu, em 1943, foi enterrado sob a mesma figueira onde Rosina mantinha as velas acesas. Não houve discurso, apenas o som das enxadas abrindo a terra para mais uma semente — não de planta, mas de permanência.

Marianna viveu ainda nove anos. Seus cabelos embranquecidos se tornaram símbolo da família, sua presença era reverenciada pelos netos como a de uma matriarca silenciosa. Já não costurava tanto, nem cuidava dos porcos, mas sua autoridade se manifestava em pequenos gestos — um olhar, um aceno, um gesto de aprovação ou correção.

No dia de sua morte, um verão abafado de 1952, a família se reuniu inteira no terreno. Ninguém chorou alto. Não era preciso. Sua ausência se impunha com uma solenidade silenciosa, como o fim de uma colheita abundante.

Herdeiros do Silêncio

Com a partida de Marianna, Rosina assumiu o centro da casa. Já velha, sabia que a sua missão era diferente: preservar. Os filhos e netos dos Bellò se espalharam pelo interior paulista, muitos se urbanizaram, alguns se tornaram professores, outros comerciantes. Mas o nome resistia.

Na casa original, as paredes foram reforçadas, o forno de barro mantido. As árvores frutíferas plantadas por Marianna ainda davam sombra às novas gerações. O velho caderno de Enrico foi descoberto por um bisneto curioso, que se tornaria historiador e usaria aquelas anotações como base para um livro sobre imigração italiana no Brasil.

Na lápide do casal, sob a figueira que crescia firme, uma frase gravada por Rosina resumia tudo o que haviam vivido:

“Radise che no se spaca — solo cámbia tera.”


Nota do Autor

A história que o leitor tem em mãos é uma obra de ficção histórica, construída com base em um fragmento autêntico da vida de emigrantes italianos que, como milhares de outros, cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de terra, trabalho e um futuro menos incerto.

O texto se inspira livremente em uma carta escrita por um imigrante vêneto e preservada nos arquivos públicos do interior paulista. Nesse testemunho silencioso, revelam-se os traços de uma jornada marcada por perdas profundas, resistência cotidiana e uma fé obstinada no valor do esforço.

Embora os personagens desta narrativa — Enrico e Marianna Bellò, seus filhos e descendentes — sejam fictícios, suas vivências ecoam as experiências reais descritas na carta: a travessia atlântica, o luto por filhos perdidos, os anos de trabalho duro nas fazendas de café e, por fim, o triunfo discreto da terra conquistada com suor e perseverança.

A escolha por evitar diálogos é intencional. O silêncio, que permeia esta narrativa, busca refletir o modo como tantos desses homens e mulheres viveram: com dignidade contida, gestos firmes e palavras medidas. Suas histórias foram escritas mais com as mãos do que com a voz.

Esta obra é dedicada a todos os que partiram sem promessa de retorno, levando consigo apenas a memória dos que ficaram — e semeando, em solo estranho, as raízes do que viria a ser um novo lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





domingo, 7 de setembro de 2025

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


 

Entre a Planície do Pó e o Novo Mundo


Vittorio Belinazzo nasceu em 1875, em Fratta Polesine, um pequeno município da província de Rovigo. A infância se desenrolara na monotonia das terras planas do Polesine, onde os campos, cortados pelos canais e cercados pelas cheias do Pó, sustentavam com dificuldade as famílias camponesas. A vida era feita de um trabalho constante e de recompensas escassas. O pai, Giuseppe, ganhava a vida como diarista nos vastos arrozais da região, passando os dias dobrado sobre a enxada em terras que nunca seriam suas. A mãe, Rosa, governava a casa e mantinha unidos os sete filhos, enquanto o tempo parecia arrastar-se em um ciclo de pobreza resignada.

Quando a Itália se unificara, muitos em Fratta esperaram por um futuro mais justo. Mas o que chegara às portas da aldeia não fora prosperidade, e sim impostos mais pesados e as crises do trigo que minavam qualquer esperança. Na juventude, Vittorio viu vizinhos e parentes partirem em grupos rumo à América. A ideia o perseguia: deixar a planície, os rios e os arrozais, atravessar o mar e tentar a sorte em terras onde a fome não fosse companheira diária.

No início dos anos 1890, tomou a decisão de partir junto com a família de um seu tio materno. Despediu-se dos pais e dos irmãos menores com a promessa de jamais esquecê-los e embarcou no porto de Genova para o Brasil. A travessia foi longa, marcada pelo aperto dos porões e pelo cheiro sufocante de corpos amontoados. Mas, ao desembarcar em Santos e seguir para São Paulo, sentiu que uma nova vida começava.

Instalou-se primeiro como operário em pequenas oficinas. O trabalho era duro, mas o ritmo frenético da cidade crescia junto com suas oportunidades. Com o tempo, aprendeu o ofício de relojoeiro, profissão que exigia paciência, precisão e um olhar atento aos detalhes, virtudes que lhe serviriam pela vida inteira.

Foi nessa época que conheceu Elisa, filha de imigrantes de Brescia. Casaram-se em 1898. A casa modesta que ergueram em São Paulo foi o primeiro refúgio estável que Vittorio conheceu. Pouco depois, nasceram os filhos: Maria, em 1899, e Alfredo, em 1901. O orgulho de ser pai dava-lhe forças para suportar a exaustão das longas horas de trabalho.

A lembrança da família em Fratta, contudo, jamais o abandonou. O irmão mais novo, Giulio, permanecera na Itália e buscava aprender um ofício. Para Vittorio, ele simbolizava uma esperança: que as gerações seguintes pudessem escapar do destino de servidão ao campo. A irmã Teresa, casada com um funcionário público de Rovigo, representava a estabilidade que ele mesmo buscava no Brasil. E até os sobrinhos, crianças que jamais vira, ocupavam um lugar no seu coração.

Apesar do esforço diário, a prosperidade não vinha. Os ganhos eram sempre consumidos pelas necessidades da família. O Brasil oferecia uma vida mais segura do que o Polesine, mas estava longe das promessas de abundância que haviam circulado nas aldeias italianas. Vittorio, realista, aceitava essa condição. Entendia que sua verdadeira conquista não estava em enriquecer, mas em oferecer aos filhos uma vida que não começasse já marcada pela fome.

Os anos se sucederam, e sua identidade passou a ser dividida entre dois mundos. No Brasil, era marido, pai e artesão. Na Itália, permanecia filho e irmão, ligado por laços invisíveis que nem a distância do oceano conseguia romper. Era a vida de um emigrante: suspensa entre a memória de uma terra perdida e a construção de outra, que nunca deixava de ser estrangeira.

O tempo avançou rápido sobre a vida de Vittorio Belinazzo. A oficina de relojoeiro, modesta mas respeitada, tornara-se seu refúgio durante décadas. Entre engrenagens, ponteiros e cordas de aço, ele via o tempo passar não apenas nos relógios que consertava, mas também no rosto que se transformava diante do espelho.

Os filhos cresceram. Maria, a primogênita, herdara da mãe a firmeza e do pai a delicadeza dos gestos. Tornou-se professora, ocupação que enchia Vittorio de orgulho, pois simbolizava a ruptura com o destino de servidão que ele conhecera na infância. Alfredo, inquieto e enérgico, não quis seguir o ofício paterno; preferiu o comércio, atraído pelo movimento das ruas do centro de São Paulo.

Aos poucos, a cidade mudava. Bondes elétricos substituíam os puxados por mulas, fábricas se multiplicavam, e a enxurrada de imigrantes continuava a transformar o cenário urbano. Vittorio, já homem maduro, sentia-se parte dessa transformação, mas guardava dentro de si uma nostalgia persistente das planícies do Polesine.

Durante anos alimentou a ideia de voltar a Fratta Polesine, ainda que apenas em visita. Imaginava a mãe diante da velha casa de pedra, o irmão Giulio já adulto, talvez dono de uma oficina própria, e os sobrinhos, crescidos sem jamais conhecê-lo. Mas a vida não lhe deu essa chance. A morte da mãe chegou-lhe pela notícia tardia de um vizinho que regressara à Itália. Depois, a guerra de 1915 a 1918 devastou a Europa, tornando impossível qualquer retorno. O sonho de rever a aldeia desfez-se em silêncio.

A velhice chegou discreta. Elisa, companheira de todas as lutas, adoeceu primeiro. Vittorio cuidou dela até o último instante, com a mesma paciência com que cuidava de um relógio frágil. Sua partida abriu um vazio irreparável. Viúvo, continuou vivendo na mesma casa, cercado de lembranças e da presença esporádica dos filhos e netos.

Com os anos, o ofício deixou de ser necessidade e passou a ser companhia. Continuava sentado à bancada, ajustando engrenagens com mãos já trêmulas, como se os relógios fossem testemunhas silenciosas de sua própria resistência. A memória, porém, permanecia viva. Em certos fins de tarde, fechava os olhos e via-se de novo menino em Fratta, correndo pelos campos encharcados, ouvindo a voz da mãe chamando para casa.

Assim viveu Vittorio Belinazzo, homem comum e anônimo, mas cuja coragem em atravessar o mar e recomeçar do nada ecoaria nas gerações seguintes. O sacrifício silencioso de sua existência fazia parte de uma história maior: a de milhares de italianos que, como ele, trocaram as margens do Po pelas ruas de São Paulo, levando consigo saudades, esperanças e a obstinada fé no futuro.

Morreu em 1949, com setenta e quatro anos, cercado pelos filhos e netos. Não deixou riquezas, mas legou à família algo mais duradouro: a coragem de ter cruzado o oceano e a dignidade de uma vida erguida sobre trabalho, fidelidade e amor.

Na pequena sepultura de São Paulo, longe das margens do Pó, repousou Vittorio Belinazzo. Mas, na memória dos descendentes, sua figura jamais ficou confinada ao cemitério. Para eles, ele era o elo entre dois mundos, o homem que carregara na alma a planície de Rovigo e a plantara, invisível, no solo do Brasil.

Nota do Autor

Esta história é baseada em fatos verídicos, embora os nomes tenham sido alterados a pedido de um de seus descendentes, aquele que generosamente forneceu os dados que tornaram possível reconstruir a vida de Vittorio. O objetivo desta narrativa não é apenas preservar a memória de sua trajetória, mas também transformá-la em algo mais amplo: uma homenagem a todos aqueles que, como Vittorio, enfrentaram as adversidades com coragem, honra e perseverança. Ao compartilhar esta história, espero que ela transcenda os limites de uma família, tocando a todos que reconhecem a força e a dignidade de quem se aventura a construir uma vida nova, mesmo diante das dificuldades. 

Dr. Piazzetta




quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Settimo Manfrino – Entre as Dolomitas e os Cafezais

 


Settimo Manfrino

Entre as Dolomitas e os Cafezais


Settimo Manfrino nasceu em 1870, em Sappade, uma pequena localidade encravada nas Dolomitas, no comune de Falcade, província de Belluno. Era o sétimo filho de Masueto e Giuseppina, batizado com um nome que carregava tanto a marca da numerosa família quanto o peso da esperança de sobrevivência em uma terra dura. Ali, os campos eram estreitos, pedregosos, de cultivo ingrato. O trigo rareava, o centeio crescia baixo e os invernos cobriam tudo com neve densa, que transformava as montanhas num espetáculo belo e cruel. As casas de pedra lutavam contra o frio que descia noite após noite a temperaturas que congelavam até as fontes.

A vida era trabalho incessante e ganhos mínimos. Nos últimos anos, a instabilidade climática havia trazido ainda mais dificuldades. Colheitas já escassas se tornaram quase inexistentes. Os celeiros, outrora modestos mas suficientes, agora guardavam apenas restos. O pão de cada dia vinha misturado com batata e farinha de castanha, numa luta contra a fome. O pai, envelhecido pelo peso da enxada e das dívidas, sabia que os filhos não teriam futuro ali.

Foi Giuseppe, o primogênito, quem primeiro tomou a decisão: partir para o Brasil, onde, diziam, as terras eram fartas e o trabalho garantido. A notícia correu pelas encostas como um murmúrio de esperança. Settimo, ainda rapaz de dezessete anos, sem laços de matrimônio, aceitou seguir o irmão. Deixaria para trás a paisagem familiar das montanhas, o cemitério dos antepassados, a pequena igreja de Falcade onde fora batizado.

Em 1887, atravessaram a Itália em trem até o porto de Gênova, levando um baú de madeira e duas pequenas malas de couro, pão seco, queijo curado e as lembranças de uma vida inteira. No navio, uma travessia longa e penosa até Santos trouxe febres, enjoos e a saudade da terra natal. Mas ao pisarem no cais paulista, não houve tempo para contemplações. Junto de outras vinte famílias de emigrantes italianos, embarcaram no trem da Mogiana. O percurso pelos campos tropicais, sob um sol abrasador, mostrou um mundo radicalmente oposto às neves das Dolomitas.

Ribeirão Preto, destino final, era uma terra de horizontes planos, marcados por fileiras intermináveis de cafeeiros. A fazenda que os acolheu, imensa e isolada, impunha regras severas. Contratados por quatro anos, substituíam a mão de obra escrava recém-liberta. Logo compreenderam a realidade: a distância até a cidade tornava impossível buscar auxílio em caso de doença, e quando recebiam seus pagamentos, os colonos eram obrigados a deixar grande parte deles no armazém da própria fazenda, que, por ser o único existente, praticava preços elevados. 

Settimo, ainda franzino e sem a experiência do irmão, conheceu logo o peso do trabalho. As jornadas começavam antes do sol nascer e terminavam quando a lua já brilhava sobre os cafezais. O calor lhe queimava a pele, as mãos se cobriam de calos, e os pés, acostumados a trilhas de montanha, sangravam nos sulcos da terra vermelha. A fazenda era um universo fechado: não existiam médicos, remédios eram luxo, e a solidão corroía a todos.

Apesar disso, o jovem guardava uma força silenciosa. Ao lado de Giuseppe, de Chiara e dos sobrinhos — os meninos Lorenzo e Paolo, e a pequena Bianca —, sustentava-se na ideia de futuro. Aprendeu a manejar a enxada, a colher os grãos maduros, a suportar as longas fileiras sob o sol impiedoso.

Os anos no Brasil moldaram Settimo. Aos poucos, perdeu o aspecto de rapaz e se fez homem, com o corpo marcado pela labuta. Guardava, entretanto, um olhar profundo, herança das montanhas que o viram nascer. Cada dia resistido era também um tributo aos que haviam ficado em Sappade.

Quando o contrato de quatro anos terminou, a família não tinha muito mais que dívidas e fadiga. Mas Settimo já não era o mesmo. A miséria de Falcade havia ficado para trás, e diante dele se abria um novo caminho. Permaneceria no Brasil, na esperança de conquistar um pedaço de terra próprio, onde pudesse finalmente plantar não apenas para sobreviver, mas para viver.

A história de Settimo Manfrino confundia-se com a de milhares de italianos que trocaram as montanhas da Europa pelos cafezais do Brasil. Entre a beleza congelada das Dolomitas e a vastidão quente do interior paulista, sua vida se inscreveu como um testemunho da dureza e da perseverança de uma geração que buscou nos horizontes distantes aquilo que sua pátria não pôde oferecer.

Quando o contrato na fazenda expirou, Settimo Manfrino tinha pouco mais de vinte anos. Não possuía quase nada além das roupas gastas, algumas moedas mal guardadas e o corpo endurecido pelo esforço. Mas possuía também algo que não tinha ao deixar as Dolomitas: a certeza de que o Brasil seria sua pátria definitiva. Voltar não fazia parte de seus pensamentos.

Giuseppe, mais cauteloso, permaneceu na fazenda, aceitando novo contrato. Tinha mulher e filhos para sustentar, não podia arriscar. Settimo, livre de responsabilidades familiares, arriscou o passo seguinte. Juntou-se a outros colonos solteiros que haviam decidido tentar a sorte nos arredores das pequenas vilas que cresciam ao redor dos trilhos da Mogiana.

Foi trabalhar como meeiro em uma pequena plantações da região. Plantava milho e feijão trabalhando sem descanso, movido pela lembrança de sua terra natal, onde os campos pedregosos nunca lhe permitiram sonhar com algo além da sobrevivência. Ali, no interior paulista, a terra parecia infinita, vermelha e fértil, esperando apenas a persistência de quem a cultivasse.

Aos poucos, formou uma rede de amizades com outros imigrantes: vênetos, lombardos, piemonteses, cada um carregando seu sotaque e suas histórias de miséria deixadas para trás. Juntos construíam capelas improvisadas, partilhavam as festas religiosas, ajudavam-se nas colheitas. O Brasil os moldava, mas a Itália permanecia em seus gestos, na língua misturada e nas comidas que preparavam.

Em 1893, já com vinte e três anos, Settimo conseguiu sozinho arrendar um pequeno pedaço de terra. Foi o início de sua independência. O contrato era precário, mas para ele simbolizava vitória. O solo respondia ao esforço, e colheitas regulares lhe garantiam não apenas o sustento, mas algum lucro. Guardava cada moeda com disciplina, sonhando em comprar a própria gleba.

O tempo, no entanto, não era generoso. Febres tropicais rondavam os colonos. Muitos tombaram sem jamais ver cumprido o sonho de possuir terras. Settimo resistiu, ainda que debilitado em algumas temporadas. A lembrança da carta que lera em Ribeirão Preto — avisando sobre a falta de médicos e a solidão das fazendas — se confirmava ano após ano. Mas havia também uma energia nova, uma sensação de que aquele sacrifício poderia finalmente romper o ciclo de pobreza herdado.

No início da década de 1890, reencontrou a família do irmão Giuseppe. As crianças haviam crescido, Bianca já se tornava moça. A vida seguia dura para eles, ainda presos a contratos de fazenda, mas também sonhando com um futuro independente. A união entre as duas famílias tornou-se ainda mais forte. Juntos, arrendavam terras maiores, trocavam dias de trabalho, ajudavam-se a resistir às crises.

Foi nesse período que Settimo conheceu a filha de outro imigrante vêneto, vinda de Treviso. O casamento lhe trouxe estabilidade e, pouco depois, filhos que nasceram já em solo brasileiro. A vida mudava de rumo: da condição de colono sem nada, transformava-se em pequeno agricultor.

Em 1898, após mais de dez anos no Brasil, Settimo conseguiu comprar suas primeiras braças de terra, pagando com a economia de colheitas passadas. Era pouco, mas para ele equivalia a uma conquista histórica. Sobre o lote ergueu uma casa simples de madeira, coberta com telhas de barro que comprara na vila próxima. Ao redor, cercou o quintal, plantou frutas, levantou um pequeno galinheiro.

Os anos seguintes consolidaram a transformação. Settimo já não era apenas o rapaz de dezessete anos que chegara perdido e atônito à fazenda de Ribeirão Preto. Tornara-se um homem de respeito, conhecido entre os vizinhos pela coragem e pelo silêncio. Seus filhos corriam pelos cafezais, falando já mais português que o vêneto dos pais, sinal de que uma nova geração se enraizava naquela terra distante das montanhas dolomitas.

A memória da Itália permanecia como uma sombra distante. O frio de Sappade, as neves que cobriam os telhados, os campos estreitos e inférteis já não eram lembrados com dor, mas com uma melancolia suave. A vida agora estava no Brasil, e a terra vermelha, conquistada com suor e esperança, era a pátria real que ele escolhera.

Settimo Manfrino encerrou o século XIX como proprietário de seu próprio pedaço de mundo. Ainda pequeno, ainda modesto, mas conquistado com a dignidade de quem, ao atravessar o oceano, não levou consigo mais que o desejo de sobreviver.

O século XX encontrou Settimo Manfrino já como um homem feito, dono de um pequeno lote que conquistara com suor e disciplina. A casa de madeira, simples, tornara-se ponto de referência para vizinhos e parentes. O quintal era vivo: galinhas ciscavam soltas, pés de laranja e de goiaba cresciam junto ao cercado, e a horta fornecia milho verde, mandioca e feijão. O café, espalhado em linhas retas pelo terreno, começava a produzir com regularidade, transformando-se na base da renda familiar.

Sua esposa, mulher de temperamento firme, cuidava da casa e dos filhos, impondo uma ordem que lembrava a rigidez das vilas italianas. O sotaque vêneto ainda dominava dentro de casa, mas fora dela os filhos se adaptavam ao português, à escola improvisada na capela e ao convívio com outras famílias, algumas italianas, outras de imigrantes espanhóis e até de libertos que haviam recebido lotes pequenos.

Os filhos de Settimo cresceram entre as fileiras de café e os campos de milho. Aprendiam desde cedo a capinar, colher e transportar. Mas também traziam novidades: a leitura, ensinada por professores itinerantes, e a curiosidade pelo mundo além da colônia. Um deles sonhava em ser comerciante, outro falava em estudar na cidade, e a menina, ainda pequena, repetia o desejo de ser professora. Settimo observava essas mudanças com uma mistura de orgulho e estranheza. Na sua juventude, ninguém tivera escolha; o destino era apenas sobreviver ao frio e às pedras da montanha. Agora, seus filhos ousavam sonhar com horizontes mais largos.

A vida no interior paulista seguia dura, mas o tempo começava a recompensar os colonos. As ferrovias avançavam, as vilas cresciam, e o café transformava-se em ouro verde. Settimo, que começara como colono sem nada, agora vendia parte de sua produção a compradores que chegavam de trem, carregando o café em sacas até Santos. Cada safra bem-sucedida lhe permitia ampliar o lote, comprar ferramentas melhores e garantir uma reserva contra os anos ruins.

Por volta de 1910, Settimo já era considerado um pequeno proprietário respeitado. Não era rico, mas estava longe da miséria que marcara sua infância em Sappade. Os vizinhos o procuravam para conselhos, e os mais novos viam nele um exemplo de perseverança. A barba grisalha e o corpo curvado pelo trabalho davam-lhe uma presença austera. Ainda assim, carregava consigo uma serenidade que vinha da consciência de ter vencido a adversidade. 

Com o tempo, a comunidade italiana ao redor se organizou. Construíram igrejas maiores, fundaram sociedades de auxílio mútuo e até pequenas escolas mantidas pelos próprios colonos. As festas religiosas, como a de São José, reuniam famílias inteiras, que levavam vinho caseiro, polenta e queijos produzidos nos quintais. Nessas ocasiões, Settimo sentia novamente a Itália presente, não nas paisagens, mas nas vozes e gestos dos conterrâneos.

Os anos, porém, também cobraram seu preço. Epidemias de gripe e febre amarela rondaram a região. Settimo perdeu amigos, vizinhos e até parentes, lembrando-se sempre do aviso que ouvira décadas antes: as fazendas estavam distantes dos médicos, e muitas vezes a doença levava os mais fortes sem dar chance de resistência. Ele próprio enfrentou febres que o deixaram de cama, mas sobreviveu, sustentado pela robustez construída em anos de labuta.

Ao aproximar-se dos cinquenta anos, via os filhos trilharem caminhos próprios. Um se tornara tropeiro, transportando mercadorias entre vilas; outro abriu uma pequena venda, misturando português e vêneto com clientes brasileiros; a filha mais velha, como sonhara, tornou-se professora numa escola rural. Para Settimo, cada conquista deles era uma prova de que a travessia do oceano não fora em vão.

No fundo da memória, ainda guardava as imagens das Dolomitas cobertas de neve, da aldeia de Sappade onde nascera, dos campos pedregosos que nunca deram sustento. Mas agora essas lembranças não lhe traziam dor. Pelo contrário, davam-lhe a medida da distância percorrida. Do sétimo filho sem herança, condenado a um destino estreito, erguera-se um homem com terra, família e raízes fincadas em outra pátria.

Quando a primeira década do novo século terminou, Settimo Manfrino já podia olhar para trás e reconhecer: sua vida era o retrato de uma geração que abandonara a miséria da Europa para reinventar-se nas planícies tropicais. Não tivera facilidades, não fora poupado da dureza, mas alcançara aquilo que seus pais jamais imaginaram possível: um futuro.

As décadas de 1920 e 1930 trouxeram para Settimo Manfrino o tempo da colheita tardia da vida. Ele já passava dos cinquenta anos, os cabelos grisalhos se confundindo com o pó vermelho da terra, as mãos deformadas pelos calos de décadas de trabalho. Caminhava devagar entre os cafezais, apoiado num bastão, mas sua presença ainda impunha respeito entre os vizinhos. Era um dos colonos mais antigos da região, daqueles que haviam chegado quando Ribeirão Preto ainda não passava de uma promessa e a terra era apenas selva e lavoura bruta.

O café continuava sendo o sustento, mas o mundo ao redor começava a mudar. A ferrovia levava as sacas até Santos, os armazéns das vilas cresciam, e o dinheiro circulava com mais frequência. Alguns imigrantes prosperaram, tornando-se grandes fazendeiros. Settimo permaneceu como pequeno proprietário, fiel à rotina, sem jamais aspirar ao luxo. A ele bastava ter garantido terra para plantar, casa para os filhos e a segurança de que a miséria das Dolomitas não se repetiria em sua linhagem.

Na década de 1920, viu os filhos formarem famílias próprias. A filha professora mudou-se para uma vila maior, onde lecionava para crianças de diferentes origens — filhos de italianos, portugueses, espanhóis e brasileiros pobres. O filho comerciante ampliou sua venda, que já era ponto de encontro de toda a colônia, lugar onde notícias da Itália e do Brasil se misturavam em vozes altas e risadas. O tropeiro, inquieto como sempre, tornou-se carreteiro, transportando mercadorias entre fazendas e cidades. Cada um seguiu seu destino, mas todos retornavam nas festas religiosas e nos domingos de missa, quando a mesa da casa de Settimo voltava a encher-se de vozes e de pão.

O ano de 1929 trouxe um golpe inesperado. A crise econômica mundial derrubou o preço do café. Sacas inteiras foram queimadas ou lançadas fora, e os pequenos produtores viram o valor de sua produção se reduzir a nada. Settimo, já envelhecido, sofreu o impacto, mas resistiu com a mesma tenacidade de sempre. Plantou milho e feijão nos espaços entre os cafezais, garantiu comida antes de pensar em lucro. Os filhos o ajudaram a atravessar os anos difíceis, dividindo recursos e apoiando-se mutuamente. A pobreza ameaçou, mas não venceu.

Com a Revolução de 1930 e a instabilidade política, o interior paulista viveu tempos de tensão. Os colonos ouviam falar de conflitos e de mudanças nas cidades, mas no campo a vida seguia marcada pelo ritmo das colheitas. Settimo já não trabalhava como antes; suas forças haviam diminuído. Passava mais tempo sentado à sombra de um pé de jabuticaba, observando os netos correrem pelo quintal. O sorriso das crianças lhe trazia uma paz que não conhecera na juventude.

Naqueles anos, começou a recordar com mais frequência a aldeia de Sappade. Pedia aos filhos que lhe descrevessem novamente as cartas enviadas por parentes que haviam ficado na Itália. Lia nelas a fome e a guerra que ameaçavam a Europa, e sentia uma estranha mistura de tristeza e alívio. Tristeza por saber que sua terra natal continuava a sofrer; alívio por ter escolhido partir em 1887, garantindo aos seus uma vida diferente.

Ao final da década de 1930, Settimo já não saía mais de casa com frequência. Caminhava pouco, falava menos, mas ainda tinha nos olhos o brilho dos que sabem que venceram a luta essencial da vida. Vivia cercado de filhos e netos, cada um carregando nos gestos uma parte da Itália que ele trouxera consigo.

Quando morreu, por volta de 1938, aos sessenta e oito anos, a comunidade inteira se reuniu. O corpo foi velado na capela erguida pelos imigrantes, e a missa atraiu colonos de todas as redondezas. Muitos o consideravam símbolo de uma geração que atravessara o oceano sem nada e deixara no Brasil raízes profundas. Sua sepultura, simples e de cruz de madeira, foi coberta por coroas de flores trazidas pelos vizinhos e parentes.

Settimo Manfrino partira, mas sua vida já estava impressa no solo vermelho do interior paulista. Os filhos e netos dariam continuidade ao que ele começara, misturando o sangue das Dolomitas ao destino brasileiro. A travessia de 1887, feita por um rapaz franzino de dezessete anos, agora se revelava como o marco fundador de uma nova linhagem. Entre as montanhas pedregosas da Itália e os cafezais do Brasil, Settimo construíra uma ponte eterna.

sábado, 16 de agosto de 2025

O Fio, o Couro e o Mar


O Fio, o Couro e o Mar

Entre a Agulha e o Couro, o Sonho de um Novo Mundo


No coração de uma pequena cidade costeira da Apúlia, nascia e crescia uma geração moldada pela pobreza, pelo trabalho manual e pelas rígidas regras de um mundo em que a mulher pouco decidia sobre a própria vida. Entre as casas baixas e as ruas de pedra irregular, viviam artesãos de mãos calejadas — sapateiros, barbeiros, alfaiates — homens que raramente sabiam ler ou escrever, mas dominavam como poucos o ofício herdado dos pais. As mulheres, em sua maioria, permaneciam no lar ou se dedicavam a tecer, costurar e cultivar a terra. Para poucas, a distinção social lhes concedia o título de donna, reservado às esposas de homens com certo prestígio.

Era uma sociedade onde até o casamento obedecia a uma ordem severa. A bênção para a união partia primeiro do pai; se este tivesse partido, passava ao avô paterno. Só na ausência de ambos a mãe podia conceder o consentimento. Era um patriarcado tão sólido que até o amor precisava aguardar a permissão dos homens da família.

A vida era frágil. A mortalidade infantil rondava cada casa como um vento frio. Registros de óbitos mostravam páginas e mais páginas de nomes de crianças que mal haviam aprendido a respirar. Quando um filho morria, o nome era frequentemente passado ao próximo recém-nascido, como se, ao repetir a palavra, pudessem enganar a morte. Algumas famílias batizavam três filhos com o mesmo nome, numa tentativa silenciosa de perpetuar algo que lhes fora arrancado cedo demais.

Nessa realidade, também havia as crianças sem pai declarado — os proietti. Muitas vezes, a parteira do vilarejo as levava ao oficial de registro. Algumas jovens, contrariando as convenções, ousavam criar sozinhas o próprio filho, pagando com o isolamento social essa escolha.

Foi assim com Lucia Bertoni. Nascida em uma família de tecelões pobres, aprendeu desde cedo o ofício de costureira. Quando, aos vinte anos, deu à luz uma filha sem casamento, chamou-a de Rosa e ensinou-lhe a manejar a agulha e o pano. Rosa, apesar da habilidade, carregava o peso do estigma que afastava pretendentes.

Anos depois, cruzou o caminho de Matteo Branciforte, um sapateiro que havia deixado a aldeia natal nas montanhas do Abruzzo para buscar vida nova na costa. Trazia consigo um passado marcado por vergonha e tragédia: filho de um contrabandista abatido pela guarda alfandegária. Essa mancha, no entanto, não lhe roubara a dignidade do trabalho.

Lucia e Matteo uniram suas vidas e, com paciência, construíram um lar sólido. Ela continuava a costurar para sustentar a casa, ele moldava o couro em calçados resistentes que ganhavam fama na cidade. Não eram ricos, mas ofereciam aos filhos aquilo que nunca tiveram: estabilidade e algum prestígio.

Mas, em 1879, as ruas estreitas da cidade começaram a encher-se de boatos vindos de além-mar. Falava-se de terras férteis no Brasil, de um trabalho que, embora duro, poderia abrir caminho para a propriedade e a liberdade. Eram palavras que encontravam terreno fértil nos corações aflitos, pois a Itália daquele tempo, recém-unificada, carregava feridas profundas. No Mezzogiorno, os campos secavam sob o sol implacável, e a terra, fragmentada e insuficiente, já não sustentava as famílias. A pobreza, quase endêmica, misturava-se à falta de oportunidades; o trabalho escasseava e os salários, quando existiam, mal compravam o pão. Muitos viam seus filhos crescerem com o ventre vazio e o olhar cansado antes mesmo da juventude. Nessa atmosfera de fome e desesperança, qualquer rumor sobre um lugar distante, onde a terra esperava braços dispostos e o pão não faltava à mesa, tornava-se mais do que uma notícia — era uma promessa de salvação. 

Os dois sabiam que, se ficassem, a vida seguiria o mesmo traçado das gerações anteriores e falta de futuro para os filhos. Venderam o pouco que possuíam e, com Rosa já moça e o filho pequeno nos braços, embarcaram em um navio abarrotado de famílias como a deles, partindo de Gênova rumo ao desconhecido.

A travessia foi longa e áspera. No porão úmido, o cheiro de maresia se misturava ao de corpos cansados e barris de provisões. O balanço constante fazia muitos adoecerem. Ainda assim, a promessa de uma vida nova sustentava cada manhã.

Chegaram ao porto de Santos exaustos, mas logo foram conduzidos de trem para o interior, rumo à região de Ribeirão Preto. Ali, sob um sol inclemente, trabalharam como colonos em uma fazenda de café. O contrato com o proprietário era de quatro anos: dias começando antes do amanhecer, acordando ao som de um sino da fazenda, mãos feridas pelo manejo das ramas durante as colheitas e costas curvadas pelo peso do trabalho. O calor abafado do verão e a umidade das madrugadas paulistas moldaram seus corpos à nova terra.

Ao término do contrato, tinham guardado o suficiente para não voltar à condição de servos. Estavam decididos a permanecer no Brasil e não mais retornar para a Itália. Corajosamente, seguiram para um pequeno núcleo de povoamento que, com o tempo, ganharia o nome de Batatais. Ali, retomaram as profissões que carregavam da Itália. Matteo abriu uma modesta oficina de sapatos, oferecendo botas para lavradores e calçados finos para comerciantes locais. Lucia montou seu pequeno ateliê de costura, atendendo esposas de fazendeiros e moças que preparavam o enxoval.

Os filhos cresceram respirando o cheiro de couro curtido e tecidos recém-passados. Rosa, a primogênita, tornou-se a assistente de Lucia, reproduzindo com paciência e perfeição os pontos aprendidos desde a infância. Jamais se casou, mas deixou um legado silencioso nas roupas que confeccionou para toda uma geração. Angelo, o segundo filho, abriu um bar e cafeteria na praça principal, onde mais tarde também veio a funcionar a pequena rodoviária da cidade, que se tornaria ponto de encontro de imigrantes e brasileiros, onde se discutiam colheitas, negócios e notícias do velho continente. Pietro, o terceiro, herdou a determinação do pai e se tornou sapateiro, expandindo o negócio familiar e abastecendo armazéns das cidades vizinhas. O mais novo, Ernesto, estudou com afinco graças ao sacrifício dos irmãos e formou-se guarda livros, sendo o primeiro da família a terminar o segundo grau.

As filhas caçulas, Maria e Antonietta, não tiveram as mesmas oportunidades de estudo, mas sustentaram a família em momentos de dificuldade, costurando, atendendo no bar e cafeteria, e cuidando dos sobrinhos. Entre eles, nasceria uma nova geração que já se considerava brasileira, embora o sotaque e as tradições ainda denunciassem as raízes italianas.

Com o passar dos anos, o casarão simples de Batatais tornou-se o centro das reuniões familiares, onde as histórias da Itália e da travessia eram contadas ao redor da mesa. Matteo envelheceu curvado, mas orgulhoso, sempre com um pedaço de couro nas mãos. Lucia, mesmo com a visão turva, ainda passava os dedos pelas costuras para verificar a firmeza do ponto.

Quando Matteo partiu, numa manhã fria de inverno, a cidade já o reconhecia como um dos pioneiros que haviam ajudado a erguer Batatais. Lucia resistiu alguns anos mais, guardando numa caixa de madeira as cartas não enviadas para a Itália e as ferramentas gastas do marido. Foi sepultada ao lado dele, sob uma lápide simples que trazia apenas os nomes e as datas.

O fio e o couro, que um dia haviam sido apenas instrumentos de sobrevivência, tornaram-se o símbolo de uma família que atravessara o oceano para costurar, com trabalho e coragem, o tecido de um novo destino. E, embora o mundo tivesse mudado, cada geração que descia à praça de Batatais para tomar café ou comprar sapatos feitos à mão ainda carregava, invisível mas intacta, a marca da travessia de 1879.

Nota do Autor

Esta história é inspirada em acontecimentos reais, reconstruídos a partir de cartas preservadas ao longo de gerações e dos relatos orais de familiares que, com emoção, mantiveram viva a memória de seus antepassados. As experiências narradas refletem as dificuldades, esperanças e decisões que marcaram a vida de homens e mulheres no final do século XIX, quando a emigração era, para muitos, a única saída diante da pobreza e da falta de oportunidades.

Por respeito à privacidade dos descendentes e para preservar a intimidade das famílias envolvidas, todos os nomes e alguns detalhes de identificação foram modificados. Ainda assim, buscou-se fidelidade ao contexto histórico e à essência das vivências descritas, de modo que o leitor possa sentir o peso das escolhas e a força da esperança que conduziu aqueles personagens rumo a um futuro incerto, mas desejado.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





terça-feira, 29 de julho de 2025

La Promessa de ‘na Tera Nova

 


La Promessa de ‘na Tera Nova


Capìtolo Primo — El Destin Scelto

Quando che Gabriele Montanari lu el ze montà su el vapor a Génova, el cielo zera scuro e pesante, come se el mar e el cielo i gavea fato un pato de silénsio. La so mòier, Donata, la ghe tegneva streto el brasso, e i so do fiòi, Luisa e Pietro, i se grapava al so tabaro come se no volesse lassarla ´ndar.

Ma Gabriele el no podea esità. Gavea trentoto ani e do ètari de tera rovinà da dèbiti, da i granai falì e da le brose tardie. L’Itàlia nova unita parlava de libartà, ma portava solo misèria. Quando el sentì parlar de la "tera del cafè", del "Brasil", che pagava con schei veri par i brassi forti, no el ga pensà do volte. El se ga metesto assieme con altri de la so contrà — i Pedersoli, i Barlandi — e lu el ze partì.

Soto ´ntel fondo scuro del vapor Ester, la traversia no la zera solo un viaio tra continenti, ma un lento batèsimo de sal, paura e rassegnassion. Le taole del barco spiatolava come se protestasse ogni volta che l’Atlántico le sbatea contro, e el odor grosso de sudor, de gòmito e de aqua màrcia ghe entrava ´ntel naso come ‘na maledission che no se podea cavar via.

Par zorni sensa fin, el dondolar del barco rivoltava el stómego; i òmeni curvà in silénsio, le done che pregava con i oci smarì, e i putei che pianseva ´ntel scuro, sensa capir parché el mondo zera diventà cusì streto e ùmido. Le bote de àqua, che a l’inìsio pareva la salvessa, presto le spandèa un odor rancido mescolà con la marésia de legno fradìcio.

La morte, discreta come ‘na bavesa de ària, la passava tra i corpi. No vegniva con i gridi, ma con el silénsio de chi che no respirava pì. De matina, do marinai rivava con ‘na tela strassà. I incartava el corpo sensa tante stòrie, come se fusse un peso qualsiasi, e lo butava in mar con l’indiferensa de chi che el ga za fato quela roba par dessene de volte. El son del corpo che cascava in àqua — un tonfo muto, e po’ un silénsio eterno — zera un capìtolo che no se scrivea, ma che restava drento.

Gabriele, disteso sora ‘na tola che serviva da leto, el scrivea tuto con le man tremanti. Gavea poco pì de vente ani, i oci cavà da la febre e la barba che ghe copriva la facia zòvene. Ogni pàgina del so quaderno zera un refùgio e ‘na resistensa. El segnava i nomi, le date, le impression, el odor de le onde, el nùmaro de putei che no rivava a finir la setimana. El scrivea come chi che no vol èsser desmentegà.

El zera convinto che la so stòria — quela traversia, quel inferno che flutoava, quela speransa picinina in meso al abìsso — un zorno la sarìa servida. Magari par qualcuno, in futuro, par saver che i ghe zera stà. Che i gavea vissù. Che i gavea sonià ‘na tera dove la fame no gira scalsa.

Quando i rivò a Santos, in zenaro del 1889, i ze sbarcà come èbri, barcolando. Ma el peso dovea ancora rivar. I ga portà tuti in quel che i ciamea la "Hospedaria dos Imigrantes", un gran capanon pien de leti de legno, con odor de disperassion e oci persi che no savea ‘ndove vardar.

Lì, Gabriele lu el ga imparà a tacer. Zera pì sicuro.

Capìtolo Secondo — La Màchina de la Speransa

La sorte, questa vècia baldraca caprissiosa, la ga soriso ai Montanari. I ga stà mandàa a la fazenda Santa Apolonia, ´ntel interno de la provìnsia de San Paolo, invece che in le tera lontan dove tanti — come i Bonfiglioli — i spariva sensa pì scrivar gnente a casa.

La fazenda zera un mondo isolà, serà in sé stesso come un corpo antico che no vol morir, e lì comandava la volontà de un omo solo: el baron Giacomo Ferraz de Mello. El portava ancora el tìtolo come se valesse qualcosa, anca se tuti savea che la so fortuna la se sgretolava ano dopo ano. Zera un omo de moda elegante e parole teatrali, ma con i oci furbi. E da quei oci el tirava fora el poco potere che ghe restava. No fasea gnanca un passo falso. Ogni gesto, ogni òrdine, ogni contrato, gavea el guadagno come spina dorsal. La carità, par lù, zera un lusso da borghesi — e el lusso, da tempo, no ghe entrava pì ´nte le spese.

El laoro par i coloni zera ‘na màchina grossa, sorda a ogni pietà. Sota el sol che spacava la tera come pele seca, i piantava cafè fin che i diti i se induriva come radisa. Quando el vento no spirava, el calor vegniva su da tera come ‘na muràia invisìbile. E quando spirava, el portava zanzare, che i spetava tra i canavéi — ‘na cortina verde ndove l’ària zera stròsa e la pele zera sempre rossa. El tàio de la cana zera un laor da ciechi, con el sudor che scolava mescolà con el sangue, e la pena zera pì constante che l’ombra.

El ciamava quel sistema “colonato”, come se el nome bastasse par darghe un senso de libartà e contrato giusto. Ma Gabriele, atento, lùcido come ´ntel fondago del vapor, el gà capì sùito la verità: zera solo ‘na cornice nova par ‘na tela vècia. Un sistema travestì, adomesticà da le parole, ma che respirava ancora con la boca de la servitù.

No ghe zera catene, ma ghe zera dèbiti. No ghe zera senzale, ma ghe zera paura. E el tempo, che dovea portar progresso, lì lo rifasea solo con altre bandiere.

El pagamento vegniva in boni che se podea spender solo ´ntel spàssio de la fazenda — ndove tuto custava el dòpio. El magnar? Riso sensa gusto, polenta mole, e zorni sensa pan. E ancòi, Gabriele ringraziava. Zera mèio che morir de fredo a Modena.

Quel che no contava ai putei zera che tanti òmeni scampava de note, con la febre, pien de morse de bèstie che el no gavea mai visto. Altri, i moriva. E i morti no tornava mia in Itàlia — tornava solo i so nomi.

Capìtolo Terzo — Parole che Traversea l’Osseano

El 14 de febraro, sentà al’ombra de un capanon, Gabriele el scrivè a so amigo Carlo, che zera ancora in Itàlia. El ga scrito parole con el peso che le meritava. No le fasea bela. El ga contà la pena de chi che rivava, la crudeltà dei alogi, la fame che scavava i visi.

Ma el ga contà anca ‘na picinina vitòria: lù e i Pedersoli gavea laoro. Guadagni bassi, sì — ma veri. E el prometè de mandarghe schei a la mama, anca se solo pochi milréis, par far capir che el gera ancora vivo.

No el ga contà bale. Ma no el ga contà gnanca tuto.

El tegnìa in silénsio el pianser de Donata quando i ga sepeli un visin italian in un cimitero poareto. El ga tacà el timor che i fiòi i cressesse parlando brasilian e la Italia restasse solo ‘na memòria. Parché un omo el se difende no solo con i mùscoli, ma anca con el silénsio.

Capìtolo Quarto — El Tempo che Pianta le So Piantine

I ani i passava come i treni che traversava le campagne paoliste: veloci par chi i varda da lontan, ma lenti e duri par chi el ze drento, sentando ogni sossol.

In tel 1894, Gabriele e Donata i gavea conquistà in ‘na citadina che nasseva da banda de la fazenda, quel che prima pareva un sònio lontan: sinque alquere de tera pròpria, pagà a rate, segnà con steche piantà con forsa ´ntel suolo rosso. Lì, ndove el bosco odorava ancora de abandono, i ga taià radisa con le man, butà zo àlbari con la manara e la testardessa, e falo nàsser i primi pianti de mango, naransa e verdure.

No zera ‘na proprietà, zera un pato. Ogni solco costava un zorno de mal de schena; ogni pianta, ‘na sfida a la seca, ai inseti o ai pressi del marcà. Ma la zera soa. Par la prima volta, la tera soto i piè no la rispondea a el comando de nissun altro. E in quela conquista muta — sensa ini ne anca bandiere — ghe zera pì dignità che in tute le medàlie del mondo.

Luisa la se ga sposà con un altro fiol de emigranti, un certo Vittorio Bianchi. Pietro volèa studià, sognava de farse mèdico — o giornalista ma, mancava i soldi.

La lètara de Gabriele la restò drento ‘na cassa de legno. Ma la so stòria la continuò. Noel ze mai tornà in Itàlia. No el ga mai bevù quel spumante che i gavea promesso. Ma de sera, con el caldo, el se sentava in veranda a vardar le stele, e el diseva:

“Là, da l’altra banda, ghe ze Modena. Ma qua… qua la ze ndove mi go piantà la mia vita.”


Nota de l’Autor

Sto libro "La Promessa de ‘na Tera Nova" el ze nassesto da la voia de dar vose a chi che quasi mai se conta tra le pàgine de la Stòria. Òmeni e done che i ga traversà un ocean con pì paura che certeze, pì fame che robe, e che, anca cusì, i ga avù el coraio de creder che ´ntel mondo ghe zera un posto ndove i so fiòi i podèa crèsser lìbari — anca se lori, forse, no sarìa mia stà davero lìbari.

Par ogni parola scrita, mi go provà de ricordarme che i nùmari fredi dei registri de l’emigrassion i scondea stòrie calde de carne, sudor e pérdita. Le statìstighe no sente mia la fame. No le tremola ´ntel fondago de un vapor. No le sepolta i fiòi ´ntela foresta calda del Brasil. Ma chi che la ga vivesto ‘sta traversia, la ga sentì tuto — e la ga lassà, anca sensa voler, ‘na trassia invisìbile ´ntel paese che el ga aiutà a costruì

Sto libro no el ze mia ‘na biografia precisa, gnanca ‘n tratato stòrico. Lu el ze un tentativo de scoltar el silénsio de le generassion che le ga rivà prima de noialtri. De vardar, tra le rughe dei visi desmentegà, la coraio testarda de chi che la ga costruì case dove prima ghe zera solo boschi, cesete ndove prima ghe zera paura, e scole ndove prima ghe se sentiva solo el colpo de la manara.

Se in qualche momento ti, letor, te senti el odor del cafè novo adesso colto, te senti el scrichiolar de un careto de bo, o te senti un nodo in gola pensando a quel che i ga lassà indrio… alora ‘sta stòria — che la ze inventà, sì, ma anca memòria — la ga fato el so dover.

Con gratitùdine e rispeto,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A História de Francesco Bernardel


 

A História de Francesco Bernardel

Francesco Bernardel, um agricultor italiano de origem humilde, embarcou rumo ao Brasil em busca de um futuro melhor. Deixando para trás as colinas da província de Treviso, ele viajou com sua esposa, Maria, e seus dois filhos pequenos, Pietro e Rosa. Seu destino era São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde terras férteis e promessas de trabalho pareciam ser a solução para a miséria que enfrentavam na Itália.

Ao chegar à Casa do Imigrante, Francesco deparou-se com uma realidade caótica. O local estava abarrotado de famílias de diversas regiões da Itália, todas ansiando por uma oportunidade. Foi ali que ele testemunhou uma revolta. Descontentes com as condições precárias e a péssima alimentação, os imigrantes se rebelaram, atirando comida pela janela e forçando a intervenção de militares. Embora ninguém tenha se ferido, o episódio marcou profundamente Francesco, deixando claro que o caminho para a tão sonhada prosperidade seria repleto de desafios.

Após dias turbulentos, a família Bernardel foi encaminhada a uma fazenda de café administrada por um italiano de nome Giovanni Toffel. Ali, junto a outras seis famílias, começaram a trabalhar nos campos. As condições eram duras: mato alto, calor intenso e um salário que mal cobria as necessidades básicas. No entanto, Francesco encontrou consolo na solidariedade entre os colonos e na gentileza do administrador, que fazia o possível para prover alimento e moradia dignos.

O dia a dia era exaustivo, mas havia momentos de encanto que davam sentido ao esforço. Francesco maravilhava-se ao contemplar as colinas cobertas de cafezais, com os grãos brilhando como pequenas joias sob o sol. "Se o senhor pudesse ver a maravilha que é uma colina de café!", escreveu ele em uma carta ao professor que havia deixado na Itália.

A casa onde moravam era simples, feita de madeira tosca e coberta por velhas telhas de barro cozido, mas oferecia um conforto inesperado. Todo sábado, um porco era abatido e sua carne distribuída entre as famílias, um luxo que Francesco nunca havia experimentado em sua terra natal. No entanto, as saudades da Itália permaneciam como uma sombra constante, especialmente nos dias de festa religiosa, quando a distância da igreja e a falta de sacerdotes limitavam as celebrações.

Com o passar dos anos, Francesco tornou-se um exemplo de resiliência. Ele adaptou-se às peculiaridades do cultivo local, aprendendo a armazenar milho com palha para prolongar sua durabilidade e a lidar com as intempéries tropicais. Maria, por sua vez, cuidava da horta e das crianças, enquanto ensinava Pietro e Rosa sobre as tradições italianas, na esperança de que não esquecessem suas raízes.

Apesar das dificuldades, a família Bernardel prosperou. Pietro cresceu e tornou-se um hábil carpinteiro, ajudando a construir casas para novos imigrantes. Rosa, com sua voz doce, tornou-se a principal cantora das festas da colônia, unindo italianos e brasileiros em celebrações que simbolizavam a fusão das culturas.

Francesco nunca deixou de escrever para seu antigo professor, relatando suas vitórias e desafios. Ele sabia que muitos imigrantes não tinham tido a mesma sorte, mas sentia-se grato por ter encontrado um lugar onde o trabalho árduo era recompensado. Em uma de suas últimas cartas, escreveu: "Aqui, nesta terra distante, encontrei algo que a Itália não pôde me dar: a oportunidade de recomeçar. Embora as saudades sejam imensas, construímos um lar, e isso é um tesouro que nenhum oceano pode apagar."

Francesco Bernardel tornou-se um símbolo de coragem e perseverança, representando os milhares de italianos que, com suor e sacrifício, ajudaram a moldar o Brasil. Sua história, como tantas outras, é uma prova de que mesmo nos momentos mais difíceis, a esperança pode florescer e transformar vidas.


Nota do Autor

Escrever A História de Francesco Bernardel foi uma jornada de exploração das raízes da coragem humana e da força que nos move em direção ao desconhecido em busca de uma vida melhor. Inspirada pelos relatos de imigrantes italianos que atravessaram o Atlântico no final do século XIX e início do XX, esta narrativa pretende homenagear não apenas Francesco e sua família fictícia, mas também os milhares de homens, mulheres e crianças que enfrentaram adversidades para construir um novo lar no Brasil. A história de Francesco Bernardel reflete a realidade de muitos italianos que deixaram para trás suas aldeias, suas tradições e até mesmo familiares queridos para enfrentarem o desconhecido. É também uma homenagem às esperanças e aos sacrifícios de pessoas que encontraram nas terras brasileiras um novo começo, mesmo quando os desafios pareciam intransponíveis. Minha intenção foi capturar não apenas os fatos históricos, mas também as emoções e os dilemas internos de quem viveu esse processo de deslocamento e adaptação. Desde o caos das Casas do Imigrante até a dureza das fazendas de café, A História de Francesco Bernardel é um retrato de resiliência, solidariedade e reinvenção. 

Que este livro sirva como um lembrete de que as histórias dos imigrantes não pertencem apenas ao passado, mas continuam a moldar o presente e o futuro. E que cada leitor encontre em Francesco Bernardel uma inspiração para acreditar que, mesmo diante das maiores dificuldades, a esperança e o trabalho árduo podem transformar vidas.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta