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sábado, 16 de agosto de 2025

O Fio, o Couro e o Mar


O Fio, o Couro e o Mar

Entre a Agulha e o Couro, o Sonho de um Novo Mundo


No coração de uma pequena cidade costeira da Apúlia, nascia e crescia uma geração moldada pela pobreza, pelo trabalho manual e pelas rígidas regras de um mundo em que a mulher pouco decidia sobre a própria vida. Entre as casas baixas e as ruas de pedra irregular, viviam artesãos de mãos calejadas — sapateiros, barbeiros, alfaiates — homens que raramente sabiam ler ou escrever, mas dominavam como poucos o ofício herdado dos pais. As mulheres, em sua maioria, permaneciam no lar ou se dedicavam a tecer, costurar e cultivar a terra. Para poucas, a distinção social lhes concedia o título de donna, reservado às esposas de homens com certo prestígio.

Era uma sociedade onde até o casamento obedecia a uma ordem severa. A bênção para a união partia primeiro do pai; se este tivesse partido, passava ao avô paterno. Só na ausência de ambos a mãe podia conceder o consentimento. Era um patriarcado tão sólido que até o amor precisava aguardar a permissão dos homens da família.

A vida era frágil. A mortalidade infantil rondava cada casa como um vento frio. Registros de óbitos mostravam páginas e mais páginas de nomes de crianças que mal haviam aprendido a respirar. Quando um filho morria, o nome era frequentemente passado ao próximo recém-nascido, como se, ao repetir a palavra, pudessem enganar a morte. Algumas famílias batizavam três filhos com o mesmo nome, numa tentativa silenciosa de perpetuar algo que lhes fora arrancado cedo demais.

Nessa realidade, também havia as crianças sem pai declarado — os proietti. Muitas vezes, a parteira do vilarejo as levava ao oficial de registro. Algumas jovens, contrariando as convenções, ousavam criar sozinhas o próprio filho, pagando com o isolamento social essa escolha.

Foi assim com Lucia Bertoni. Nascida em uma família de tecelões pobres, aprendeu desde cedo o ofício de costureira. Quando, aos vinte anos, deu à luz uma filha sem casamento, chamou-a de Rosa e ensinou-lhe a manejar a agulha e o pano. Rosa, apesar da habilidade, carregava o peso do estigma que afastava pretendentes.

Anos depois, cruzou o caminho de Matteo Branciforte, um sapateiro que havia deixado a aldeia natal nas montanhas do Abruzzo para buscar vida nova na costa. Trazia consigo um passado marcado por vergonha e tragédia: filho de um contrabandista abatido pela guarda alfandegária. Essa mancha, no entanto, não lhe roubara a dignidade do trabalho.

Lucia e Matteo uniram suas vidas e, com paciência, construíram um lar sólido. Ela continuava a costurar para sustentar a casa, ele moldava o couro em calçados resistentes que ganhavam fama na cidade. Não eram ricos, mas ofereciam aos filhos aquilo que nunca tiveram: estabilidade e algum prestígio.

Mas, em 1879, as ruas estreitas da cidade começaram a encher-se de boatos vindos de além-mar. Falava-se de terras férteis no Brasil, de um trabalho que, embora duro, poderia abrir caminho para a propriedade e a liberdade. Eram palavras que encontravam terreno fértil nos corações aflitos, pois a Itália daquele tempo, recém-unificada, carregava feridas profundas. No Mezzogiorno, os campos secavam sob o sol implacável, e a terra, fragmentada e insuficiente, já não sustentava as famílias. A pobreza, quase endêmica, misturava-se à falta de oportunidades; o trabalho escasseava e os salários, quando existiam, mal compravam o pão. Muitos viam seus filhos crescerem com o ventre vazio e o olhar cansado antes mesmo da juventude. Nessa atmosfera de fome e desesperança, qualquer rumor sobre um lugar distante, onde a terra esperava braços dispostos e o pão não faltava à mesa, tornava-se mais do que uma notícia — era uma promessa de salvação. 

Os dois sabiam que, se ficassem, a vida seguiria o mesmo traçado das gerações anteriores e falta de futuro para os filhos. Venderam o pouco que possuíam e, com Rosa já moça e o filho pequeno nos braços, embarcaram em um navio abarrotado de famílias como a deles, partindo de Gênova rumo ao desconhecido.

A travessia foi longa e áspera. No porão úmido, o cheiro de maresia se misturava ao de corpos cansados e barris de provisões. O balanço constante fazia muitos adoecerem. Ainda assim, a promessa de uma vida nova sustentava cada manhã.

Chegaram ao porto de Santos exaustos, mas logo foram conduzidos de trem para o interior, rumo à região de Ribeirão Preto. Ali, sob um sol inclemente, trabalharam como colonos em uma fazenda de café. O contrato com o proprietário era de quatro anos: dias começando antes do amanhecer, acordando ao som de um sino da fazenda, mãos feridas pelo manejo das ramas durante as colheitas e costas curvadas pelo peso do trabalho. O calor abafado do verão e a umidade das madrugadas paulistas moldaram seus corpos à nova terra.

Ao término do contrato, tinham guardado o suficiente para não voltar à condição de servos. Estavam decididos a permanecer no Brasil e não mais retornar para a Itália. Corajosamente, seguiram para um pequeno núcleo de povoamento que, com o tempo, ganharia o nome de Batatais. Ali, retomaram as profissões que carregavam da Itália. Matteo abriu uma modesta oficina de sapatos, oferecendo botas para lavradores e calçados finos para comerciantes locais. Lucia montou seu pequeno ateliê de costura, atendendo esposas de fazendeiros e moças que preparavam o enxoval.

Os filhos cresceram respirando o cheiro de couro curtido e tecidos recém-passados. Rosa, a primogênita, tornou-se a assistente de Lucia, reproduzindo com paciência e perfeição os pontos aprendidos desde a infância. Jamais se casou, mas deixou um legado silencioso nas roupas que confeccionou para toda uma geração. Angelo, o segundo filho, abriu um bar e cafeteria na praça principal, onde mais tarde também veio a funcionar a pequena rodoviária da cidade, que se tornaria ponto de encontro de imigrantes e brasileiros, onde se discutiam colheitas, negócios e notícias do velho continente. Pietro, o terceiro, herdou a determinação do pai e se tornou sapateiro, expandindo o negócio familiar e abastecendo armazéns das cidades vizinhas. O mais novo, Ernesto, estudou com afinco graças ao sacrifício dos irmãos e formou-se guarda livros, sendo o primeiro da família a terminar o segundo grau.

As filhas caçulas, Maria e Antonietta, não tiveram as mesmas oportunidades de estudo, mas sustentaram a família em momentos de dificuldade, costurando, atendendo no bar e cafeteria, e cuidando dos sobrinhos. Entre eles, nasceria uma nova geração que já se considerava brasileira, embora o sotaque e as tradições ainda denunciassem as raízes italianas.

Com o passar dos anos, o casarão simples de Batatais tornou-se o centro das reuniões familiares, onde as histórias da Itália e da travessia eram contadas ao redor da mesa. Matteo envelheceu curvado, mas orgulhoso, sempre com um pedaço de couro nas mãos. Lucia, mesmo com a visão turva, ainda passava os dedos pelas costuras para verificar a firmeza do ponto.

Quando Matteo partiu, numa manhã fria de inverno, a cidade já o reconhecia como um dos pioneiros que haviam ajudado a erguer Batatais. Lucia resistiu alguns anos mais, guardando numa caixa de madeira as cartas não enviadas para a Itália e as ferramentas gastas do marido. Foi sepultada ao lado dele, sob uma lápide simples que trazia apenas os nomes e as datas.

O fio e o couro, que um dia haviam sido apenas instrumentos de sobrevivência, tornaram-se o símbolo de uma família que atravessara o oceano para costurar, com trabalho e coragem, o tecido de um novo destino. E, embora o mundo tivesse mudado, cada geração que descia à praça de Batatais para tomar café ou comprar sapatos feitos à mão ainda carregava, invisível mas intacta, a marca da travessia de 1879.

Nota do Autor

Esta história é inspirada em acontecimentos reais, reconstruídos a partir de cartas preservadas ao longo de gerações e dos relatos orais de familiares que, com emoção, mantiveram viva a memória de seus antepassados. As experiências narradas refletem as dificuldades, esperanças e decisões que marcaram a vida de homens e mulheres no final do século XIX, quando a emigração era, para muitos, a única saída diante da pobreza e da falta de oportunidades.

Por respeito à privacidade dos descendentes e para preservar a intimidade das famílias envolvidas, todos os nomes e alguns detalhes de identificação foram modificados. Ainda assim, buscou-se fidelidade ao contexto histórico e à essência das vivências descritas, de modo que o leitor possa sentir o peso das escolhas e a força da esperança que conduziu aqueles personagens rumo a um futuro incerto, mas desejado.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





quinta-feira, 14 de agosto de 2025

El Fil, el Corame e el Mar

 


El Fil, el Corame e el Mar
Tra l’Ago e el Corame, el Sònio de ‘na Tera Nova

Drento el cuor de ‘na sitadeta costiera de l’Apulia, nassea e cresseva ‘na generassion segnà da la povertà, dal laoro a man e da le règole rìgide de un mondo ´ndove la dona la dessidea poco de la so vita. Tra le case basse e le stradete de piera scompagna, vivea mestieri con le man dure — scarper, barbiere, sartore — òmeni che rade volte savea lesar o scrivar, ma che dominea come pochi l’arte ciapà dai pari. Le done, la pì parte, restea in casa o se dedicava a tesser, cusir e coltivar la tera. Poche, par distinssion, portava el tìtolo de dona, riservà a le mòier de òmeni con un serto prestìgio.

Zera ‘na società ‘ndove anca el maridar seguiva ‘na òrdine severa. La benedission par el unìr de ‘na copia vegniva prima dal pare; se ‘sto zera morto, passava al nono paterno. Solo in mancansa de tuti do, la mare podia dar el consenso. Zera un patriarcà talmente sòlido che anca l’amor dovea spetar el permesso dei òmeni de casa.

La vita zera fràgile. La mortalità dei putei stava drento ogni casa come un vento fredo. I registri de morto mostrava pàgine e pàgine de nomi de creature che no gavea gnanca imparà a respirar. Quando un filo morìa, el nome el zera speso dà al pròssimo nato, come se, ripetendo la parola, se podia inganar la morte. Ghe zera famèie che batesava tre fioi con el stesso nome, in ‘na prova silensiosa de tegner vivo el che zera stà cavà via massa presto.

In ‘sta realtà ghe zera anca i putei sensa pare dichiarà — i proietti. Tante volte, la levadora del paeseto i portava dal segretàrio comunal. Qualche zòvena, contraria a le usanse, oseva cresser soleta el proprio fiol, pagandola con l’isolamento sossial ‘sta scelta.

Cussì zera anca par Lucia Bertoni. Nata in ‘na famèia de tessitori pòvari, s’imparò presto el mestier de sarta. Quando, a vent’ani, la mete al mondo ‘na fiola sensa marìo, lei la ciamò Rosa e ghe insegnò a manegiar ago e tela. Rosa, benché brava, portava con sé el peso del stigma che scampava i pretendenti.

Ani dopo, la incrosò la strada de Matteo Branciforte, un scarpar che gavea lassà el so paeseto su per le montagne de l’Abruzzo par cercar vita nova in costa. Portava drìo un passato segnà da vergogna e tragèdia: fiol de un contrabandier copà da la guardia daziaria. ‘Sta macia, però, no ghe gavea cavà via la dignità del laoro.

Lucia e Matteo i mete insieme la vita e, con pasiensa, i costruì un nido sòlido. Lei continuava a cusir par mantegner la casa, lu modelava el corame in scarpe resistenti che se guadagnava fama in sità. No i zera richi, ma i podìa dar ai fiòi quel che lori no gavea mai avù: stabilità e un certo prestìgio.

Ma, ´ntel 1879, le strade strete de la sità se empieni de boati che vegniva da oltre mar. Se parlava de tere fèrtili in Brasile, de un laoro che, benché duro, podia portar a posseder tera e libartà. Parole che trovava teren fèrtile ´ntei cuori strachi, perché l’Itàlia de quel tempo, apena unida, portava ferìe profonde. In tuto el sud, i campi se secava soto el sole rovente, e la tera, spesà e scarsa, no mantegnea pì le famèie. La misèria, quasi crònica, se mescolava con la mancansa de ocasion; el laoro scassegiava e i salari, quando ghe zera, no bastava gnanca par el pan. Tanti vadava i fiòi cresser con la pansa voda e l’òcio straco prima ancora de la zoventù. In ‘sta ària de fame e disperassion, ogni boato de un posto lontan, ‘ndove la tera spetava brassi disposti e ‘l pan no mancava in tola, diventava pì che ‘na notìssia — zera ‘na promessa de salvassion.

I do savea che, se restava, la vita la seguiria el stesso segno de le generassion passà e gnente futuro par i fiòi. Lori i ga vendù quel poco che gavea e, con Rosa za zòvena e el fiol pìcolo in brasso, i se imbarcò su un navio pien de famèie come la sua, partindo da Génova verso l’scognossù.

La traversia zera longa e dura. ´Nte la tersa classe ùmida, l’odor de mar se mescolava con quelo de corpi strachi e dei barili de provision. El dindolar contìnuo fasea vegnir mal a tanti. Ma la promessa de ‘na vita nova tegneva vivi ogni matina.

Rivà al porto de Santos strachi morti, i ze stà portà in treno verso l’interno, ´ntela zona de Ribeirão Preto. Là, soto un sole infocà, lori i ga laorà come coloni ´int ‘na fasenda de cafè. El contrato con el paron zera de quatro ani: zornade che tacava prima del sole, sveià dal campanel de la fasenda, man ferì dal strapar dei rami in racolta e schena curve dal peso del laoro. El caldo pesante de l’istà e l’umidità de le matine pauliste i forsiava i corpi a la tera nova.

Finì el contrato, i gavea risparmià abastansa par no tornar servi. I zera stà decisi a restar in Brasile e no pì ritornar in Itàlia. Con coraio, i se move verso un nùcleo pìcolo de coloni che, con el tempo, vegnaria se ciamà Batatais. Là, lori i riprese i mestieri portà da casa. Matteo verte ´na botega modesta de scarpe, fornindo stivai ai lavoradori e scarpe fini ai mercanti. Lucia mete su ‘na sartoria pìcola, servendo mòie de i fazenderi e zòvene che se preparea el corredo.

I fiòi i ga cressiù respirando l’odor de corame concià e de tela nova. Rosa, la pì granda, diventò la man drita de Lucia, rifacendo con pasiensa e precision i punti imparai da putea. Mai se sposò, ma lassò un lassà silensioso ´nte le robe cusì par ‘na intera generassion. Angelo, el secondo, vertì un bar e cafetaria in piassa granda, ‘ndove dopo ani vegnè anca la stasioneta dei autobus, che diventò punto de incontro de imigranti e brasilian, ‘ndove se discutea de racolte, negosi e notìssie dal continente vècio. Pietro, el terzo, ciapò la determinassion del pare e diventò scarpar, ingrandindo l’afare de famèia e fornindo i magazin dei paesi visin. El pìcolo, Ernesto, studiò con impegno gràssie al sacrifìssio dei fradèi e se diplomò contador, el primo de la famèia a finir el secondo grado.

Le fiole ùltime, Maria e Antonietta, no gavea le stesse ocasion de stùdio, ma tegnìa su la famèia ´ntei momenti duri, cusindo, servendo al bar e cafetaria e curando i nevodi. Tra lori, nassea ‘na nova generassion che se sentìa za brasilian, anca se el parlar e le usanse tradiva le radìse taliane.

Con el passar dei ani, la casa granda ma sèmplisse de Batatais diventò el sentro de le incontro de famèia, ‘ndove se contava le stòrie de l’Itàlia e de la traversia del osseano intorno a la tola. Matteo inveciò curvo, ma orgoioso, sempre con un peseto de corame in man. Lucia, anca con la vista calà, passava ancora i diti su le cusidure par sentir se el ponto zera fermo.

Quando Matteo el ga partì, ‘na matina freda d’inverno, la sità lo conossea za come uno dei pionieri che gavea contribuì a far nasser Batatais. Lucia resisté ancora qualche ano, tegnendo in ‘na casseta de legno le lètare mai spedì in Itàlia e i strumenti consumaà del marìo. Fu sepolta a fianco de lu, soto ‘na piera semplice con solo i nomi e le date.

El fil e el corame, che ‘na volta zera solo strumenti par sopraviver, diventò el sìmbolo de ‘na famèia che traversò el osseano par cusir, con laoro e coraio, la tela de un destin novo. E, anca se el mondo zera cambià, ogni generassion che passava per la piassa de Batatais par bever un cafè o comprar scarpe fate a man, portava ancora, invisìbile ma intata, la marca de la traversia del 1879.

Nota de l’Autor

‘Sta stòria la ze ispirà a fati veri, ricostruì da lètare tegnù par generassion e dai conti orai de fameiari che, con emossion, i ga tegnù viva la memòria dei so antepassà. Le esperiense contà le riflete le dificoltà, le speranse e le decision che ga segnà la vita de òmeni e done a la fin del XIX sècolo, quando l’emigrassion zera, par tanti, l’ùnica strada contro la misèria e la mancansa de ocasion.

Par rispeto a la privassità dei discendenti e par tegner nascosta l’intimità de le famèie, tuti i nomi e qualche detàio de identificassion i ze stà cambià. Ma se ga sempre ciaro de tegner fede al contesto stòrico e al’essensa de le vite descrite, cussì che el letor possa sentir el peso de le scelte e la forsa de la speransa che ga portà quei personai verso un futuro incerto, ma tanto desiderà.

Dr. Piazzetta