Morte a Bordo
Uma família de agricultores italianos da quase perdida localidade de Carmignano di Brenta, no interior da província de Padova, na Itália, no final do século XIX, Giovanni e Antonella, viviam com muitas dificuldades. A vida no interior da Itália estava se tornando insustentável devido à fome, à falta de trabalho e à pobreza extrema que surgiu após as guerras pela unificação da Itália e a formação do reino italiano. O ônus maior da construção do Reino d'Itália recaiu sobre os mais pobres e desamparados da população. Os novos impostos e taxas criadas para a manutenção do estado, afetaram de forma desproporcional os camponeses e trabalhadores rurais, que constituíam a maioria da população italiana na época. Entre as medidas mais impopulares estava o imposto sobre a moagem, conhecido como la tassa sul macinato, introduzido em 1868, que taxava a moagem de grãos, um alimento básico para os italianos. Isso resultou em um encarecimento do pão e de outros produtos essenciais, agravando ainda mais as condições de vida das famílias rurais e urbanas mais pobres. A unificação trouxe também o serviço militar obrigatório, que retirava os jovens de suas famílias por longos períodos, prejudicando a economia familiar baseada na agricultura de subsistência. Além disso, a política de centralização do novo estado, inspirada no modelo piemontês, desconsiderou as especificidades regionais, exacerbando o descontentamento em muitas regiões, especialmente no sul da Itália, conhecido como Mezzogiorno. Aqui, a unificação foi percebida mais como uma conquista do que como uma libertação. A pobreza extrema, a concentração fundiária e a repressão estatal contribuíram para o surgimento de movimentos de resistência, como o brigantaggio - ou banditismo, que foi combatido com dureza pelo exército italiano. As promessas de redistribuição de terras e melhoria nas condições de vida para os camponeses não se concretizaram, ampliando a desigualdade social e o êxodo rural.
Esses fatores, somados às dificuldades econômicas e à ausência de oportunidades, levaram a uma emigração em massa, principalmente entre os finais do século XIX e início do XX. Milhões de italianos, especialmente do sul, deixaram sua terra natal em busca de uma vida melhor em países como os Estados Unidos, Argentina e Brasil. Essa diáspora teve um impacto profundo, tanto para as comunidades que partiram quanto para as que permaneceram, moldando a história italiana e mundial.
Foi nesse contexto, que Giovanni decidiu que também deveria tentar uma vida melhor na América, no Brasil, onde naqueles anos corriam notícias que havia promessas de terra e trabalho.
Antonella, apesar da dor de ficar longe de Giovanni e das crianças, concordou que a melhor oportunidade para a família seria a emigração. Mas, por questões financeiras, Antonella teve que ficar em casa, enquanto Giovanni embarcava sozinho na viagem para o Brasil. Ele prometeu que, assim que se estabelecesse, mandaria buscar Antonella e as crianças.
Giovanni partiu para o Brasil com grandes esperanças. A viagem, no entanto, foi marcada por dificuldades, mas, ao chegar ele logo encontrou trabalho em terras de cafeicultores. Ele enviava cartas a Antonella, contando-lhe as dificuldades do início, mas também lhe dando esperança de um futuro melhor.
Antonella, por sua vez, esperava ansiosamente o dia em que poderia reunir sua família. Com as crianças em casa, ela estava cheia de saudades de Giovanni, mas sabia que a decisão dele fora tomada por um bem maior, e que logo se reuniriam. Ela mantinha a esperança e a fé de que, em breve, faria a viagem ao Brasil com os filhos, reunindo-se com Giovanni para começar uma nova vida.
Finalmente, o dia chegou. Antonella conseguiu economizar o suficiente para pagar sua viagem. Com seus filhos Pietro e Maria ao seu lado, ela embarcou rumo ao Brasil. A longa viagem foi cheia de dificuldades, mas Antonella estava determinada a reunir-se com seu marido.
Entretanto, o destino se mostrou cruel. Durante a travessia, uma epidemia de sarampo se espalhou rapidamente entre as crianças a bordo. Pietro, seu filho de 8 meses, foi uma das vítimas da doença. Antonella, desesperada, viu seu filho sofrer e falecer antes que pudesse chegar ao Brasil. A dor de perder Pietro foi insuportável, e ela mal conseguia processar a tragédia enquanto a viagem continuava.
Finalmente, depois de muitas semanas no mar, o navio chegou ao Brasil. Antonella, com Maria ainda ao seu lado, desembarcou em solo brasileiro, mas com o coração partido pela perda de Pietro. Ela agora tinha de enfrentar a dura realidade de começar sua vida no Brasil, em um novo país, mas também sabia que a promessa de uma nova vida com Giovanni era a única coisa que poderia lhe dar forças.
Quando Antonella finalmente se reencontrou com Giovanni, ele a acolheu com carinho, mas o luto pela perda de Pietro nunca desaparecerá. O Brasil era vasto e promissor, mas para Antonella, cada dia estava marcado pela ausência do pequeno Pietro. A saudade de sua terra natal, da Itália, e a dor da perda de um filho eram pesadas, mas ela tinha Maria e Giovanni para seguir em frente.
Juntos, tentaram reconstruir suas vidas no Brasil, mas a memória de Pietro nunca seria apagada. Antonella, embora marcada pela dor, sabia que o melhor que podia fazer por sua família era seguir em frente, pois o amor de Giovanni e Maria era o que a fazia ter forças para continuar.
Nota do Autor
Este trecho é um resumo do livro Morte a Bordo, escrito com a intenção de não deixar cair no esquecimento os dramas e as vicissitudes enfrentadas por milhares de homens e mulheres que, forçados pela fome e pela ausência de perspectivas em sua terra natal, viram-se obrigados a abandonar as aldeias, os campos e até mesmo as famílias que os sustentavam em suas raízes mais profundas.
A travessia do Atlântico não foi apenas uma mudança geográfica, mas sobretudo uma ruptura dolorosa e definitiva com o mundo conhecido. Os emigrantes, expulsos pela miséria e pelo desespero, lançaram-se ao mar na esperança de encontrar no Brasil uma terra nova e promissora, onde o trabalho e o sacrifício pudessem transformar-se em futuro.
Este livro é, portanto, um testemunho de memória e resistência: uma forma de dar voz aos que viveram – e muitas vezes morreram – nesse caminho entre o abandono e a esperança. Cada página busca resgatar a dignidade de quem ousou sonhar com um amanhã melhor, mesmo à custa do maior dos sofrimentos.
Dr. Luiz C. B. Piazzetta