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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O Destino do Povo Veneto: Entre a Fome e a Esperança



 

O Destino do Povo Veneto: 

Entre a Fome e a Esperança


Giovanni sempre ouviu histórias sobre a grandeza passada de Veneza, da época em que o Veneto era o centro de uma poderosa república marítima. Ele nunca viveu esses tempos gloriosos, mas cresceu sob a sombra da pobreza e da crise que dominaram a região após a queda da Sereníssima em 1797. Seu avô, que tinha testemunhado a queda de Veneza nas mãos de Napoleão, contava-lhe que a vida era melhor antes da invasão francesa e do domínio austríaco que se seguiu.

Agora, em 1875, Giovanni, com 30 anos, olhava para os campos áridos do Veneto e se perguntava como seu povo havia caído em tamanha miséria. Ao lado de sua esposa, Maria, ele enfrentava uma vida de dificuldades como meeiro, trabalhando em terras que não lhe pertenciam e sempre à mercê dos caprichos do gastaldo, o cruel administrador local. Era uma existência de servidão, onde o fruto do trabalho suado de Giovanni e Maria mal dava para alimentar seus filhos.

A Itália, unificada em 1861 sob o governo dos Savoia, prometia um futuro melhor, mas para os camponeses venetos, essa promessa parecia cada vez mais distante. Giovanni ouvia os rumores nas feiras e nas igrejas: "Com os Savoia, não se almoça nem se janta." A fome, que assolava a região há décadas, continuava implacável. Os impostos crescentes, a falta de trabalho e as más colheitas só aumentavam o desespero.

O padre Pietro, o pároco da pequena vila onde Giovanni vivia, notava o sofrimento dos seus paroquianos. Com o coração pesado, ele decidira ajudar de outra maneira: começou a falar, nas missas e encontros, sobre a emigração para o Brasil. Havia terras férteis e vastas na América do Sul, dizia ele, onde os camponeses poderiam ter uma vida digna, longe da opressão dos grandes senhores e da fome que os assolava.

Giovanni e Maria ouviam as histórias com descrença. Partir para uma terra desconhecida, do outro lado do oceano, parecia mais um pesadelo do que uma solução. Mas, conforme o tempo passava e as condições no Veneto só pioravam, a ideia de emigrar foi ganhando força. Giovanni já não podia ignorar o fato de que ficar significava condenar sua família à fome e à miséria.

A decisão de partir foi tomada em uma noite fria de inverno, após mais uma colheita fracassada. Giovanni e Maria venderam o pouco que tinham e, junto com outras famílias da vila, organizaram-se para partir. O padre Pietro, que continuava a liderar a comunidade com sua fé inabalável, prometeu guiar espiritualmente aqueles que seguiam para o Novo Mundo.

A jornada até o porto de Gênova foi longa e dolorosa. Deixaram para trás tudo o que conheciam: a casa simples, os vizinhos e amigos, e as memórias de uma vida que, apesar de dura, ainda era familiar. O porto de Gênova estava lotado de outros emigrantes, todos com a mesma esperança de escapar da pobreza para construir uma vida melhor.

O navio que os levaria ao Brasil era uma embarcação velha e abarrotada de pessoas. Giovanni e Maria, com seus filhos, tentavam manter a esperança viva, mas as condições a bordo eram terríveis. A comida era escassa e de má qualidade, e doenças rapidamente se espalhavam entre os passageiros. Giovanni passava noites em claro, preocupado com o futuro que os aguardava.

Após semanas de uma travessia difícil, finalmente avistaram o porto de Santos. A visão da terra firme trouxe alívio, mas também um novo tipo de medo. O Brasil era vasto, desconhecido, e Giovanni sabia que a luta estava apenas começando. A primeira parada foi em Santos, onde passaram por longas filas de inspeção e formalidades antes de serem encaminhados para o sul do Brasil, onde haviam prometido lotes de terra para os imigrantes.

A viagem ao interior foi extenuante. A natureza selvagem ao redor contrastava com a paisagem árida que haviam deixado no Veneto. Giovanni e Maria foram levados, com outros imigrantes, para uma colônia recém-criada na Serra Gaúcha, onde as terras eram férteis, mas cobertas por densas florestas que precisariam ser desbravadas antes que pudessem plantar qualquer coisa.

Nos primeiros meses, a vida foi uma batalha constante contra a natureza e o isolamento. Giovanni, Maria e seus filhos, juntamente com os outros colonos, trabalharam arduamente para limpar a terra, construir suas casas e plantar suas primeiras colheitas. Era uma vida de sacrifícios, mas diferente da opressão do passado. Eles agora tinham a liberdade de trabalhar por si mesmos, mesmo que isso significasse um fardo ainda mais pesado.

A comunidade de imigrantes crescia, e apesar das dificuldades, começava a criar raízes. As tradições italianas eram mantidas vivas nas festas religiosas, nas músicas e nas refeições que conseguiam preparar, quando a colheita permitia. O padre Pietro continuava a ser um guia espiritual, liderando missas e oferendo consolo àqueles que sentiam saudades da Itália.

Giovanni, no entanto, ainda carregava uma profunda saudade de sua terra natal. O Veneto, com todas as suas dificuldades, era o lar onde ele havia nascido e crescido. Ele frequentemente se pegava lembrando dos campos que deixou para trás e das pessoas que nunca mais veria. Mas, ao olhar para seus filhos, agora mais fortes e saudáveis, sabia que havia feito a escolha certa.

Os anos passaram, e a colônia prosperou. Giovanni e Maria, com muito esforço, conseguiram fazer sua terra produzir, e suas colheitas começaram a render mais do que o necessário para sobreviver. Os filhos falavam português com fluência, e, embora as raízes italianas fossem mantidas, a nova geração começava a se integrar à vida brasileira.

As dificuldades nunca desapareceram completamente, mas o sacrifício de Giovanni e Maria resultou em uma vida mais digna do que eles poderiam ter imaginado na Itália. O Brasil, com seus desafios, oferecia algo que o Veneto já não podia oferecer: esperança.

Giovanni nunca se esqueceu de sua terra natal. Sempre que o vento soprava pelos campos da colônia, ele se lembrava das colinas do Veneto, das tradições de seu povo e da vida que deixou para trás. Mas sabia que o futuro estava ali, na terra brasileira que ele e Maria haviam ajudado a cultivar.

E assim, no coração da Serra Gaúcha, Giovanni e sua família construíram uma nova história, marcada pelo sacrifício, pela resiliência e pela esperança. A jornada, que começou com fome e desespero no Veneto, encontrou um novo destino, longe da miséria que uma vez ameaçou destruir suas vidas.

Agora, olhando para seus netos correndo pelos campos que um dia foram apenas uma floresta inóspita, Giovanni sabia que a semente da esperança que ele e Maria plantaram havia florescido. O sacrifício não fora em vão, e o futuro de sua família estava garantido.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Criada a Itália Partem os Emigrantes



O fenômeno emigratório na Itália acorreu com um atraso de vinte anos em relação a maioria dos países europeus. O grande êxodo coincidiu com o nascimento do país chamado Itália. Com a unificação italiana desapareceram os pequenos mercados locais dando lugar ao mercado único e aberto à concorrência com outros países. A Itália, ainda muito débil, não estava preparada para esse confronto. 

Na ocasião da unificação a Itália apresentava um balanço negativo da sua economia. Existia uma população, ainda em fase de crescimento, de 26 milhões de habitantes, mas, o país era totalmente desprovido de matérias primas. A industrialização tinha apenas acabado de chegar. 

A agricultura ainda era muito atrasada, fazendo uso de métodos de cultivo arcaicos e já superados. O analfabetismo atingia mais de 80% da população italiana. O país sofria de antigas pragas e doenças que a atingiam desde a muito tempo, como por exemplo a malária que matava a cada ano mais de 40.000 pessoas; a pelagra que atingia 100.000 "italianos". Faltavam estradas, escolas, hospitais, moradias, ferrovias e tantas outras necessidades  básicas para uma vida mais digna. O governo do novo país, para fazer frente as sempre crescentes necessidades do estado, gravava a população com impostos e taxas cada vez maiores. 




Em 1866 quando o Vêneto foi unido ao reino italiano a região já se encontrava em graves dificuldades. Estava em terceiro lugar como região agrícola do país e também era a mais atrasada de todo norte da Itália. Não era uma região onde predominavam os trabalhadores rurais diaristas, pois, de uma população de 2,8 milhões de habitantes, existiam 516 mil pequenos proprietários. 

Os problemas do Vêneto não se iniciaram com a a sua anexação à Itália, era um problema muito mais antigo, da época da República Sereníssima, três séculos e meio atrás, quando Veneza se viu alijada das grandes e lucrativas rotas marítimas, com a circunavegação da África e a descoberta da América. 

Os nobres venezianos e os ricos burgueses para manterem as suas fortunas, tiveram que se voltar para as suas propriedades rurais do interior da região. Eles eram pessoas, que na sua maioria não amavam a terra, moravam na cidade e contratavam administradores para cuidarem das suas plantações e receber os lucros obtidos. Tinham pouco envolvimento com a vida da propriedade rural e a usavam como um local de laser, para passarem algum tempo longe do fervilhar das cidades, onde verdadeiramente residiam. Para eles o que interessava era somente a renda obtida. 

Diferente da vizinha região da Lombardia onde a agricultura foi se transformando em indústrias, dando prioridade para a criação de gado, a produção de leite, de manteiga e queijos, enquanto o Vêneto ainda estava estagnado, com uma visão arcaica das potencialidades do campo. A terra produzia tão somente o necessário para matar a fome dos pobres agricultores arrendatários e contentar os patrões proprietários das terras. Prevalecia no Vêneto uma cultura rural mista, sem especializações, onde o agricultor se limitava a produzir todos os anos as mesmas culturas habituais, utilizando-se de velhas e obsoletas ferramentas de lavoura herdadas dos avós. 

As causas do atraso da agricultura vêneta reside justamente aqui,  e os diversos males que atingiram os trabalhadores da terra são consequências de uma sociedade sem visão, que não criava, que não arriscava, que não se renovava. Era, com raras excessões, uma sociedade atrasada e imóvel. 

Algumas culturas, dependendo das estações do ano, até conseguiam dar algum alívio aos produtores, como a criação do bicho da seda, a cultura do tabaco e a fabricação caseira de tecidos, esta última se constituindo no berço de uma futura indústria têxtil regional. No Vêneto não surgiu um  desenvolvimento capitalista do campo, parecido com aquele da Lombardia. Não apareceram proprietários rurais com uma visão empresarial do campo que o transformasse em uma empresa agrícola, que fosse administrada como uma fábrica. 

Por sua vez, a zona montanhosa era onde se encontrava o ponto mais fraco de toda a Região, nela os males que afligiam a economia vêneta eram elevados ao extremo. Ali uma grande população vivia em uma economia de subsistência onde as safras eram quase sempre deficientes e de pouca qualidade. Os lotes cultiváveis então disponíveis  eram fracionados ao máximo, cabendo à cada família de agricultores arrendatários uma pequena porção de terra insuficiente para gerar renda. 

Os rios e as torrentes de montanha, até então ainda não tinham recebido as melhorias de proteção necessárias, como por exemplo a construção das suas margens para a contenção das cheias, falta essa que provocava periodicamente grandes alagamentos e desmoronamentos que devastavam as plantações e até mesmo vilas inteiras. 

Foi justamente dessas montanhas do Vêneto, privadas de recursos, onde a fome já rondava muitos lares, que partiram as primeiras levas de emigrantes em direção ao Novo Mundo.