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domingo, 14 de setembro de 2025

Raízes e Tempestades A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes e Tempestades 

A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes Rotas

Lendinara, Rovigo, Vêneto — Outubro de 1886.

As folhas amareladas dançavam ao vento como se soubessem o que estava por vir. Enrico Bellò passava o dedo pelas tábuas gastas da janela, enquanto observava o horizonte enevoado. Sua esposa, Marianna Zardini Bellò, dobrava silenciosamente as últimas peças de roupa dos filhos. Ela não respondeu. Apenas olhou os filhos — Ernesto e Giacomo — que dormiam lado a lado no catre de palha. A decisão já estava tomada havia dias, mas ali, diante da última manhã na pátria, o peso era quase insuportável. Venderam o pouco que tinham — o terreno herdado do pai de Enrico, duas vacas, e a prensa de uva que por gerações havia produzido o vinho da família. Trocaram tudo por passagens de terceira classe num navio com destino ao Brasil. A travessia foi um inferno de tosses, gemidos e náuseas. Marianna passava noites em claro, com os meninos febris no colo. Enrico cuidava do pouco que tinham com olhos de lobo: um baú com ferramentas, uma fotografia dos pais, e o caderno onde anotava sonhos e cálculos de futuro.

A Dor Verde

Desembarcaram em Santos com os corpos curvados, mas os olhos acesos. A viagem para o interior os levou a Piracicaba, onde a natureza parecia querer engolir tudo — até mesmo a esperança. Foram designados à fazenda do Barão de Alvarenga, uma imensidão de canaviais onde italianos, espanhóis e negros libertos se misturavam em silêncio e suor. O barraco de madeira cheirava a mofo e solidão. Enrico era hábil na terra, mas a lida ali era desumana. Marianna cuidava dos filhos durante o dia e cozinhava a polenta à noite, com farinha comprada a crédito no armazém da fazenda. As dívidas cresciam. A febre também. Em menos de seis meses, Giacomo faleceu. Três semanas depois, Ernesto o seguiu. Marianna não gritou. Nem chorou diante dos outros. Apenas cavou a cova com as próprias mãos. Enrico ficou três dias sem dizer palavra. Na noite do terceiro, rabiscou no caderno:

“Se ghe ze un Dio, el ghe de forsa a chi no la ga pì.”


Polenta, Suco e Sobrevivência

Depois da dor, veio o silêncio. E logo depois, o trabalho ainda mais duro. Enrico trocava milho por farinha no engenho da Fazenda São Benedito. Comia-se polenta e laranja. Era pouco, mas era constante. Os anos trouxeram três filhos: Guido, Rosina e Natale. Marianna voltava a sorrir, aos poucos. Nas noites de sábado, Enrico contava histórias aos filhos: de Veneza, de neve, de campos de papoula. Os meninos ouviam como se escutassem lendas de um outro mundo — e de fato, era. Rosina aprendeu a fazer queijo com a mãe. Guido alimentava os porcos. Natale, ainda pequeno, já se enfiava entre os canaviais como se fosse parte da terra. A esperança recomeçava a brotar.

La Terra Prometida

Com o pouco que economizaram em mais de vinte anos, Enrico arriscou tudo de novo. Compraram um terreno em Mombuca — terra escura, úmida, fértil como ventre de mulher nova. Era pequena, mas era deles. E isso mudava tudo. Construíram uma casa de madeira, sólida e aberta ao sol. Guido casou-se com uma moça de origem calabresa. Natale seguiu o irmão. Rosina, bela e decidida, ficou para cuidar dos pais. A cada novo neto que nascia, Marianna plantava uma árvore no quintal. A terra deu café, mandioca, milho e, aos poucos, também prosperidade. A família Bellò se espalhou pelos arredores como raízes subterrâneas.

A Lavoura da Memória

Os primeiros anos em Mombuca foram marcados por um silêncio novo — não mais o silêncio da dor, mas o silêncio do trabalho em terra própria. Ali, cada amanhecer era uma promessa. Enrico passava os dias examinando o solo, corrigindo falhas, construindo com paciência uma fazenda que pudesse resistir ao tempo. A vida na colônia era ainda rudimentar, mas o simples fato de não depender mais de ordens alheias era um luxo impensável em outros tempos.

Marianna reorganizava a casa com mãos firmes e uma serenidade adquirida nas perdas. Suas rotinas tinham agora um sentido mais profundo. A horta crescia como uma extensão de seu cuidado — alfaces, batatas, tomates, ervas. No quintal, as árvores plantadas em nome dos filhos cresciam altas, e ela as regava como se conversasse com o passado.

O pequeno celeiro virou centro de produção. O queijo feito por Rosina e os pães que Marianna assava em forno de barro passaram a ser trocados com vizinhos, criando laços com outras famílias de imigrantes: lombardos, piemonteses, alguns trentinos. A terra, antes estrangeira, agora tinha nomes italianos espalhados por cada curva de estrada.

Ciclos que se Repetem

Os netos chegaram como vindima farta depois de um verão generoso. As crianças corriam pelos canteiros, aprontavam nas cocheiras, escondiam-se entre os milharais. Enrico assistia de longe, em silêncio, com os olhos cansados e satisfeitos. Sentia o corpo pesar como nunca, mas a alma leve como não se lembrava de ter sido um dia.

Guido prosperava com o plantio de café e a criação de porcos. Natale seguiu para a cidade, atraído pela modernidade de Rio Claro, onde tornou-se marceneiro. Rosina permaneceu fiel à terra, cuidando dos pais e da pequena capela erguida sob uma figueira, onde se rezavam terços nas noites de sábado.

Com o tempo, os filhos construíram suas próprias casas ao redor da sede principal. Um núcleo familiar tomou forma como uma aldeia invisível, unida por sangue e por história. Nas festas de colheita, os tambores improvisados e os violinos dos imigrantes enchiam o ar de um entusiasmo quase ancestral. Marianna olhava para aquilo tudo com uma expressão que misturava gratidão e cansaço.

A Última Estação

Os últimos anos de Enrico foram silenciosos. Seus passos tornaram-se lentos, os olhos demoravam mais tempo observando o horizonte do que o necessário. Ele passava horas sentado sob o alpendre, com um caderno no colo e um lápis já tão pequeno quanto sua respiração. Anotava datas de nascimentos, mortes, safras, doenças, nomes. Era como se quisesse registrar cada detalhe para impedir que o tempo os engolisse.

Quando faleceu, em 1943, foi enterrado sob a mesma figueira onde Rosina mantinha as velas acesas. Não houve discurso, apenas o som das enxadas abrindo a terra para mais uma semente — não de planta, mas de permanência.

Marianna viveu ainda nove anos. Seus cabelos embranquecidos se tornaram símbolo da família, sua presença era reverenciada pelos netos como a de uma matriarca silenciosa. Já não costurava tanto, nem cuidava dos porcos, mas sua autoridade se manifestava em pequenos gestos — um olhar, um aceno, um gesto de aprovação ou correção.

No dia de sua morte, um verão abafado de 1952, a família se reuniu inteira no terreno. Ninguém chorou alto. Não era preciso. Sua ausência se impunha com uma solenidade silenciosa, como o fim de uma colheita abundante.

Herdeiros do Silêncio

Com a partida de Marianna, Rosina assumiu o centro da casa. Já velha, sabia que a sua missão era diferente: preservar. Os filhos e netos dos Bellò se espalharam pelo interior paulista, muitos se urbanizaram, alguns se tornaram professores, outros comerciantes. Mas o nome resistia.

Na casa original, as paredes foram reforçadas, o forno de barro mantido. As árvores frutíferas plantadas por Marianna ainda davam sombra às novas gerações. O velho caderno de Enrico foi descoberto por um bisneto curioso, que se tornaria historiador e usaria aquelas anotações como base para um livro sobre imigração italiana no Brasil.

Na lápide do casal, sob a figueira que crescia firme, uma frase gravada por Rosina resumia tudo o que haviam vivido:

“Radise che no se spaca — solo cámbia tera.”


Nota do Autor

A história que o leitor tem em mãos é uma obra de ficção histórica, construída com base em um fragmento autêntico da vida de emigrantes italianos que, como milhares de outros, cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de terra, trabalho e um futuro menos incerto.

O texto se inspira livremente em uma carta escrita por um imigrante vêneto e preservada nos arquivos públicos do interior paulista. Nesse testemunho silencioso, revelam-se os traços de uma jornada marcada por perdas profundas, resistência cotidiana e uma fé obstinada no valor do esforço.

Embora os personagens desta narrativa — Enrico e Marianna Bellò, seus filhos e descendentes — sejam fictícios, suas vivências ecoam as experiências reais descritas na carta: a travessia atlântica, o luto por filhos perdidos, os anos de trabalho duro nas fazendas de café e, por fim, o triunfo discreto da terra conquistada com suor e perseverança.

A escolha por evitar diálogos é intencional. O silêncio, que permeia esta narrativa, busca refletir o modo como tantos desses homens e mulheres viveram: com dignidade contida, gestos firmes e palavras medidas. Suas histórias foram escritas mais com as mãos do que com a voz.

Esta obra é dedicada a todos os que partiram sem promessa de retorno, levando consigo apenas a memória dos que ficaram — e semeando, em solo estranho, as raízes do que viria a ser um novo lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta


quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta


Lorenzo Beledetti – Un Orisonte ‘Oltre el Mar

 


Lorenzo Beledetti – Un Orisonte ‘Oltre el Mar

Quande Lorenzo Beledetti lu el ze passà via da ‘sto mondo, in na sera calda del 1911, l’ùltima roba che el ga sentì la ze stà el fìscio grosso d’un treno che ‘ndava via da la stassion lì visin. El son el ze passà par la fenestra verta e el si ga smissià con l’odor de tera bagnà che vegniva da l’orto. Za dèbole, el ze lassà portar da la memòria. No de la malatia che lo consumava, ma de ´na vita che la zera scominsià a miliaia de chilometri da là, in un paeseto del Piemonte, ndove le vigne le se ciapava forte ai coli, come se le gavesse paura de cascar zo in val.

Nassù in 1844, Lorenzo el ga cressù in Osasco, in Piemonte, un grupeto de stradete strete, case de piera e campi divisi da muri bassi. L’inverno, seco e taliente, obligava la famèia a stà quasi rintanada, e l’istà el zera tempo de laorar sensa fin in vigneti e campi de formento. Da zòvene, el ga imparà dal pare el mestier de marangon, ma la mancansa de comission e el peso de le tasse rendeva la vita dura.

Le stòrie del Brasile le rivava prima par boca de viandanti che passava par la fiera, dopo par le lètare inzalì mandà da conosenti che gavea traversà el mar. Se parlava de tere larghe, fiumi grossi e sità che se ‘ndava formandose intorno a le ferovie. La resolussion de ‘ndar via la ze stà fata sensa gran parola, dopo la vendita d’un peso de tera e de atresi. A mità del 1871, Lorenzo lu  el ze si imbarcà a Genova in un vapore che portava contadin, operài, famèe e soni.

El viaio el ze stà longo, segnà da febri che se spargeva tra i passegieri e da la monotonia rota solo da tempeste che sbateva el navio come un zogàtolo. Quando el ze rivà al porto de Santos, l’ària ùmida e pesà ghe paré quasi sòlida. Lu el ze ´ndà verso l’interno, mandà a Piracicaba, ndove el ga laorà a far baraconi e ponti de legno par portar via la produssion agrìcola.

Par pì de ´na dècada, el ze passà tra vàrie sità de l’interno paulista — Rio Claro, Itu, Jundiaí — sempre drento a laori ligà a la crèssita de le ferovie. ‘Sto laor de giro ghe ga dado do robe pressiose: qualche soldo e na conossensa profonda de le region che se svilupava pì in freta. La zera ‘sta vista svèia che, in 1885, ghe ga fato meter via i so sparagni in na pìcola proprietà visin de la linea ferata de Sorocaba, a quìndese chilometri de la capital.

El posto el gavea poche costrussion: na casa de taipa, un paiol e un forno rùstego par seràmica. Poco a poco, Lorenzo el ga ingrandì la proprietà, comprando tere visin. Invece de far un ingegno de sùcaro, el ga scielto de piantar cafè, che el scominsiava a diventar na forsa granda de l’economia paulista. Lu el ga piantà anca morari par el crésser del baco-da-seda, na scomessa ardita che ghe portà curiosità ´nte la zona.

In 1889, za ben sistemà, lu el ga mandà a ciamar la so fiola e el zenero par vègnere viver con lu. El zenero, bravo ´nte le robe de comèrssio, el ze diventà sòcio in na pìcola fàbrica de matoni de seràmica. Al prinssìpio del novo sècolo, lori si ga messo in sossietà con un comerssiante luso-brasilian, Manuel Vieira, par modernisar la produssion. Lori i ga scominsià a far matoni idràulici e blochi de teracota, che i forniva a le òpere de le sità visin.

La proprietà, che adesso se ciamava Fazenda Nova Osasco, la ze diventà un nùcleo de atività. Lorenzo el ga tirà sù galponi, el ga fato un pìcolo molin par macinar formenton e lu el ga costruì case par i laoranti. El si ga impegnà a far orti comunitari e, par fermar le piovane forti che vegniva da sù de la ferovia, el ga piantà file de eucalipti. No ghe ze volù tanto tempo che, intorno a la stassion nova e ingrandìa, el ze nassù un paeseto con el so comèrssio.

No contento de se ocupar solo de le robe de negòssi, Lorenzo el ga pagà par far na capela e el ga aiutà a mantegner na scola par i fiòi de imigranti. Lu el ga fato sù anca un sistema de prèstiti informai a contadin apena rivà, permetendo a tanti de se meter in piè con dignità.

Da vècio, ghe piaseva vardar da la veranda de so casa el movimento dei vagon, sentendose parte de qualcosa de pì grande de lu. El vardava ´ntel treno la metàfora de la so vita: un camin che no tornava mai indrio, sempre avanti sù binari sicuri verso destin che no se conossea.

Quando lu el ze morto, ´ntel 1911, el ga lassà no solo tere e imprese, ma anca un quartier che continuava a cresser fin a diventar sità. Incòi, l’Osasco brasilian la bate forte come sentro urbano, ma la porta ancora, ´nte le so ferovie e ´nte le so strade, el segno silensioso d’un omo che el ga traversà el mar par costruir, piera sora piera, un orisonte oltre el mar.

Nota de l’Autor

La stòria de Lorenzo Beledetti no la ze mica solo la stòria d’un omo che el ga traversà el mar; la ze anca el ritrato de mile vite anónime che, come la so, le ga segnà in silénsio el Brasile che conossemo incòi. Par contar ‘sta stòria, no go volù solo meter in fila date, posti e fati. Mi go volù far rivar el respiro umano drìo ogni decision, la solitùdine de le partense, la speransa che stava drento un baule e el laor duro, ripetù zorno dopo zorno, sensa gnanca un sicuro prémio.

Lorenzo el ze un personaio de fantasia, ma la so essensa la ze vera. La ze fata con pesi de lètare, memòria de famèia, registri stòrici e stòrie contàe a canto al fogo. La ze un mestura che mete insieme el coraio del contadin, la vista lunga del imprenditor e la generosità de chi sa che el futuro se fa tuti insieme.

Scrivendo de lu, me son sentì caminar a fianco de tanti imigranti che, quando i sbarcava in porti lontani, i portava con lori no solo strumenti, ma anca tradission, modi de parlar, ricete, gesti e valori che se mescolava con la tera brasilian. In ogni ato de Lorenzo — che sia piantar un eucalipto par fermar l’aqua, far na capela o dar na man a un visin — ghe ze l’eco de un spìrito comunitàrio che no se perde con el tempo.

Par i dessendenti de ‘sti imigranti, che incòi vive in sità construì sora le fondamenta de stòrie come quela de Lorenzo, el me invita de guardar indrìo con orgòio. No come chi serca glòria, ma come chi capisse che la vera eredità la ze fata de laor silensioso, resistensa e amor par el pròssimo.

Che sta stòria no sia solo da leser: che la sia un tornar a casa. Che, voltando ogni pàgina, ti possa sentir l’odor de tera bagnà, el fìscio lontan d’un treno, e capir che, in qualche maniera, sto orisonte oltre el mar el ze anca el to.

Dr. Piazzetta