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domingo, 26 de outubro de 2025

O Destino de Matteo Zanforlin


O Destino de Matteo Zanforlin

Da pequena vila de Arsego aos cafezais da Fazenda Encruzilhada

No inverno de 1889, Matteo Zanforlin deixou para trás a pequena localidade de Arsego, no município de San Giorgio delle Pertiche, província de Pádua. Viúvo jovem, trazia consigo a filha Giuseppina, de apenas dez anos, e partia em companhia de alguns conterrâneos — famílias do mesmo Veneto que, como ele, não conseguiam mais vislumbrar um futuro nos campos áridos e já esgotados de sua terra natal. A promessa de uma vida nova no Brasil ecoava pelas vilas do interior, com cartazes e agentes anunciando terras férteis e trabalho abundante.

O peso da decisão de partir fora imenso. Matteo atravessara noites em claro, dividido entre o apego às raízes e a esperança de um recomeço. Na praça da aldeia, olhara pela última vez para o campanário da igreja de Arsego erguendo-se contra o céu cinzento do inverno. Aquele som dos pequenos sinos, tão familiar, ecoava agora como uma despedida solene. Ao subir na carroça que o levaria até a estação ferroviária, sentiu que arrancava de si não apenas as lembranças da juventude, mas séculos de vida enraizada naquela terra.

A viagem pelo oceano foi longa e tormentosa. A travessia no porão úmido e escuro de um navio a vapor abarrotado parecia não ter fim. O balanço incessante das ondas misturava-se ao choro das crianças, o som repetitivo das orações e ao gemido dos enfermos. O cheiro de mofo, suor de corpos mal lavados, vômito outros dejectos humanos impregnava o ar. Em cada rosto marcado pelo desalento, Matteo reconhecia o reflexo de sua própria dúvida: teria feito a escolha certa? O mar, com sua vastidão sombria, parecia zombar da esperança frágil que os impelia para o outro lado do oceano. Ainda assim, a fé em algo melhor sustentava cada respiração e cada noite de vigília.

Após semanas intermináveis, a América finalmente surgiu diante deles, com suas costas verdejantes e uma luz diferente daquela que conheciam no Vêneto. O desembarque em Santos foi marcado pelo tumulto, pela pressa dos funcionários e pela estranheza da nova língua que ecoava por todos os lados. Não havia tempo para contemplar o novo mundo; logo foram conduzidos ao trem que os levaria ao interior da província de São Paulo. A cada quilômetro vencido, as florestas se abriam, revelando um cenário grandioso e hostil ao mesmo tempo, um mundo de cores fortes e sons desconhecidos.

O destino era uma grande fazenda de café chamada Encruzilhada, situada nas proximidades da Estação Gabiroba — uma região que mais tarde faria parte do município de Araras. Acreditava-se que ali seria possível colher os frutos de uma vida mais próspera, com pouco esforço e abundância garantida. Contudo, a realidade que encontraram era muito distinta da promessa.

O trabalho pesado começava ainda antes do sol nascer precedido pelo penetrante som de um sino na sede da fazenda. Homens, mulheres e crianças se dirigiam aos cafezais, e sob o calor abrasador passavam o dia limpando a terra entre as fileiras de pés de café, outras vezes na safra, colhendo grãos vermelhos que, à noite, pareciam multiplicar-se nas mãos já feridas. O regime era exaustivo e o corpo logo cedia ao cansaço. Os pés inchavam, as pernas doíam e os joelhos falhavam na lida diária. Muitos companheiros de Matteo caíam enfermos, vítimas da fadiga, das febres tropicais e da ausência de médicos ou remédios.

O alimento era escasso e de qualidade pobre, servindo mais para manter o corpo de pé do que para lhe dar força. Os imigrantes, que haviam sido atraídos pela promessa de abundância, se surpreendiam ao perceber que, naquela terra de florestas exuberantes e solo fértil, a comida carecia da substância que conheciam na Itália. A carne era rara e, quando aparecia, vinha dura e mal conservada. O pão, feito às pressas em fornos improvisados, esfarelava nas mãos e parecia mais serragem do que alimento. Quase sempre os pratos se resumiam a feijões encharcados e a uma farinha grosseira que não saciava, mas pesava no estômago como pedra.

Matteo sentia a ausência do vinho tinto que aquecia as noites frias em Arsego e da polenta dourada que se erguia fumegante na mesa de sua aldeia. Aqueles sabores carregavam memórias de partilha, de festas do vilarejo, de colheitas outrora fartas e da sensação de pertencimento. Na Encruzilhada, a cada refeição insípida, a saudade se transformava em dor. Não era apenas o corpo que definhava; era também o espírito, privado daquilo que dava sentido à vida camponesa.

A situação se agravava pelo ambiente em que viviam. As famílias foram instaladas em longos barracões de madeira escura, velhas construções que, pouco tempo antes, haviam servido como senzalas. A libertação dos escravizados ainda era recente, e a sombra daquele passado impregnava o ar. As paredes rústicas guardavam um silêncio pesado, como se carregassem os lamentos de quem ali fora aprisionado. Agora, abrigavam homens e mulheres livres, mas não havia dignidade naquelas moradias coletivas, onde cada família recebia apenas um espaço estreito, dividido por tábuas frágeis que pouco protegiam da umidade ou dos olhares alheios.

Os capatazes, acostumados durante toda a vida a lidar com escravos, não sabiam como tratar trabalhadores livres. Para eles, a mudança era apenas de nome: já não podiam usar o chicote, mas mantinham a mesma rigidez implacável no comando. O tom de voz era autoritário, os gestos secos, os olhos sempre vigilantes. A disciplina era imposta com gritos e humilhações, e qualquer sinal de cansaço ou revolta era encarado como insubordinação. Não havia compreensão para a fadiga dos recém-chegados, nem espaço para diálogo ou negociação.

Essa falta de habilidade em lidar com homens que não eram mais propriedade, mas assalariados, criava tensões diárias. O colonato, vendido como contrato justo, na prática revelava-se uma armadilha: trabalho excessivo, pagamento incerto, dívidas impostas pelas próprias compras no armazém da fazenda. Matteo percebia que, no fundo, continuava preso a um sistema que se alimentava da exaustão alheia. Só havia mudado a linguagem; a opressão era a mesma.

E, quando a noite caía sobre a fazenda, o silêncio dos barracões era quebrado apenas pelo murmúrio das preces e pelo choro contido de mulheres e crianças. Matteo, deitado sobre um catre duro e estreito, olhava para a filha Giuseppina adormecida e se perguntava se o futuro que havia sonhado para ela não estaria sendo enterrado ali, sob o peso daquela nova escravidão disfarçada.

Ainda assim, havia um fio de esperança. A colheita do café, embora árdua, oferecia a possibilidade de juntar algum dinheiro. Sonhava-se com a compra de um pequeno pedaço de terra, onde se poderia plantar para si próprio e escapar da escravidão disfarçada que pesava sobre os colonos. Matteo acreditava que, se resistisse por alguns anos, poderia garantir à filha um futuro melhor do que aquele que a Itália lhe negara.

As notícias que circulavam entre os imigrantes eram sombrias. Muitos que haviam desembarcado antes dele em outras regiões já falavam de desilusão e miséria. Mesmo assim, a vida na fazenda Encruzilhada prosseguia, marcada por dias iguais, de suor e silêncio, de saudade e resiliência. Entre os conterrâneos que haviam partido de Arsego, alguns caíam no desespero, outros se apegavam à fé. Matteo, por sua vez, sustentava-se na lembrança da terra natal e no rosto frágil de Giuseppina, que se tornara sua única razão para suportar o peso daquele destino.

Na América que prometia riqueza e fortuna, Matteo encontrou apenas o peso do trabalho duro, a incerteza diária e a exaustão que o tempo parecia não dissipar. As promessas de abundância se desfizeram sob o sol impiedoso e nas mãos calejadas, mas dentro dele permaneceu uma obstinação silenciosa, feita de raízes invisíveis e profundas. Cada grão de café colhido, cada gota de suor derramada sobre a terra estranha, era para ele uma semente de futuro — um investimento mudo em dias que talvez jamais veria, mas que acreditava poder oferecer à filha e às gerações que viriam.

Os anos se sucederam, e a paisagem da fazenda Encruzilhada se entranhou em sua memória tanto quanto os campos de trigo e videiras de Arsego. As madrugadas em que se erguia antes do canto do galo, os barracões sombrios que guardavam famílias inteiras, o olhar severo dos capatazes que não sabiam falar a língua da liberdade — tudo isso se tornou o cenário permanente de sua existência. Mas Matteo nunca deixou que a dureza o quebrasse por completo. No íntimo, conservava a lembrança da aldeia vêneta como um farol distante, um pedaço de terra que continuava a guiá-lo mesmo estando a um oceano de distância.

Foi nesse choque entre memória e realidade, entre sonho e sacrifício, que Matteo Zanforlin escreveu sua vida. Não mais nas pedras gastas das estreitas vielas de Arsego, onde gerações de seus antepassados haviam vivido, mas nos vastos cafezais entorno da Estação Gabiroba, onde o verde intenso das plantações escondia a história de suor e de lágrimas. Ali, lado a lado com milhares de outros imigrantes, ele transformou o próprio sofrimento em herança.

Essa herança não era feita de riquezas ou de terras conquistadas, mas de algo mais duradouro: a coragem de resistir, a perseverança diante do impossível e a esperança, sempre renascida, de que o sacrifício de uma geração se converteria em liberdade e prosperidade para as seguintes.

E assim, na encruzilhada entre dois mundos, Matteo Zanforlin deixou marcado o testemunho de sua vida: que mesmo no solo mais áspero é possível lançar sementes que florescem em futuro.


Nota do Autor

Os nomes que aqui aparecem foram cuidadosamente alterados para preservar o anonimato dos personagens. No entanto, a história que o leitor acaba de conhecer é verdadeira. Ela nasceu das palavras registradas em cartas de imigrantes e de documentos oficiais das antigas fazendas de café, preservados com rigor e respeito pelo Museu da Imigração do Estado de São Paulo. São fragmentos de vida que atravessaram mais de um século e ainda hoje ecoam como testemunhos de coragem, sacrifício e esperança.

Este trecho faz parte de uma obra maior, que carrega o mesmo título, escrita com a intenção de dar voz à epopeia da grande imigração italiana no Brasil. Não se trata apenas de recordar um passado distante, mas de iluminar o caminho de milhares de homens, mulheres e crianças que trocaram a pátria conhecida pela promessa incerta de um novo mundo. Eles ergueram a própria existência sobre a dor da separação, a dureza do trabalho e a obstinação em oferecer um futuro melhor aos seus descendentes.

Contar essas histórias é não permitir que o silêncio apague a memória. É reconhecer que, nos cafezais do interior paulista, não se colhiam apenas grãos, mas se forjava uma identidade que moldaria para sempre o Brasil.

Dr. Piazzetta



terça-feira, 30 de setembro de 2025

A Travessia do Destino

 


A Travessia do Destino


O vento frio do outono soprava com força sobre a pequena vila de Montegrotto Terme, na região de Pádua, levantando folhas secas e espalhando o cheiro terroso característico da estação. As montanhas ao fundo estavam encobertas por uma névoa densa, que parecia abafar qualquer sinal de vida além do vilarejo. Enrico Bianchi caminhava apressado pela estrada de paralelepípedos, a capa de lã surrada protegendo-o do vento cortante. Em suas mãos calejadas, segurava contra o peito a carta que acabara de receber, o papel áspero e amarelado mais precioso do que ouro. 
Ele entrou em sua modesta casa de pedra, fechando a porta contra a rajada insistente. O interior era escuro e austero, iluminado apenas pela luz trêmula de uma vela sobre a mesa. Enrico se sentou pesadamente no banco de madeira ao lado do fogão apagado, as mãos tremendo não pelo frio, mas pela emoção. A carta era de Antonella, sua esposa, que havia partido para o Brasil dois anos antes, deixando-o com um misto de saudade e incerteza.
Desdobrou o papel com cuidado, quase reverência, enquanto sua mente já antecipava as palavras que tanto ansiava por ler. Cada linha escrita por Antonella parecia carregada de sentimentos que transcenderam o oceano. Ela descrevia sua rotina extenuante na fábrica têxtil de São Paulo, as longas horas de trabalho que machucavam suas mãos, o ruído constante das máquinas, mas também a esperança que alimentava seu coração. “Enrico,” ela escrevia em uma caligrafia um pouco trêmula, “aqui é difícil, mas há oportunidades. Venha. Eu imploro, venha. Juntos, podemos construir algo.”
Ele releu aquelas linhas várias vezes, sentindo a angústia e a determinação da esposa pulsarem em cada palavra. Ao redor dele, a casa parecia mais fria e silenciosa do que nunca, cada sombra no canto da sala reforçando a solidão que ele suportava. Enrico levantou-se e foi até uma pequena caixa de madeira em cima do armário. Abriu-a com cuidado, revelando um punhado de moedas e uma foto desbotada do casamento. Observou a imagem por um longo momento, como se buscasse nela uma confirmação do que já sabia ser inevitável.
O vento lá fora uivava como se quisesse desafiar sua decisão, mas dentro de Enrico, algo havia mudado. A saudade, o peso das responsabilidades e a promessa de uma nova vida se misturavam em uma tempestade de emoções. Ele sabia que partir para o Brasil seria arriscado. Ouvira histórias de compatriotas que haviam enfrentado dificuldades inimagináveis nas terras distantes, mas também histórias de sucesso e liberdade.
Enrico suspirou, dobrando cuidadosamente a carta e a guardando junto às moedas na caixa. Olhou pela janela embaçada, para a noite que se espalhava como um manto sobre Montegrotto Terme. Era hora de deixar o passado para trás e seguir o chamado de Antonella, mesmo que isso significasse desafiar o desconhecido.
Antonella escrevia com a urgência de quem carrega um peso maior do que pode suportar. Suas palavras transbordavam os desafios enfrentados no Novo Mundo: jornadas de trabalho extenuantes que começavam antes do amanhecer e terminavam quando o céu já se tingia de negro, os gritos das máquinas a ecoarem em sua mente mesmo após o silêncio da noite se instalar. A saudade de casa era uma constante, uma sombra que pairava sobre seus dias e a esmagava como um fardo invisível. Mais que tudo, a solidão a consumia – uma solidão que nenhuma companhia superficial poderia preencher, porque o vazio vinha da ausência de Enrico.
No entanto, entre as linhas sombrias de sua carta, havia também faíscas de esperança. Antonella relatava, com uma pitada de orgulho, que conseguira alugar um pequeno quarto em uma casa de imigrantes. Não era muito – as paredes eram finas e frias, e o teto rangia nas noites de tempestade – mas era seu refúgio. Ali, no estreito espaço que agora chamava de lar, ela juntava os pedaços de uma nova vida. Cada centavo que sobrava, mesmo que poucos, era cuidadosamente guardado, como sementes de uma árvore que ainda precisavam de tempo e sol para florescer. Cada economia era um tijolo na construção de um futuro que ela sonhava dividir com Enrico.
“Enrico,” escreveu ela, as letras fortes como se pressionadas pela emoção, “aqui há dor, mas também há oportunidade. Preciso de você. Juntos, podemos enfrentar qualquer coisa. Venha o quanto antes.”
A última frase, sublinhada em traços firmes, parecia gritar no silêncio da noite. Antonella podia imaginá-lo lendo aquelas palavras sob a luz vacilante de uma vela, na pequena casa de Montegrotto Terme. Sabia que, mesmo à distância, Enrico sentiria o mesmo aperto no peito que ela sentira ao escrevê-las. Não era apenas um pedido – era um apelo, um clamor de alguém que resistia, mas não podia resistir sozinha por muito mais tempo.
Enrico sabia que a decisão era inevitável, mas cada pensamento sobre ela parecia uma faca cortando sua alma em pedaços. Aquele pedaço de terra que tanto amava e odiava ao mesmo tempo era mais que um lar; era a única herança tangível que seu pai, um homem de poucas palavras e muitas exigências, havia deixado. Enrico recordava com clareza as manhãs em que o acompanhava pelos vinhedos, o sol ainda fraco lançando sombras longas sobre as fileiras ordenadas de videiras. “A terra é tudo o que temos,” o pai dizia com um olhar que parecia pesar mais que as palavras. Agora, anos após sua morte, essas palavras ecoavam como uma sentença que ele não podia cumprir.
Os vinhedos eram sua rotina e seu fardo. O trabalho começava com o primeiro raiar da luz e terminava bem depois que o sol desaparecia por trás das montanhas, deixando-o exausto, com as mãos calejadas e o corpo latejando. E, apesar de toda aquela dedicação, o que ele ganhava mal dava para sustentar a mãe viúva, que começava a perder a força e a saúde, e os irmãos mais novos, que ainda precisavam de sapatos novos e sonhos simples que pareciam impossíveis.
A ideia de vender a velha mula, sua companheira fiel e indispensável ao trabalho no campo, era como arrancar um pedaço de si mesmo. Aquela mula, com seus olhos cansados e passos lentos, tinha visto mais temporadas de colheita do que ele podia contar. Sem ela, a pequena propriedade seria ainda mais difícil de manejar. Mas o dinheiro da venda seria o primeiro passo para comprar uma passagem rumo ao Brasil e atender ao chamado desesperado de Antonella.
Pior que a venda da mula, porém, era a ideia de deixar sua família para trás. Como poderiam sobreviver sem ele? Enrico sabia que sua mãe tentaria esconder as lágrimas, segurando-se em sua eterna resiliência, mas os olhos dela, que sempre refletiam preocupação, o assombrariam mesmo a milhares de quilômetros de distância. Ele podia ouvir a voz do irmão mais velho, Matteo, questionando: “E nós? Como vamos cuidar disso tudo sem você aqui?”
Enrico não tinha respostas fáceis, mas também sabia que ficar significava apenas sobreviver, enquanto partir oferecia a possibilidade de uma vida diferente, talvez até melhor. Era um salto no escuro, um ato de fé em si mesmo e em Antonella. Ele fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o aroma adocicado das videiras. Pela primeira vez, aquele cheiro parecia amargo.
No amanhecer seguinte, Enrico levantou-se antes mesmo do primeiro canto do galo, a luz tênue da madrugada mal iluminando o pequeno quarto onde dormia. Ele vestiu suas roupas gastas, cada peça impregnada pelo cheiro de terra e trabalho árduo, e lançou um último olhar para o canto do estábulo onde a velha mula descansava. O animal levantou a cabeça ao som de seus passos, os olhos grandes e melancólicos encontrando os dele por um instante que parecia durar uma eternidade. “Desculpe, velha amiga,” murmurou, a voz carregada de emoção. Ele sabia que aquelas seriam as últimas palavras que trocariam.
A caminhada até a feira da cidade foi longa e solitária. O vento frio da manhã cortava seu rosto, mas Enrico mal sentia; sua mente estava tomada pelos passos que precisava dar e pelas incertezas do futuro. Ao chegar, o burburinho da feira, com seus gritos de vendedores e o som de carroças, o envolveu como uma cacofonia distante. Ele puxou a mula até um mercador robusto e de rosto severo que avaliou o animal com um olhar crítico e desapegado.
A negociação foi breve e dura. O mercador apontou os ossos visíveis da velha mula, a lentidão de seus movimentos, e ofereceu uma soma que mal parecia justa. Enrico insistiu, cada palavra um esforço para proteger a dignidade do animal que havia sido seu companheiro fiel. No final, conseguiu o suficiente apenas para adiantar a passagem, uma pequena pilha de moedas que pesava mais que qualquer carga que já havia carregado.
Com o coração apertado, ele se despediu da mula, que foi levada sem entender que nunca mais o veria. Enquanto a figura do animal desaparecia na multidão, Enrico apertou o punhado de moedas na mão, sentindo o peso e o valor daquele pequeno tesouro que simbolizava sua esperança e coragem. Respirou fundo, o ar fresco da manhã misturava-se ao cheiro da terra molhada, e ele iniciou sua caminhada rumo à estação de trem. Cada passo ecoava seu coração acelerado, misturando ansiedade e determinação.
O destino era Gênova, grande e movimentada, porto de sonhos e despedidas, onde ele esperava encontrar a próxima peça do quebra-cabeça que compunha sua jornada. Enrico imaginava o trem cortando as colinas, levando-o para longe da pequena vila que deixava para trás, com suas ruas silenciosas e rostos conhecidos.
Na estação, o apito do trem soou como um chamado para o futuro. Ele embarcou, observando pela janela o cenário que se transformava rapidamente, enquanto os trilhos o conduziam a Gênova — a porta de entrada para o mundo além-mar.
Chegando ao porto, Enrico foi tomado pela grandiosidade dos navios que descansavam à espera dos passageiros. O vapor que o levaria cruzar o oceano já estava ancorado, suas chaminés soltando fumaça que misturava-se ao cheiro salgado do mar. A multidão de imigrantes, rostos marcados pela incerteza e esperança, formava um mar humano de sonhos compartilhados.
Com o coração apertado, Enrico subiu a escada do navio, deixando para trás não só a terra firme, mas também sua antiga vida. A viagem seria longa e difícil, mas cada passo o aproximava de um novo começo — de uma chance para construir uma história diferente, longe das dificuldades que o haviam impulsionado a partir.
Enquanto o vapor partia, cortando as ondas com força e determinação, Enrico olhou para trás uma última vez, sentindo o peso da despedida, mas também a leveza da esperança que carregava para o futuro.
Poucas semanas depois, o dia da partida finalmente chegou, carregado de uma mistura inquietante de excitação e desespero. No porto de Gênova, Enrico se viu cercado por uma massa de pessoas, todas movidas pelo mesmo desejo: escapar da pobreza e buscar algo melhor, ainda que o que as aguardava fosse incerto. O porto era um caleidoscópio de vozes em diferentes dialetos italianos, gritos de carregadores e o som metálico das correntes que prendiam o enorme navio ao cais. O cheiro de sal, peixe e óleo de máquinas pairava no ar, misturando-se à ansiedade que parecia quase palpável.
Enrico segurava com firmeza a alça de sua mala de madeira, um objeto simples, mas que carregava todo o pouco que possuía: algumas roupas remendadas, um pedaço de pão embrulhado em tecido, e o terço que sua mãe lhe entregara na despedida. “Reze, meu filho,” ela havia dito, segurando suas mãos com força como se quisesse transferir a ele uma parte de sua própria fé. “Isso vai protegê-lo.” Suas palavras ecoavam na mente de Enrico enquanto ele observava o enorme navio à sua frente, uma estrutura que parecia mais uma prisão flutuante do que o veículo de sua libertação.
O embarque foi uma confusão caótica de empurrões e gritos. Guardas verificavam documentos e passagens com olhares indiferentes, enquanto famílias se agarravam umas às outras, temendo a separação. Enrico finalmente encontrou seu lugar no porão do navio, um espaço apertado e abafado onde dezenas de pessoas já se amontoavam. Os colchões improvisados eram finos e sujos, dispostos lado a lado sem qualquer privacidade. O ar era pesado, saturado pelo cheiro de sal, suor e desespero.
A viagem, que deveria ser uma travessia de esperança, logo se revelou um verdadeiro teste de resistência. O enjoo veio no primeiro dia, quando o navio começou a balançar violentamente. Enrico sentia o estômago revirar enquanto o som das ondas chocando-se contra o casco ressoava como um tambor incessante. A fome não tardou a aparecer. As rações distribuídas eram escassas e muitas vezes azedas, e Enrico aprendia a racionar até os menores pedaços de pão.
Os dias se arrastavam, indistinguíveis uns dos outros, e a escuridão do porão era quebrada apenas pela luz fraca que se infiltrava por pequenas aberturas. A falta de higiene logo trouxe outro inimigo: as doenças. Durante a terceira semana, uma febre começou a se espalhar, silenciosa e implacável. Os sussurros temerosos de um canto do porão anunciavam mais um doente, e as lamúrias de dor tornavam-se cada vez mais frequentes.
Uma manhã, Enrico acordou ao som de um grito. Ele se virou para ver uma jovem mãe abraçando o corpo imóvel de sua filha pequena. O rosto da mulher estava contorcido de dor enquanto soluçava, o som ecoando pelo espaço sufocante como uma lâmina cortando o silêncio. Enrico permaneceu imóvel, sentindo-se impotente. Não havia nada que pudesse fazer, nada que qualquer um ali pudesse fazer. O corpo da criança foi levado pelos tripulantes sem cerimônia, e a mãe ficou sentada, abraçando o vazio, enquanto os outros passageiros desviavam o olhar, tomados por medo e resignação.
Enrico fechou os olhos, tentando afastar o desespero que ameaçava dominá-lo. Ele apertou o terço em sua mão, murmurando uma prece em voz baixa, as palavras saindo como um fio tênue de esperança. Sua mente se agarrou à imagem de Antonella, ao sorriso dela, às palavras de sua carta: “Enrico, preciso de você aqui. Venha o quanto antes.” Aquela promessa de um reencontro, de uma nova vida, era a única coisa que o mantinha de pé.
Enquanto o navio avançava pelo vasto e impiedoso oceano, Enrico aprendeu a esperar. Cada dia que passava era um pequeno triunfo, uma vitória contra a fome, a febre e o medo. Ele sabia que o pior ainda poderia estar por vir, mas sua determinação permanecia intacta. Cada onda que batia no casco do navio era um passo mais perto de Antonella, e isso bastava para fazê-lo resistir.
Quando o navio finalmente atracou no porto de Santos, Enrico sentiu um misto de alívio e nervosismo invadirem seu corpo. O movimento abrupto da embarcação ao encostar no cais fez com que ele quase perdesse o equilíbrio, suas pernas enfraquecidas pela longa travessia hesitando ao primeiro contato com terra firme. Ele respirou fundo, mas o ar parecia pesado, abafado por um calor sufocante que contrastava brutalmente com o clima ameno que deixara em Montegrotto Terme. Um aroma doce e penetrante dominava o ambiente — o cheiro de café, desconhecido e ao mesmo tempo promissor, como um prenúncio de novas possibilidades.
O cais fervilhava de vida. Marinheiros gritavam ordens, guindastes erguiam caixotes pesados, e a multidão se movia como um mar agitado, cada rosto carregando histórias de chegadas, partidas e reencontros. Enrico apertava sua mala de madeira, que agora parecia mais pesada, não pelos objetos em seu interior, mas pelo peso das expectativas e do futuro incerto. Ele deu um passo hesitante em direção à multidão, os olhos percorrendo os rostos ao redor, ansioso, quase temeroso, de encontrar aquele que procurava.
Então ele a viu. Antonella estava parada mais adiante, cercada por um grupo de trabalhadores e curiosos que observavam o desembarque. Enrico precisou de um momento para reconhecê-la completamente. Ela estava mais magra, os traços do rosto marcados por um cansaço que a distância não havia revelado em suas cartas. As mãos dela, cruzadas diante do corpo, exibiam calos e marcas do trabalho duro, um testemunho silencioso das batalhas que enfrentara sozinha. Mas havia algo que permanecia imutável: os olhos. Os olhos de Antonella brilhavam com uma intensidade que fazia todo o resto desaparecer, um misto de alívio, saudade e emoção que parecia iluminar o ambiente ao seu redor.
Enrico largou a mala no chão por um instante, incapaz de conter o impulso de se mover mais rápido em sua direção. Ele atravessou o cais como se o mundo ao redor tivesse silenciado, seus passos firmes e decididos, movidos pela força de tudo o que haviam superado para chegar àquele momento. Quando finalmente estava diante dela, Antonella abriu um sorriso trêmulo, e antes que qualquer palavra pudesse ser dita, jogou-se em seus braços.
O abraço foi apertado, quase desesperado, como se quisessem assegurar que o outro era real, que aquela cena não era um sonho. Enrico sentiu o cheiro dos cabelos dela, misturado ao suor e ao perfume do café ao redor, e foi tomado por uma sensação de pertencimento que não sentia há muito tempo. Ele murmurou o nome dela, uma, duas vezes, como se cada repetição fosse uma oração.
Antonella afastou-se ligeiramente, apenas o suficiente para olhar em seus olhos. “Você veio,” disse ela, a voz embargada pela emoção, mas cheia de alívio.
“Eu prometi, não prometi?” respondeu Enrico, segurando o rosto dela entre as mãos calejadas. Ele percebeu então que não importavam as dificuldades que enfrentariam a partir dali. Estavam juntos, e isso era tudo que precisavam para começar de novo.
Sem palavras, eles se abraçaram, como se o tempo que haviam passado separados finalmente se dissipasse naquele único instante. Não precisavam falar; o silêncio que os envolvia era mais eloquente do que qualquer palavra poderia ser. O abraço tinha a intensidade de uma ponte que reconectava duas vidas, atravessando o abismo de distância e dificuldades. Cada lágrima que rolava em seus rostos carregava um significado profundo, como se cada gota fosse uma promessa não dita de dias melhores, de um futuro construído juntos, um tijolo por vez.
Antonella, ainda com os olhos brilhando de emoção, puxou levemente o rosto de Enrico para o lado, encarando-o como se quisesse gravar aquela imagem em sua memória para sempre. Ela pegou a mão dele e a apertou com força, sua pele áspera encontrando o conforto inesperado de um toque familiar. “Vamos para casa,” disse ela com uma firmeza tranquila, mas inconfundível, que transmitia tanto determinação quanto consolo.
Enrico sentiu o peso das palavras dela ecoar em seu coração. “Casa.” Ele repetiu para si mesmo, saboreando a palavra como se fosse a primeira vez que a entendia de verdade. Não era um lugar, percebeu, mas um sentimento, um vínculo. Pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que realmente tinha um lar. Não era a vila em Montegrotto, não eram as terras que ele havia deixado para trás, mas sim aquele momento, aquela pessoa, aquela promessa compartilhada de construir algo novo em um lugar estrangeiro.
Antonella o guiou pelo cais, atravessando a confusão de estibadores, viajantes e vendedores que gritavam para oferecer suas mercadorias. As roupas de ambos estavam desgastadas, seus semblantes marcados pelas dificuldades enfrentadas, mas a maneira como caminhavam lado a lado, unidos, transparecia uma força que ninguém poderia quebrar.
Ao saírem do porto, o calor e o movimento caótico de Santos os envolveram. Carroças e bondes cruzavam as ruas estreitas, enquanto crianças corriam descalças e homens carregavam sacos de café nas costas. Enrico olhou ao redor, tentando absorver tudo, mas seus olhos sempre voltavam para Antonella, como se ela fosse sua bússola em um mundo tão diferente do que conhecia.
Ela o conduziu até uma pequena pensão nas proximidades, onde havia conseguido um quarto. Era simples, quase espartano, com paredes descascadas e móveis que rangiam ao menor movimento, mas Antonella parecia orgulhosa ao mostrar o espaço. “Não é muito,” disse ela, com um meio sorriso. “Mas é nosso ponto de partida.”
Enrico olhou ao redor e assentiu, um sorriso lento se formando em seus lábios. “É mais do que suficiente,” respondeu. Ele sabia que cada centímetro daquele lugar representava o esforço incansável de Antonella, e isso o fazia valorizar cada detalhe.
Naquela noite, enquanto se sentavam em uma pequena mesa de madeira para compartilhar uma refeição simples, Enrico percebeu que o verdadeiro desafio ainda estava por vir. Mas pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu uma calma dentro de si. Estavam juntos, e isso era o suficiente. Amanhã traria novas batalhas, mas hoje, naquele quarto modesto, eles tinham algo que nenhuma dificuldade poderia tirar: esperança.

Nota do Autor

Este conto, embora fruto da imaginação, é inspirado em eventos e experiências reais vividas por milhões de pessoas. Durante o século XIX e início do XX, a imigração tornou-se uma das mais profundas transformações sociais, redefinindo a vida de indivíduos e famílias que partiram de suas terras natais em busca de um futuro mais promissor.
A trajetória de Enrico e Antonella é uma criação literária, mas reflete de maneira fiel os desafios enfrentados por inúmeros imigrantes italianos que deixaram suas aldeias para se aventurar em terras distantes, como o Brasil. Eles abandonaram a familiaridade de suas vidas, muitas vezes precárias, movidos pelo desespero e pela esperança de encontrar melhores oportunidades.
Os episódios narrados neste conto — desde a despedida dolorosa, a dura travessia oceânica até a adaptação em um novo mundo — foram cuidadosamente embasados em registros históricos, cartas e relatos de descendentes de imigrantes. Esses elementos conferem autenticidade à narrativa, transformando-a em um tributo à coragem e resiliência de pessoas comuns que enfrentaram o desconhecido.
Meu objetivo ao contar esta história é mais do que entreter; é honrar o espírito indomável daqueles que ousaram recomeçar. Enrico e Antonella representam os sacrifícios, os sonhos e a força de tantos homens e mulheres que moldaram o Brasil e outros países com sua dedicação e trabalho árduo.
Que este conto sirva como uma janela para o passado, um convite à empatia e uma celebração da capacidade humana de superar adversidades em busca de dignidade, pertencimento e esperança.
Com respeito e admiração,

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta