Entre o Vêneto e o Café
A Vida de Giovanni Dal Molin
Giovanni Dal Molin nasceu em Quero, então uma pequena vila encravada entre os vales da província de Belluno onde o vento do Piave soprava com uma melancolia que parecia já anunciar as partidas. Filho de um trabalhador rural meeiro e de uma mãe de mãos calejadas pelo linho, crescera sob o peso de uma Itália recém-unificada, onde as promessas do novo Reino pareciam sempre se perder nas montanhas. No inverno de 1879, quando as nevadas se misturavam ao cheiro de fumaça das chaminés e ao eco das preces, Giovanni tomou a decisão que selaria o seu destino: partir. A fome que se alastrava pelas vilas do Vêneto não era apenas a falta de pão, mas principalmente a ausência de esperança. As colheitas haviam sido magras, a terra já não bastava, e os impostos do novo governo, somados às dívidas com os arrendatários, transformavam cada semente num peso morto.
Na pequena paróquia de São Girolamo Emiliani, o sino tocava com o mesmo ritmo dos séculos, indiferente à miséria dos homens. Giovanni olhou uma última vez para as montanhas, cobertas de neve, e percebeu que aquele branco não era pureza, mas esquecimento. Partiu levando consigo um pequeno saco de linho com algumas poucas roupas, pão seco, um rosário e uma carta do irmão mais velho, prometendo guardar o pedaço de terra familiar até o seu retorno — um retorno que, no fundo, ele sabia, jamais aconteceria. Como tantos de sua geração, deixava para trás a língua, o nome gravado nas pedras, e partia em direção a uma promessa abstrata chamada "Mèrica".
O porto de Gênova era uma confusão de vozes, línguas e cheiros. Milhares de corpos comprimidos em torno de velhos navios que mais pareciam carcaças flutuantes. Giovanni embarcou num vapor de segunda mão fretado por uma companhia italiana, que prometia passagem gratuita em troca de trabalho garantido nas fazendas do café do Brasil. As promessas eram abundantes e ilusórias: falavam em terra fértil, em casas brancas e em um salário justo. A realidade, porém, começava a se impor já no porão do navio. As profundezas escuras do navio, onde Giovanni alojado, era uma caverna imunda, úmida e fétida. Sentia-se ainda o cheiro forte de carvão que até pouco tempo o cargueiro transportava. O ar rarefeito também misturava o cheiro de óleo, vômito e outros dejectos humanos. Crianças choravam quase sem forças, mulheres escondiam pequenos terços e retratos dentro dos vestidos, homens tossiam até o sangue. A travessia durou trinta e cinco dias. Cada amanhecer era uma vitória sobre o traiçoeiro oceano.
Em certas madrugadas calmas de céu estrelado, com a devida permissão do comandante do navio, Giovanni subia ao convés e fitava o horizonte. O mar, revolto e cinzento, parecia zombar dos que o desafiavam. Era um exílio líquido, um ventre de ferro que engolia vidas e vomitava sobreviventes. Entre o som do motor e o ranger das tábuas, sob a pressão contínua das ondas, ele pensava no futuro. O Brasil era uma palavra que ainda não possuía forma. Diziam que havia sol o ano inteiro, árvores de café tão densas quanto as vinhas do Vêneto e uma terra vermelha, generosa. Mas os rumores também falavam em doenças, febres repentinas, serpentes peçonhentas e senhores de pele bronzeada que controlavam fazendas imensas com a mesma disciplina com que um capitão comanda um navio.
Quando o vapor atracou no porto de Santos, o ar úmido e quente atingiu-o como uma bofetada. A vegetação era de um verde brutal, o chão pulsava como se estivesse vivo. Giovanni foi conduzido de trem, junto a um grupo de compatriotas ansiosos e exaustos, rumo ao coração do interior paulista. A viagem serpenteava por paisagens completamente desconhecidas: vastos canaviais, pastagens intermináveis e pequenas vilas, pontuadas por igrejas de madeira. Pelas janelas do vagão, um mar de canaviais e cafezais se estendia até o horizonte, como se convidasse a adentrar o desconhecido. Ao final do percurso, seriam alocados em uma fazenda nas imediações de Ribeirão Preto, onde se esperava que transformassem a terra em sustento, trabalho e, talvez, em esperança — um futuro que surgia tão distante do Piave quanto do conforto das aldeias natalinas. A pequena estação, perdida entre campos de cana e nuvens de poeira avermelhada, marcava o ponto final da longa jornada iniciada do outro lado do oceano. O ar quente do interior paulista parecia vibrar sobre os trilhos, e o cheiro doce da cana recém-cortada misturava-se ao suor e à exaustão dos viajantes. Dali em diante, restavam ainda vinte quilômetros até a fazenda — um trecho de terra batida e ladeiras secas, que seria vencido a pé por alguns e em carroças rangentes por outros. O novo patrão enviara aqueles veículos para recolher seus futuros trabalhadores, e os animais avançavam devagar, como se também sentissem o peso da travessia. Cada passo levantava uma névoa de pó que se colava às roupas e ao rosto dos imigrantes, enquanto, ao longe, o sol declinava sobre o horizonte, dourando as lavouras e anunciando o começo de uma vida que ninguém ainda sabia como seria. Na chegada, o capataz brasileiro, montado num cavalo negro, leu os nomes dos recém-chegados. Cada homem recebeu um número, um barracão e uma enxada — como se, ao desembarcar, deixassem de ser pessoas para se tornarem peças de uma engrenagem invisível. O idioma era um muro intransponível, separando-os do mundo que agora os cercava. As ordens vinham em sons estranhos, secos, que nada lembravam o canto do vêneto ou o murmúrio das colinas de onde haviam partido. Entre eles e os feitores, não havia diálogo possível: apenas gestos, apontamentos bruscos e o peso do trabalho. A terra e o suor tornaram-se a única linguagem que todos compreendiam, o idioma universal da sobrevivência.
Nos primeiros meses, Giovanni aprendeu o peso do sol. O corpo se transformou numa ferramenta: músculos que obedeciam, costas que suportavam, mãos que se abriam em feridas. A fazenda era um mundo fechado, regido por um tempo próprio. O sino da antiga senzala — agora rebatizado de “casa dos colonos” — marcava as horas do trabalho e do descanso. O alimento era escasso, o pagamento vinha em vales trocáveis apenas no armazém da própria fazenda, onde tudo custava o dobro. As dívidas cresciam invisíveis, e o sonho da liberdade se diluía na poeira vermelha da terra paulista. Giovanni entendia, lentamente, que a escravidão havia mudado de nome, mas não de essência.
Mesmo assim, havia algo que resistia. Nas noites sem lua, sentava-se à porta do barracão e olhava o firmamento. O céu do Brasil parecia mais vasto, mais próximo. Às vezes, o vento trazia o cheiro doce das flores de café e, por um instante, ele acreditava estar em casa. Os outros imigrantes, vindos de Treviso, Vicenza e Pádova, compartilhavam entre si o mesmo propósito silencioso: trabalhar o bastante para juntar dinheiro e, um dia, comprar um pequeno lote de terra. Falavam disso nas horas de descanso, enquanto o sol caía por trás dos canaviais e o cheiro da terra úmida subia do chão. Sonhavam com um pedaço próprio, onde pudessem plantar uvas, milho ou feijão — um lugar que fosse deles, ainda que modesto, nas novas vilas que começavam a surgir em torno de Ribeirão Preto. Cada um trazia na lembrança a imagem de um campo distante na Itália, e talvez por isso acreditassem que o Brasil lhes devolveria, em outra forma, a dignidade perdida. Giovanni não partilhava dessa ambição. Enquanto os companheiros falavam de economias, terras e futuros possíveis, ele limitava-se a ouvir em silêncio, como quem já não esperasse nada do amanhã. O que desejava era apenas sobreviver — trabalhar o suficiente para não dever nada a ninguém e manter-se de pé entre o calor e a fadiga que consumiam os dias. Dentro do peito, o que restava era um eco longínquo: o som dos sinos de Quero marcando as horas nas manhãs de domingo, e o murmúrio sereno do Piave deslizando entre as pedras, memória de uma paz que parecia pertencer a outra vida. Às vezes, nas madrugadas em que o vento soprava por entre as frestas do barracão, ele acreditava ouvir novamente aquele rumor, como se a Itália o chamasse de volta em segredo — mas o chamado se perdia no ruído dos insetos e no peso das distâncias.
Os anos seguintes correram lentos, indistintos. A fazenda prosperava, os barões do café enriqueciam, e os colonos italianos multiplicavam-se nos sertões. Giovanni envelheceu antes do tempo, seus olhos perderam o brilho, mas não a serenidade. Aprendera a amar a terra que o exauria. Havia um orgulho silencioso em cada fileira de café que deixava plantada, como se cada broto fosse uma semente de sua própria redenção. De vez em quando, chegavam novas levas de imigrantes. Olhava-os desembarcar com o mesmo espanto que um dia fora o seu. Sabia o que os esperava, mas nada dizia. A esperança, mesmo quando ilusória, era o único alimento que não se podia negar a ninguém.
Nunca retornou à Itália. O irmão mais velho morreu sem vê-lo novamente. As cartas, no início frequentes, tornaram-se raras e, por fim, cessaram. Restou-lhe apenas a lembrança de uma neve distante e o rumor das colinas do Vêneto. Quando morreu, numa tarde de dezembro de 1912, ninguém soube exatamente sua idade. Foi enterrado sob uma cruz de madeira tosca, ao lado de outros colonos. No registro da fazenda, anotaram apenas: Giovanni Dal Molin, italiano, trabalhador do café.
Mas sob o chão quente de Ribeirão repousava mais que um nome: repousava o símbolo de uma geração inteira que cruzou o oceano em busca de um sonho que nunca se cumpriu. A terra que o acolheu, vermelha e fértil, guardou o seu silêncio. E quando o vento soprava por entre as folhas do café, parecia trazer, de muito longe, o eco de um sino de Quero, tocando para um homem que jamais voltaria, mas que, de algum modo, havia enfim encontrado um lar.
Nota do Autor
Os nomes e alguns detalhes desta narrativa foram alterados para preservar a privacidade das pessoas envolvidas. No entanto, a história de Giovanni Dal Molin é inspirada em acontecimentos verídicos, baseados em cartas e registros de emigrantes italianos do Vêneto conservados em acervos históricos e museus do Rio Grande do Sul. O drama aqui narrado reflete o destino de milhares de italianos que, entre o fim do século XIX e o início do XX, deixaram suas aldeias nas montanhas de Belluno, Treviso e Vicenza em busca de uma vida digna nas fazendas de café e cana-de-açúcar do interior da província de São Paulo. Cada página desta obra é um tributo à coragem silenciosa de homens e mulheres que cruzaram o oceano movidos pela fome e pela esperança — e que, nas terras distantes do Brasil, ajudaram a erguer uma nova pátria sem jamais esquecer a antiga. É também um convite à memória: que não se percam as vozes que o tempo quase apagou, nem as histórias que o vento levou, mas que formam o alicerce invisível de quem somos hoje.
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
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