domingo, 28 de dezembro de 2025

A Caminho da Terra Prometida


Caminho da Terra Prometida
Da incerteza em Marselha à conquista de um pedaço de chão no interior do Brasil – 1877

O porto de Marselha, naquela manhã úmida e enevoada de novembro de 1877, parecia mais uma ferida aberta no fim do mundo do que o começo de uma esperança. As brumas espessas se arrastavam preguiçosamente sobre os trilhos ainda mornos, enquanto os guinchos metálicos dos guindastes e os apitos roucos dos navios cortavam o silêncio como lamentos de uma terra que não abraçava, apenas engolia.

Lorenzo Benedette desceu do trem com passos lentos, como se cada movimento fosse arrastado por um peso invisível. Usava a mesma roupa puída que vestira ao deixar Sant’Andrea, na província de Padova: um paletó surrado demais para esconder o frio, um chapéu deformado pela chuva e pela esperança, e nos olhos semicerrados, não apenas pela fumaça das chaminés do cais, mas também por uma mistura de cansaço, medo e decisão.

Partira porque não havia mais escolha. A unificação da Itália, que prometera progresso, trouxera apenas desilusão para os campos. O pão rareava nas mesas. O trabalho minguava com a mecanização das grandes propriedades. O novo governo, distante e implacável, aumentara os impostos até tornar impossível a vida dos pequenos lavradores. A carestia, a fome e o desemprego não eram mais ameaças futuras: eram presenças diárias, que batiam à porta como velhas conhecidas. Em Sant’Andrea, cada família conhecia alguém que havia partido. E agora chegara a vez de Lorenzo.

Aquilo que lhe haviam descrito como o portal para um futuro promissor não tinha brilho algum. Nenhum perfume de promessas. Nenhuma aura de renascimento. O que havia era o cheiro salgado do mar misturado à ferrugem das grandes caixas de ferro, ao suor de operários famintos, à madeira úmida das docas e ao odor acre de centenas de corpos amontoados, cada um carregando no peito uma versão do mesmo desejo: partir. Partir para qualquer lugar onde o pão não fosse racionado e a dignidade não precisasse se ajoelhar.

Ali, sob o céu opaco de Marselha, Lorenzo compreendeu que a travessia já havia começado — não no oceano, mas no espírito. E que o caminho até o tal “Novo Mundo” seria, antes de tudo, um lento desprender-se daquilo que, até então, definira quem ele era.

Ele não vinha sozinho. Ao seu lado, como uma extensão de sua própria determinação, estava Giulia — a esposa de mãos calejadas e olhar cansado, que carregava nos gestos a mesma força silenciosa com que sustentara, por anos, a família nos campos áridos de Sant’Andrea. Os ombros dela, arqueados pelo esforço, sustentavam um embrulho modesto: algumas mudas de roupa, cuidadosamente dobradas, e um pedaço de pão já duro, guardado como se fosse reserva de esperança para a travessia.

Atrás deles, dois pequenos mundos caminhavam com passos incertos. Matteo, o mais velho, de olhar curioso mas assustado, tentava compreender por que as vozes ao redor falavam uma língua que soava áspera e estrangeira. Rosa, a menor, agarrava a barra do vestido da mãe, segurando firme como se aquele pedaço de tecido fosse âncora contra um mar de rostos desconhecidos.

Nas mãos de Lorenzo, um maço de papéis envolto em barbante — as cartas oficiais do prefeito de Sant’Andrea. Eram mais do que folhas carimbadas; carregavam a tinta de uma promessa feita à distância: transporte seguro até o Brasil e, ao final, um pedaço de terra própria. Um sonho que, para muitos na vila, parecia tão vasto e inalcançável quanto o próprio oceano que eles estavam prestes a enfrentar.

Mas o navio que os aguardava não era o que lhes haviam descrito. O cargueiro a vela, encostado ao cais, era velho, escuro, e exalava um cheiro de peixe rançoso. “Apenas alguns dias de espera”, disseram-lhes os agentes, “até que chegue a embarcação certa”. Lorenzo sabia, pela inquietação que se espalhava entre os outros emigrantes, que a espera poderia ser muito mais longa. Quatro dias se passaram. Nenhuma vela nova apareceu no horizonte.

O grupo de mais de trezentas pessoas, amontoado nos galpões do porto, vivia de sardinhas salgadas e pão duro. As mães tentavam acalmar crianças febris. Os homens, de rostos tensos, discutiam entre si e com os representantes da companhia. Um boato cresceu: talvez não houvesse mais navio para o Brasil naquele mês. Talvez a promessa não passasse de engano — ou de fraude.

Numa tarde fria, Lorenzo procurou papel e tinta emprestados. Precisava escrever a Sant’Andrea. Não para pedir ajuda por orgulho, mas porque já não via outro caminho. Dirigiu a carta ao cunhado, Pietro, e ao velho prefeito que havia jurado protegê-los. Contou-lhes sobre o abandono, sobre o medo de serem deixados à própria sorte numa cidade estrangeira, sem dinheiro, sem amigos, sem a língua para se defender. Suplicou que intercedessem junto às autoridades e que, se possível, enviassem recursos para tirá-los daquela situação. Cada palavra era um pedaço de dignidade arrancada de si mesmo.

Enquanto a carta seguia para a Itália, os dias em Marselha arrastavam-se. Um casal do Trento perdeu um filho para a febre. Uma família de Treviso decidiu desistir e tentar voltar à aldeia — mas não havia como. A maioria estava presa ali, refém de um sistema cruel que tratava gente como carga de descarte.

Foi apenas no vigésimo dia que um novo navio atracou. Chamava-se San Michele. Não era muito melhor que o anterior, mas era a única esperança. Os emigrantes embarcaram sob chuva fina. Lorenzo, com Giulia e os filhos, subiu a rampa de madeira com passos trêmulos. Ao olhar para trás, viu a silhueta cinza de Marselha desaparecer lentamente. Naquele momento, fez um juramento silencioso: não importava o que encontrasse no Brasil, nunca mais voltaria a depender de promessas vazias.

A travessia foi longa, marcada por tempestades e enfermidades. Mas, ao cabo de dois meses, o San Michele ancorou em Santos, depois de passar pelo porto do Rio de Janeiro onde os imigrantes foram examinados e receberam os papéis de permanência. Dali, a viagem continuou por trem, através de trilhas de terra até o interior de São Paulo. Foi em Araraquara que Lorenzo e Giulia encontraram um pedaço de chão — pequeno, íngreme, cheio de pedras — que podiam chamar de seu.

Os anos que seguiram não foram fáceis. O solo, ingrato, exigia mais suor do que Lorenzo imaginara. Mas, pela primeira vez, o grão que germinava era dele. As mãos calejadas que colhiam milho, feijão e café não obedeciam mais a ordens de patrões. Cada amanhecer era duro, mas era livre.

Nas noites tranquilas, Lorenzo contava aos filhos maiores sobre Marselha, sobre a carta, sobre o medo de não chegar. Matteo e Rosa ouviam em silêncio, como se guardassem um segredo de família. E Lorenzo sempre terminava da mesma maneira:

— Foi naquele porto que aprendi que a esperança é como uma vela no mar. Pequena, frágil… mas capaz de atravessar oceanos inteiros.

E assim, entre pedras e raízes, construiu não apenas sua lavoura, mas o futuro de uma geração inteira.


Nota do Autor

Esta narrativa nasceu de uma carta escrita em novembro de 1877, a partir do porto de Marselha, por um emigrante italiano que, preso entre promessas quebradas e a incerteza da viagem, suplicava ajuda à sua família e à sua comunidade para não ser abandonado longe de casa.

Os nomes, lugares e detalhes pessoais foram alterados, mas a essência do drama humano permanece fiel: a solidão de quem deixa a terra natal, o medo de não chegar ao destino, a força silenciosa necessária para continuar mesmo quando todas as garantias desaparecem.

Transformar esta carta em história é, antes de tudo, um ato de resgate. Não apenas para preservar a memória de um homem, mas para dar voz a milhares de outros que viveram experiências semelhantes — homens e mulheres que, empurrados pela necessidade, cruzaram oceanos e suportaram privações inimagináveis em busca de dignidade e futuro.

Ao narrar a trajetória de Lorenzo Benedette, ofereço aos descendentes desses emigrantes pioneiros um fragmento do que poderia ter sido a vida de seus avós, bisavós e tataravós. Que esta história sirva de homenagem a todos eles — e lembrete de que cada pedaço de terra conquistado aqui no Brasil carrega, em silêncio, o peso de mares revoltos e promessas feitas do outro lado do Atlântico.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta